Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1079/24.5T8FNC-A.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PROVA PERICIAL
PROCESSO URGENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/26/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1- O princípio do inquisitório, previsto na lei processual como “incumbência” do juiz do processo, define-se como um “dever”. O legislador previu a liberdade de o juiz na sua actuação oficiosa, ainda que haja condicionado a liberdade de uso desses poderes instrutórios a uma concreta finalidade - o poder oficioso é usado para atingir os fins do processo expressamente contemplados no art.º 411º do Código de Processo Civil. Essa liberdade seria posta em causa se houvesse uma vinculação geral e ilimitada do uso desse poder/dever à audiência prévia das partes.
2- A decisão do juiz de, no uso dos seus poderes instrutórios, ordenar a produção de prova pericial, não fica subtraída à sindicância das partes, sendo a interposição de recurso a via própria para reagir a uma decisão que possa consubstanciar uma actuação injustificadamente perturbadora da regular tramitação processual ou que se revele despida de fundamento, designadamente, por a prova ordenada não ter qualquer relevância à luz dos factos objecto de julgamento, respeitar a factos que ao tribunal não é lícito conhecer, ou, no limite, por corresponder a prova ilegal.
3- A prova pericial tem como finalidade a percepção ou apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui.
4- Não obstante o carácter urgente do processo de insolvência, esta circunstância, por si só, não é fundamento para não admitir a realização da perícia neste processo, uma vez que o andamento célere do processo não deve colocar em causa o princípio da busca e descoberta da verdade material e da justa composição do litígio.
5- Todavia, a perícia apenas poderá ter lugar quando resulte dos elementos carreados para os autos que a mesma é indispensável, imprescindível para estabelecer ou infirmar a realidade do facto carecido de prova com relevo para a decisão a proferir.
6- Tendo sido requerida a insolvência de uma sociedade por quotas com fundamento no facto de a mesma ter deixado de cumprir plano de insolvência anterior, não dispor de bens ou rendimentos que lhe permitam pagar as dívidas e encontrar-se em situação de incumprimento generalizado, circunstâncias que a requerida se limitou a impugnar, dizendo que é proprietária de dois imóveis, os quais se encontram hipotecados à requerente, não há fundamento que permita considerar como necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio a realização de perícia tendo como objecto e sem qualquer outra fundamentação, apurar se o activo da requerida é superior ao passivo.
(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
A… – STC S.A., invocando a qualidade de credora, veio instaurar processo especial de insolvência pedindo que seja declarada a insolvência da requerida M…, LDA, ambas melhor identificadas nos autos.
Alegou, em síntese, que, por efeito de contrato de cessão celebrado com o … Banco, S.A., em que interveio na qualidade de cessionária, é credora da requerida, que se apresentou à insolvência em processo que correu termos sob o nº … junto do Juízo de Comércio do …  – Juiz 2, no contexto do qual foi homologado plano de insolvência, por sentença transitada em 16/11/2015. Uma vez findo o período de carência fixado, a requerida deixou de cumprir o plano em questão e, após interpelação para regularização do valor em dívida à requerente, nada regularizou, não dispondo de bens ou rendimentos que lhe permitam pagar as elevadas quantias de que é devedora e encontrando-se em situação de incumprimento generalizado, justificativo da declaração de insolvência.
Citada, veio a requerida deduzir oposição, impugnando parcialmente o crédito invocado pela requerente e alegando o pagamento das prestações processadas por esta em implementação do plano de insolvência. Invocou ainda a prescrição de parte dos créditos, bem como impugnou o alegado incumprimento do plano e a situação de insolvência descrita no articulado inicial, por se encontrar em situação de cumprimento perante os seus credores, mantendo as condições de pagamento estabelecidas no plano, qualificando como abusiva e manifestamente infundada a pretensão da requerente. Mais alegou manter a titularidade sobre património cujo valor cobre as responsabilidades perante os seus credores.
Concluiu pedindo a improcedência do pedido.

Foi proferido despacho a ordenar a notificação do … Banco para juntar cópia da avaliação efectuada aos imóveis que integram a propriedade da requerida, por ocasião da constituição de hipoteca, que foi apresentada em anexo ao requerimento de 22.05.2024.
A requerida pronunciou-se sobre o teor do relatório, invocando que o valor atribuído aos imóveis está subavaliado.

Por despacho de 27.06.2024 foi ordenada a notificação da requerente para se pronunciar quanto às excepções arguidas no articulado de oposição, tendo esta apresentado o seu articulado de resposta por requerimento de 08.07.2024, em que manteve que o passivo da requerida é manifestamente superior ao seu activo e pugnou pela improcedência das excepções arguidas.

Por despacho de 15.07.2024 foi admitido o requerimento de prova da requerida e foi designada data para audiência de julgamento.

