Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | EDUARDO PETERSEN SILVA | ||
Descritores: | UNIÃO DE FACTO JOGO DE FORTUNA E AZAR PRÉMIO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Para um dos membros de um casal unido de facto reclamar metade do prémio em jogo de sorte e azar auferido pelo outro membro, que jogou, não basta afirmar que o dinheiro usado para a aposta era daquele, sendo necessária a alegação dos factos através dos quais se indicia o acordo entre eles quanto aos termos em que a aposta é feita ou quanto aos termos em que o prémio, se sair, é repartido. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório A, com os sinais dos autos, intentou contra P, também nos autos m.id., a presente acção declarativa, sob a forma comum, pedindo a condenação deste a reconhecê-la como proprietária de 50% do prémio de Totoloto, e a entregar-lhe a quantia de €1.332.967,78. Em síntese, alegou ter vivido com o réu, durante mais de 30 anos, em união de facto, tendo este, em 2016, com dinheiro fruto do rendimento da autora, feito uma aposta no concurso da Santa Casa da Misericórdia denominado “Totoloto”. Tal aposta foi recompensada com o 1.º prémio, tendo a autora e o réu sido premiados no concurso n.º …, de ….2016, com a quantia de €3.332.419,45, após o que procederam à abertura de uma conta de depósitos à ordem junto da CGD, balcão dos Restauradores, onde foi depositado o valor do prémio, descontado de impostos, no montante de €2.667.934,86. Mais alegou ser dentista de profissão e ser o seu consultório médico dentário o único suporte financeiro do casal, sem que o réu tivesse profissão, limitando-se a ajudar ocasionalmente no consultório, sem que lhe sejam conhecidos quaisquer rendimentos ou actividade profissional, tendo as despesas do casal sido sempre e invariavelmente suportadas por si. O comportamento do réu alterou-se substancialmente depois do recebimento do prémio, que o passou a invocar como seu. Alegou diversos negócios e aplicações dadas pelo réu a parte dessas quantias, invocando excederem a metade que lhe cabia e com a qual se locupletou, sobrevindo, em Agosto de 2018, a cessação da união de facto, devido à má relação que passou a existir entre ambos, sem que o réu tenha entregue à autora a metade do prémio que lhe cabia. Contestou o Réu impugnando parcialmente a factualidade alegada na petição inicial, alegando que tanto ele como a Ré são brasileiros, tendo formalizado a sua união notarialmente, no Brasil, em 1998, por via de um contrato de união de facto com separação total de bens, e que vieram viver para Portugal em 6.3.2022. Sem prejuízo de terem vivido em condições análogas às dos cônjuges desde Março de 1988 até Outubro de 2018, sempre dispuseram individualmente dos seus próprios bens e rendimentos, contribuindo para as despesas da casa em partes iguais. No Brasil, o Réu foi desenhador de joias, agente imobiliário, livreiro e explorou uma clínica dentária com a autora e com familiares desta, trabalhando no laboratório de próteses dentárias, sendo técnico nesta área. Já em Portugal, explorou em conjunto com a autora uma clínica dentária, sendo a autora médica dentista e o réu protésico e gestor, partilhando os respectivos lucros, até à cedência da clínica à filha da autora. À data dos factos viviam dos rendimentos que tinham auferido e do produto da venda de um imóvel que o réu tinha no Brasil e cujo montante foi transferido para a conta da autora no Banco do Brasil. A aquisição da aposta premiada foi feita com dinheiro apenas seu. Não havia qualquer acordo entre ambos em como as apostas que o Réu fazia fossem feitas em nome de ambos ou que o resultado positivo que daí eventualmente adviesse fosse dividido pelos dois. Na conta que abriu com a A. na CGD e na qual depositou o prémio, autorizou-a a gastar dinheiro para as suas despesas normais, utilizando para o efeito um cartão bancário e despendendo, ao longo do tempo, €41.037,72, sem que esse dinheiro lhe pertencesse. Juridicamente defendeu que não havendo comunhão de bens na união de facto, atento o regime que escolheram no Brasil, nunca o prémio poderia ser de ambos os membros da união de facto. Acresce que, mesmo que o dinheiro para a aquisição da aposta lhe tivesse sido dado pela A., continuaria a ser apenas seu, visto que a doação de dinheiro não atribui ao doador nem a compropriedade, nem a propriedade plena, sobre os bens adquiridos, pelo donatário, com o dinheiro doado, sem que o doador possa exercer qualquer direito sobre a utilização futura desse dinheiro. Foi fixado o valor da acção em €1.332.967,78, saneados tabelarmente os autos e definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Após instrução, foi realizada audiência de julgamento em duas sessões e seguidamente foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu dos pedidos, condenando a Autora em custas, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça. * Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões: “I – Por erro de julgamento, da matéria de facto e de direito, com reapreciação da prova gravada, cfr. art.ºs 473.º e 474.º do CC e art.ºs 410º, 411º, 413º, 466º, 607º, n.ºs 4 e 5, 608º, 639º, 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Ia) – Encontram-se incorrectamente dados como provados os factos n.ºs 5., 6.,7., 8., 9., 14 e 15. Ib) – Em contraponto firmou-se, incorrectamente, como não provados os factos vertidos em A., C., D., E., F., G. e I. II – Os factos dados como provados em Ia) tiveram como sustentação principal as declarações de parte prestadas pelo réu P, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 2/2/2024, das 16h e 10m às 17h e 09m, com a Ref. Citius n.º 148979893, e cujo teor se dão aqui por reproduzidas por economia processual. III – Ora, das declarações de parte do réu resulta um arrazoado de contradições, incongruências e paradoxos, desafiadoras das mais elementares regras da experiência. Com efeito, é incompreensível que o Tribunal se convença de os proventos da clínica eram divididos na proporção de metade quando o réu nem sequer era dentista, recebendo esse montante em numerário para fazer face a compras quotidianas. Mais a mais o réu nunca conseguiu explicar de forma cabal porque é que ao longo de mais de 10 anos em Portugal nunca teve conta neste País, e muito menos densificou como viveu em território nacional durante 14 anos nesses termos. Estando em causa os montantes propalados é surreal que primeiramente refira que é avesso a Bancos para depois ir depositar num Banco Nacional o prémio recebido! O cúmulo da utopia é querer manter em segredo o prémio recebido, quando comunicou tal facto à sua companheira, a fim de manter segredo (segundo o réu), sendo certo que seria esta a decidir o destino dessa quantia, designadamente em relação aos herdeiros do próprio réu!!! IV - Igualmente o Tribunal, atendeu, erroneamente, e igualmente, aos depoimentos das testemunhas D, que prestou declarações na audiência de discussão e julgamento de 2/2/2024, das 11h e 51m às 12h04m, com a Ref. Citius n.º 148979893, H que prestou depoimento em sede de audiência final em 2/2/2024, das 15h e 35m às 16h 09m, com a Ref. Citius n.º 148979893, e da testemunha R que prestou depoimento em sede de audiência final em 2/2/2024, das 12h e 22m às 12h 50m, com a Ref. Citius n.º 148979893, e cujo teor se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais. V – O que se procurou explanar, para além das considerações tecidas supra acerca das declarações de parte do réu, em III, é que o Tribunal viola as regras da livre convicção da prova e da normalidade do acontecer, quando ATRIBUI CRÉDITO a depoimentos que, em resumo, assuntam-se: - Desconhecem a profissão do réu; - Recebia uma percentagem dos rendimentos da clínica que desconhecem; - Desconhecem o seu ordenado; - Desconhecem porque não abriu uma conta em Portugal; - Vinham entregar dinheiro ao réu, em mão, dos EUA para Portugal, fruto da venda livros que ocorria naquele território! - Era o réu que liquidava despesas da clínica mas não esclarecem em que termos e a origem dos montantes; - O réu era fornecido com material ortodôntico, cujo remetente era um amigo dos EUA, que o entregava àquele numa mala de mão e assim o transportava por via aérea. Diversamente, VI - Em contraponto firmou-se, incorrectamente, como não provados os factos vertidos em Ib), desvalorizando-se, sem fundamento bastante, o seguinte as declarações das testemunhas V, funcionária da CGD, que prestou depoimento em sede de audiência final em 31/1/2024, das 16h e 25m às 16h 35m, com a Ref. Citius n.º 148937768, o depoimento da testemunha L, em sede de audiência final em 31/1/2024, das 15h e 53m às 16h 24m, com a Ref. Citius n.º 148937768, as declarações da testemunha B em sede de audiência final em 31/1/2024, das 16h e 36m às 17h 5m, com a Ref. Citius n.