Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2294/21.9T8AMD.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS INCOMPATÍVEIS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: À luz da reforma do Código de Processo Civil operada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho e de acordo com o disposto no art.º 590.º n.ºs 2 e 3, desse diploma legal, é de seguir o entendimento que preconiza dever o juiz convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenham deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.


(Elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório


1.1.–AAA instaurou a presente acção declarativa de condenação contra Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL, pedindo que seja anulada a declaração aposta no recibo de indemnização e condenação a Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma de valor nunca inferior a 7.500€ por conta da IPP de pelo menos 10% e outra por danos morais pela quantia de 5.000€, acrescidas de juros de mora desde a data da alta clínica, isto é, 17.05.2021, até integral pagamento.

Alegou, para tanto, que em 29.07.2020, o A. celebrou com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção; a Junta de Freguesia de Encosta do Sol transferiu a sua responsabilidade decorrente de acidentes pessoais para a R., a qual é titulada pela apólice n.º 14.00108599; a 14.08.2020 sofreu um acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 31.08.2020; a 09.12.2020 foi novamente vítima de acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 17.05.2021; dias depois, foi contactado por um funcionário da R., informando-o que iriam proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, desde já, por força das sequelas sofridas pelo A. no pé e joelho direitos; nesse seguimento, a R. remeteu ao A. o recibo nº 21.05.75721, precisamente atestando o pagamento do valor indicado; após aquela data, ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema da sua mão esquerda, ainda em resultado do segundo acidente de trabalho; porém, obteve da R. que o sinistro já tinha sido encerrado e que já tinha recebido a totalidade da sua indemnização; tem agora noção do que consta do recibo pelo mesmo assinado, mas a verdade é que apôs a sua assinatura no mesmo em manifesto erro, porque estava totalmente convicto que se tratava apenas da indemnização devida por força da incapacidade permanente que ficou afectado, em resultado dos acidentes ocorridos, exclusivamente quanto ao pé e joelho direitos; se tivesse a percepção, no momento em que recebeu aquele valor e assinou o respectivo recibo, estava a ser alegadamente ressarcido de todos os danos e que a incapacidade fixada, de 5%, se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem teria assinado o referido recibo; assim, nos termos do disposto no artigo 247.º do Código Civil, a declaração do A., aposta no recibo de que se encontra totalmente ressarcido dos danos decorrentes do acidente em causa nos presentes autos com o recebimento da quantia de 3.750€ e que exonera a R. de qualquer responsabilidade decorrente dos acidentes que o A. sofreu é anulável, o que desde já se invoca e requer.

A Ré contestou, alegando, em resumo, que se o Autor considera que sofreu um acidente de trabalho, deve o tribunal onde correm os autos ser declarado incompetente em razão da matéria. A Ré contratualmente responsável por ressarcir o Autor pela incapacidade que adveio de um acidente pessoal e cumpriu a sua obrigação. Concluiu pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido. 

A 02.06.2022, o Juízo Local Cível da Amadora declarou-se incompetente para conhecer do pleito (fls. 53 a 54).

Após transito desse despacho, foi ordenada a remessa ao Juízo do Trabalho de Sintra (fls. 56).

Por despacho de fls. 66 a 68 verso, consignou-se o seguinte:
“Nestes termos, entendeu-se que a acção não pode prosseguir pois:
Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;
Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado.
É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:
Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;
A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;
Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.
Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil).
Decisão: pelo exposto, absolvo a R. da instância”.