A requerida apresentou requerimento, em 18.07.2024, pelo qual desistiu do depoimento de parte requerido, bem como prescindiu do depoimento de uma testemunha.

Na data designada para audiência de julgamento – 30.07.2024 -, o Mm.º Juiz de turno, após tentar, sem sucesso, a conciliação das partes, proferiu o seguinte despacho:
«Cabe ao Tribunal realizar ou ordenar oficiosamente “todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que é lícito conhecer” (art.º 411.º do CPC), sendo assim, entre outros a perícia, meio de prova admissível em processo de insolvência (veja-se entre muitos o AC. do Tribunal da Relação de Guimarães, processo 5588/19.8T8VNF-A.G1 de 23.01.2020, in www.dgsi.pt).
Assim, tendo presente a causa de pedir e pedido que conforma a presente ação, entende o Tribunal que para uma melhor composição e decisão do litígio, ser pertinente, ao abrigo do princípio da adequação formal, determinar, oficiosamente, a realização de perícia antes mesmo da prolação de despacho a que alude o art.º 35.º, n.º 5, segunda parte, do CIRE, pois que tal em nada coarta os direitos das partes (art.6.º, 547,º e 477.º, todos do CPC).
A perícia terá por objeto a situação contabilística da Requerida a fim de ser apurado se o seu ativo é superior ao seu passivo, avaliados em conformidade com as normas contabilísticas aplicáveis tendo presente as seguintes regras (cfr. art.º 3.º, do CIRE):
a) Considerando no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor;
b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor. Este é o objecto da perícia.
Notifique então as partes para se pronunciarem quanto ao objecto agora fixado, a fim de sugerirem o alargamento a outra matéria (cfr. art.º 477.º, do CPC).
Notifique ainda as partes para apresentarem a indicação de perito identificado por mútuo acordo caso o pretendam».

Na sequência da prolação do aludido despacho, conforme resulta da acta da diligência, pela ilustre mandatária da requerente foi dito nada ter a opor à realização da perícia, por assim se apurar a situação real da empresa, concordando com o objecto da perícia e referindo que o perito deve ser indicado pelo tribunal.
O ilustre mandatário da requerida, no uso da palavra, ditou para a acta o seguinte:
«Em primeiro lugar pelo que resulta do douto despacho proferido a perícia já em si mesmo está determinada, não obstante estar por definir o objecto questão para a qual o Tribunal concedeu o direito às partes para se pronunciar.
Com o esclarecimento que o Tribunal gentilmente acaba de prestar resulta efectivamente, tal como tinha sido a primeira percepção da Requerida que o Tribunal em si quanto à perícia e à sua realização já decidiu e, nessa medida a Requerida entende que se verifica que, o assim decidido integra nulidade que expressamente arguí para todos os efeitos.
Em segundo lugar a própria realização da perícia em si não foi precedida do contraditório nem resultou de requerimento de qualquer das partes.
Em terceiro lugar o objecto da perícia confunde-se com a própria matéria sujeita à decisão por parte do Tribunal, a saber e em última análise a solvência ou não da Requerida.
Em quarto lugar no caso concreto estando perante o Tribunal colocadas diversas questões, elas todas estão balizadas com a própria causa de pedir da Requerente e, essa causa de pedir respeita aos factos índices que foram concretamente identificados no requerimento inicial e, desde logo o suposto incumprimento em relação ao plano de revitalização adoptado, e também à respectiva notificação desse incumprimento e resolução do mesmo. Sobre essa matéria que é uma matéria em rigor prévia a qualquer outra questão, é notório que nem foi arrolada qualquer testemunha por parte da Requerente e, nessa medida a perícia em causa além de integrar pelo motivo acima exposto nulidade corresponde, salvo melhor entendimento, também a uma diligência em rigor inútil e, que em última análise apenas visa permitir suprir aquilo que é a manifesta falta de prova por parte da Requerente.
Em qualquer caso e, em face da notificação dirigida para o efeito pelo Tribunal, a Requerida vem referir o seguinte, que irá em devido tempo recorrer pelo motivo assinalado no despacho proferido e, uma vez que, o recurso terá em princípio efeito meramente devolutivo no prazo indicado pelo Tribunal irá pronunciar-se quanto ao objecto apenas à cautela uma vez que como referido o recurso tem efeito meramente devolutivo.»

De seguida, foi proferido o seguinte despacho:
«Conforme é sabido e foi inclusivamente dito no intróito do mesmo a prova pericial é meio admissível nos presentes autos.
Basta jurisprudência refere tal e o acórdão que foi citado.
Sendo assim, o Tribunal não proferiu tal despacho em momento anterior, desde logo, porque nesta presente diligência poderiam as partes chegarem a entendimento, chegarem a acordo e, assim sendo, obstaria à realização da diligência com custos que todos nós sabemos acrescidos.