º 148937768, e o depoimento da testemunha VV em sede de audiência final em 31/1/2024, das 9h e 50m às 10h 19m, com a Ref. Citius n.º 148979893, cujo teor, e no prevalecente, se dá aqui por integralmente reproduzido por economia processual. VII – Para além das considerações expendidas supra, e dos depoimentos elencados em VI, sem tibieza, ressalta o seguinte: - O réu abriu a conta referida em 10. dos factos provados, pelo que recorrendo às regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, entendia que o prémio obtido era das partes (Autor e Réu). - Mais, resulta à saciedade que o réu poderia ter aberto a conta sozinho! - O réu pretendeu justificar uma panóplia de alegados rendimentos que, convenientemente, não lograram comprovação. - A convicção do Tribunal, ao alicerçar-se no alegado interesse indirecto no desfecho da presente acção, pelo facto das relações de parentesco de alguns depoentes, descredibilizados, carece de qualquer fundamento objectivo, em detrimento de outros, sem arrimo sustentado, quando, em momento ulterior tiveram relações “privilegiadas” com o réu. VIII a) - Encontram-se incorrectamente dados como provados os factos n.ºs 5., 6., 7., 8., 9., 14 e 15. b) - Em contraponto firmou-se, incorrectamente, como não provados os factos vertidos em A., C., D., E., F. G. e I. Consecutivamente, o tribunal a quo violou, os princípios e normativos, plasmados nos artº 127º e 607º, nº 4 e 5 do CPC. O enriquecimento sem causa Aqui chegados, e conforme se vem pugnando no presente libelo recursivo, merecendo comprovação os factos dados como não provados em A., C., D., E., F. G. e I. em B1b) deverá o réu ser condenado a reconhecer a autora como proprietária de 50% do prémio do Totoloto, bem como a ser condenado a entregar-lhe a quantia de € 1.332.967,78 fruto de, em 2016, com dinheiro proveniente do rendimento da autora, feito uma aposta no concurso da Santa Casa da Misericórdia denominado “Totoloto”, como, de resto, era usual fazer, e entroncando no compromisso assumido por ambos, sob pena de violação dos artºs 473º e 474º do CC. Termos em que se requer que a sentença seja substituída por outra que condene o Réu P a reconhecer a Autora como proprietária de 50% do prémio do Totoloto, entregando-lhe a quantia de €1.332.967,78 e assim, pela correcta aplicação do Direito, se fazendo Justiça”. Contra-alegou o Réu, formulando a final as seguintes conclusões: “A. Os factos 5 e 6 ficaram provados, por prova documental, conforme documento n.º 27 junto à contestação, que atesta que a aposta foi feita no dia 17/06/2016, no jogo Totoloto, em nome do Recorrido, a quem foi atribuído o prémio bruto de 3.333.418,75€, por sorteio realizado no dia 18/06/2016. B. A testemunha principal da Recorrente, a sua filha L, declarou que a própria Recorrente assumia que o prémio tinha sido ganho pelo Recorrido, porque só ele jogava semanalmente e a sua mãe não jogava, nem ele jogava pelos dois, e que a Recorrente apenas tinha dado dinheiro ao Recorrido para ele jogar. C. O facto provado 7 ficou demonstrado pelo depoimento das próprias testemunhas da Recorrente, L e B, que declararam que era o Recorrido que jogava semanalmente no Totoloto. D. O facto provado 8 ficou demonstrado pelos testemunhos de L e B de que afirmaram que a Recorrente não jogava, nem pretendia jogar, apenas dava dinheiro ao Recorrido para que este jogasse o que quisesse jogar, em seu nome. E. O facto provado 9 ficou demonstrado pelos testemunhos de L e B, pois declararam não ter havido nenhum acordo prévio ao recebimento do prémio, nem conhecer nenhum acordo posterior ao mesmo, para a divisão do montante pela Recorrente e pelo Recorrido. F. Os factos não provados A, D, E, F e G e I foram, de facto, não comprovados dado que se provou, pelos testemunhos de L, B, C, VV, R e J, que declararam que o Recorrido trabalhava na clínica dentária onde a Recorrente era dentista, a qual era propriedade dos dois, e que moldava próteses e geria a clínica em nome dos dois, além de ter outros rendimentos da venda de livros, como se provou pelo testemunho de H. G. Mais se provou, no facto provado 17, que o Recorrido tinha rendimentos de imóveis seus, nomeadamente a venda de um imóvel que resultou numa entrada de cerca de 40.000,00€ na conta bancária da Recorrente, meses antes do recebimento do prémio do Totoloto. H. Nunca o dinheiro ganho como prémio pelo Recorrido poderia ser de ambos os membros da união de facto, visto que não há comunhão de bens na união de facto, e que a Recorrente e o Recorrido assinaram um documento de constituição desta união de facto no regime da separação total de bens, I. Qualquer bem adquirido pelo Recorrido com o dinheiro que obteve no prémio também será apenas seu, visto que foi comprado com dinheiro próprio seu e não existe dinheiro comum na união de facto. J. Ainda que a Recorrente e o Recorrido fossem casados, e mesmo que o fossem no regime da comunhão de adquiridos, a obtenção de um prémio de jogo num jogo de sorte ou azar é equiparável a uma doação e sempre seria considerada um bem próprio do Recorrido, nos termos do artigo 1733.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil. K. A abertura da conta solidária pelo Recorrido e pela Recorrente não altera a propriedade do dinheiro nela depositado, que releva das relações internas dos titulares da conta, e não da circunstância, externa a essa propriedade, de ter sido convencionada a solidariedade na movimentação da conta, que só tem efeitos externos, face à entidade bancária. L. Não se poderá aplicar o instituto do enriquecimento sem causa dado que o enriquecimento obtido pelo Recorrido não o foi às custas da Recorrente, mas derivou do prémio ganho no totoloto, e até porque o dinheiro do prémio não se encontrava na esfera da mesma quando o Recorrido o obteve e houve um acto jurídico de permeio entre o enriquecimento do Recorrido e o dito empobrecimento da Recorrente, qual fosse a doação do dinheiro para jogar. M. As doações que o Recorrido foi fazendo à Recorrente, quando a deixou usar o cartão de débito da conta bancária que abriram em conjunto, com o dinheiro do prémio, não podem criar, na esfera jurídica da Recorrente, uma expectativa legítima quanto à eventual propriedade, seja de que parte for, dessa quantia total, considerando que, na origem, o direito de propriedade sobre todo ou metade do dinheiro ganho não é seu”. * Corridos os vistos legais, cumpre decidir: II. Direito Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil - as questões a decidir são a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e em consequência a procedência da acção. * III. Matéria de facto A decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de primeira instância é a seguinte: “2.1. Factos provados: Do conjunto da prova produzida, ficaram provados os seguintes factos: 1. A autora A e o réu P viveram durante mais de 30 anos numa relação análoga à dos cônjuges, partilhando mesa, cama e habitação. 2. Tal relação teve início em finais de 1987 e cessou em Setembro/Outubro de 2018, por desentendimentos entre ambos. 3. A autora e o réu, em 27-05-1998, no Serviço Notarial de Brasília, no Brasil, celebraram uma “escritura pública declaratória”, na qual, a autora, como brasileira e divorciada, e o réu, como brasileiro e divorciado, afirmaram o seguinte: “Que declaram para todos os fins de direito, e para fazerem prova junto a quem de direito ou desta tomar conhecimento que, convivem maritalmente desde novembro de 1993, ficando estabelecido que o regime é o da separação total de bens, e que cada um administrará livremente ou seus bens, e arcará com as despesas a eles inerentes”. 4. A autora e o réu vieram residir para Portugal em 2002, passando a aqui habitar, primeiro durante cerca de 12 anos na zona da Tapada das Mercês, em Sintra, e, após um período de cerca de um ano e meio em que viveram em Málaga, Espanha, regressaram a Portugal, em meados de 2015, tendo passado a residir num apartamento sito no Estoril. 5. O réu, em Junho de 2016, realizou uma aposta no concurso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa denominado “Totoloto”, tendo feito uma aposta múltipla por preenchimento automático ao balcão, despendendo, para o efeito, cerca de €18,00. 6. No seguimento desta aposta, o réu, com referência à semana n.º …/2016, de …, do jogo “Totoloto”, por sorteio realizado no dia …2016, obteve o prémio correspondente à aposta vencedora, no valor bruto de €3.333.418,75. 7. O réu tinha o hábito de jogar no “Totoloto”, despendendo, semanalmente, em média, cerca de 20,00 semanais. 