Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
719/02.1TAFUN.L1-5
Relator: ANA LÚCIA GORDINHO
Descritores: SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO DE JULGAMENTO
ABUSO DE CONFIANÇA
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Ao contrário de outras causas de suspensão do prazo prescricional, como a declaração de contumácia, a notificação da acusação ou a notificação da sentença que enquanto esta não transitar a suspensão perdura por determinado período limitado de tempo, não existe este limite para a suspensão do prazo de prescrição nas situações em que os agentes são julgados na ausência e ainda não foram notificados da sentença – Cf. artigo 120.º do Código Penal.
II - Não existindo qualquer contradição entre os factos dados como provados e não provados e a fundamentação que lhes seguiu, estando os factos dados como provados e não provados em perfeita harmonia com a fundamentação dos mesmos, não se conseguindo obter qualquer decisão diversa se conjugarmos tudo com as regras da experiência comum, então temos de concluir que não há erro na apreciação da prova (artigo 410, n.º 2 do Código de Processo Penal).
III - Saber se foi pedida a devolução das quantias apropriadas ao agente, ou se houve recusa em devolver tais quantias ou mesmo saber que destino foi dado aos montantes apropriados não fazem parte do tipo de crime de abuso de confiança, pelo que não tinham de constar na fundamentação fática da decisão recorrida. Tais elementos, quanto muito, poderiam ser relevantes na determinação da medida da pena a aplicar, mas jamais como fazendo parte do ilícito em análise.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No processo comum coletivo 719/02.1TAFUN, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Criminal do Funchal, J1, foi proferida acórdão, datado de 8 de janeiro de 2007, nos termos da qual foi decidido:
I. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, pp. no artigo 202.º, alínea b) e 205.º, n.ºs 1, 4 e 5, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 3 (três) anos, sob condição de, em 2 anos, proceder ao pagamento da quantia que vai ser condenado no pedido de indemnização civil, sendo que ao fim de 1 (um) ano deve estar pago pelo menos metade do valor em dívida;
II. Foi, ainda, condenado a pagar à demandante BB, a quantia de € 60.176,72 (sessenta mil cento e setenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data de notificação do pedido de indemnização civil.
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Inconformado com esta decisão, veio o arguido interpor o presente recurso, apresentado motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
1. “Salvo o devido respeito e com toda a consideração o Tribunal a quo estribou a condenação dos arguidos nos presentes autos num erro manifesto de julgamento ao dar como provada existência do crime pelo qual condenou este.
2. Tal erro assentou, essencialmente, no errado julgamento da matéria de facto nos presentes autos ao dar como provados grande parte dos factos que constam da matéria de facto dada como provada.
3. Ao fazê-lo o Tribunal não apreciou de forma crítica, e de acordo com as regras da experiência comum a prova constante dos autos, nomeadamente os depoimentos da gerente da Assistente, que não era sua gerente de facto sendo muito jovem à data dos factos, sendo a Assistente, efetivamente gerida pelo seu Pa.
4. Bem como desvalorizou para além do que imporiam as regras de experiência comum, a pouca instrução do arguido e a sua objetiva incapacidade para criar e alimentar um esquema como o descrito na matéria dada como provada, o que resulta até da descrição das suas funções anteriores que o Tribunal conhecia e valorou, sendo impossível que um homem de 44 anos, com a quarta classe como instrução escolar e que nunca tinha sido mais que operador de maquinas pudesse ser, efetivamente o … da Assistente na …, e, mais que isso, saber mexer nas ferramentas e instrumentos informáticos necessários para perpetrar o crime de que vinha acusado, da forma como lhe foi imputado.
5. Porquanto a conjugação destes meios de prova, numa análise segundo as regras de experiência comum imporia um diferente julgamento da matéria de facto dada como provada 11, 12, 19 e 20, impondo que fossem dados como não provados
6. O cotejo destes meios de prova, analisados segundo as regras de experiência comum imporia, numa primeira linha a verificação da inexistência de qualquer crime;
7. E, numa segunda linha, ainda que, erradamente, se considerasse poder ter tal crime, objetivamente, ocorrido, o que se alega sem conceder, impunha-se a absolvição do arguido, por não se terem demonstrado os elementos subjetivos típico dos crime de que vinha acusado, nomeadamente porque não se demonstrou que alguma vez se tivesse recusado a devolver fosse ou que fosse, ou que, a montante, lhe tenha sido solicitada tal devolução- elementos subjetivos essenciais do crime pelo qual foi condenado e que, in casu, não se verificaram.
8. A decisão em crise, apreciou a prova produzida, nomeadamente os meios de prova referidos acima de uma forma contrária às regras de experiência comum, assim violando o artigo 127.º do CPP, que impõe um critério muito claro para a livre apreciação da prova, que tem em vista afastar decisões arbitrárias,
9. Ou assentes em pré-juízos e sem estribo probatório efetivo, como sucedeu no caso dos autos.
10. Sendo manifesto que os meios de prova ao dispor do Tribunal a quo impunham decisão diversa no que respeita à verificação do crime.
11. Da mesma forma, o Acórdão em crise é omisso, na sua fundamentação, e como acima referido, quanto à forma como o Arguido poderá ter feito sua qualquer quantia, ou qual o destino dado às mesmas, o que igualmente, vicia a decisão recorrida.
12. Não pode bastar-se o Tribunal, para condenar um Arguido, com a simples indicação de que fez suas quantias determinadas, sem explicar, ainda que sucintamente, como quando e com que método, e qual o destino das mesmas, que foi o que sucedeu na decisão em crise.
13. Ao omitir completamente todos estes elementos o Acórdão sob recurso violou os critérios do artigo 74.º n.º 1 do CPC, da mesma forma que violou, por não se ter demonstrado o necessário dolo de apropriação, os artigos 20.º da CRP e o artigo 205.º do CP.
14. Pelo que é manifesto que da prova produzida em julgamento, se apreciada à luz das regras de experiência comum, não é possível dar como provada a existência de qualquer crime de abuso de confiança em prejuízo da Assistente.
15. O que implica a absolvição do arguido
Sem prescindir,
16. Ainda que, à revelia do que foi a prova produzida se entenda que se verificou a pratica do crime de Abuso de confiança, a verdade e que, em 19 de março de 2024, data em que foi notificado o Acórdão sob recurso ao Arguido e este prestou TIR e foi constituído arguido, há muito que havia decorrido o prazo prescricinal do crime em questão.
17. Tal aprazo, é, nos termos do artigo 118.º. n.º 1, al. b) do CPC, que a decisão em crise violou de dez anos, que, por efeito das interrupções, poderiam ser, no máximo quinze – Cfr. artigo 121.º n.º 3, igualmente violado pela decisão em crise.
18. De igual modo, já em 2007 era manifesto que o Arguido não teria condições de cumprimento da injunção que lhe foi imposta como condição de suspensão da pena de prisão de dois anos em que foi condenado.