Assim sendo, não há qualquer nulidade estando perfeitamente na disponibilidade do Tribunal naquilo que é o princípio do seu inquisitório poder decidir quais os meios de prova a serem produzidos inclusivamente oficiosamente, o que fez. Assim sendo cessa a requerida nulidade.
Quanto ao recurso o Tribunal aguardará que o mesmo seja interposto.
No que respeita então ao prazo dois dias para que o Ilustre Mandatário da Requerida, se possa pronunciar quanto ao objeto agora fixado de forma a sugerir o alargamento a outra matéria caso o entenda.
Uma vez que pela Ilustre Mandatária da Requerente foi dito que quanto ao perito deverá ser o Tribunal a nomeá-lo, o Tribunal desde já defere a realização, uma vez que não será possível naturalmente acordo com a Requerida quanto ao perito. O Tribunal desde já nomeia o perito que será nomeado pelo estabelecimento apropriado com conhecimentos técnicos na área, devendo a seção indicar o mesmo, o qual, desde já é nomeado nos termos do artigo 467.º, do CPC (pessoa que vier a ser indicada por este estabelecimento).
O Sr. Perito nomeado deverá prestar compromisso de cumprimento consciencioso da função ora cometida por escrito, nos termos do exposto no artigo 479.º do CPC.
Deverá o Sr. Perito dar conhecimento às partes do dia, hora e local em que irá realizar a perícia a fim de, querendo, ali se possam deslocar nos termos previstos no artigo 480.º, n.º 3, do CPC.
Quanto ao prazo para apresentação do relatório o mesmo será de quinze dias e elaborado nos termos do artigo 484.º, do CPC.
Uma vez que a perícia segue a sua tramitação própria, podendo ser objeto de reclamação, tendo presente o principio da concentração e unidade da prova, podendo o relatório pericial, inclusive, ser determinante para a fixação do objeto de litígio e julgamento, inclusivamente como o Ilustre Mandatário da Requerida assim o referiu, mostra-se necessário que os autos estejam munidos de todos os elementos probatórios a fim de ser iniciada a demais produção de prova, motivo pelo qual dou a presente diligência sem efeito até que se mostre nos autos o referido relatório e os mesmos em condições de prosseguir para julgamento.
Notifique.»
Inconformada com os sobreditos despachos, veio a requerida interpor o presente recurso de apelação, pedindo a revogação daqueles, o que fundamentou nas seguintes CONCLUSÕES:
1. Nenhuma das partes alegou nos respectivos articulados quaisquer factos para cuja apreciação fossem requeridos conhecimentos técnicos específicos de que o Tribunal não dispunha; nenhuma das partes considerou que estivessem em causa tal tipo de factos, nem, como tal, requereu qualquer perícia; tampouco o Tribunal a quo considerou que estivessem em causa tal tipo de factos.
2. Assim, por douto Despacho de 19/07/2024, o Tribunal decidiu “da prova a produzir em sede de julgamento”, concretamente admitindo o depoimento de parte da Requerente, admitindo a prova testemunhal apresentada pela Requerida e designando a data para julgamento.
3. Nesse preciso contexto, em que, designadamente, rigorosamente prova nenhuma havia sido produzida ou requerida pela Requerente para além da documental, e em que o Tribunal a quo já havia apreciado e decidido qual a prova a produzir em audiência de julgamento, a Requerida, por requerimento de 18/07/2024, desistiu do depoimento de parte por si requerido, bem como prescindiu de parte da respectiva prova testemunhal.
4. Não fora esse contexto, e designadamente não fora o referido carácter limitado da prova produzida pela Requerente, a Requerida não haveria de todo prescindido de qualquer parte da respectiva prova, já requerida e admitida pelo Tribunal a quo.
5. Ao arrepio do assim processado, logo no início da audiência de julgamento de 30/07/2024, o Tribunal a quo - presidido por Exmº. Magistrado Judicial diverso, concretamente o Exmº. Sr. Dr. Juiz de turno nesse dia -, sem qualquer prévia audição das partes, veio a determinar a realização de prova pericial, nos termos do Despacho ora recorrido.
6. Esse Despacho ora recorrido integra nulidade, prontamente arguida no próprio acto, e cuja arguição aqui se reitera para todos os efeitos.
7. Na verdade, o Despacho ora recorrido não foi precedido de qualquer audição partes, como se impunha, em manifesta violação do respectivo direito ao contraditório (cfr. douto Ac. do TRL de 11/03/2021, processo nº. 8836/17.7T8LSB-A.L1-6; douto Ac. do TRL de 15/09/2022, processo nº. 20170/21.3T8LSB.L1-2; douto Ac. do TRE de 19/12/2013, processo 826/12.2TBFAR-A.E1).
8. Mais acresce que a perícia determinada pelo Tribunal a quo no Despacho ora recorrido não corresponde a qualquer questão técnica resultante dos Autos (não resulta dos factos alegados, nem dos documentos juntos, nem de requerimento apresentado por qualquer das partes), mas, ao invés, corresponde à transcrição do disposto no nº. 3, do art.º 3º, do CIRE.