8. A autora não jogou no referido sorteio do “Totoloto”, não se encontrava presente na altura da aposta, nem tinha o hábito ou interesse em fazer apostas em jogos de fortuna e azar. 9. Entre a autora e o réu não havia qualquer acordo em como as apostas que o réu fazia fossem feitas em nome de ambos ou que o resultado que daí eventualmente adviesse fosse dividido entre ambos. 10. O réu e a autora abriram, em …2016, na agência dos Restauradores, em Lisboa, da Caixa Geral de Depósitos, uma conta conjunta, co-titulada por ambos, à qual foi atribuído o n.º …, para onde foi transferido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o valor do prémio, líquido de impostos, correspondente a €2.667.934,86. 11. A autora ficou com um cartão bancário referente à mencionada conta e, ao longo do tempo em que perdurou a relação de união de facto, realizou diversos gastos com fundos daí provenientes, com o conhecimento e consentimento do réu. 12. A autora é médica dentista de profissão, tendo obtido essa qualificação no Brasil, e exercido essa profissão, pelo menos, até ter ido com o réu, viver para Málaga, Espanha. 13. O réu é técnico em higiene dental e técnico de próteses dentárias, tendo obtido tais qualificações no Brasil, frequentando posteriormente múltiplas formações nessa área. 14. O réu exerceu, no Brasil, diversas profissões, nomeadamente, foi desenhador de joias, agente imobiliário, livreiro e explorou, em Brasília, uma clínica dentária com a autora e com familiares desta, trabalhando no laboratório de próteses dentárias. 15. Autora e réu exploraram, em conjunto, em Portugal, até à altura em que se mudaram para Espanha e a entregaram a uma filha da autora, uma clínica dentária sita na Tapada das Mercês, de onde retiravam rendimentos. 16. A autora e o réu iniciariam um negócio de gelataria em Málaga, Espanha, que não teve sucesso, pelo que regressaram a Portugal, passando a viver num apartamento sito no Estoril, sem terem qualquer actividade profissional. 17. Em Junho de 2015, um imóvel sito no Brasil em relação ao qual o réu tinha direito, em partes iguais, a metade do produto da venda, foi vendido pelo valor de 400.000,00 reais, tendo parte do valor que lhe era devido, sido transferido para o réu, através de uma conta bancária titulada pela autora no Banco do Brasil, através do depósito, em 16-07-2015, do valor de 95.000,00 reais, e em 04-08-2015, do valor de 50.000,00 reais, sendo tais montantes pertencentes ao réu. * 2.2. Factos não provados: Do conjunto da prova produzida não ficaram provados os seguintes factos: A. O réu realizou a aposta vencedora do prémio do “Totoloto” com dinheiro fruto do rendimento da autora. B. O réu tinha o hábito de proceder a um gasto médio de €50,00 semanais em apostas. C. A autora foi premiada, em conjunto com o réu, no sorteio do “Totoloto” de …2016, com o 1.º prémio. D. Até à data da aposta vencedora, a autora era o único suporte financeiro do casal. E. O réu não tinha profissão e ajudava ocasionalmente no consultório, mas sempre sem carácter de reiteração ou habitualidade. F. A autora nunca conheceu ao réu qualquer tipo de rendimentos ou constatou o exercício de uma qualquer actividade profissional. G. O réu jamais contribuiu para as despesas comuns do casal, as quais foram sempre e invariavelmente suportadas pela autora. H. Após o recebimento do prémio, o comportamento do réu alterou-se substancialmente. I. O réu locupletou-se com metade do valor do prémio, no montante de € 1.332.967,78, quando este cabia, de pleno direito, à autora. * Os restantes factos alegados nos articulados, não especificamente incluídos na matéria de facto provada ou não provada, não foram atendidos por serem conclusivos, conterem matéria de direito ou não relevarem para a boa decisão da causa. (…) 2.3. Motivação da decisão da matéria de facto: A convicção do tribunal quanto à factualidadade provada e não provada assentou, essencialmente, na prova documental junta aos autos, no depoimento das testemunhas arroladas por cada uma das partes e, complementarmente, nas declarações de parte do réu, as quais se afiguraram, de resto, merecedoras de credibilidade. Assim, ponderando as regras de distribuição do ónus da prova (cfr. art. 342.º do CC), e o critério legalmente previsto para o caso de subsistência de dúvidas a respeito da veracidade de determinada factualidade (cfr. art. 411.º do CPC), entendeu o tribunal que, face, à forma como a acção foi configurada e aos pressupostos em que esta assentava, não logrou a autora demonstrar os factos essenciais em que baseou o seu pedido. Com efeito, independentemente da apreciação da invocada (in)viabilidade jurídica da causa, tendo a autora assentado a sua pretensão no valor utilizado pelo réu na realização da aposta vencedora ser “com dinheiro fruto do rendimento da Autora” (cfr. art. 3.º da p.i.), considerou o tribunal que tal factualidade não ficou demonstrada, pois os elementos documentais e testemunhais por esta apresentados não o confirmaram de forma consistente, antes tendo sido infirmados pela prova produzida pelo réu. No mais, e ainda que a autora não tenha alegado a existência de um acordo quanto à repartição do prémio, limitando-se a aludir à abertura de uma conta bancária em conjunto e a invocar que teria sido premiada, em conjunto com o réu, deu o tribunal como expressamente não provada essa matéria, considerando, de resto, como provado o alegado na contestação a respeito das circunstâncias em que foi feita a aposta. Nesta sede, e ainda que a tal matéria se tenha referido, essencialmente, a contestação, entendeu-se ter ficado provado, nomeadamente, que a autora não procedeu à aposta em conjunto com o réu, nem que não acordou, prévia ou posteriormente, qualquer repartição do valor sorteado, independentemente de se ter considerado não haver que responder se o dinheiro utilizado para a aposta pertencia ao réu, uma vez que competia à demandante provar positivamente que o dinheiro utilizado para o efeito pertencia à autora. Ponderando, pois, o objecto do litígio e os temas da prova concretamente enunciados, à luz das regras de distribuição do ónus da prova que implicavam a sua demonstração pela autora, entendeu o tribunal não terem ficado provados quaisquer dos factos constitutivos em que a autora assentou a sua pretensão de reconhecimento da contitularidade do prémio, não ficando igualmente provada a existência de um eventual acordo de repartição do prémio, apesar do regime de união de facto, com expressa separação de bens, que vigorava à data entre as partes, objecto de formalização notarial no Brasil. Assim, em concreto, e no que se refere à factualidade inicial respeitante à relação de união de facto mantida entre o autor e a ré, assentou o tribunal a sua convicção, antes de mais, na confissão decorrente da contestação apresentada pelo réu, inexistindo divergência entre as partes a respeito da natureza dessa relação e tempo de duração. Acresce, ter ficado provado, com base nos elementos documentais juntos pelo réu, terem as partes, ainda no Brasil, formalizado a mencionada relação através da celebração de uma escritura púbica de união de facto em que definiram expressamente que o respectivo regime patrimonial seria o da separação de bens. O teor dessa escritura de 27-05-1998 foi, parcialmente, transcrito na matéria de facto provada, com base na certidão apostilhada junta pelo réu com a contestação, decorrendo da prova produzida, em particular das declarações de parte do réu, que a mencionada relação remontava a um período, inclusive, anterior, e cessou em Setembro ou Outubro de 2018, ou seja, perdurou por mais de 30 anos, conforme alegado pela autora, tendo terminado quando as partes residiam já em Portugal, e se deu a ruptura do seu relacionamento. A existência da referida relação foi, de resto, confirmada pela generalidade da prova testemunhal produzida, referindo-se as testemunhas ao relacionamento análogo ao casamento mantido entre autora e réu, ficando claro da prova produzida que tanto, a autora como o réu, este nascido em 1953 (cfr. cópia de cartão do centro regional de odontologia junto com a contestação) e sendo, inclusive, a autora mais velha cerca de 10 anos que o réu, haviam sido anteriormente casados com terceiros e tinham, cada um, filhos de anteriores relacionamentos mas não entre ambos. A prova produzida, nomeadamente, os documentos e testemunhos prestados por familiares ou pessoas mais próximas, permitiram ainda concluir que, cada uma das partes tinha o seu próprio património, tendo consciência e praticando um regime de separação de patrimónios entre ambos, ainda que existisse alguma informalidade a esse respeito no quotidiano fruto de um relacionamento de décadas. Ainda para efeitos de enquadramento, e de compreensão lógica e cronológica da factualidade relevante, consignou o tribunal na matéria de facto, em termos cronológicos abrangentes, os diferentes locais onde a autora e o réu residiram e respectivas