19. Sendo que o cumprimento dessa injunção, já á época, redundaria na impossibilidade, de para a cumprir, o Arguido não ter qualquer meio de subsistência, o que, para além do mais, viola os princípios constitucionais contidos no artigo 18.º e n.º 2 da CRP que a decisão em crise violou.
20. Pois que, na prática, o Arguido vê-se na situação de condenação a “prisão por dividas”.
21. Não lhe podendo ser imposta como condição de suspensão da pena o pagamento de uma verba de que, objetivamente, não lhe é possível dispor.
22. Tanto mais quando, em 61 anos de vida este é o único problema criminal com que alguma vez se deparou, o que diz bem da sua boa inserção social e da retidão da sua conduta.
23. Pelo que a decisão de fazer depender a suspensão da pena de prisão em que o Arguido foi condenado no pagamento de uma quantia de que bem sabe o Tribunal este não dispõe, nem tem meios para angariar, consubstancia uma violação grosseira dos critérios estabelecidos nos artigos 40.º e 71.º n.º 2 do CP, revelando-se esta decisão manifesta e objetivamente desproporcional.
24. Finalmente, atenta a argumentação expendida para a decisão de suspensão da pena, com que se concorda, poderia e deveria o Tribunal a quo ter ido mais longe, e em respeito pelo poder dever consagrado no artigo 58.º do CP, ter substituído a pena de prisão em que o Arguido foi condenado por trabalho a favor da comunidade, porquanto tal decisão seria mais que suficiente para, in casu satisfazer as concretas necessidades de prevenção geral e especial, atentas as condições sociais e de integração do Arguido, a sua idade, e o tempo entretanto decorrido, sem a pratica de qualquer outra infração penal.
Termos em que, julgando procedente o presente recurso, e revogando o Acórdão em crise, substituindo-o por outro que, de acordo com as conclusões supra, absolva o recorrente, ou, assim não o entendendo, anule a condição de suspensão da pena de prisão aplicada e substitua a mesma por trabalho a favor da comunidade, farão V. Exas, Srs. Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa a Habitual e sã Justiça”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Publico respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1. “Nos presentes autos, o arguido AA foi condenado, além do mais, como autor material de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 202, al. b) e 205.º, nºs 1, 4 e 5, al. b), ambos do Cód. Penal, na pena de prisão de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, sob condição de, em dois anos, proceder ao pagamento da quantia em que foi condenado no pedido cível, sendo que, ao fim do primeiro ano deveria estar pago pelo menos metade do total em dívida.
2. Inconformado com tal decisão, o arguido coloca a mesma em crise e invoca:
I - O erróneo juízo formado pelo Tribunal, relativamente a alguns factos, considerando a produção da prova realizada, incorrendo o Tribunal na violação do Princípio da Livre Apreciação da Prova (artigo 127.º do CP), mais pugnado pela violação do dever de fundamentação do douto Acordão proferido;
II - A verificação da prescrição do procedimento criminal;
III - A errada escolha da condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada pelo douto Tribunal, bem assim como o carácter excessivo e desajustado, configurando a violação dos princípios constitucionais previstos no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
3. Nos termos do artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a motivação de recurso deve enunciar os fundamentos do recurso, e terminar com as conclusões, sendo certo que são estas que definem o seu âmbito.
4. Não assiste razão ao arguido, não se verificando qualquer violação do douto Tribunal “a quo”, de qualquer dispositivo da lei ordinária ou da Constituição da República Portuguesa.
5. O Douto Tribunal “a quo” logrou alcançar o seu convencimento e considerou os factos julgados como provados e não provados, pela conjugação de toda a prova documental ínsita nos autos, bem assim como a prova produzida em audiência de julgamento, e pelo recurso, também, às regras da experiência comum e ao convencimento apurado após toda a prova, também testemunhal, ter desfilado em audiência de julgamento.
6. Não violou o Douto Tribunal o princípio da livre apreciação da prova, nem incorreu na errónea valoração de factos, que considerou provados, como pugna o arguido.
7. Com efeito, se o douto Tribunal “a quo”, retirou, de toda a prova produzida nos autos, uma determinada ilação, a que bem fundamentou e motivou, e se essa era a leitura e conclusão mais acertada de tal acervo probatório, é evidente que o Tribunal não incorreu em qualquer nulidade ou violação de qualquer principio de direito, material ou processual, tendo, ao invés, apenas se socorrido da liberdade/faculdade/poder-dever, de decidir conforme a prova produzida, da qual se convenceu e que se constituía como uma das perceções ou leitura possível e mais assertiva, com toda a certeza, a mais coerente e consentânea com o que é normal que aconteça em situações como aquela, sendo pois tais conclusões balizadas pela regras da experiência comum.
8. Assim, o douto Tribunal não violou o princípio da livre apreciação da prova, disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal;
9. Não ocorrendo, de igual forma, qualquer Erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida”.
10. Não colhe a tese do arguido no sentido de que o Douto Tribunal “a quo” não poderia ter alcançado os factos considerados provados, no sentido da condenação do arguido, pois, o mesmo, nesta peça recursiva limita-se a esgrimir argumentos meramente genéricos, não tendo logrado analisar a prova factual e verter neste recurso os depoimentos das testemunhas, que motivariam o tribunal a alcançar outro convencimento dos factos.
11. Pelo contrário, invoca apenas a situação pessoal e financeira do arguido, a sua situação de saúde muito após a prática dos factos, a situação relativa à penhora dos seus bens, a situação familiar do desemprego e divórcio, a sua baixa escolaridade e a situação laborar enquanto trabalhador da empresa ofendida, e a impossibilidade económica para contratar um advogado de molde a se defender em Tribunal.
12. Ora, tais factos, meramente “atirados para o ar” na peça recursiva do arguido, em nada afetam o juízo alcançado pelo douto Tribunal “a quo”, sendo que a decisão tomada pelo Douto Coletivo foi assente nos factos provados à data do julgamento, como não poderia deixar de ser.
13. Inexiste o vicio de Omissão de Fundamentação do libelo proferido, porquanto o Douto Tribunal “a quo” quedou-se pela enumeração ampla e plena, de forma muito minuciada e em pormenor, de todos os elementos e passos seguidos no seu raciocínio, tudo temperado com a articulação dos factos que considerou provados e não provados, e a razão de tal sustentação, tendo o cuidado de explicar as razões pelas quais se convenceu, ou não, de determinada factualidade ou tese trazida aos autos pelos intervenientes processuais.
14. Não ocorreu nos autos qualquer erro de julgamento nem tão pouco a violação do princípio “in dúbio pro reo”, uma vez que, em momento algum o Tribunal da condenação foi assaltado por qualquer dúvida relativa à participação do arguido na prática dos factos ilícitos.
15. O Tribunal apreciou a prova segundo o critério imposto pela lei, de forma “livre”, sendo que a livre convicção do julgador não significa apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objetivos ou objetiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida, e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica.