9. Ora, a reprodução de qualquer normativo não dispensa a alegação propriamente dita dos factos concretos susceptíveis de integrar a respectiva previsão; e, noutra perspectiva, seguramente que não compete a qualquer perícia substituir-se ao Tribunal na aplicação, verificação e preenchimento de qualquer critério legal.
10. Aliás, a perícia em causa depende de questões que só o Tribunal pode decidir: designadamente, basta atender a que o próprio valor do crédito invocado pela Requerente está posto em causa pela Requerida, pelas questões de facto e de direito invocadas na Oposição.
11. Não é seguramente a perícia que poderá apreciar e decidir se há ou não prescrição do crédito cambiário, se há ou não prescrição dos juros invocados, e qual o valor real e efectivo do crédito resultante da relação subjacente, designadamente em função dos pagamentos efectuados.
12. Existem, além do mais, limites ao princípio do inquisitório, impostos designadamente pelo princípio do dipositivo, da preclusão e da auto-responsabilização das partes (cfr. douto Ac. do TRE de 29/09/2022, processo nº. 6613/18.7T8STB-C.E1, e douto Ac. do TRG de 11/05/2023, processo nº. 2352/21.0T8VCT-A.G1).
13. Ora, foram colocadas perante o Tribunal diversas questões, balizadas na causa de pedir da Requerente, que respeita aos factos índices que foram concretamente identificados no requerimento inicial – desde logo, o suposto incumprimento em relação ao plano de revitalização adoptado, a suposta notificação desse incumprimento e a suposta resolução do dito plano.
14. Sobre essa matéria, que é uma matéria em rigor prévia a qualquer outra questão, não foi arrolada qualquer testemunha por parte da Requerente e, nessa medida, a perícia em causa, além de integrar nulidade pelos motivos acima expostos, corresponde também a uma diligência em rigor inútil e que em última análise apenas visa permitir suprir aquilo que é a manifesta falta de prova por parte da Requerente.
15. O Despacho ora recorrido mais integra – em face do processado anterior e mormente do douto Despacho de 19/07/2024, com o qual a Requerida, ora Recorrente, conformou a respectiva actuação, nos termos acima já descritos – uma manifesta violação do princípio confiança, decorrente do direito a um processo equitativo, ínsito ao princípio constitucional do Estado de direito (cfr. douto Ac. do STJ, de 24/09/2003, processo 168/00, supra citado).
16. Finalmente, tendo logo sido arguida, no próprio acto (cfr. art.º 199º, nº. 1, do CPC), a nulidade do Despacho que determinou a perícia e manifestada a intenção de recorrer do mesmo, tudo quanto acima se alegou contra esse Despacho aplica-se, na íntegra, quanto ao Despacho que indeferiu tal arguição de nulidade, ora também recorrido.
17. Assim se pugna pela integral revogação de ambos os Despachos recorridos, devendo ser dado provimento ao presente recurso.
*
Foram apresentadas contra-alegações pela requerente, que, pedindo a confirmação da decisão recorrida, apresentou as seguintes CONCLUSÕES:
A. O presente recurso foi interposto do douto Despacho que em sede de audiência prévia determinou a realização da perícia, bem como do Despacho que indeferiu a arguição de nulidade daquele.
B. O douto Despacho é bem fundamentado é escorreito, aplica criteriosamente o direito, fazendo uma correcta subsunção dos factos ao mesmo.
C. E, além de devidamente fundamentado, foi objecto de contraditório é de uma meridiana clareza, sendo inconcebível que se diga o contrário.
D. Daí a necessidade e legitimidade das presentes contra-alegações que ora apresenta a Recorrida e nas quais vem manifestar a sua inteira discordância relativamente às considerações e conclusões das alegações de recurso da Recorrente as quais são distorcidas, infundadas e desprovidas de sustentação fáctica, legal e probatória não merecendo qualquer provimento como adiante se demonstrará.
E. Esclarecendo-se, desde já, que as presentes contra-alegações incidirão sobre as conclusões do recurso interposto, já que é destas que deve constar a súmula das razões que o motivam.
F. O Despacho proferido pelo Tribunal a quo, e a cuja fundamentação a Recorrida adere na íntegra, revela-se justo, claro e sustentado legalmente, não merecendo, por isso, qualquer reparo, pelo que deve, salvo devido respeito por diverso entendimento, ser integralmente mantido.
G. Em sede de audiência prévia, e não tendo sido possível alcançar acordo entre as partes, o Tribunal proferiu despacho a determinar a realização de perícia.
H. Tal despacho assenta no poder discricionário do Juiz, ou seja, o Juiz tem o poder discricionário para ordenar a realização de uma perícia em um processo de insolvência, mesmo que as partes não a tenham solicitado.