datas, evidenciando a prova produzida que autora e réu, anteriormente a virem para Portugal, residiram no Brasil, e num determinado período, na Flórida, nos EUA, sendo certo que na altura da realização da aposta premiada, tinham regressado a Portugal, depois de uma experiência economicamente falhada em Málaga, residindo de forma modesta num apartamento no Estoril. Da prova produzida, foi especialmente abundante a relativa ao período anterior à ida para Espanha, por referência aos mais de 10 anos em que foi exercida a exploração de uma clínica dentária na Tapada das Mercês, a qual, sem prejuízo de se distanciar temporalmente do momento da aposta, não resultou, em todo o caso, demonstrado que o réu, nessa altura ou posteriormente, não tivesse rendimentos e vivesse “à custa” da autora. Tal foi a convicção que as testemunhas arroladas pela autora, em particular os seus familiares L, B e R, respectivamente, filha, neto e marido da neta da autora, quiseram fazer crer, não tendo, contudo, os seus depoimentos pela relação de proximidade com a autora, e até, pelo seu aparente interesse indirecto no desfecho da causa, merecido credibilidade, tendo, em diversos aspectos, sido contrariados pela demais prova produzida pela própria autora e pelo réu. Assim, referiu-se a testemunha L a que o réu vivia a expensas da sua mãe e que o dinheiro utilizado para o jogo pertencia à autora, enquanto a testemunha B sustentou que o réu se limitava a ajudar a autora na clínica em pequenos assuntos, tendo a testemunha R chegado a descrever ter assistido ao réu a retirar dinheiro da carteira da autora, menosprezando todos o papel que o réu tinha na clínica e a possibilidade do dinheiro utilizado na aposta lhe pertencer. Contudo, os referidos depoimentos afiguraram-se ao tribunal preparados, tendenciosos e carecidos de sustentação, com destaque para o depoimento da testemunha R que, ao contrário das testemunhas que o precederam que defenderam que o réu não teria dinheiro seu, mas que admitiram que a autora não tinha qualquer interesse em apostas e nada ter sido combinado quanto à repartição de um eventual prémio, quis fazer crer ao tribunal que a própria autora era jogadora habitual e que teria ouvido uma conversa em que as partes se teriam referido “à sua parte” no prémio. Tal depoimento, contudo, e para além das razões supra referidas relativas à proximidade com a autora e forma quase acintosa como depuseram contra o réu, revelou-se, ainda, notoriamente preparado (para o que contribuiu ter sido já prestado na segunda sessão da audiência de julgamento), resultando da prova produzida que as mencionadas testemunhas teriam, inclusive, razões para se sentir ressentidas em relação ao autor por este não ter acedido aos pedidos feitos para que financiasse projectos destes. Tal foi, nomeadamente, declarado pelo réu nas suas declarações de forma verosímil, mencionando ter sido esta a causa de ter cessado a relação de união de facto, gerando-se desentendimentos entre as partes devido às insistências da autora em querer que o réu desse mais fundos aos seus familiares. A falta de credibilidade e isenção dos referidos depoimentos e, em geral, da prova produzida pela autora para demonstrar que o dinheiro utilizado na aposta lhe pertenceria ou proviria de fundos seus, foi, aliás, contrariada pela demais prova produzida, a qual se revelou mas[1] isenta e credível, caracterizando a situação pessoal e patrimonial comum de ambos como mais consentânea com o que teria sido a realidade da sua vivência, em particular na época em que exploravam a clínica dentária na Tapada das Mercês. Assim, a demais prova produzida, inclusive pelas restantes testemunhas arroladas pela autora e secundada pelas testemunhas do réu, revelou que mesmo em relação ao mencionado período em que era explorada a clínica dentária na Tapada das Mercês, a actuação do réu não pode ser considerada como de alguém sem profissão ou rendimentos, conforme alegado na petição inicial e foi considerado como não provado. A testemunha da autora VV, administrador do condomínio do prédio onde as partes então viviam, descreveu o réu como uma pessoa empreendedora e colaborante em várias actividades, inclusive, na clínica onde o via a fazer diversas tarefas, mas afirmou crer que este vivia financeiramente dos rendimentos da autora, resultando, em todo o caso, das suas declarações não ter conhecimento da situação financeira de ambos, em particular na altura da aposta vencedora, pelo que tal depoimento, em si, não poderia formar a convicção do tribunal a este respeito. Já a prova produzida pelas testemunhas do réu, confirmaram que o réu era pessoa activa e presente na vida da clinica, tendo aí diversas funções que revelam que, ainda que esta se encontrasse, até por razões legais, em nome da autora, médica dentista de profissão, o réu exercia funções relacionadas com a sua actividade de técnico protésico mas também, o que se pode considerar, de gestão, apresentando-se, inclusive, em termos práticos, como seu proprietário em conjunto com a autora. A este respeito referiram-se, nomeadamente, as testemunhas D, metalomecânico fornecedor da clínica, MT, fornecedora de elementos de publicidade, ambos frequentadores e pacientes da clínica, os quais descreveram o papel activo que o réu tinha na administração de diversos assuntos da clínica, ficando com a convicção de se tratar de um negócio comum. Especialmente credível a este respeito, pelo conhecimento directo que tinha acerca da gestão da clínica, uma vez que trabalhou em conjunto com as partes entre 2008 e 2011, mostrou-se o depoimento da testemunha que R, médico dentista, que descreveu, em pormenor, o funcionamento da clínica e o papel que o autor e a ré tinham nesse período. Assim, referiu-se a fazer compras de material em conjunto com o réu, que tinha conhecimentos técnicos para o efeito, à mudança de instalações que empreenderam em conjunto, bem como à forma como os pagamentos eram realizados, resultando do respectivo depoimento que o réu, para além da parte técnica relativa às próteses, exercia em conjunto com a autora a administração da clínica, o que torna credível a versão apresentada na contestação de que os proveitos desta eram partilhados entre as partes, sem prejuízo do regime de separação de bens que vigorava entre ambos, desmentindo tal a versão da autora segundo a qual haveria uma dependência financeira do réu em relação a si. A caracterização do réu como alguém com qualificações e capacidade profissional, designadamente, por forma a ter rendimentos próprios e não estar dependente da autora, foi corroborada pela descrição do seu percurso pessoal e profissional feita pela restante prova testemunhal, a qual recaiu sobre as diversas actividades que manteve, anos antes, no Brasil no sector das joias, no imobiliário e, inclusive, na administração, em termos similares ao que ocorreu já em Portugal, numa clínica dentária, que foi mantida com familiares da autora em Brasília. A estas matérias referiram-se, de forma que se afigurou ao tribunal como credível, as testemunhas (i) C, irmã do autor, e que como advogada de profissão esclareceu ainda o tribunal a respeito do regime da união de facto, com separação de bens, existente no Brasil, concretizando que cada uma das partes tinha os seus bens já antes da relação e teriam mantido essa separação; (ii) J, técnico protésico colega do réu, e que chegou a trabalhar durante 6 meses na clínica da autora e do réu sita em Portugal, sendo pago por ambos, e que reforçou a convicção de se tratar de um negócio comum; e (iii) H, livreiro, residente em Miami, que se referiu ao negócio de importação de livros desenvolvido pelo réu e do qual este retirava proventos, ficando, pois, reforçada a convicção do tribunal que, mesmo na altura da aposta premiada, teria o réu fundos próprios auferidos anteriormente, sem ter que recorrer à autora, sendo, por isso, sustentadas as suas declarações de parte. Com efeito, em sede de declarações, apresentou o réu uma versão credível não só das circunstâncias em que foi realizada a aposta e que, nessa medida, foram sintetizadas na matéria de facto, mas também da relação mantida com a autora ao longo de décadas, e respectivo percurso profissional e fontes de rendimentos. Defendeu, a este respeito, que apesar de, após o regresso de Málaga, terem passado a viver modestamente, continuava a ter bens e fundos próprios, que se distinguiam dos da autora, que tinha rendimentos de prédios no Brasil. Esclareceu, que os seus rendimentos pessoais eram provenientes da parte da venda do equipamento da gelataria que tinham explorado em conjunto em Espanha, de rendimentos passados relacionados com o negócio dos livros e outros, e, em particular, do resultado da venda de um imóvel que tinha, em parceria, no