16. Assim sendo, a livre convicção constitui um modo não vinculado de valoração da prova e consequentemente de descoberta da verdade processualmente relevante, ou seja, uma apreciação da prova em obediência à lógica e à razão e não condicionada por prescrições formais exteriores.
17. Nos presentes autos, não se verifica a figura da prescrição. Note-se que, sendo a moldura do tipo legal em causa situada entre 1 e 8 anos de prisão, o limite máximo do prazo de prescrição seria de 15 anos.
18. Contudo, tem aplicação, “in casu”, a disciplina prevista no artigo 120.º, n.º 1, al. d), porquanto, tendo o arguido sido julgado na ausência, e, não tendo sido possível notificar o mesmo da decisão contra si proferida, suspende-se, de forma ilimitada e sem prazo, o procedimento criminal em causa.
19. Assim é, pois o legislador, de forma intencional, não limitou o período da suspensão, como o fez no número 2 e 3 do mesmo dispositivo legal, e, estando vedado o recurso ao instituto da analogia em processo penal, conclui-se que, neste situação, a suspensão da prescrição pode durar de forma indefinida e ilimitada, sendo que, no limite, e em teoria, a não se conseguir a notificação do arguido, o procedimento criminal apenas cessará com a sua morte.
20. Ademais, não se esqueça, também, da figura da interrupção da prescrição, ocorrida aquando da constituição do recorrente como arguido e, mais tarde, durante a declaração da contumácia, cfr, além do mais, o previsto no artigo 120.º, n.º 1. al. c) do Código Penal.
21. Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal ponderou todos os factos, em absoluto respeito e em cumprimento do estatuído nos artºs 40.º, 53.º, 70.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, bem como dos comandos constitucionais em apreço nesta matéria, que manda atender, na determinação da medida da pena, à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
22. O Tribunal “a quo” considerou e sopesou a gravidade dos factos, o período temporal, a natureza do crime praticado, as necessidades de prevenção geral e especial, a ilicitude, a culpa, a personalidade do arguido e o seu percurso de vida, como bem se refere no douto aresto.
23. Por outro lado, não pode esquecer-se que as finalidades das penas são, como prevê o disposto no art.º 40.º do Código Penal “a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”;
24. E, relativamente à questão da suspensão da execução da pena aplicada e condição da mesma, o Tribunal agiu de forma assertiva, justa e imbuído, também, do espírito ressocializador e reparador dos efeitos da pena, para todos os intervenientes processuais.
25. Considerou o Tribunal como provado que o arguido possuía vários veículos registados em seu nome, que era proprietário de um imóvel, que o mesmo trabalhava na área da construção civil, não sendo, de todo, impossível, nem irrazoável alcançar o prognóstico de que o arguido tinha capacidade económica para cumprir a condição da suspensão da pena.
26. Não se pode olvidar que a decisão proferida pelo Tribunal tem de ser consequente e, também, reparar o mal provocado à ofendida; caso contrário, a decisão revelar-se-ia inócua, vazia de sentido e desprovida de qualquer juízo de censura percetível à comunidade a quem se dirige, e ineficaz no cumprimento do designo da prevenção geral pretendida.”
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Remetido o processo a este Tribunal, o Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunto emitiu o parecer nos seguintes termos:
“Analisados o acórdão, o recurso e a resposta ao recurso, acompanhamos integralmente o teor da resposta apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, à qual, pela sua correta fundamentação e assertividade, nada temos a aditar.
(…) Fazemos (…) notar que o recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, nos moldes estatuídos no art. 412.º, nºs. 3 e 4, do CPP, pelo que a mesma se encontra estabilizada e será em função dela, e só dela, sem recurso a elementos exteriores ao texto do acórdão, que se aferirá da violação do princípio da livre apreciação da prova ou da existência de vício decisório.
Termos em que somos de parecer que o recurso não merece provimento”.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido.
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II. Questões a decidir:

Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise são as seguintes as questões a decidir por ordem de procedência lógica:
• Prescrição do procedimento criminal;
• Erro de julgamento;
• Da qualificação jurídica dos factos;
• A pena imposta pode ser substituída por trabalho a favor da comunidade;
• Adequação da condição de suspensão da pena imposta.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da sentença proferida:
1. “O arguido foi admitido ao serviço da assistente BB", com a categoria de praticante de … a … de 1996.
2. Em 1999, devido ao volume de obras Públicas na ..., a assistente decidiu abrir uma delegação, no ... da ..., e um estaleiro na ..., em ....
3. O arguido veio para o …, ao serviço da assistente, como ….
4. Devido ao aumento dos trabalhos a partir de meados do ano 2000, a assistente atribuiu ao arguido as funções de encarregado geral da delegação da …, que o mesmo desempenhou até Outubro de 2001.
5. A delegação da assistente na …, à frente da qual se encontrava o arguido, tinha necessidade de realizar diversas despesas na Região, designadamente compra de material, assistência de equipamento, rendas de escritório, estaleiro, casa do arguido.
6. Até ao final do ano 2000, em regra, tais despesas eram pagas com recurso a um fundo de maneio, afecto à delegação, gerido pelo arguido, o qual, após efectuar os pagamentos, enviava para a sede da assistente os documentos comprovativos das despesas realizadas e respectivas folhas de caixa, para controle e reposição do fundo.
7. Nos últimos meses do ano 2000, o arguido por diversas vezes solicitou à assistente que alterasse tal sistema de pagamentos, no sentido de ser criada uma forma mais expedita de gestão da delegação da …, no que respeitava à realização e ao pagamento das compras necessárias.
8. A assistente acedeu ao pedido e a partir do inicio do ano 2001, passou a fazer transferências da sua conta do ... nº …, para uma conta do arguido no ..., só por ele movimentada, com o nº …, sempre que o mesmo as solicitava, para fazer pagamentos, sinalizar compras ou fazer adiantamentos por conta das compras a realizar.
9. A assistente deu instruções ao arguido no sentido de que o mesmo devia elaborar uma folha de caixa mensal, com indicação do montante das transferências de dinheiro recebidas e o descritivo das despesas efectuadas.
10. Por indicação da assistente estava o arguido obrigado a devolver mensalmente à sede a folhas de caixa e bem assim as facturas e ou os recibos comprovativos das saídas de dinheiro.
11. Contudo, a partir do mês de Março de 2001, o arguido passou a atrasar-se no envio de tais folhas de caixa e restantes documentos.
12. A partir desse momento o arguido decidiu aproveitar-se da disponibilidade das quantias entregues, da forma descrita, pela assistente, para seu proveito.
13. Assim, nas folhas de caixa de Março a Agosto de 2001, o arguido inscreveu despesas, efetivamente realizadas no valor de 9.707.541$00 (nove milhões, setecentos e sete mil quinhentos e quarenta e um escudos) – 48.421,01 € (quarenta e oito mil, quatrocentos e vinte e um euros e um cêntimo).