I. Este poder decorre do princípio do inquisitório, que permite ao juiz tomar a iniciativa de determinar a produção de provas necessárias para o esclarecimento dos factos e a justa composição do litígio
J. Tal decisão encontra-se coberta pelo disposto no artigo 371º do Código de Processo Civil (CPC), e da qual consta que o juiz pode determinar a realização de prova pericial quando julgar necessário para a resolução do caso, sendo que este poder é exercido com o objectivo de garantir que todas as informações relevantes sejam consideradas, assegurando uma decisão justa e fundamentada.
K. O que significa que, não obstante não requerida pelas partes, pode ser oficiosamente determinada pelo Tribunal.
L. Como melhor consta da Acta da audiência prévia realizada, a determinação da perícia não foi realizada anteriormente atenta a sua eventual desnecessidade, porquanto um dos objectos da audiência prévia é a tentativa de conciliação entre as partes.
M. O Tribunal aquando do mencionado despacho deu oportunidade às partes para se manifestarem sobre a sua aplicação, tendo por isso respeitado e concedido a ambas as partes a possibilidade de se manifestarem, e bem assim exercerem o contraditório, sobre a necessidade da perícia, antes do despacho ser proferido.
N. Constatando-se que o despacho foi não só devidamente fundamentado, nomeadamente quanto à necessidade da perícia como um meio importante para a resolução do litígio, bem como a decisão do Tribunal foi baseada em critérios técnicos e legais.
O. Em face ao exposto a pretensão da Recorrente terá, necessariamente, de improceder, impondo-se concluir pela total improcedência das alegações apresentadas pela Recorrente, e, por conseguinte, mantendo-se integralmente tudo o quanto se encontra vertido no douto despacho proferido pelo douto Tribunal a quo.
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A Mmª Juíza a quo admitiu o recurso interposto, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II. OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, importa decidir:
- se, ao determinar oficiosamente a realização de perícia à sociedade requerida, sem prévio contraditório das partes, o tribunal incorreu em nulidade;
- da existência de fundamento para produção de prova pericial e, caso não se encontre prejudicado pela solução dada à questão anterior
- se o decidido viola o princípio constitucional da confiança.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Os factos relevantes para a decisão a proferir correspondem aos sintetizados no ponto I (relatório) que, por razões de economia processual, aqui se têm por reproduzidos.
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B) O Direito
Da análise das conclusões recursivas resulta que, na perspectiva da apelante, a nulidade da decisão recorrida assenta no facto de a prova pericial ter sido ordenada, por um lado, sem que qualquer das partes a tivesse requerido, por outro lado, sem que os factos alegados justificassem a sua pertinência e, por último, sem que às partes fosse previamente concedido o direito de se pronunciarem quanto à sua realização (violação do direito ao contraditório).
Tal como preceitua o art.º 341º do Código Civil, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Ao prever o art.º 411º do Código de Processo Civil que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer, será sobre o juiz, a quem incumbe, a final, julgar se os factos se encontram ou não demonstrados, que recai o poder/dever de ordenar a realização de provas que considere necessárias para esse fim.
Atenta a redacção do nº 1 do art.º 467º do C.P.Civil, torna-se claro que a perícia pode ser requerida por qualquer das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz.
Quanto à questão relativa a saber se se impõe que, previamente, à prolação do despacho determinativo da realização da perícia, o tribunal ouça as partes sobre tal questão, dando-lhe, assim, oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, o princípio da proibição da decisão-surpresa encontra-se consagrado no art.º 3º, n.º 3 do CPC, que dispõe: “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
A propósito do princípio do contraditório, com incidência no campo dos pressupostos processuais, referem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 8-9: “[n]o plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objecto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade. Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho saneador, sentença, instância de recurso). Não se discutindo o conceito, cuja conformação se mostra adquirida pela jurisprudência e na doutrina, o ponto é que o art.º 3º, nº 3 ressalva os casos de manifesta desnecessidade. “O que deve entender-se por manifesta desnecessidade constitui-se como o nódulo ou punctum crucis da questão e só a praxis pode ajudar a desbravar e obtemperar”.
Estando em causa a realização de perícia, estabelece o art.º 467º, nº2, do C.P.Civil que as partes são ouvidas sobre a nomeação do perito, podendo sugerir quem deve realizar a diligência e no que respeita ao objecto, tendo a perícia sido determinada oficiosamente, incumbe ao juiz indicar, no despacho em que determina a realização da diligência, o respectivo objecto, podendo as partes sugerir o alargamento a outra matéria – cfr art.º 477º C.P.Civil.
É depois de ordenada a diligência que as partes são ouvidas acerca da nomeação do perito e do objecto da perícia, pelo que, regra geral, não tem o juiz que auscultar as partes em momento anterior a determinar a realização da perícia.