Brasil, e que havia sido vendido por o seu sócio, tendo sido transferido parte desse valor para si através de uma conta da autora, uma vez que não tinha conta em Portugal para receber esse dinheiro. Em relação a esta temática, resultou, efectivamente, da prova documental junta com a contestação, corroborada no seguimento do pedido de cooperação judiciária expedido para o Brasil, ultrapassado pela colaboração voluntária prestada pela autora mediante a junção dos respectivos extractos bancários, que o réu teria, no Brasil, um acordo de repartição do valor de venda de um imóvel, celebrado com um amigo de nome LL, e que tal imóvel foi vendido em Junho de 2015, seguindo-se a transferência de parte desse valor para uma conta da autora do Banco do Brasil, mas que respeitaria a um valor que pertencia ao réu. Nesse sentido, foram juntos com a contestação o “contrato particular de cumprimento de obrigação” de 18-03-1998, em que consta o acordo de repartição em partes iguais com o réu do valor de venda de um imóvel, e o “contrato particular de cessão de direitos, vantagens, obrigações e responsabilidades” de 01-06-2015, que atesta a venda pelo mencionado LL desse imóvel, pelo valor de 400.000,00 reais (acrescidos de mais 5 mil reais de comissão imobiliária), sendo metade desse valor devido ao réu. E, com efeito, com base nos extractos bancários juntos pela autora com o requerimento de 04-10-2022, ficou comprovada a matéria que havia sido alegada na contestação a este respeito, ou seja, que parte desse valor foi transferido, em duas tranches de 95.000,00 reais e de 50.000,00 reais, em Julho e Agosto de 2015, para uma conta da autora do Banco do Brasil, tendo resultado da prova produzida que o réu não tinha em Portugal qualquer conta bancária, pelo que foi utilizada a conta da autora para o efeito, o que se mostra plausível e compatível com as regras de experiência, nomeadamente, por se tratar de uma conta aberta no Banco do Brasil, e tal facilitar a expedição desses montantes, que, de resto, a autora, não contestou que pertencessem ao réu. Ficou, assim, por demonstrar a versão apresentada pela autora na sua petição de que o montante utilizado pelo réu para a realização de apostas – em valor semanal, de resto, inferior ao alegado na petição, e para a prova do qual se baseou o tribunal nas declarações do próprio réu – fosse proveniente de fundos seus, porquanto a prova produzida indicia que o autor, na altura dos factos, teria capacidade financeira, nomeadamente, para suportar os cerca de €18,00, utilizados para realizar a aposta múltipla efectuada. Da mesma forma, ficou por demonstrar que a circunstância do valor do prémio ter sido depositado numa conta aberta propositadamente para o efeito pelo réu, ficando a autora como sua contitular, demonstrasse que a aposta teria sido conjunta, não só por ter ficado provado que a autora não tinha interesse em apostas, como por não ter ficado provado qualquer acordo no sentido da repartição do prémio, o que, aliás, se entende não ter sido alegado como facto constitutivo da acção. A respeito da abertura da conta foi ouvida como testemunha V, funcionária da Caixa Geral de Depósitos, que confirmou a ficha de abertura de conta junta com a p.i., esclarecendo ter memória da situação pela circunstância de se tratar de um prémio elevado, e negando a versão apresentada pela testemunha filha da autora de que o réu necessitaria de autorização de residência para proceder à sua abertura. Ficou, no mais, convencido o tribunal da abertura de conta não implicar qualquer decisão de divisão do prémio do réu com a sua companheira, tendo este justificado, de forma plausível, essa decisão de abrir a conta com dois titulares, com a relação de confiança que mantinha há décadas com a autora sua companheira, e pelo receio de, falecendo, não haver quem tivesse conhecimento desses valores, sendo uma forma de acautelar o risco de ficar apenas em seu nome. Mais esclareceu que, até por ser vivamente recomendado pela Santa Casa, manteve sigilo do prémio auferido e continuou a fazer a sua vida sem despesas exageradas, realizando diversos investimentos, nomeadamente, em imobiliário, sem prejuízo de ter autorizado a autora a fazer despesas dessa conta, sem que tenha, pois, ocorrido qualquer locupletamento da sua parte de valores que não lhe pertencessem, pois sempre estiveram ambos cientes de que o prémio era exclusivamente do réu. Esclareceu, nesse sentido, em audiência, que “o dinheiro era meu e ela podia usar”, sem que tal significasse qualquer repartição do seu valor, afirmando que foi autorizando gastos pela autora até à ruptura da relação, que se deveu à autora fazer pedidos de fundos em favor de seus familiares, com os quais não concordou, tendo, até hoje, conseguido fazer a gestão do valor auferido, mantendo, sensivelmente, o mesmo património que correspondeu ao montante do prémio, pelo que não ocorreu qualquer alteração do seu comportamento. Ora, afigurando-se ao tribunal que tais declarações se mostravam conformes às regras de experiência, e correspondiam ao que já resultava da prova produzida que demonstrou, nomeadamente, que o réu teria capacidade financeira própria, e inexistindo qualquer prova convincente do alegado pela autora a esse respeito, deu o tribunal como não provados os factos constitutivos alegados pela autora a respeito do valor da aposta ter sido corresponder a dinheiro seu e quanto ao réu viver financeiramente dependente desta, sem qualquer actividade ou possibilidades de fazer a aposta premiada com dinheiro próprio. Por tudo o exposto, deu o tribunal como provada e não provada a matéria de facto acima consignada”. * IV. Apreciação 1ª Questão: Da reapreciação da prova para impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Constitui jurisprudência pacífica, e de resto decorre da proibição da prática de actos inúteis no processo estabelecida pelo artigo 130º do Código de Processo Civil que não deve proceder-se à reapreciação se a mesma for inútil para a decisão da causa. Do mesmo modo, não pode proceder-se à reapreciação para obter um resultado jurídico-processualmente inadmissível. Nesta última condição estão as alíneas C e I dos factos não provados, que a recorrente pretende passem a provados. Em tais alíneas, pura e simplesmente, se resolve a acção, ou seja, estamos perante conclusões de direito litigiosas, que não podem constar da decisão sobre a matéria de facto porque o seu lugar é a discussão jurídica da causa. Por outro lado, é manifesto, é a própria Autora que o alega, que foi o Réu a ir fazer a aposta, e que a aposta foi premiada, pelo que a sua pretensão de impugnação dos factos provados sob os nº 5 e 6 só pode ser lida enquanto refutação do possível entendimento de que ao jogar só e ao comprar só, assim se afirmasse a sua exclusão, estando a recorrente a confundir factos com questões de direito, e sendo essa interpretação completamente insindicável em sede de decisão de facto. Portanto, não se aceita a impugnação dos factos provados 5 e 6, que se mostram aliás pertinentemente provados por via documental. Fica assim para decidir a matéria provada constante dos números: “7. O réu tinha o hábito de jogar no “Totoloto”, despendendo, semanalmente, em média, cerca de 20,00 semanais. 8. A autora não (jogou no referido sorteio do “Totoloto”, não se encontrava presente na altura da aposta, nem) tinha o hábito ou interesse em fazer apostas em jogos de fortuna e azar. 9. Entre a autora e o réu não havia qualquer acordo em como as apostas que o réu fazia fossem feitas em nome de ambos ou que o resultado que daí eventualmente adviesse fosse dividido entre ambos. 14. O réu exerceu, no Brasil, diversas profissões, nomeadamente, foi desenhador de joias, agente imobiliário, livreiro e explorou, em Brasília, uma clínica dentária com a autora e com familiares desta, trabalhando no laboratório de próteses dentárias. 