14. Tais despesas, que segundo o mesmo foram pagas aos fornecedores e que como tal constavam inscritas nas mencionadas folhas de caixa, na realidade, estavam em dívida uma vez que o arguido decidiu fazer sua aquela quantia.
15. Porém, após solicitação de alguns fornecedores da delegação da …, que interpelaram a sede, devido ao não pagamento de várias facturas que constavam como pagas nas folhas de caixa preenchidas e envidas pelo arguido, a assistente teve que regularizar tais fornecimento, assinalados com a letra a, nas folhas de caixa juntas a 13 a 33, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, tendo pago em Outubro de 2001, o montante global de 4.479.148500 (quatro milhões quatrocentos e setenta e nove mil cento e quarenta e oito escudos) - 22341,90 € (vinte e dois mil trezentos e quarenta e um euros e noventa cêntimos), nos seguintes termos:
- 463.571$00 (quatrocentos e sessenta e três mil quinhentos e setenta e um escudos) - 2 312,28 € (dois mil trezentos e doze euros e vinte e oito cêntimos), à "...";
- 313.152$00 (trezentos e treze mil cento e cinquenta e dois escudos) – 1 562,00 € (mil quinhentos e sessenta e dois euros), à "...;
- 105.283$00 (cento e cinco mil duzentos e oitenta e três escudos) - 525,15 € (quinhentos e vinte e cinco euros e quinze cêntimos), à "...";
- 907.695$00 (novecentos e sete mil seiscentos e noventa e cinco escudos) - 4.527,56 € (quatro mil quinhentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos) à "...";
- 308.218$00 (trezentos e oito mil duzentos e dezoito escudos) - 1 537,38 € (mil quinhentos e trinta e sete euros e trinta e oito cêntimos) à "...";
-2.228.231$00 (dois milhões duzentos e vinte e oito mil e duzentos e trinta e um escudos - 11114,37 € (onze mil cento e catorze euros e trinta e setecêntimos) à "...";
- 137.318$00 (cento e trinta e sete mil trezentos e dezoito escudos) - 684,94 € seiscentos e oitenta e quatro euros e noventa e quatro cêntimos) à "..." e;
-15.680$00 (quinze mil seiscentos e oitenta escudos) -78,21 € (setenta e oito euros e vinte e um cêntimos) à "...".
16. Os restantes 5.228.393$00 (cinco milhões duzentos e vinte e oito mil e trezentos e noventa e três escudos) - 26 079,11 € (vinte mil e setenta e nove euros e onze cêntimos), assinalados nas folhas de caixa constantes de fls. 13 a 33, com a letra v, que o arguido também fez seus, ainda não foram pagos, pela assistente aos fornecedores.
17. Deste modo, o arguido recebeu da assistente, para além de outras quantias, os referidos 9.707.541500 (nove milhões setecentos e sete mil quinhentos e quarenta e um escudos) - 48.421,01 € (quarenta e oito mil quatrocentos e vinte e um euros e um cêntimo), que correspondem à soma dos 4.479.148500 (quatro milhões quatrocentos e setenta e nove mil cento e quarenta e oito escudos) - 22341,90 € (vinte e dois mil trezentos e quarenta e um euros e noventa cêntimos) com os 5.228.393500 (cinco milhões duzentos e vinte e oito mil e trezentos e noventa e três escudos) -26 079,11 € (vinte e seis mil e setenta e nove euros e onze cêntimos), não tendo utilizado tal montante proceder aos pagamentos devidos aos fornecedores, mas sim em seu proveito próprio.
18. Além do mais, o arguido por diversas vezes solicitou à assistente transferências, alegando haver necessidade de efectuar compras ou adiantamentos por conta de compras a efectuar.
19. Assim, a assistente efectuava as transferências solicitadas pelo arguido, que depois de receber o dinheiro, inscrevia nas folhas de caixa a realização de compras ou pagamento de despesas, assinalando, em algumas números de facturas ou vendas a dinheiro, sendo que na verdade as mesmas nunca foram realizadas.
20. Desse modo, o arguido inscreveu nas folhas de caixa dos meses de Julho e Agosto de 2001, despesas no valor de 1.654.010$00 (um milhão seiscentos e cinquenta e quatro mil e dez escudos) - 8 250,17 € (oito mil duzentos e cinquenta euros e dezassete cêntimos), assinaladas com a letra x a fls. 13 a 33, que aqui damos por integramente reproduzidas, despesas essas inexistentes.
21. Actuando dessa forma, o arguido após ter recebido da assistente a referida quantia, fê-la sua.
22. Recebeu as quantias transferidas pela assistente para a sua conta, sabendo que as mesmas se destinavam à liquidação de despesas da empresa e que não lhes podia dar outro destino.
23. Acresce que em Novembro de 2000, a assistente alugou à sociedade "... duas gruas, tendo para o efeito sido emitidas as facturas nº 117 e 118, ambas de 10/01/2001 e com vencimento a 11/03/2001, no valor respectivo de 268,15 € (duzentos e sessenta e oito euros e quinze cêntimos) e 3 237,39 € (três mil duzentos e trinta e sete euros e trinta e nove cêntimos).
24. Em Maio de 2001, o responsável pela sociedade "... entregou ao arguido para pagamento do aluguer, supra referido, em numerário a quantia de 702.798$00 (setecentos e dois mil setecentos e noventa e oito escudos) - 3 505,54 € (três mil quinhentos e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos).
25. O arguido recebeu a referida quantia não a tendo entregue à assistente, tendo-a feito sua.
26. Ao proceder da forma supra mencionada, o arguido assenhorou-se de quantias na importância global de 12.064.349$00 (doze milhões sessenta e quatro mil trezentos e quarenta e nove escudos) – 60.176,72 € (sessenta mil cento e setenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), que em parcelas variadas e sucessivas, desencaminhou da assistente, ainda que soubesse que as mesmas lhe não pertenciam e não lhe eram devidas.
27. Sabia que procedia contra a vontade e sem conhecimento da Assistente, à qual causou o prejuízo correspondente ao seu indevido enriquecimento, traindo desse modo, a confiança em si depositada quando foi contratado para desempenhar as funções supra descritas.
28. Agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível.
Da contestação
29. Para a obtenção de trabalhos, o arguido pagava almoços e jantares a alguns responsáveis e engenheiros de obras.
Provou-se ainda que:
30. O arguido tem dois veículos registados em seu nome, com as matrículas EH-..-.. (um …, ligeiro de passageiros, de 1973) e IN-..-.. (um ..., pesado de mercadorias, penhorado pelas Finanças).
31. A última declaração de IRS entregue pelo arguido é referente a 2002, onde apresentou rendimentos brutos de 5.118,82 €.
32. O arguido é proprietário de um imóvel sito em ..., inscrito na matriz sob o artº ... e com o valor patrimonial de 4.840,55 €.
33. O arguido não tem antecedentes criminais - cfr. crc de fls. 471
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Não se provou que (da contestação)
a. o arguido não tinha as habilitações mínimas para desempenhar o cargo em questão;
b. o arguido trabalhava muito, tinha excesso de trabalho;
c. o arguido não tinha meio de controlar as despesas, não tinha ninguém para as controlar nem dispunha de meios para tal, pois não tinha acesso a computadores, secretária e meios para uma boa e organizada gestão;
d. muitos dos pagamentos ao pessoal que trabalhava nessa mesma delegação na Madeira, e também aos fornecedores, foram efectuados "por fora";
e. as gruas da delegação em questão abasteciam gasóleo a troco de almoços e jantares na ...;
f. O arguido pagava despesas sem fatura e chegou a caducar cartões Galp por falta de uso;
g. existem facturas da ..., de pessoas, entre as quais, encarregados de obras, que usufruíam viagens a troco de obtenção de trabalho;
h. o arguido tinha autorização para efectuar todas as despesas que considerasse necessárias e utilizar todas as verbas que necessitasse;
i. o arguido muitas vezes efectuou pagamentos da assistente, a título de adiantamento, do seu dinheiro pessoal, tendo até ficado com a sua conta pessoal negativa;
j. o arguido deixava cheques assinados com a sua secretária, para o pagamento de despesas que fossem necessárias;
k. o arguido pediu o fecho de contas quando saiu da empresa, através de uma carta registada enviada pela sua advogada;
l. também foi pedido o seu IRS, que nunca foi enviado;
m. não lhe foi pago o último mês, nem os retroactivos a que tinha direito, bem como o montante de 5.000€ que lhe era pago "por fora") o arguido tem uma dívida no ..., de elevado valor;
n. o arguido tem uma penhora sobre a sua casa de morada de família, em ....
o. Devido ao excesso de trabalho, aquando do seu despedimento o arguido apresentava um esgotamento nervoso;
p. O arguido sempre foi uma pessoa cumpridora dos seus deveres, com bons princípios, fruto da excelente educação que os seus pais lhe transmitiram;
q. O arguido é uma pessoa respeitada por todos que com ele tratam;
r. O arguido nenhum proveito pessoal tirou, que não o seu trabalho.
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Fundamentação de direito e de facto
Dos factos
O arguido foi julgado na sua ausência, devidamente representado por defensor, pelo que não foi possível saber qual a sua versão dos factos.
Assim, a matéria apurada pelo Tribunal resulta do conjunto da prova produzida, que adiante se descreverá.
Em primeiro lugar, e de importância decisiva, surge a filha do representante legal da assistente, que gere a empresa - CC - a qual explicou as funções do arguido na empresa, as suas responsabilidades, o funcionamento da Delegação da …, as transferências de dinheiros, as relações com os clientes, enfim tudo o que está em causa nestes autos de modo convincente e seguro, alicerçando o seu depoimento em documentos e nos depoimentos de testemunhas/fornecedores.
Os factos 1,2 e 3, resultam do depoimento da referida testemunha, bem como das testemunhas DD, EE, que também trabalharam para a assistente, como condutores e manobradores.
Os factos 4 a 7 resultam do depoimento da referida gerente (de facto) da empresa, CC, que manifestou absoluto conhecimento directo e pessoa sobre esta matéria, depoimento que, de resto, não foi contrariado por qualquer outro meio de prova.
Os factos 8 a 28 assentam igualmente no depoimento daquela gerente, mas aqui já corroborado por muita documentação e prova documental. vejamos. As folhas de caixa constantes de fls. 13 a 33, para além de confirmar este método como o escolhido para formalizar o relacionamento financeiro entre a empresa/mãe em … e a sua delegação na …, liderada pelo arguido, reflectem as transferências de dinheiros da sede e toda a justificação das despesas efectuadas pelo arguido. Importa referir que era o arguido o responsável pela elaboração destas folhas de caixa. Assim, para além dos depósitos da sede, nelas surge, sinalizadas pela al. a), toda uma série de despesas que o arguido comunicou para Lisboa como já efectivamente pagas, mas que se veio verificar que os fornecedores nada haviam recebido e, como tal, se encontravam em dívida. Esta situação foi de resto constatada pela própria CC quando veio à … e conversou com os fornecedores em causa, os quais, em julgamento, confirmaram esta matéria. E estamos a falar das testemunhas FF e GG (sociedade ...), HH (…), II e JJ (…), KK (...), LL (…), MM (...) e NN (...). A confirmar que estas dívidas existiam e não foram pagas pelo arguido - ao contrário do que indicara nas respectivas folhas de caixa - temos ainda todos os cheques emitidos em 25.10.2001 por CC – cujas cópias estão a fls. 34 a 36 – para os respetivos pagamentos. Mas as folhas de caixa comprovam ainda, assinaladas com a letra x, despesas que o arguido indicou como realizadas, mas que nunca o foram, nem existem documentos de suporte. Cumpre referir que, nestas fictícias despesas, o arguido indiciava números de fatura e notas de cobrança de caixa nas folhas de caixa, que não existem nem correspondem a quaisquer despesas, servindo apenas de meio para receber mais dinheiro da BB. Acresce ainda a quantia que o arguido recebeu da ... e não entregou à assistente. A prova deste facto resulta do depoimento de CC, que ouviu do representante daquela sociedade que já tinha pago em dinheiro ao arguido, representante que já não reside em Portugal e, como tal, não foi possível inquirir. Mas o depoimento de CC é suficiente, porque credível, credibilidade que assenta na circunstância de toda a sua versão ter sido corroborada por documentos e relatos de outras testemunhas, não havendo assim qualquer razão para que o Tribunal não acredite inteiramente no que disse. Os documentos de fls. 37 a 63 demonstram os depósitos realizados pela BB na conta do ... indicada pelo arguido, comprovando que ele recebeu todos estes dinheiros. Resta referir que os restantes documentos - incorporados no apenso F e os apresentados em fase de julgamento - são repetição dos acima referidos ou vêm apenas confirmá-los, trazidos agora pelos fornecedores.
O facto 29, apesar de alegado pela contestação, foi confirmado por CC.
Os factos 30 a 33 resulta das informações documentais fornecidas pelas Finanças e pelo Registo de Automóveis, que se encontram juntos aos autos nas últimas folhas do processo, bem como do crc de fis. 471.
A matéria não provada é toda ela da contestação. E isto porque sobre ela não recaiu qualquer elemento de prova, não tendo sido inquirida qualquer das testemunhas arroladas pelo arguido, porque não compareceram ou porque foram prescindidas. Quanto aos documentos juntos com a contestação, merece dois tipos de abordagem. As folhas de caixa juntas são distintas daquelas que o arguido enviara para a sede, pelo que só se pode entender que foram forjadas, com os valores alterados, não podendo ser relevadas. As cópias dos cheques nada provam, a não ser que o arguido fazia pagamentos da conta do ..., o que sempre foi alegado pela assistente, conta onde, aliás, se procediam aos depósitos. Fica assim por provar toda a matéria da contestação, à excepção do facto 29, que foi confirmado por CC.
Esta a fundamentação do Tribunal”.
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IV. Do Mérito do Recurso
IVa) Da alegada Prescrição
Alega o recorrente que o procedimento criminal deve ser declarado extinto por efeito da prescrição.
Como ensina Leal - Henriques e Manuel Simas Santos2 “(…) a acção penal ou a pena prescrevem, em vista da desnecessidade da repressão, pelo esquecimento em que o tempo vai envolvendo o crime; daí que todos os actos praticados no sentido da punição do delinquente, e reveladores do interesse do Estado nessa punição, devem, logicamente, interromper” ou suspender “a prescrição”.
O recorrente estava acusado (sendo posteriormente condenado) pela prática de um crime de abuso de confiança, pp. nos termos dos artigos 202.º, alínea b) e 205.º, n.º 1, 4 e 5, alínea b) do Código Penal.
Este ilícito é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
De acordo com o disposto no artigo 118.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal “o procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (…) b) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo o limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos (…).
Esclarece o artigo 119.º, n.º 1 do mesmo diploma que “o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado”.
Ora, de acordo com os factos que constavam na acusação e vieram a ser dados como provados, os últimos factos que integram o crime de abuso de confiança ocorreram em agosto de 2001.
Todavia, sabemos que o arguido foi julgado na ausência, tendo a leitura do acórdão ocorrido em 8 de janeiro de 2007.
Ora, desde a data dos factos e a leitura do acórdão em apreciação não decorreu o prazo prescricional de 10 anos e, de acordo com o disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, a prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que a sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência.
Ao contrário de outras causas de suspensão do prazo prescricional, como a declaração de contumácia, a notificação da acusação ou a notificação da sentença que enquanto esta não transitar a suspensão perdura por determinado período limitado de tempo, não existe este limite para a suspensão do prazo de prescrição nas situações em que os agentes são julgados na ausência e ainda não foram notificados da sentença – Cf. artigo 120.º do Código Penal.
Como se escreve no Ac. RL de 03.02.20223 “Tendo o arguido sido julgado na sua ausência, o prazo de suspensão da prescrição do procedimento criminal perdura, conforme o comando legal contido na alínea d) do artº 120º do Código Penal até que este seja notificado da sentença;
II- Para esta causa de suspensão a lei não indica qualquer prazo máximo, a partir do qual a prescrição voltasse a correr, e se o legislador pretendesse incluir nesta causa de suspensão um prazo máximo, tê-lo-ia expressamente indicado, não sendo curial nestes casos vir invocar uma lacuna legal, a qual claramente não existe;
II- Aliás, tendo em consideração a norma ínsita no artigo 120.º do Código Penal, na sua vigência actual e alterada em 2013 impõe-se ter em consideração o próprio teor da Exposição de Motivos da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, no que reporta à questão da prescrição ali abordada, ou seja de que o legislador não pretendeu introduzir qualquer limite máximo para a causa de suspensão prevista na alínea d), isto é, nos casos em que não é possível a notificação da sentença ao arguido, perdurando tal situação até à sua efectiva concretização”.
A ser assim, desde a data a leitura do acórdão – que como vimos ocorreu em 8 de janeiro de 2007 - até à notificação do arguido – 19.03.2024 – o prazo de prescrição esteve suspenso, pelo que nos parece evidente que o procedimento criminal em curso nos autos contra o arguido não está prescrito.
Improcede assim esta pretensão do recorrente.
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IVb) Erro de julgamento da matéria de facto
O recorrente também alega que ocorreu erro no julgamento da matéria de facto ao dar como provados grande parte da matéria assente.
De acordo com o disposto no artigo 410.º, n.º 1 do Código de Processo Penal “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” e, nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.
No que se refere à matéria de facto, há duas formas de a impugnar:
• Através da invocação de vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, a chamada “revista alargada”), sendo que o vício pode resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, tendo por fundamento:
– Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou
– Erro notório na apreciação da prova.
• ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato).
Quanto à primeira situação - impugnação em sentido estrito - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova -, sendo de conhecimento oficioso, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença/acórdão e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Quanto à segunda situação - impugnação em sentido lato -, impõe-se, conforme resulta da do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, que:
• o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados (artigo 412.º, n.º 3, alínea) do Código de Processo Penal);
• indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada (alínea b) do mesmo artigo).
• As provas que devem ser renovadas (alínea c) da mesma norma).
O n.º 4 do mesmo preceito legal exige, outrossim, que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Estamos perante dois institutos diferentes com natureza e consequências distintas.
Os vícios previstos no referido artigo 410.º, n.º 2 devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam. A impugnação ampla da decisão da matéria de facto analisa a fundo a apreciação da prova.
A existência de um dos vícios do referido artigo 410.º demonstra que há algum erro na decisão da matéria de facto, mas a circunstância de se não verificar nenhum daqueles vícios não garante que a matéria de facto haja sido bem julgada.
O mesmo é dizer que, podem não existir vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e, no entanto, a prova ter sido mal apreciada.
No caso dos autos temos por certo que o recorrente pretende invocar os vícios do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, erro notório na apreciação da prova, pois segundo ele o tribunal não apreciou a prova de forma crítica, de acordo com as regras da experiência comum.
Ainda que se considerasse que tentou fazer uma impugnação em sentido lato, a mesma seria de rejeitar, pois não especificou os pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem indicou as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida com referência aos suportes técnicos da prova gravada, nem tampouco as provas que deviam ser renovadas, como exige o artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Analisemos, então, se existiu erro na apreciação da prova.
Como se escreve no Ac. RC de 04.02.20154Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e a lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade: trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada – realce nosso.
Ora, no caso em análise lido atentamente o acórdão em apreciação não vislumbramos que do seu teor ocorreu um erro na apreciação da prova. Foram dados os factos como provados, que não estão em contradição com os não provados, e em perfeita harmonia com a fundamentação que se fez dos factos.
O que na verdade se verifica é que o arguido deseja que a sua versão dos factos, que constava da contestação, fosse dada com provada. Acontece que quase todos os factos que nela constavam foram dados como não provados e o motivo para isso foi devidamente explicado na decisão recorrida, deixando-se consignado que “o arguido foi julgado na sua ausência, devidamente representado pelo seu defensor, pelo que não é possível saber qual a sua versão dos factos” e mais adiante “A matéria não provada é toda ela da contestação. E isto porque sobre ela não recaiu qualquer elemento de prova, não tendo sido inquirida qualquer das testemunhas arroladas pelo arguido, porque não compareceram ou porque foram prescindidas. Quanto aos documentos juntos com a contestação, merece dois tipos de abordagem. As folhas de caixa juntas são distintas daquelas que o arguido enviara para a sede, pelo que só se pode entender que foram forjadas, com os valores alterados, não podendo ser relevadas. As cópias dos cheques nada provam, a não ser que o arguido fazia pagamentos da conta do ..., o que sempre foi alegado pela assistente, conta onde, aliás, se procediam aos depósitos. Fica assim por provar toda a matéria da contestação, à excepção do facto 29, que foi confirmado por CC.