1.2.–Inconformado com esta decisão dela recorre o Autor, concluindo do seguinte modo:
I.–Vem o presente recurso, oportunamente interposto como apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou verificada excepção dilatória, e em consequência, absolveu a R. da instância.
II.–Os presentes autos tiveram início, por acção declarativa de condenação, intentada no Juízo Local Cível da Amadora, que, por decisão de 02.06.2022, julgou-se incompetente para conhecer do pleito.
III.–Transitada em julgado aquela decisão, requereu o ora  Recorrente, ao abrigo do disposto do disposto no nº 2 do art. 99º do CPC, a remessa dos autos ao Juízo julgado competente, in casu, Juízo do Trabalho de Sintra, o que foi determinado.
IV.–Recebidos os autos pelo Juízo do Trabalho de Sintra, não se julgou este incompetente.
V.–Mas, agora, nos termos da decisão recorrida, verifica-se a existência de uma declaração de incompetência encapotada e não expressa, uma vez que consta que “Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado.”
VI.–No entanto, além do Tribunal a quo não dar, cumprimento, ao procedimento estabelecido nos arts. 109º e seguintes do CPC, parece-nos ainda olvidar o disposto no art. 20º do CPT e art. 92º do CPC.
VII.–Nos termos dos referidos preceitos legais, o pedido de anulação declaratória e o pedido de pagamento por danos morais, que o Tribunal a quo se julga incompetente para conhecer, em razão da matéria, mantém-se de facto sob a sua alçada, ao abrigo da extensão de competência ali prevista.
VIII.–Porque necessariamente se tratam de questões relacionadas com os danos decorrentes dos acidentes sofridos pelo Recorrente, cuja reparação integral, independentemente da sua natureza, está expressamente plasmada e consagrada no art. 59º da Lei Fundamental.
IX.–Pelo que, ao contrário do concluído pelo Tribunal a quo, todos os pedidos formulados pelo Recorrente, face às decisões tomadas, e transitadas, mostram-se submetidas à competência daquele Juízo do Trabalho.
X.–Por força da decisão do Juízo Local Cível da Amadora, e que o Tribunal a quo aceitou, e porque a competência, quanto a todos os pedidos, se encontra sob a égide do Tribunal a quo, haveria que proceder à adequação formal dos autos, fosse através da acção especial, fosse através da acção comum,
XI.–Ainda que tal implicasse simplesmente considerar a entrada em juízo da acção, como participação do sinistro, (sem olvidar o disposto no nº 4 do art. 33º da Lei do Apoio Judiciário),
XII.–E fazer, a partir daí, seguir os autos a sua regular tramitação.
XIII.–Porque aceite a competência do Tribunal a quo para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego inserção, e porque, como já alegado, todos os pedidos apresentados pelo Apelante estão necessariamente interligados e decorrem da reparação reclamada e devida por força dos acidentes sofridos, sempre haveria que usar dos deveres plasmados no art. 590.º do CPC, como aliás requerido pelo Apelante, cfr. requerimento de 29.09.2022, e não proferir a sentença recorrida.
XIV.–Os poderes plasmados no art. 590º do CPC não constituem uma mera faculdade do julgador, mas antes um poder-dever.
XV.–Por força das alterações de redacção introduzidas pela Lei 41/2013, de 26 de Junho de 2013, é inequívoca a intenção do legislador e as consequências que daí se extraem.
XVI.–Impende agora sobre o julgador uma verdadeira obrigação, imposição de convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
XVII.–Assim, não está na disposição do julgador decidir pelo cumprimento ou não dos deveres contidos nos nº 2, 3 e 4 do art.º 590º do CPC, pelo contrário – sempre que o Juiz constatar a ocorrência de irregularidades dos articulados ou insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, tem o dever de convidar as partes a supri-los.
XVIII.–Neste sentido, veja-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.04.2008, de 17.11.2009, de 21.05.2013, e de 20.06.2013, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.02.2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.02.2012, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.2011.
XIX.–Não tem o julgador a faculdade de escolher se o faz ou não, mas antes a imposição legal de o fazer e convidar as partes nesse sentido – o poder previsto nos nº 2, 3 e 4 do art.º 590.º do CPC é vinculativo.
XX.–Haverá ainda que atentar ao estabelecido no art.º 6.º do CPC, que igualmente reforça o poder-dever que incumbe ao julgador, de gestão activa do pleito.
XXI.–Porque o Tribunal a quo entende, pelo menos, quanto ao pedido de reparação dos danos decorrentes dos acidentes que vitimaram o Apelante, ter competência para o conhecer, ao abrigo da gestão que lhe incumbe, face ao que veio a concluir e fazer constar da sentença recorrida, impunha-se que o Tribunal a quo ou ordenasse a realização dos actos necessários à regularização da instância, adequando a forma à substância, ou proferisse despacho pré saneador, de aperfeiçoamento, enderençando ao ora Recorrente o convite nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do art.º 590º do CPC.
XXII.–Não o tendo feito, e, nessa medida, tendo o Tribunal a quo omitido a prolação de despacho nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do art.º 590.º do CPC, estamos perante nulidade, nos termos do art.º 195º do mesmo diploma legal, nulidade que se invoca, tudo com as legais consequências.
XXIII.–Assim, por tudo o exposto, deve ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, com o conhecimento de todos os pedidos formulados pelo Recorrente.
XXIV.–Padece assim a sentença recorrida de incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 6º, 92º e 590º, todos do CPC, art.º 20.º do CPT, e art.º 59.º da Constituição da República Portuguesa 
TERMOS EM QUE E SEMPRE,
Invocando-se o DOUTO SUPRIMENTO DESSE VENERANDO TRIBUNAL deverá a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra, que, determine o prosseguimento dos autos, com o conhecimento de todos os pedidos formulados pelo Recorrente, tudo com as legais consequências. PORÉM VOSSAS EXCELÊNCIAS DECIDIRÃO COMO FOR DE JUSTIÇA.

Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações. 

1.3.–O recurso foi admitido com o efeito e regime de subida adequados.

1.4.–O Ministério Público teve vista dos autos, tendo elaborado parecer no sentido do provimento do recurso. A esse parecer respondeu a Ré, pugnando pela incompetência do tribunal e pela sua absolvição.

1.5.–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2.–Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º s 3, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil - CPC), que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras. Deste modo, a questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se ocorre nulidade em virtude de não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC.

3.–Fundamentação de facto
Os factos provados são os do relatório.

4.–Fundamentação de Direito
Da existência de nulidade por não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC

Dispõe o art.º 590.º do CPC,
“(…)
2-Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a)Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b)Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c)Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3-O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4- Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5- Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6- As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs  4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7- Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados”.

Segundo o art.º 6.º n.º 2 do CPC:
“O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”

Por seu turno, o art.º 186.º do mesmo diploma reza o seguinte:
1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2- Diz-se inepta a petição:
(…)
c)Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
(…)”

Como é sabido, o pedido corresponde ao meio de tutela jurisdicional pretendido pelo Autor - o efeito jurídico que o Autor quer obter com a ação (Antunes Varela e Outros, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 243). Traduz a solicitação de concreta providência para tutela do interesse afirmado pelo autor, devendo, como tal, ser claro, compreensível, inteligível e idóneo (Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, Volume II, FDL, pág. 357). 
Acresce que o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação (art.º 555.º n.º 1, do CPC).

Nos termos do citado art.º 590.º, para além das situações previstas na sua alínea a), compete igualmente ao juiz endereçar convite às partes para estas aperfeiçoarem os seus articulados, suprirem irregularidades e insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (n.º 2, alínea b) e n.º 4), o que significaria, à partida, que a ineptidão da petição inicial (por cumulação ilegal de pedidos) não daria lugar ao despacho de aperfeiçoamento.
Sucede que,
Para se aferir da incompatibilidade substancial de pedidos interessa apenas a contradição lógica, a incompatibilidade material de pedidos que conduzam à ambiguidade da pretensão e do efeito pretendido.
A este respeito, assinala Lebre de Freitas, inA Ação Declarativa Comum”, Almedina, 4.ª Edição, págs. 59 e 60. (…) “o disposto no art.º 6.º n.º 2, do CPC, leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade. Fora destes casos, a ineptidão da petição inicial dificilmente deixará de constituir nulidade insanável (…)”.
Sustenta também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado”, 2.º Volume, Almedina pág. … “que no caso da dedução de pedidos substancialmente incompatíveis, deve ser aplicada, por analogia, a mesma solução prevista no art.º 38 do C.P.C. (escolha pelo autor, em caso de coligação ilegal, do pedido com o qual o processo deve prosseguir).
No mesmo sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, I Volume, Almedina, pág. 232 “(…) Com exceção dos casos em que os pedidos são materialmente incompatíveis, gerando a ineptidão da petição inicial (art. 186º, nº 2, al. c)), a cumulação ilegal, à semelhança da coligação ilegal, para onde é feita a remissão (arts. 36º e 577º, al. f)), corresponde a uma exceção dilatória sanável com posterior aproveitamento do pedido que se enquadre nos requisitos materiais e formais dos arts. 36º e 37º, não determinando de imediato uma decisão de absolvição total da instância. (…).” (Vd. Ac. do TRL de 28-09-2021, proc. 4357/19.1T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt.

Desta feita, à luz da reforma do processo civil de 2013, será agora de seguir o entendimento que preconiza dever o juiz convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenham deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.

No novo regime processual civil foi reforçada a ideia de que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite. Todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, para que sempre que seja possível se corrijam as irregularidades ou se suprimam as omissões verificadas, de modo a viabilizar-se uma decisão de meritis (Ac. do TRE de 21-05-2021, proc. 1032/19.0T8STR-B.E1).