15. Autora e réu exploraram, em conjunto, em Portugal, até à altura em que se mudaram para Espanha e a entregaram a uma filha da autora, uma clínica dentária sita na Tapada das Mercês, de onde retiravam rendimentos. E para decidir a matéria de facto não provada constante das alíneas: A. O réu realizou a aposta vencedora do prémio do “Totoloto” com dinheiro fruto do rendimento da autora. D. Até à data da aposta vencedora, a autora era o único suporte financeiro do casal. E. O réu não tinha profissão e ajudava ocasionalmente no consultório, mas sempre sem carácter de reiteração ou habitualidade. F. A autora nunca conheceu ao réu qualquer tipo de rendimentos ou constatou o exercício de uma qualquer actividade profissional. G. O réu jamais contribuiu para as despesas comuns do casal, as quais foram sempre e invariavelmente suportadas pela autora”. Como relatámos, a impugnação é feita por referência à prova testemunhal e a prova por declarações do próprio réu, anotando a recorrente, essencialmente, a falta de lógica e de senso comum da apreciação feita pelo tribunal, que desconsiderou a falta de credibilidade das testemunhas em que se apoiou. Procedemos à audição integral da prova. Não há, na apreciação da prova, que fazer quaisquer juízos sobre modos de vida, opções de vida, e há que considerar diferenciações culturais, de tal modo que o que parece despropositado para uma cultura, pode ser normal para outra, o que atinge o próprio discurso, o próprio uso da linguagem. Sendo certo que há situações que escapam à normalidade das coisas, também a normalidade não constitui uma normatividade excludente. Concretizando, apesar de ser absolutamente comum que todos os cidadãos maiores tenham uma conta bancária, pessoas há que não as têm, por as mais diversas razões, sendo certo que não é obrigatório ter conta bancária. Mas, se estamos a falar de dois milhões e setecentos mil euros, já não faz sentido esperar que o titular os guarde em envelopes em casa, por maior que seja o silêncio, sendo aliás certo que para receber o prémio teria de haver uma conta bancária para a qual o mesmo seria transferido. Manifesto é que o Réu tinha as condições para abrir conta bancária em Portugal, isso mesmo o disse a testemunha bancária que o atendeu, e que não precisava da Autora para o fazer, tendo-se notado a chamada de atenção do il. mandatário da A. à testemunha filha desta, quando esta enveredava por esse caminho. Outro aspecto que é importante para a definição da perspectiva de apreciação da prova é o ponto essencial em que a A. assentou a acção: - o R. não trabalhava, vivia às suas custas, o dinheiro que gastava em apostas era, como todo o demais dinheiro que gastasse fosse no que fosse, dela. Em primeiro lugar, estamos a falar – para a procedência da acção segundo a A. – do valor precisamente pago pela aposta que foi premiada – 18 euros mais 3 euros, disse o R. – ou, na tese mais vasta de que a Autora dava ao R. todas as semanas dinheiro para ele jogar, 50 euros por semana. É a partir desta perspectiva – vamos admitir, 200 euros mensais – que perguntamos se o R. não tinha qualquer capacidade ou não tinha qualquer vontade de fazer fosse o que fosse para ter 200 euros mensais (e mais correctamente até estamos a falar em saber se o R. não queria ou não conseguia arranjar 18 euros mais 3 euros para fazer a aposta que fez). É por via desta perspectiva que as insistências sobre o R. não ter conta, não ter profissão, não constar como empregado da clínica, não estar, de modo algum, formalizado e formatado – expressão nossa – são exageradas. É que, o trabalho que o R. fazia na clínica, inequivocamente afirmado pela testemunha R, demonstra que o R. era pessoa activa, sendo aliás quem tinha o telefone para o atendimento de urgência 24 horas, pessoa activa como aliás também foi afirmado pela testemunha que tratava da publicidade da clínica, testemunhas absolutamente isentas e credíveis. Se o R. era activo, tanto o podia ser no contexto familiar, como fora dele. Se, a europeu se estranhava, até há décadas, não ter um emprego fixo, não ter uma profissão, porque pilares dum modelo social securizante, já a pessoas oriundas de outros modelos, designadamente daqueles em que não há, tradicionalmente, segurança no emprego, como o americano, muito mais fácil é compreender a sua proatividade e a sua capacidade de iniciativa para, pelos mais variados modos possíveis, irem ganhando rendimentos. Podemos, pois, admitir que o R., assim ouvido com atenção à sua origem cultural, fosse capaz de fazer alguma coisa que lhe permitisse ganhar 18 euros para fazer uma aposta. Mas, não era o R. que tinha que provar isto, antes era a A. que tinha que demonstrar a total incapacidade ou falta de vontade do R. em fazer fosse o que fosse, o que tentou por via das testemunhas suas familiares, que não merecem – quer porque possivelmente interessadas, quer porque sentindo injustiça, quer por lealdade para com a sua mãe e avó, que depois duma vida de trabalho e de uma vida em comum por 30 anos com o R., ficou sozinha – credibilidade. Corrobora-se inteiramente a referência ao acinte com que a testemunha marido da neta depôs sobre o R. Mas há mais, não vem impugnado o facto provado nº 13, do qual deriva a possibilidade do réu auferir rendimentos enquanto técnico de próteses, o que deita por terra a ideia da pessoa que vive completamente à conta da outra, sem nada fazer, e mais do que isso, porque a clínica terá encerrado anos antes da aposta e já depois da estadia do casal em Málaga, não está impugnado o facto provado nº 15, sobre o recebimento pelo autor em 2015, de valores provenientes da venda de um imóvel seu no Brasil, ou seja, não fica, com razoabilidade, excluída a hipótese de que o R. usasse este dinheiro para jogar, hábito seu, semanal, em Totoloto e Euromilhões, como afirmou. Sempre estaríamos a falar num hábito simples da vida, medido por valores baixos, como o custo da aposta ou do café ou dum maço de cigarros. No mais, consideramos que o julgamento foi muito bem conduzido, e depois da audição de todo o julgamento revemo-nos na motivação, aliás extensa e pormenorizada, que o tribunal de primeira instância consignou. Concretamente, sobre o facto “7. O réu tinha o hábito de jogar no “Totoloto”, despendendo, semanalmente, em média, cerca de 20,00 semanais”, não lográmos ouvir qual fosse a prova que asseverasse diversamente, sendo certo que apenas ouvimos uma testemunha dizer que uma ocasião tinha acompanhado o A. a jogar, depois de o ver tirar o dinheiro da bolsa da Autora. É o próprio R. quem afirma o facto, e neste aspecto, as suas declarações pareceram perfeitamente credíveis, não sendo de desconsiderar à partida e em abstracto o meio de prova por declarações de parte. Quanto ao facto “8. A autora não (jogou no referido sorteio do “Totoloto”, não se encontrava presente na altura da aposta, nem) tinha o hábito ou interesse em fazer apostas em jogos de fortuna e azar”, nem a A. alegou esse hábito ou interesse e quanto à única testemunha que assim depôs, subscrevemos inteiramente as considerações do tribunal recorrido na motivação. Do mesmo modo, não ouvimos ninguém afirmar, nem em abstracto, e muito menos em concreto, para o tempo da aposta premiada, que houvesse acordo entre A. e R. em fazer as apostas em nome de ambos ou em repartir o resultado das apostas premiadas – facto provado 9. O facto “14. O réu exerceu, no Brasil, diversas profissões, nomeadamente, foi desenhador de joias, agente imobiliário, livreiro e explorou, em Brasília, uma clínica dentária com a autora e com familiares desta, trabalhando no laboratório de próteses dentárias” é, em verdade, de uma relevância indiciária pequena, mas ainda assim não vemos, por via da assinalada diversidade cultural, que se possam reputar como desprovidos de total credibilidade os depoimentos prestados por via de teleconferência para o estrangeiro (Brasil e Estados Unidos) Quanto ao facto provado “15. Autora e réu exploraram, em conjunto, em Portugal, até à altura em que se mudaram para Espanha e a entregaram a uma filha da autora, uma clínica dentária sita na Tapada das Mercês, de onde retiravam rendimentos”, verdade será tudo o que nele se escreve quando reportado à Autora, e apenas a forma plural da redacção estará em causa. Admitamos que não temos uma prova formal da exploração conjunta, não se trata duma sociedade, não há documentação. Todavia, o facto tem de valer no contexto para o qual foi alegado, isto é, para a demonstração de que o R. não vivia inteiramente à custa da A., ou seja, que o Réu, tal como a Autora, exercia funções que permitiam que a clínica se encontrasse em actividade e tivesse lucro. Ora, neste contexto, e considerado sobretudo o depoimento de R, temos prova do exercício pelo R. de actividades no âmbito da clínica, que se podem considerar integrantes da referida exploração – desde logo a referência ao serviço de urgência e as referências ao valor que a percentagem de facturação dava ao próprio R – e bem assim o depoimento da técnica de publicidade, que foi enfática no sentido do R. ser uma pessoa empenhada em publicidade (enquanto método para afirmar e manter o negócio). Em suma, não vemos que haja de alterar a decisão quanto a qualquer um dos factos provados. Relativamente aos não provados, o facto sub alínea “A. O réu realizou a aposta vencedora do prémio do “Totoloto” com dinheiro fruto do rendimento da autora”, pelo que já dissemos, terá de manter-se não provado, bem como, precisamente pelo facto provado 15 não impugnado, situado temporalmente mais perto do ano da aposta e considerando que nessa data a A. já não explorava a clínica, o facto sub “D. Até à data