Como se vê não existe qualquer contradição entre os factos dados como provados e não provados e a fundamentação que lhes seguiu, o mesmo é dizer que os factos dados como provados e não provados estão em perfeita harmonia a fundamentação dos mesmos, não se conseguindo obter qualquer decisão diversa se conjugarmos tudo o que foi dito com as regras da experiência comum.
Lendo a decisão recorrida não detetámos qualquer erro de julgamento da matéria de facto. O tribunal apreciou criticamente as provas e de acordo com as regras da experiência.
Na verdade, nem se compreende que o Tribunal, como alega o recorrente, pudesse tirar diferente conclusão dos factos se não ouviu qualquer versão diferente daquele que veio a consignar como provada.
Alega o arguido que a sua idade à data dos factos e a sua instrução não lhe permitiriam saber mexer nas ferramentas e instrumentos informáticos necessários para perpetrar o crime de que vinha acusado, pelo que, segundo as regras da experiência comum imporia que os factos descritos em 11, 12, 19 e 20 fossem dados como não provados. Ora, este entendimento não faz qualquer sentido. Por um lado, o arguido, como afirma, já tinha 44 anos de idade, não sendo por isso nenhum jovem inexperiente e, por outro lado, é do conhecimento comum que a falta de instrução não anda obrigatoriamente associada à falta de capacidade nomeadamente a nível informático. Todos nós conhecemos pessoas com baixa escolaridade e com grandes capacidades intelectuais para os negócios e para as tecnologias.
Em suma, não houve qualquer apreciação da prova violadora das regras da experiência comum.
A decisão recorrida não merece, pois, qualquer censura, não padecendo a decisão recorrida do vício invocado.
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IVb) Da análise do crime de abuso de confiança
Defende o recorrente que o tribunal devia ter concluído pela absolvição do arguido pela prática do crime de abuso de confiança, por não se terem demonstrado os elementos subjetivos do crime, por se não ter demonstrado que o arguido se recusou a devolver fosse o que fosse, ou que lhe tenham solicitado a devolução de algum montante, o que na sua ótica, são elementos subjetivos essenciais e que no caso não se verificam. Entende ainda o recorrente que no acórdão nada se diz quanto ao destino que o arguido deu às quantias de que se apropriou, o que também seria importante para o preenchimento do tipo de crime.
Conclui o recorrente que, ao omitir estes factos, a decisão recorrida violou os critérios do artigo 74.º, n.º 1 Código de Processo Penal e o artigo 20.º da CRC e 205.º do Código Penal.
Analisemos o crime pelo qual o arguido foi condenado para se apurar se efetivamente foram omitidos factos que fazem parte do tipo de crime de abuso de confiança e se o recorrente deve ser absolvido.
Determina o artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) do Código Penal, na redação anterior à Lei 8/2016, de 03.03, ou seja, na redação vigente à data dos factos5, que:
“1- Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
(…)
4- Se a coisa referida no n.º 1 for: Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5 - Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”.
Consiste, pois, o crime de abuso de confiança numa apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome de outrem. São, assim, elementos do tipo objetivo: a apropriação ilegítima de coisa móvel e a sua entrega ao agente por título não translativo da propriedade.
Relativamente à apropriação ilegítima, saliente-se que, ao contrário do furto, em que a apropriação acompanha a posse ou a detenção da coisa, neste tipo legal a apropriação sucede a essa posse ou detenção. Como se dizia no Código Penal de 1886 no abuso de confiança há um “descaminho” ou “dissipação” de coisa móvel alheia.
Com efeito, “inicialmente o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la ou detê-la licitamente a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar arbitrariamente o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus”6. Pode assim dizer-se que no abuso de confiança há uma inversão do título da posse, passando o agente a deter a coisa como se fosse sua, com o propósito de não mais a restituir.
A intenção de apropriação não é, pois, aqui um elemento subjetivo da ilicitude que caracterize a ação além dos elementos do tipo objetivo, mas é antes a própria essência do elemento volitivo do dolo. Enquanto o autor do furto subtrai para se apropriar, o autor do abuso de confiança apropria-se do que já detém (sem ter subtraído).
De notar que, de acordo com o disposto no artigo 205.º, n.º 1 do Código penal, para que se preencha o tipo do abuso de confiança esta intenção de apropriação terá de ser ilegítima, acarretando uma contradição com o ordenamento jurídico da propriedade, por inexistir por parte do agente uma pretensão jurídico-civilmente válida, vencida e incondicional. Terá, ainda, de se manifestar por atos exteriores: a apropriação no abuso de confiança “não pode ser (...) um puro fenómeno interior (...) mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de comportamento, que o revele e execute”7.
Quanto à entrega da coisa por título não translativo da propriedade, cumprirá apenas dizer que a mesma deverá ser feita por modo “que não justifique a apropriação, antes constituindo uma obrigação de restituição”8.
Note-se, porém, que a entrega relevante para o abuso de confiança terá de ser válida, isto é, terá de ter na sua base uma razão que a justifique. Poderá decorrer de ato do proprietário da coisa, do seu detentor legítimo ou ainda de um terceiro obrigado a prestá-la, mas terá de implicar a afetação da coisa entregue a uma causa ou finalidade determinada ou a sua oneração à obrigação de a restituir.
Por tudo quanto se disse, é de referir que a consumação deste crime há de ocorrer “quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo da propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini, dispondo da coisa como se sua fosse”9. Se a disposição da coisa ocorre em razão da profissão temos a agravação prevista no nº5 do artigo em análise.
Por último, resta salientar que o que neste crime está em causa não é tanto a violação dos princípios de confiança que devem presidir às relações jurídicas, mas sim o atentado à propriedade, sendo este o bem jurídico tutelado, na medida em que a apropriação por parte do agente implica a violação da propriedade alheia, sem que, no entanto, haja quebra de posse ou detenção.
Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, é necessário a existência de dolo que abarque a totalidade do tipo objetivo, em qualquer uma das suas modalidades.
Ora, estabelecidos que estão os parâmetros relativos ao bem jurídico protegido e aos elementos típicos objetivos e subjetivos a considerar, tanto ao nível do crime simples como na sua forma qualificada, facilmente concluímos que saber se foi pedida a devolução das quantias apropriadas ao agente, ou se houve recusa em devolver tais quantias ou mesmo saber que destino foi dado aos montantes apropriados não fazem parte do tipo de crime, pelo que não tinham de constar na fundamentação fática da decisão recorrida. Tais elementos, quanto muito, poderiam ser relevantes na determinação da medida da pena a aplicar, mas jamais como fazendo parte do ilícito em análise.
É que, de acordo, com o disposto no artigo 368.º, n.º 2, alínea a) e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) Se o arguido actuou com culpa;
d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.
3 - Em seguida, o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior”.
Com os factos apurados, acima descritos, dúvidas não temos de que o arguido preencheu com a sua conduta todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de abuso de confiança qualificado, tendo atuado com dolo direto. Como também não temos qualquer dúvida que o acórdão em análise não violou qualquer norma processual penal ou mesmo constitucional, antes fundamentou a sua decisão como lhe era exigido.
Improcede assim neste particular o recurso em análise.
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IVc) Da admissibilidade da pena imposta ser substituída por trabalho a favor da comunidade.
O recorrente não contesta a pena que lhe foi imposta de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução. Pediu a sua absolvição, mas, mantendo-se a condenação, não contestou o quantum da pena e a ser assim é evidente que a sua pretensão de ver a pena de 2 anos e 6 meses de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade não pode proceder. Com feito, o artigo 58.º do Código Penal, na sua redação original, vigente à data da prática dos factos apenas permitia a substituição da pena de prisão não superior a 1 ano por prestação de trabalho a favor da comunidade. Com a alteração desta norma introduzia pela Lei 59/2007, de 4 de setembro, esta substituição só pode ocorrer em penas de prisão até 2 anos.
É assim manifestamente improcedente este pedido do recorrente.
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IVd) Da condição de suspensão da pena de prisão aplicada
Não sendo alterada a matéria de facto, nenhum reparo merecer a qualificação jurídica dos factos e o recorrente não contestar o quantum da pena e a sua suspensão, passemos agora à questão suscitada no recurso que se prende com a condição de suspensão da pena.
O arguido foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 3 anos, sob condição de, em 2 anos, proceder ao pagamento da quantia que vai ser condenado no pedido de indemnização, sendo que ao fim de um ano deve ser pago pelo menos metade do valor em dívida.
Defende o recorrente que “já em 2007 era manifesto que o Arguido não teria condições de cumprimento da injunção que lhe foi imposta como condição de suspensão da pena de prisão de dois anos em que foi condenado.
Sendo que o cumprimento dessa injunção, já á época, redundaria na impossibilidade, de para a cumprir, o Arguido não ter qualquer meio de subsistência, o que, para além do mais, viola os princípios constitucionais contidos no artigo 18.º e n.º 2 da CRP que a decisão em crise violou.
Pois que, na prática, o Arguido vê-se na situação de condenação a “prisão por dividas”.
Não lhe podendo ser imposta como condição de suspensão da pena o pagamento de uma verba de que, objetivamente, não lhe é possível dispor”.
Nos termos do artigo 50.º, n.º 2 do Código de Processo Penal “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
Por sua vez, o artigo 52.º, 1 do Código Penal “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a. Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea (..)”
Assim, a obrigação de suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples ou com imposição de deveres, devendo, no entanto, tal imposição de deveres responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são ideias básicas do Estado de Direito. Em conformidade com este princípio, os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, e sendo por isso que, a alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º, prevê que o tribunal fixe o dever de pagar a indemnização devida no todo ou apenas em parte. A necessidade de prever o pagamento parcial responde aos casos em que o arguido não pode pagar na totalidade a indemnização e é nesta interpretação que o arguido fundamenta o seu pedido.
Será, no entanto, de considerar que no crime perpetrado pelo arguido este se apoderou do valor em que foi condenado a pagar referente ao pedido de indemnização civil, o que significa que ele teve a disponibilidade do dinheiro que agora está obrigado a devolver. Não se fixou uma condição de suspensão da pena arbitrária, simplesmente se decidiu que o arguido teria de devolver o valor de que se apropriou e teve-se ainda em conta a sua situação económica.
Consignou-se a este propósito no acórdão recorrida: “A assistente quer o seu dinheiro. A presente decisão será mais justa se encontrar solução para o mal causado pelo arguido, reparando se possível os prejuízos causados.
Sobre a actual situação económica do arguido sabe-se muito pouco, pelos motivos já expostos. O Tribunal ainda obteve as seguintes informações junto das entidades públicas: (i) tem dois veículos registados em seu nome, com as matrículas EH-..-.. (um BMW, ligeiro de passageiros, de 1973) e IN-..-.. um volvo, pesado de mercadorias, penhorado pelas Finanças); a última declaração de IRS entregue pelo arguido é referente a 2002, onde apresentou rendimentos brutos de 5 118,82 €; é proprietário de um imóvel sito em ..., inscrito na matriz sob o art.º 15124 e com o valor patrimonial de 4.840,55 €.
Não se sabe o que faz, mas não é difícil prever. O arguido é homem da construção civil (veio para a … como …), pelo que deve continuar a trabalhar nessa área, vivendo de trabalhos ocasionais e expedientes, rendimentos complementares à margem da sua situação fiscal. É o que nos diz a experiência comum. E se mais não se sabe, foi porque o arguido não quis dizer.
Ora, estas considerações levam o Tribunal a concluir que a debilidade dos seus rendimentos declarados podem não reflectir a sua actual situação económica, sendo que na actividade que desempenha são correntes os pagamentos “por fora”, às vezes em elevados montantes.
Tudo isto para condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia que o arguido se locupletou”.
Aqui chegados concluímos que bem fundamentou a decisão recorrida o tribunal a quo e que a mesma deve ser mantida.
A interpretação efetuada em nada viola o disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRC, nem tampouco implica uma condenação a “prisão por dívidas” como alega o recorrente, pois é consabido que, de acordo com o disposto no artigo 55.º do Código Penal, o não pagamento da condição da suspensão da pena apenas será fundamento de revogação da suspensão se o incumprimento for culposo. O mesmo é dizer que nunca a pena suspensa poderá ser revogada se o arguido demonstrar que não tem condições económicas para efetuar tal pagamento.
Aliás em situação paralela já se pronunciou o TC no sentido de “Não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 14.º do RGIT, conjugado com os artigos 50.º e 51.º do Código Penal, no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão fica obrigatoriamente condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e respetivos acréscimos legais, limitado ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, sem que o Tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição.10
Improcederá, por isso, também esta questão suscitada pelo recorrente.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.
Notifique.

Lisboa, 19-11-2024
Ana Lúcia Gordinho
Sandra Oliveira Pinto
Ester Pacheco dos Santos
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1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. In Código Penal, 2.º edição, I vol., anotado, pág. 841.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/288bc792249cba1780257de9003d4436?OpenDocument
5. Esta alteração não tem qualquer relevância no caso dos autos, porquanto apenas veio permitir que os animais sejam objeto da prática do crime de abuso de confiança.
6. Cf. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2º Vol., 1996, pág. 460.
7. Cf. Eduardo Correia, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 90º, pág. 36.
8. Cf. Leal-Henriques e Simas santos, ob. cit., pág. 461
9. Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 9ª edição, pág. 709.
10. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200051.html