O princípio do inquisitório, previsto na lei processual civil como “incumbência” do juiz do processo, define-se como um “dever”. O legislador previu a liberdade do juiz na sua actuação oficiosa, ainda que haja condicionado a liberdade de uso desses poderes instrutórios a uma concreta finalidade - o poder oficioso é usado para atingir os fins do processo expressamente contemplados no art.º 411º do Código de Processo Civil. Essa liberdade seria posta em causa se houvesse uma vinculação geral e ilimitada do uso desse poder/dever à audiência prévia das partes.
Se o juiz entende que determinada diligência é necessária para o julgamento consciencioso e seguro dos factos relevantes para a boa decisão da causa, anular tal decisão por omissão da prévia submissão da decisão ao contraditório da partes negaria amplitude ao apontado poder oficioso, não se olvidando que os limitados fundamentos que as partes poderiam opor à projectada decisão do tribunal apenas poderiam respeitar à legalidade/pertinência da mesma.
Deste modo, o princípio do contraditório (art.º 3.º do CPC) não impõe a audição prévia das partes à determinação oficiosa da realização da perícia, tanto mais que a lei prevê a sua audição subsequente nos termos supra referidos e ainda e o contraditório diferido, por via da admissibilidade legal de recurso nos casos em que, pelo valor da causa e/ou da sucumbência, o mesmo seja admissível.
Suscita a apelante a questão relativa a saber se, in casu, a decisão em si mesma de ordenar oficiosamente a produção da indicada prova no início da audiência final, em ocasião em que a apelada não tinha requerido a produção de qualquer prova, suportando a sua pretensão somente na prova documental já produzida e a apelante havia prescindindo do depoimento de parte por si requerido,  alterou o equilíbrio entre as partes e violou o princípio da confiança, mas sobre esta questão nos pronunciaremos no momento próprio, caso a respectiva decisão não fique prejudicada pela solução dada à questão relativa à existência de fundamento para produção de prova pericial.
No que a tal concerne, invocou a apelante que:
- a perícia não corresponde a qualquer questão que resulte de factos alegados, limitando-se a reproduzir o artigo 3º, n.º 3, do CIRE e não permite apreciar e decidir as questões que se colocam ao tribunal, quanto ao valor do crédito da requerente ou à prescrição de direitos, alegadas pela requerida e que
- a perícia é inútil e apenas visa suprir a manifesta falta de prova da requerente.
O art.º 411º do CPC sob a epígrafe de “Principio do inquisitório” – princípio que vigora também no processo de insolvência -, estabelece que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
A expressão “diligências necessárias” constitui um conceito indeterminado a preencher em função do caso concreto, mas não poderão deixar de ser diligências indispensáveis, imprescindíveis, para estabelecer ou infirmar a realidade de factos carecidos de prova com relevo para a decisão a proferir, ou seja, além de necessárias, hão--de ser diligências idóneas, meios de prova adequados, apropriados para provar ou infirmar um facto carecido de prova.
No que respeita à prova pericial, estabelece o artigo 388º, nº1, do C.Civil que a mesma “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
Esta prova pode visar tanto a percepção de factos por inspecção de pessoas ou de coisas, móveis ou imóveis, como a determinação do valor de coisas ou direitos ou ainda a revelação do conteúdo de documentos ou a verificação da letra e assinatura, data, alteração ou falta de autenticidade de documento (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, 2º, 3ª edição, pág. 311-312).
Quando a prova pericial incide sobre factos, pode visar a afirmação de um juízo de certeza sobre os mesmos ou a valoração de factos ou circunstâncias.
Como refere Luís Filipe Sousa, in Direito Probatório Material, 2ª edição, pág. 192: “O traço definidor da prova pericial é, de facto, o de se chamar ao processo alguém que tem conhecimentos especializados em determinados aspectos de uma ciência ou arte para auxiliar o julgador, facultando-lhe informação sobre máximas da experiência técnica que o julgador não possui, e que são relevantes para a percepção e apreciação dos factos controvertidos.”
A prova pericial não deverá ser admitida se não forem exigidos conhecimentos que extravasem os conhecimentos relativos à cultura e experiência comuns.
É nosso entendimento que, não obstante o carácter urgente do processo de insolvência, esta circunstância, por si só, não é fundamento para não admitir a realização da perícia neste processo, uma vez que o andamento célere do mesmo não deve colocar em causa o princípio da busca e descoberta da verdade material e da justa composição do litígio. Todavia, tal meio de prova apenas pode ser determinado caso o tribunal conclua, com segurança e objectividade, dos elementos constantes dos autos, que a perícia é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é licito conhecer, ou seja, quando concluir que a diligência é indispensável, imprescindível para estabelecer ou infirmar a realidade do facto carecido de prova com relevo para a decisão a proferir.
Há, pois, que decidir se a perícia determinada pelo tribunal a quo é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, atentos os factos em causa nos autos.
Da análise dos articulados resulta que a requerente veio requerer a declaração de insolvência da requerida começando por alegar factualidade respeitante à existência/titularidade do crédito, após o que enuncia os factos que consubstanciam o alegado incumprimento para, a final, articular os factos que, na sua tese, consubstanciam a situação de insolvência – elevado número de dívidas acumuladas (que documenta com base no plano de insolvência previamente homologado em relação à requerida), incumprimento generalizado, ausência de bens/rendimentos/proveitos que autorizem o pagamento das elevadas quantias de que a requerida é alegadamente devedora, referindo que a mesma é proprietária de dois imóveis, onerados com hipotecas, cujo valor é insuficiente para liquidar o passivo acumulado.
Por seu turno, a requerida, em sede de oposição, questiona o valor do crédito da requerente, impugna a alegada situação de incumprimento do plano de insolvência e a imputada situação de insolvência, descrevendo as condições de abatimento ao passivo e alegando que tem capacidade para pagamento das prestações cobradas de acordo com o plano, tendo património, designadamente os dois imóveis, cujo valor cobre as respectivas responsabilidades.
Foi determinada a realização de perícia com o seguinte objecto: 
- a situação contabilística da Requerida a fim de ser apurado se o seu ativo é superior ao seu passivo, avaliados em conformidade com as normas contabilísticas aplicáveis tendo presente as seguintes regras (cfr. art.º 3.º, do CIRE):
a) Considerando no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor;
b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor.
O objecto fixado corresponde na íntegra ao disposto no art.º 3º, nº 3, do CIRE, estabelecendo este artigo que: 
 “1- É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2- As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
3 - Cessa o disposto no número anterior quando o activo seja superior ao passivo, avaliados em conformidade com as seguintes regras:
a) Consideram-se no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor;
b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor”.
O que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas que surgem na actividade do devedor por falta de liquidez e/ou de crédito para cumprimento pontual do passivo vencido, impossibilidade essa que é apreciada objectivamente, independentemente da causa ou do conjunto das causas que determinaram essa situação.
In casu, o tribunal limitou-se a pretender, com a perícia, única e exclusivamente, o apuramento dos elementos referidos no aludido artigo 3º do CIRE, elementos que cumpre ao tribunal apurar com base na contabilidade da requerida, não existindo qualquer indício da necessidade de uma perícia e do recurso aos conhecimentos especiais técnicos que a realização da mesma pressupõe, sendo certo que o tribunal a quo não indicou qualquer fundamento justificativo das razões pelas quais reputa a perícia como necessária.
A requerida trata-se de uma sociedade por quotas que se apresentou anteriormente à insolvência em processo que correu termos sob o nº …  junto do Juízo de Comércio do … – Juiz 2 e no contexto do qual foi homologado plano de insolvência, por sentença transitada em 16/11/2015.
Sustentou a requerente, como se disse, que a mesma terá deixado de cumprir o plano em questão e que, após interpelação para regularização do valor em dívida, nada pagou e não dispõe de bens ou rendimentos que lhe permitam pagar as elevadas quantias de que é devedora, encontrando-se em situação de incumprimento generalizado.
Por sua vez, a requerida impugnou a alegada situação de incumprimento do plano de insolvência, sustentou que tem capacidade para pagamento das prestações cobradas de acordo com o plano e que tem património, designadamente os dois imóveis, cujo valor cobre as respectivas responsabilidades.
Sendo estes os factos que importa apurar, na falta de fundamentação acrescida, a perícia, com o objecto fixado, não se pode considerar uma diligência necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. A entender-se de modo diverso, ter-se-ia que considerar esta diligência necessária em todos os processos de insolvência para apurar se o passivo é superior ao activo, ou vice-versa. Nada tendo sido indicado no despacho e nada resultando dos autos que permita que se conclua, neste caso em particular, pela necessidade de recorrer a pessoa com conhecimentos técnicos especiais que o julgador não possua, não é possível afirmar, com segurança e objectividade, que a perícia é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é lícito conhecer. 
Pelo exposto, não se pode manter o despacho recorrido, tendo o mesmo que ser revogado.
Em consequência, fica prejudicado o invocado pela apelante no que concerne ao despacho recorrido integrar violação do princípio constitucional da confiança. 
*
IV. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revogar o despacho recorrido.
Custas pela apelada (art.º 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Registe e Notifique.

Lx, 26/11/2024
Manuela Espadaneira Lopes (relatora por vencimento)
Elisabete Assunção
Ana Rute Costa Pereira (vencida nos termos da declaração anexa)
Voto de vencido.
A signatária não acompanha o sentido decisório do acórdão, ou a sua fundamentação, na parte em que se afirma que “a perícia, com o objecto fixado, não se pode considerar uma diligência necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. A entender-se de modo diverso, ter-se-ia que considerar esta diligência necessária em todos os processos de insolvência para apurar se o passivo é superior ao activo, ou vice-versa. Nada tendo sido indicado no despacho e nada resultando dos autos que permita que se conclua, neste caso em particular, pela necessidade de recorrer a pessoa com conhecimentos técnicos especiais que o julgador não possua, não é possível afirmar, com segurança e objectividade, que a perícia é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é lícito conhecer”.
Se tal argumento poderia ser potencialmente relevante enquanto suporte de indeferimento de uma perícia requerida pelas partes, não o será, na opinião da signatária, quando em causa está uma perícia ordenada oficiosamente pelo julgador.
A prova pericial será impertinente “se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa (…) Para admissão da prova pericial não se exige que a mesma seja o único meio disponível para a demonstração de determinado facto (isto é, que deva ser rejeitada desde que a prova do mesmo possa ser feita por outros meios alternativos); poderá ser apenas a prova preferencial, face ao objecto do litígio” – Acórdão do TR Guimarães de 23.01.2020, processo n.º 5588/19.8T8VNF-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, citado no despacho
recorrido.
Se uma determinada diligência tem a aptidão abstrata para provar factos relevantes para a decisão da causa, ou é potencialmente relevante para apurar esses factos, ela é pertinente, pelo que, na situação concreta, restaria apreciar a possibilidade de a afirmada desnecessidade objetiva ser bastante para suportar a revogação do despacho recorrido.
No que a este conspecto respeita, considero, no caso concreto, que o juízo subjetivo de necessidade da prova para justa composição do litígio ou apuramento da verdade material está excluído da margem de sindicabilidade deste tribunal, na exata medida em que não são ultrapassados quaisquer limites de legalidade (como sucederia, v.g., se o juiz ordenasse oficiosamente a inquirição de uma testemunha para prova de um facto provado por documento autêntico), não está em causa a sua admissibilidade processual, nem pode considerar-se que existe objetiva desadequação da prova em questão para demonstrar a factualidade controvertida.
Citando Nuno Lemos Jorge [“Os Poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, Revista Julgar, n.º 3, pág. 76], “(…) [A] desnecessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio só em casos extremos poderá constituir, autonomamente, um fundamento seguro para o recurso da decisão. Só o tribunal sabe da sua necessidade de esclarecimento”.
É verdade que o objeto da perícia proposto pelo juiz, no essencial, transcreve o texto da lei. Contudo, sendo o propósito da prova a avaliação do ativo e o seu confronto com o passivo, não haverá um particular elenco de expressões alternativas que possam ser utilizadas para indicação daquela que será a incidência da perícia, tendo sido expressamente concedido às partes o direito de propor a ampliação ou alteração do objeto proposto.
Ainda que o resultado probatório a alcançar, no particular contexto do processo de insolvência, possa ser obtido por outra via, não pode daí extrair-se um indício de desnecessidade ou de impertinência da prova, quando esta tem por objeto questões de facto que integram a causa de pedir e que, em simultâneo, contendem com factos que suportam exceções arguidas pela requerida.
Se a signatária concorda que o fundamento invocado para realização da diligência poderá ser usado em todos os processos de insolvência em que se imponha apurar se o passivo é superior ao ativo, já não adere à conclusão de que esse argumento possa suportar um juízo de desnecessidade da diligência passível de questionar o juízo de necessidade afirmado pelo julgador, que não está limitado no uso de poderes instrutórios a uma diretriz de indispensabilidade ou imprescindibilidade do concreto meio de prova de que entende carecer para formar, com segurança, o seu juízo.
Em suma, na opinião da signatária, não existindo objetiva violação das regras de que a lei, ou específicas exigências de justiça e equidade, fazem depender o recurso aos poderes instrutórios do juiz, não poderia ser coartado o uso do poder oficioso de ordenar a realização de diligência que, no seu juízo subjetivo, o mesmo considerou como necessária.
No que respeita à violação do princípio constitucional da confiança (questão que não ficaria prejudicada caso fosse seguida a posição da signatária), a defesa pela apelante de uma violação do princípio da confiança sustentada na fundada expectativa de que os requerimentos probatórios se encontravam definitivamente estabilizados, situação inesperadamente subvertida pela determinação oficiosa de realização de uma diligência probatória, traduz a concretização da surpresa, da imprevisibilidade ou da
natureza inesperada da determinação do julgador, mas essa surpresa, fundada em poderes conferidos por lei, não atinge a dignidade constitucional apontada, não podendo falar-se em ofensa ao princípio da confiança quanto está em causa um ato norteado por objetivos de apuramento de verdade e compreendido no uso regular dos poderes do julgador, sem qualquer cariz de arbitrariedade ou ofensa de direitos das partes, que não se confundem com as suas subjetivas expectativas. Nessa medida, concluiria pela inexistência de uma atuação lesiva do princípio da proteção da confiança.
Pelos motivos expostos, julgaria improcedente o recurso e confirmaria a decisão recorrida.
Ana Rute Costa Pereira