da aposta vencedora, a autora era o único suporte financeiro do casal” também tem de considerar-se não provado. Quanto a “E. O réu não tinha profissão e ajudava ocasionalmente no consultório, mas sempre sem carácter de reiteração ou habitualidade”, além de ser irrelevante a primeira parte, não está demonstrado que a participação no consultório fosse apenas de ajuda esporádica, sobretudo quando nada permite duvidar dos depoimentos que afirmam existir um espaço traseiro em que o R. reparava/ajustava próteses. O facto “F. A autora nunca conheceu ao réu qualquer tipo de rendimentos ou constatou o exercício de uma qualquer actividade profissional” é irrelevante quanto ao exercício de profissão, e não está demonstrado quanto a rendimentos, justamente pela prova de venda de bens no Brasil, sendo certo que uma pessoa pode auferir rendimentos precisamente de vender imóveis, quer o faça como negócio ou oportunidade, quer simplesmente já sejam seus e os venda. Se a exploração da clínica acabou antes do casal se mudar para Málaga, e isto aconteceu antes do prémio ter sido auferido, e se o R. vendeu o imóvel conforme facto provado 15, não vemos como se possa afirmar que jamais o R. contribuiu para as despesas comuns do casal, tanto mais quanto desde o fim da clínica e desde o fim da tentativa empresarial em Málaga, o casal, ou a A., nada mais fez. Não vemos assim razão para alterar a decisão quanto à alínea “G. O réu jamais contribuiu para as despesas comuns do casal, as quais foram sempre e invariavelmente suportadas pela autora” dos factos não provados. Em suma, improcede a primeira questão. * Segunda questão: Sem alteração da decisão sobre a matéria de facto, há algum modo jurídico pelo qual se chegue à procedência da acção? O tribunal de primeira instância considerou: “A presente acção foi intentada visando o reconhecimento da qualidade da autora como comproprietária, na proporção de metade, do valor do prémio correspondente à aposta vencedora do jogo “Totoloto” subscrita pelo autor em Junho de 2016, e a condenação deste a entregar-lhe o montante correspondente a €1.332.967,78 com que se teria locupletado. Assim, e considerando que a causa de pedir se resume à alegação de entre a autora e o réu existir, na altura, uma relação de união de facto, e de o valor da aposta ter sido feito pelo réu com dinheiro fruto de rendimentos da autora, a única questão a decidir consiste, desde logo, em saber se, atenta a matéria de facto concretamente provada, poderia tal pretensão ser julgada procedente. No mais, no que se refere à subsunção jurídica de tal pretensão, sem prejuízo da autora não ter identificado o normativo legal susceptível de conformar objectivamente a instância, tem entendido a jurisprudência que, nem por isso, se deverá entender que inexiste alegação de direito, porquanto, conforme decidiu recentemente o STJ, tal ocorre “mesmo sem citação de proposições normativas legais, quando os elementos de direito estão incluídos no contexto dos articulados com consequente dedução das consequências jurídicas dos factos constitutivos da causa de pedir” (cfr. acórdão de 1903-2024, Revista n.º 244/22.4T8PTG.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt). * A temática dos jogos de fortuna e azar e da repartição do respectivo prémio não é desconhecida da jurisprudência, podendo encontrar-se nas bases de dados disponíveis decisões dos nossos tribunais superiores, com distintos contornos, mas que têm em comum alguém que não é o titular ou o subscritor da aposta premiada, vir reclamar a totalidade ou parte do respectivo prémio. Em termos de configuração jurídica, e para além das situações de patrimónios comuns em que tal poderá ser reclamado, nomeadamente, por efeito do regime de casamento aplicável, surgem construções jurídicas que podem ser reconduzidas a sociedades de facto, relações de mandato sem representação, compra e venda de bens futuros ou, eventualmente, de enriquecimento sem causa. Exemplificativamente: - num caso em quem um par de namorados, semanalmente, procedia à escolha em comum das chaves, preenchimento e registo de apostas, visando a obtenção de lucro patrimonial assente no factor sorte, configurou-se a situação como uma sociedade de fito não económico, à qual se deveriam aplicar as disposições relativas às sociedades (cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 19-05-2011, Proc. n.º 1498/08.4TVLSB.G1, disponível em www.dgsi.pt); - numa situação em que, acordando diversos apostadores com uma pessoa o preenchimento e entrega do boletim de apostas com chave fixa constituída por certos números, em nome próprio mas por conta daqueles, ocorre uma situação de mandato sem representação, ficando o mandatário obrigado a transferir para os mandantes os prémios a que eventualmente têm direito (cfr. acórdão do STJ de 02-05-2002, Revista n.º 02B922, disponível em www.dgsi.pt); - num caso em que existia um acordo entre um mediador-vendedor da Lotaria Nacional e uma outra pessoa segundo o qual este comprava todas as semanas a mesma fracção de um bilhete numerado da Lotaria reservado por aquele, sendo o preço pago aquando do levantamento do bilhete (mesmo que o levantamento ocorresse depois do sorteio semanal), constitui tal um contrato de compra e venda de bens futuros, ocorrendo a transferência de propriedade da fracção para o comprador logo que o mediador-vendedor recebe o bilhete a que respeita a fracção, podendo o comprador exigir o pagamento do montante correspondente através da acção de cumprimento (cfr. acórdão do STJ de 0302-2005, Revista n.º 04B4380, disponível em www.dgsi.pt). Em qualquer caso, e sem prejuízo da diversidade de situações de facto e de enquadramento jurídico, conforme já decidiu o Supremo, a Portaria que regulamenta quem é a pessoa que pode (tem direito) a receber o prémio do totoloto, “não cuida(…) de atribuir direitos de propriedade, mesmo a título de presunção, matéria esta reservada ao direito civil, tendo que se averiguar o que está por detrás (v.g., uma associação de pessoas com vista a jogar no totoloto) do preenchimento, entrega e pagamento dum boletim de totoloto.” (cfr. sumário do acórdão do STJ de 23-05-2002, Revista n.º 3976/01, disponível em www.dgsi.pt). No caso presente, não questionando a autora a titularidade do prémio por parte do réu subscritor da aposta premiada, mas invocando o seu direito a metade do respectivo valor líquido, caberia invocar e provar a factualidade necessária à demonstração desse direito, sendo certo que a causa de pedir e a configuração jurídica submetida a apreciação judicial não se reconduz a qualquer dos mencionados institutos ou vias jurídicas. Com efeito, não resulta do pedido ou da causa de pedir que configuram a acção, a alegação (nem prova) de qualquer factualidade que permita, mesmo nos limites de cognição do tribunal delimitados pelo princípio iura novit curia, consagrado no art. 5.º, n.º 3, do CPC, a sua subsunção em qualquer dos referidos institutos, pelo que sempre se mostraria inviável o reconhecimento da situação de titularidade do prémio por parte da autora por alguma das mencionadas vias. Assenta, ao invés, a autora a sua pretensão de reconhecimento da compropriedade no prémio na alegação de uma relação de união de facto e na circunstância do valor utilizado para a aposta, ou seja, o montante liquidado aquando da subscrição, ser proveniente de fundos a si pertencentes, o que quererá significar a alegação da aposta ter sido feita com dinheiro próprio da autora, assim justificando o entendimento de que teria sido premiada em conjunto com o réu. No que se refere à situação de união de facto, sem prejuízo do debate nacional a respeito da sua equiparação a uma relação jurídica familiar (cfr. Rita Lobo Xavier, A união de facto e a lei civil no ensino de Francisco Manuel Pereira Coelho e na legislação actual, Textos de Direito da Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 653 e ss., disponível online), é inquestionável que, por contraponto ao casamento em relação ao qual podem ser (ante)convencionados regimes que implicam uma comunhão patrimonial, total ou parcial, não decorre da união more uxorio qualquer efeito patrimonial. Por conseguinte, a alegação por parte da autora de entre si e o réu ter existido uma relação de união de facto, que perdurou por mais de 30 anos, e da aposta premiada ter sido realizada na pendência desta relação, não conterá qualquer implicação no que se refere à pretendida repartição ou divisão do prémio. Com efeito, mesmo para quem defenda constituir a união de facto uma relação familiar, daí não decorrem quaisquer efeitos patrimoniais, não podendo entender-se que o prémio auferido por um dos membros da união de facto, no seguimento de uma aposta realizada numa aposta num jogo de fortuna ou azar, tenha a virtualidade de se comunicar, em termos patrimoniais, ao outro membro da união de facto. Tal corresponde ao regime da união de facto vigente em Portugal, o qual foi objecto de regulamentação, no que se refere à sua definição, tempo de duração e regimes de protecção, pela Lei n.º 7/2001, de 11-05, que não contém qualquer disposição a respeito de efeitos patrimoniais entre os seus membros, e que, no caso presente, não difere do regime da denominada união estável celebrada entre a autora e o réu no Brasil. Com efeito, ainda que no actual Código Civil Brasileiro, de 2002, se regulamente a “união estável” nos arts. 1723.º a 1727.º, dispondo em relação aos efeitos patrimoniais que «Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens» (cfr. art. 1725.º), a verdade é que, no caso presente, autora e réu regularam a sua união estável, em momento anterior, no caso em 27-05-1998, mediante escritura notarial, declarando expressamente que “o regime é o da separação total de bens”. Ou seja, ainda que se entenda que, quanto às relações patrimoniais entre as partes, seria de aplicar a respectiva lei pessoal dos unidos de facto (cfr. arts. 25.º, 52.º e 53.º do CC), atenta a referida convenção e a salvaguarda contida no actual CC Brasileiro quanto à possibilidade de assim ser convencionado por escrito, não subsistem dúvidas de entre a autora e o réu não ter sido estabelecido nem vigorado qualquer regime patrimonial do qual possa decorrer o direito à repartição do prémio. De resto, a autora apenas assenta esta sua pretensão na circunstância de, alegadamente, a aposta premiada do jogo “Totoloto” ter sido realizada pelo réu com dinheiro fruto de rendimentos seus, daí pretendendo extrair o direito a metade do valor, líquido de impostos, do respectivo prémio. Ora, sem prejuízo da objecção jurídica, desde logo, suscitada pelo réu na contestação quanto à construção jurídica da autora, reconduzível a um contrato de doação, não permitir considerar que a utilização de dinheiro alheio, determinaria um direito ao produto ou frutificação do bem doado (cfr. arts. 940.º, 945.º, 947.º e 954.º, do CC, em particular, a al. a) deste preceito, que dispõe que um dos efeitos da doação consiste na «transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito»), a verdade é que da matéria de facto concretamente provada, não resultou demonstrada essa factualidade. Com efeito, ainda que a autora tenha alegado que o réu realizou a aposta com dinheiro fruto de rendimentos de que era titular, ou seja, que o dinheiro utilizado pelo réu na realização da aposta premiada não teria sido com dinheiro próprio do réu por este, alegadamente, não ter bens ou rendimentos, sendo a autora o único suporte da relação de união de facto, a verdade é que tal factualidade não resultou provada. Nos termos dos princípios gerais de repartição do ónus da prova (cfr. art. 342.º do CC), competia à autora a alegação e prova dos factos constitutivos em que assentou a sua pretensão, a qual, independentemente de não se descortinar a respectiva viabilidade jurídica, no caso presente, não logrou preencher, uma vez que ficaram por demonstrar os factos por si alegados tendo em vista demonstrar a titularidade do dinheiro empregue na aposta premiada realizada pelo réu. Por conseguinte, atenta a ausência de demonstração deste facto essencial da configuração dada pela autora à presente acção, e na qual assentou o seu pedido e causa de pedir, é manifesto que, desde logo por razões relacionadas com a factualidade provada e não provada, não poderá ser reconhecido qualquer direito à autora a metade do valor do prémio, nem à condenação do réu na respectiva entrega. No mais, mesmo que, conforme anteriormente salientado, tal não decorresse da petição inicial ou dos fundamentos da acção, tendo apenas sido incluído nos temas da prova, ficou provado que não havia qualquer acordo em como as apostas que o réu fazia fossem feitas em nome de ambos ou que o resultado que daí eventualmente adviesse fosse dividido entre ambos, pelo que mesmo uma eventual pretensão adicionada do prémio ser repartido com este fundamento, sempre se teria de ser julgada inviável por não ter se ter demonstrado qualquer acordo nesse sentido. Finalmente, a circunstância do prémio recebido pelo réu ter sido, ulteriormente, depositado numa conta aberta na Caixa Geral de Depósitos, cuja titularidade ficou inscrita em nome da autora e do réu, não determina que se possa considerar que a respectiva propriedade dos fundos para esta transferidos pela Santa Casa da Misericórdia tenham passado a ser de ambos. Com efeito, sabendo-se que o réu era o titular desses fundos, não se aplica, ou sempre se teria de entender como ilidida, a presunção de compropriedade característica das denominadas “contas conjuntas”, porquanto tal presunção apenas seria de aplicar no caso de desconhecimento do titular dos respectivos fundos, e não pode tal ser entendido como correspondendo a uma doação, porquanto conforme se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa de 14-01-2016, Proc. n.º 1486/09.3YXLSB.L16, disponível em www.dgsi.pt, “Não se provando que a primitiva titular da conta quis efectuar uma liberalidade à co-titular, não pode considerar-se que foi feita uma doação de metade do saldo da conta apenas porque esta passou a ser conjunta.” Tal no caso presente não sucede, uma vez que, conforme se referiu, não logrou a autora provar ter qualquer direito de propriedade sobre o valor resultante da aposta premiada, nem que, por efeito da abertura da conta co-titulada, tenha havido uma doação, antes se demonstrado que, tendo sido o réu o respectivo apostador e premiado pelo correspondente sorteio, os respectivos fundos lhe pertenciam, sem que a autora se possa arrogar a qualquer direito à sua condenação na entrega de metade do seu valor”. (fim de citação). Secundamos a fundamentação de direito que acabamos de transcrever. Como resulta do recurso, a fundamentação de direito não foi atacada, apenas se propugnou por diferente solução em face da pretensão de alteração da decisão de facto: - “Aqui chegados, e conforme se vem pugnando no presente libelo recursivo, merecendo comprovação os factos dados como não provados em A., C., D., E., F. G. e I. em B1b) deverá o réu ser condenado a reconhecer a autora como proprietária de 50% do prémio do Totoloto, bem como a ser condenado a entregar-lhe a quantia de € 1.332.967,78 fruto de, em 2016, com dinheiro proveniente do rendimento da autora, feito uma aposta no concurso da Santa Casa da Misericórdia denominado “Totoloto”, como, de resto, era usual fazer, e entroncando no compromisso assumido por ambos, sob pena de violação dos artºs 473º e 474º do CC”. Não se tendo alterado a decisão de facto, o recurso improcede. É claro que não há qualquer enriquecimento sem causa, porque nem sequer temos provada qualquer transferência patrimonial da Autora para o Réu. Diga-se muito claramente que a perspectiva da justiça, dum casal que vive trinta anos junto, sem desaguisado, e na pendência da união de facto, sobrevém a um deles um prémio de sorte avultado, indicaria no sentido da partilha do valor, como o fizeram sentir as testemunhas familiares da Autora e bem assim o próprio tribunal, mas isto nada tem a ver com a aplicação das regras de Direito, que é coisa bem diferente. Para a aplicação destas de modo a que a A. pudesse receber metade do prémio, mister era, tinha sido, e devia ter sido logo anotado, que não bastava afirmar que a aposta tinha sido feita com o dinheiro da A. É justamente a diversidade de relacionamento jurídico, de institutos jurídicos aplicáveis, que nos diz que a Autora tinha mesmo que ter alegado e provado que tinha um acordo com o Réu no sentido de que ele jogava, ela pagava, e que o prémio, se viesse, era repartido por ambos, ou que apesar de ela não ir fisicamente jogar, a aposta era feita em nome dos dois, ou qualquer outra formulação dum acordo de repartição de prémio. É que, razão assiste ao Réu quando, mesmo a pensar-se que o dinheiro era da Autora, a sua entrega ao Réu não acarreta a propriedade ou partilha da frutificação, sem um elemento volitivo adicional: - dou-te o dinheiro para jogares e para repartirmos entre nós o prémio se a tua actuação (chave e acção de apostar) for recompensada. Eram os factos relativos a esse acordo que a Autora tinha de ter alegado, razão pela qual a acção estava fadada ao insucesso, desde o início. Tendo decaído no recurso, é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil. * V. Decisão Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a sentença recorrida. Custas pela recorrente. Registe e notifique. Lisboa, 24 de Outubro de 2024 Eduardo Petersen Silva Teresa Soares Adeodato Brotas [1] Trata-se de manifesto lapso, devendo ler-se “mais”. |