No presente caso, relembra-se, o Autor invocou ter celebrado com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção, tendo esta transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho. No âmbito desse contrato sofreu dois acidentes de trabalho (em 14.08.2020 e 09.12.2020).  Tendo sido contactado por funcionário da Ré no sentido de que iria aquela proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, referente à indemnização pelas sequelas sofridas pelo Autor relativas a um dos acidentes, o Autor acabou por assinar recibo, atestando o pagamento desse valor.  E ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema (da sua mão esquerda) decorrente do segundo acidente de trabalho, vindo a ser informado, posteriormente, que o sinistro estava encerrado e paga a totalidade da indemnização. Mais refere que assinou o recibo em erro, visto estar convicto de que se tratava apenas de indemnização por um dos acidentes que sofreu. Se tivesse tido a percepção, quando recebeu aquele valor e assinou o recibo, de que não estava a ser ressarcido por todos os danos e que a incapacidade fixada se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem assinado tal recibo, sendo anulável tal declaração. Aduziu também que face às lesões e sequelas de que padece, fruto dos sinistros ocorridos, deve ser-lhe atribuída uma desvalorização/incapacidade permanente, nunca inferior a 10%, segundo a TNI, a que corresponde uma indemnização de valor nunca inferior a € 7.500,00, a que acresce a indemnização pelos danos morais e dores constantes que o Autor sofre e continuará a sofrer, que deve ser arbitrada em € 5.000,00 (cinco mil euros).  

Nessa sequência, pediu que a acção seja “julgada procedente, e, em consequência, anulada a declaração aposto no referido recibo e a R. condenada a pagar ao A. uma indemnização global nunca inferior a € 12.500,00, acrescida de juros de mora, desde a data da alta clínica, 17.05.2021, até integral e efectivo pagamento”.

Como resulta da decisão recorrida, o Mmo. Juiz considerou-se competente para conhecer de processo que vise a reparação dos danos resultantes de acidente de trabalho e também o pedido de anulação da declaração que o Autor emitiu. Acabou, porém, por considerar não ser possível aproveitar os articulados aqui produzidos, considerando existir cumulação ilegal de pedidos (art.º 555.º do Código de Processo Civil), os quais correspondem a pedidos referentes a formas de processo incompatíveis, o que ofende as regras de competência em razão da matéria - concluindo, assim, pela verificação de uma excepção dilatória, tendo, como tal, absolvido a Ré da instância.

É sabido que a reparação dos acidentes de trabalho, tem lugar no âmbito do processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, que se encontra previsto nos artigos 99.º a 150.º do Código de Processo de Trabalho. Essa acção é composta por uma fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Público, e por uma fase contenciosa ou judicial, sob a responsabilidade do juiz. O seu início tem por base a participação de acidente de trabalho.
A participação quando feita pelo sinistrado, não está sujeita a qualquer formalismo (artigos 90.º e 92.º, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro (LAT)). Basta que dela resulte a existência de um facto susceptível de integrar o conceito de acidente de trabalho, à luz dos  artigos 8.º e 9.º da LAT.

Destarte, nada parece obstar a que uma petição inicial, onde estão descritos factos enquadráveis na noção de acidente de trabalho, possa ser convolada em participação. E, porque na petição em causa se evidencia a existência de dois acidentes de trabalho, poderá vir a extrair-se certidão da mesma e remetê-la à distribuição, visto se estar perante direitos indisponíveis, como se referiu no Ac. do TRP de 03-10-2022, proc. 3577/21.3T8PNF-A.P1, disponível em www.dgsi.pt. também citado pelo Ministério Público no seu parecer.

Relativamente ao pedido dos danos não patrimoniais, não pode o mesmo ser apreciado no processo especial emergente de acidente de trabalho por força do regime previsto na LAT onde os danos e seu modo ressarcimento se encontram  previamente delimitados (artigos 23.º, 25.º, 39.º, 41.º, 47.º, 48.º e 49.º da LAT).

Assim sendo, configurando-se uma cumulação ilegal de pedidos, à luz do supra exposto entendimento, deveria o Mmo. Juiz, ao invés de ter absolvido o Réu da instância, ter formulado convite ao Autor para este vir indicar qual o pedido que pretende ver apreciado neste processo, sob a cominação de não o fazendo ser o Réu absolvido da instância quanto a todos eles (art.º 38.º, n.º 1, 555.º n.º 1, do CPC “ex vi” do art.º 1.º n.º a alínea a), do CPT).

Essa ausência de convite traduz a prática de uma nulidade, nos termos do art.º 195.º do CPC, visto se traduzir na omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, com influência na decisão da causa. E porque está a mesma coberta por decisão é a mesma impugnável por via de recurso.

Procede, deste modo, a presente questão.

4.–Decisão

Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, pelo que se anula o despacho recorrido que deve ser substituído por outro, a convidar o Autor para vir indicar qual o pedido que pretende ver apreciado neste processo, sob a cominação de não o fazendo ser o Réu absolvido da instância quanto a todos eles.
Custas pelo vencido a final.
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Lisboa, 2023-09-27



Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Alves Duarte



Decisão Texto Integral: