Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27445/22.2T8LSB.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ESTADO ESTRANGEIRO
IMUNIDADE JURISDICIONAL
CRÉDITOS LABORAIS
REINTEGRAÇÃO DE TRABALHADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir acerca do incumprimento de um contrato de trabalho por parte de Embaixada estrangeira em Portugal com trabalhador por ela contratado (créditos de retribuição de férias e horas de formação não ministradas, que são devidos segundo a lei portuguesa).
II - Mas já não para apreciar e decidir do pedido de reintegração de trabalhador contratado por Embaixada estrangeira em Portugal e do consequente sucedâneo indemnizatório pela resolução do contrato de trabalho com ele celebrado.
(sumário da autoria do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.
AA intentou a presente acção declarativa com processo comum, contra Embaixada da República do Paraguai em Lisboa, pedindo que a acção fosse:
1. declarada como de trabalho a relação jurídica mantida entre a Autora e a Ré, com todas as legais consequências, incluindo a competência desse Tribunal para julgar a presente causa;
2. condenada a pagar-lhe a quantia de €100 por cada dia de atraso no tratamento da relação contratual como laboral, com todas as consequências que daí advêm;
3. condenada a pagar-lhe, pelo menos, o valor de €62.384,13, a título de subsídio de férias, subsídio de refeição, dias de férias não gozados, formação não ministrada e diferença salarial, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data de vencimento de cada crédito reclamado até integral pagamento.
Para tal alegou, em síntese, que:
• em Novembro de 2009 foi admitida ao serviço da ré para exercer funções na área da comunicação institucional e na secção consular na Embaixada do Paraguai em Lisboa, ao abrigo de um denominado 'contrato de prestação de serviços', assim ao longo do tempo renovado;
• consubstanciando a sua relação, na realidade, uma relação laboral;
• em 2018 foi-lhe feita uma proposta de pagamento de uma compensação pelos prejuízos sofridos pela autora até então, com a promessa de assinatura do contrato de trabalho, o que a mesma aceitou, não tendo, porém, sido redigido o contrato de trabalho;
• reclama o pagamento de diferenças salariais, subsídios de férias, férias por gozar e formação não prestada.
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.
Para tal notificada, a ré contestou:
• por excepção, invocando as dilatórias incompetência do tribunal por violação da competência convencional, a ilegitimidade passiva e a peremptória do pagamento, invocando que em 2018, no âmbito de acordo de compensação global, a autora recebeu já a quantia de €67.361, pelo que não deverão ser reconhecidos quaisquer créditos anteriores a 01-05-2018; e
• por impugnação, sustentando em síntese que a relação entre as partes constituía uma verdadeira prestação de serviços e que não são devidos os créditos reclamados pela autora.
A autora respondeu às excepções, concluindo como na petição inicial.
A autora veio ampliar o pedido, alegando, em síntese, que em 10-01-2023, com efeitos a 01-02-2023, a ré lhe comunicou a rescisão do contrato de prestação de serviços, o que consubstancia na realidade um despedimento ilícito por não ter sido precedido de procedimento disciplinar, o que lhe confere o direito a uma indemnização, cujo pagamento reclama, assim como uma indemnização por danos não patrimoniais e conclui pedindo que a acção fosse julgada procedente e, em consequência:
1. declarada como de trabalho a relação jurídica mantida entre as partes, com todas as legais consequências, incluindo a competência desse Tribunal para julgar a presente causa;
2. a ré condenada a pagar-lhe a quantia de €100 por cada dia de atraso no tratamento da relação contratual como laboral, com todas as consequências que daí advêm;
3. a ré condenada a pagar-lhe, pelo menos, o valor de €62.384,13, a título de subsídio de férias, subsídio de refeição, dias de férias não gozados, formação não ministrada e diferença salarial, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data de vencimento de cada crédito reclamado até integral pagamento;
4. declarada a nulidade e ilicitude do despedimento em resultado ser julgado procedente a ampliação do pedido deduzido e, em consequência, declarado o despedimento ilícito e a autora reintegrada ou a ré condenada a pagar-lhe o montante total de €66.664,10, tudo acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa legal até ao trânsito em julgado da decisão e integral pagamento.
A ré contestou a matéria da ampliação, pugnando pela sua absolvição do pedido.
Proferido despacho saneador, foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias da incompetência do Tribunal por infracção das regras de competência convencional1 e da ilegitimidade passiva, a instância válida e regular, fixado o objecto do processo e os temas de prova, admitidas as provas arroladas pelas partes e designada a data para realização da audiência de julgamento.
Realizada a audiência de julgamento, o Mm.º Juiz proferiu a sentença, na qual julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) declarou ilícito o despedimento da autora promovido pela sua entidade empregadora e, em consequência, condenou-a a reintegrá-la no mesmo estabelecimento, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade;
b) condenou-a a pagar-lhe:
b.1) as quantias, a liquidar, relativas às retribuições – incluindo férias, subsídios de férias e subsídios de Natal – devidas desde a data do despedimento (01-02-2023) até à data do trânsito em julgado da presente decisão, acrescidas de juros, à taxa legal de 4%, desde o vencimento de cada uma dessas prestações e até integral pagamento (descontadas das importâncias que a autora tenha obtido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento e do subsídio de desemprego atribuído no referido período, a entregar pela ré à segurança social);
b.2) a quantia de €34.217,27, o valor total dos créditos laborais devidos à autora até à data da propositura da acção, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento e vincendos até pagamento;
b.3) a quantia diária de €100,00 em caso de atraso no cumprimento da obrigação de reintegração e por cada dia de atraso, a título de sanção pecuniária compulsória;
c) absolveu-a do demais peticionado.
Inconformada, a ré interpôs recurso, pedindo que a sentença proferida seja revogada e substituída por outra que venha a julgar a acção procedente e a ré condenada a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 15-05-2015 e bem assim a indemnização por antiguidade, por que optou em detrimento da reintegração, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"a. A Sentença recorrida, declarando a ilicitude do despedimento, condenou a Recorrente a reintegrar a aqui Recorrida.
b. Porém, não o deveria ter feito dado que a Recorrente, sendo uma representação diplomática da República do Paraguai em Portugal, goza de imunidade de jurisdição nesta matéria.
c. Para tanto, é necessário convocar as normas e costumes (segunda fonte de direito em matéria internacional) para, à luz da teoria restrita da imunidade, distinguirmos o que são actos de jure gestionis e actos de jure imperii, pois uma representação diplomática só gozará de imunidade jurisdicional quanto aos actos de jure imperii.
d. Assim, socorremo-nos da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens,2 que foi aprovada no ano de 2004, pela Assembleia Geral da ONU e que, num esforço comum, consagra aquela que é a vontade internacional em relação a esta matéria.
e. E que sem prejuízo de não ser vinculativa, fixa o sentido internacional (diga-se, o costume) em relação aos actos que se consideram, ou não, jure imperii. Sendo de jure gestionis todos os actos cuja convenção proíbe a invocação da imunidade jurisdicional e de jure imperii, todos os outros que a Convenção expressamente exclui da não de invocação da imunidade.
f. Ora o artigo 11.º, n.º 2 da citada convenção, consagra a exclusão da não imunidade jurisdicional quanto a processos de trabalho, que visem 'contratação, renovação do contrato ou reintegração do trabalhador'.
g. Nestes termos, decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 18 de Fevereiro de 2006, no Processo n.º 05S3279:3 'não sendo vinculante, tem o mérito de demonstrar, ao estabelecer várias restrições ao princípio da imunidade jurisdicional dos Estados (segundo o qual, a imunidade pode ser invocada se estiver em causa um contrato de trabalho e o objecto do processo for a sua renovação ou a reintegração duma pessoa singular), uma tendência generalizada na prática dos Estados no sentido do alargamento das restrições ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros, o que tem igualmente reflexos na delimitação do conteúdo objectivo da referida regra costumeira.' Decidindo, a final, que 'Numa acção de impugnação de despedimento intentada por uma trabalhadora que fazia parte do 'pessoal administrativo e técnico' da delegação comercial da Embaixada da Áustria em Lisboa, cumprindo funções de secretária (de carácter subalterno e não estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental), em que o fundamento da acção é a comunicação à autora de que o contrato de trabalho cessou (situação em que a parte agiu como qualquer empregador privado), a Embaixada da Áustria goza de imunidade de jurisdição relativamente ao pedido de reintegração da autora e aos que tenham essa reintegração como pressuposto.' (negrito nosso)
h. Estamos perante uma decisão soberana e que não pode ter a intervenção de outros Estados.
i. Com efeito, admitindo-se a aplicação dessa convenção, que fixa a vontade internacional de definição dos actos de jure imperii e de jure gestionis, entende a Recorrente gozar do privilégio de imunidade de jurisdição em relação à reintegração a que foi condenada, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter decidido como decidiu, devendo a Recorrente ser absolvida nessa parte.
j. Por consequência, goza a Recorrente de imunidade na jurisdição relativamente à sanção pecuniária compulsória de €100,00 (cem euros) por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de reintegração.
k. Tal como goza de imunidade de jurisdição, quando à ponderação do arbitramento de compensação em substituição da reintegração, nos termos do artigo 391.º do Código do Trabalho. Pois se tal compensação é subsidiária e substituta da reintegração - tendo-a como pressuposto - só poderia ser admissível caso o Tribunal Recorrido tivesse competência para se pronunciar sobre a sanção principal.
l. Concluindo-se que deve a decisão colocada em crise, ser revogada na parte em que condenou a Recorrente a reintegrar a Recorrida, absolvendo-se a primeira do pagamento da fixada sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na sua reintegração.
m. Perante esta invocada imunidade, também não pode o Tribunal decidir pela condenação da Recorrente no pagamento de uma indemnização em substituição da reintegração, para tanto, note-se que a Recorrida declinou a sua oportunidade de escolha, mantendo o seu propósito na reintegração.
No mais,
n. A Sentença recorrida condenou a Recorrente no pagamento da quantia que resultar dos 46 (quarenta e seis) dias de férias não gozadas pela Recorrida, dias esses, que se reportam aos primeiros 05 (cinco) anos de contrato, momento em que a mesma auferia a retribuição mensal de €2.034,67 (dois mil e trinta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos).
o. Em face desse facto, a Recorrente é de opinião que a liquidação deveria ter resultado na quantia de €2.058,96 (dois mil e cinquenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), ao invés dos €4.646,21 (quatro mil seiscentos e quarenta e seis euros e vinte e um cêntimos), constantes da decisão agora colocada em causa.
p. De resto, o Mmo. Juiz a quo decidiu precisamente com base nesse princípio, no que à condenação nos subsídios de férias diz respeito, ou seja, teve em consideração o valor da remuneração auferida pela Recorrida na data em que tais proveniências seriam devidas.
q. Não corrigir este erro, é permitir que a Recorrente seja condenada num valor que corresponde quase ao dobro daquele a que verdadeiramente deveria ter sido apurado.
r. Motivo pelo qual, desde já se requer a V/ Exas. que a parte da decisão que condenou na quantia liquidada de €4.646,21 seja revogada e substituída por outra que tenha em consideração os correctos elementos de cálculo, resultando na condenação em quantia não superior a € 2058,96 (dois mil e cinquenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), a título de dias de férias (46) não gozados.
Também, e ainda que se decida pela absolvição da Recorrida na parte da reintegração,
s. A Recorrente coloca em crise a condenação em relação ao pedido formulado a propósito do crédito de horas de formação não foram ministradas.
t. Na verdade, teremos de retroagir ao início da sentença, quando a mesma condena na reintegração da Recorrida - que não podemos deixar de afirmar que colocar em causa este aspecto da Sentença, não poderá ser entendido como uma aceitação da mencionada reintegração - situação essa, que resulta inequivocamente na continuidade da relação laboral.
u. Continuando a existir um contrato de trabalho, não podemos falar na consequência resultante do estatuído no artigo 134.º do CT, ou seja, de que 'Cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição correspondente ao mínimo anual de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionada, ou ao crédito de horas para formação de que seja titular à data da cessação.'
v. Se estamos perante uma condenação em reintegração, o contrato de trabalho não cessa e, nestas situações, os trabalhadores poderão, querendo, manter o direito à formação o qual será assegurado nos termos estatuídos no artigo 132.º do CT fazendo uso do crédito de horas para a frequência de acções de formação, desde que comunique à empregadora com a antecedência mínima de 10 dias.
w. A Recorrente sufraga a ideia de que estamos perante um erro do julgador no que respeita à interpretação da estatuição do artigo 134.º do CT, nos termos que se deixaram expostos.
x. Pelo que, a Recorrente mais uma vez apela a V/ Exas. que essa parte da decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que a ABSOLVA da condenação no pagamento de crédito de horas de formação não ministrada.
Mas mais,
y. Como se concretizou nas motivações deste recurso, continua a Recorrente a colocar em causa a condenação na parte que se achou liquidada na quantia de €34.217,27 (trinta e quatro mil duzentos e dezassete euros e vinte e sete cêntimos), pelo valor total dos créditos laborais devidos à Recorrida.
z. Isto porque, como se invocou e demonstrou, o cálculo efectuado para apuramento do crédito resultante dos 46 (quarenta e seis) dias de férias não gozados estava incorrecto, por ter como base o vencimento actualmente auferido, quando deveríamos ponderar o valor recebido à data dos factos.
aa. Do mesmo modo, ao ter sido colocado em crise a condenação em crédito decorrente de formação contínua não ministrada, também esse valor não poderá estar incluído no mencionado apuramento.
bb. Assim, à liquidação total de €34.217,27 deverá ser subtraído o valor de €4646,21 e considerado o de €2.058,96 a título de férias não gozadas (46 dias) e eliminada a quantia de €1.281,80 respeitante à formação profissional, perfazendo um total não superior a €30.348,22 (trinta mil, trezentos e quarenta e oito euros e vinte e dois cêntimos).
cc. Termos em que também neste aspecto se requer a V. Exas. que essa parte da decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que condene a recorrente em quantia não superior a €30.348,22".
Contra-alegou a autora, concluindo, em resumo:
"D. Com efeito, e no que concerne à oposição à reintegração, vem a Apelante opor-se à reintegração alegando sucintamente que goza de imunidade na jurisdição relativamente ao pedido de reintegração da Autora, bem como aos demais, que tenham a reintegração como pressuposto.
E. Mais, defende que tal imunidade de jurisdição se aplica também quanto à ponderação do arbitramento de compensação em substituição da reintegração, nos termos do artigo 391.º do Código do Trabalho.
E. Acontece, porém, que, in casu, e tendo o despedimento ocorrido após a petição judicial e sido impugnado através de articulado superveniente, deveria tal oposição – e a invocação dos factos e circunstâncias que fundamentam a pretensão e apresentados – ter sido apresentada na contestação ao articulado superveniente.
F. É vedado ao recorrente confrontar o tribunal ad quem com questões novas, a não ser que se trate de matéria que seja de conhecimento oficioso, incluindo os casos em que esteja em causa a mera aplicação de normas jurídicas, ou seja, questões de direito.
G. Ao não apresentar a oposição à reintegração na contestação ao articulado superveniente impugnativo do despedimento, a Apelante viu precludida a possibilidade de o fazer em sede de recurso, pelo que o Tribunal ad quem não poderá julgar esta matéria.
H. Sem conceder, a ser atendida a oposição à reintegração sempre se dirá que a indemnização fixada no Tribunal a quo deverá ser ampliada para 60 dias de retribuição base por cada ano ou fracção de antiguidade, nos termos do artigo 392º do Código do trabalho.
I. No que concerne aos créditos de férias, também não colhe a tese da Apelante.
J. O Tribunal, e bem, em relação aos dias de férias não gozadas, subtraiu 90 dias de férias que haviam sido gozadas a partir do 11.º ano de contrato.
L. Ao fazê-lo nada mais poderia fazer do que imputar a diferença ao valor actual da remuneração, uma vez que como parece óbvio não poderia imputar a diferença dos 90 dias a cada ano em particular.
M. A bem da verdade, o Tribunal a quo pecou por não fazer uso do Artigo 74.º do CPT, ao não condenar a Apelante a compensar a Apelada no valor do triplo da retribuição correspondente ao período em falta, que deve ser gozado até 30 de Abril do ano civil subsequente, por violação do direito a férias.
N. Finalmente e no que concerne aos créditos de formação, também esteve bem o Tribunal a quo, uma vez que tais créditos que não sejam utilizados cessam passados três anos sobre a sua constituição.
O. Ou seja, a não condenação nos créditos de formação implicariam, em última análise, a sua possível caducidade, beneficiando da mesma a Apelante.
P. Improcedendo todas e cada uma das conclusões formuladas pela Apelante".
Os autos foram com vista ao Ministério Público, tendo a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta sido do seguinte parecer:
"(…)
Imunidade relativamente ao pedido de reintegração da autora e sanção pecuniária compulsória associada à mesma
Dos presentes autos resulta com relevância distintiva para a questão ora em causa:
Entre a autora e a ré vigorava uma relação laboral;
A autora desempenhava para a ré funções subordinadas
Neste sentido seguiremos de perto o Acórdão do Tribunal desta Relação de Lisboa de 16.11.2016 proferido no processo 360/16.7T8LSB.L1-4 onde se sumaria:
'I (…)
II - No âmbito do princípio da imunidade da jurisdição dos Estados, a teoria da imunidade jurisdicional absoluta reconhece a imunidade pelo simples facto de o Estado ser demandado.
III - De acordo com a perspectiva da imunidade relativa, os Estados beneficiam de imunidade para os actos jure imperii, mas não para os actos jure gestionis, por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado, não exercendo poderes públicos no contexto dessas relações.
IV - Para proceder a esta distinção quando se trate do Estado empregador, tem-se dado relevância à natureza do contrato e à natureza e objectivo das funções exercidas, permitindo-se ainda a interferência de outro tipo factores na decisão sobre a imunidade, designadamente relacionados com o objecto do próprio processo.
V - Embora as denominadas convenções internacionais de Basileia e das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens não estejam em vigor na ordem jurídica portuguesa, deva conferir relevância ao seu conteúdo - revelador do crescente peso que vem assumindo na comunidade internacional a concepção restrita da imunidade judiciária dos Estados, bem como é igualmente revelador da configuração das excepções ao seu afastamento - na medida em que o costume internacional é fonte formal de direito.
VI - Além disso, constatando-se que o normativo constante da Convenção da ONU foi ratificado pelos dois países em causa no caso sub judice, deve o mesmo ser observado nas relações bilaterais entre ambos por corresponder ao seus actos de vinculação, quer no que diz respeito ao princípio geral do afastamento da imunidade relativamente a contratos de trabalho, quer no que diz respeito às situações em que essa restrição à imunidade é afastada.
VII - Na celebração de um contrato de trabalho para o exercício das funções de tradutor numa embaixada, as partes praticaram actos de gestão privada, estranhos ao exercício da soberania.
VIII - À luz da norma consuetudinária internacional que rege nesta matéria, é de reconhecer a imunidade jurisdicional à República do Iraque numa acção instaurada por um seu trabalhador com as funções de tradutor que a demandou num tribunal português, relativamente ao pedido que visava a reintegração do trabalhador, imunidade que deve estender-se à indemnização que a lei perspectiva como sucedânea daquela reintegração.
IX - O que já não sucede com os pedidos formulados que radicam no incumprimento do contrato de trabalho (subsídio de Natal) e na alegada ilicitude do despedimento (danos não patrimoniais e retribuições intercalares), pois que quanto a estes a aplicação daquela regra consuetudinária, com o conteúdo que actualmente lhe é conferido na ordem jurídica internacional, determina o afastamento da imunidade.
X - A afirmação da competência internacional do tribunal português quanto a estes pedidos é conforme, quer com o direito interno, atento o princípio da coincidência entre a competência internacional e a competência territorial plasmado no artigo 10.° do CPT (uma vez que o trabalhador reside em Portugal), quer com o direito da União Europeia na medida em que o TJUE entende que uma embaixada constitui um estabelecimento para efeitos do artigo 18.° do Regulamento (CE) n.º 44/2001 quando as funções do trabalhador se enquadrem na actividade de gestão do Estado (e a embaixada se encontra sediada num Estado-Membro).
XI - A convocação dos preceitos comunitários relativos à competência internacional pressupõe resolvida em termos negativos a questão, prévia, de saber se o Estado demandado podia invocar a sua imunidade jurisdicional quanto aos pedidos em causa na acção.
XII - A apreciação a que procedeu o TJUE no acórdão proferido no processo n.º C-154/11, no sentido de subsumir a embaixada de um Estado ao conceito de estabelecimento para efeitos do Regulamento (CE) n.º 44/2001, respeita o princípio de direito internacional consuetudinário sobre a imunidade jurisdicional dos Estados e a adopção da teoria da imunidade jurisdicional relativa.'
No esteio do referido acórdão e descendo ao caso concreto constata-se que as funções desempenhadas pela autora não são enquadráveis na categoria de 'funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, ou funções de autoridade ou de representação'.
Reconhecendo-se que na ordem jurídica interna Portuguesa vigora a regra consuetudinária internacional da imunidade jurisdicional (artigo 8.º da constituição da republica Portuguesa) e por apelo ao documento de direito internacional citado no seu recurso pela ré é seguro referir que 'toda a restrição ao princípio da imunidade deve estar generalizadamente radicada na consciência jurídica das colectividades, o que impõe grande prudência e muita segurança na sua aplicação, pelo que é de considerar que o âmbito das restrições que possam admitir-se àquela regra consuetudinária da imunidade jurisdicional dos Estados, não pode ultrapassar as que restrições que constam da Convenção de Basileia e, particularmente, da Convenção da ONU sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens.
Deve pois considerar-se que deste segundo instrumento se extrai a manifestação de uma certa prática (ou tendência) internacional no sentido de que a imunidade deve proceder se estiver em causa um contrato de trabalho e 'o processo judicial se referir à contratação, renovação do contrato ou reintegração do trabalhador' [artigo 11.º, n.º 2, alínea c) da Convenção].
Entendemos assim e no que tange à reintegração da autora vigorar a imunidade diplomática de que goza a ré, circunstância pela qual o tribunal português não pode impor aquela representação diplomática a reintegração naquela missão da autora.
Concordamos assim com a recorrente no que respeita a este Particular, devendo neste sentido a sentença ser revogada.
Por maioria de razão, estando a sanção compulsória associada àquele pedido e dele decorrente, deve igualmente ser revogada a sentença neste particular.
Relativamente aos créditos laborais:
Relativamente aos créditos por remanescente de dias de férias não gozados durante a vigência do contrato: a sentença optou por efectuar uma espécie de conta de 'deve e haver' entendemos que tal não deve ser assim.
Assim, tendo em conta o facto provado sob o número 12 da sentença recorrida, e o disposto no artigo 237.º do Código de trabalho a autora teria direito a que fossem contabilizados:
Nos primeiros cinco anos do contrato a 10 dias de férias;
Do 6.º ao 10.º ano - 4 dias de férias, devendo o montante devido ser encontrado tendo por referência a remuneração auferida à data de cada ano em causa.
Relativamente a créditos de horas de formação - o raciocínio da recorrente é absolutamente tautológico, independentemente da decisão de reintegração (que segundo nós não se mostra possível) as horas de formação deveriam ter sido ministradas em cada ano da relação contratual. Ao não o ter sido, e sendo aquele um direito da autora, competindo à ré a prova do seu cumprimento, constitui-se na esfera jurídica da primeira um crédito retributivo correspondente ao número mínimo anual de horas que lhe não foi prestado, como decidido".
Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente e pelas questões de que se conhece ex officio. E precisamente da competência internacional do Tribunal se deve conhecer ex officio, razão pela qual e ao pretendido pela apelada pouco importa quando foi a mesma invocada pela apelante, podendo mesmo sê-lo em recurso (art.ºs 96.º, alínea a), 97.º, n.º 198.º, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea a) e 578.º do Código de Processo Civil; neste sentido pode ver-se, inter alia, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no Código de Processo Civil, Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, 217, página 201 e os acórdãos da Relação de Évora, de 04-05-2006, no processo n.º 66/06-3 e da Relação de Guimarães, de 20-02-2020, no processo n.º 76266/17.1YIPRT.G1, publicados em http://www.dgsi.pt).
Assim, importa apreciar:
• da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do pedido de reintegração da apelada e consequente sucedâneo indemnizatório;
• dos direitos da apelada por férias não gozadas, horas de formação não ministradas.
***
II - Fundamentos.
1. Factos julgados provados:
"1. Em Novembro de 2009 a autora foi contratada para prestar a sua actividade à ré, com base na lei paraguaia, auferindo 13 meses de ordenado, com direito a férias e sem descontos para a Segurança Social, seja a portuguesa, seja Paraguai, tendo começado a implementar um plano de relações públicas [artigos 8.º e 9.º da petição inicial – assente por acordo das partes].
2. Desde essa data, até ao termo da relação contratual, a autora, sem interrupções, prestou a sua actividade na embaixada, exercendo as seguintes funções [artigo 10.º da petição inicial – assente por acordo das partes]:
- Em termos de comunicação institucional – elaboração de comunicados de imprensa, administração de redes sociais e elaboração de conteúdos, elaboração de apresentações, convites e matérias de difusão comercial e turística;
- Em termos de secção consular – elaboração de informações consulares, assistência na emissão de documentos e declarações de natureza consular;
- Elaboração de informações como relatórios de actividades semanais e mensais, informações temáticas;
- Apoio na organização de eventos;
- Apoio administrativo e técnico.
3. Entre os anos de 2011 e 2018 a autora e o Ministério de Relações Exteriores da República do Paraguai, outorgaram os acordos escritos denominados “Contrato de Prestacion de Servicios” cujas cópias foram juntas à Petição Inicial como Doc. 7 a Doc. 23, respeitantes aos períodos compreendidos entre 01-01-2011 a 30-06-2011 (fls. 18), 01-07-2011 a 31-12-2011 (fls. 19), 01-01-2012 a 30-06-2012 (fls. 20), 01-07-2012 a 31-12-2012 (fls. 21), 01-01-2013 a 30-09-2013 (fls. 23), 01-10-2013 a 31-12- 2013 (fls. 22), 01-01-2014 a 31-12-2014 (fls. 26v.), 01-01-2015 a 30-09-2015 (fls. 25), 01-10-2015 a 31- 12-2015 (fls. 27), 01-01-2016 a 30-09-2016 (fls. 28), 01-10-2016 a 31-12-2016 (fls. 29), 01-01-2017 a 30-06-2017 (fls. 30), 01-07-2017 a 31-12-2017 (fls. 31), 01-01-2018 a 30-09-2018 (fls. 32) e respectiva adenda de 16-03-2018, cuja cópia faz fls. 33, respeitante a alteração da atribuição salarial, a partir de Março de 2018, pelo valor de USD 2.300 [artigo 15.º da PETIÇÃO INICIAL – assente por acordo das partes].
4. A autora possuía horário de trabalho, que mais recentemente era das 9h00 horas às 17h00 [artigo 12.º da petição inicial].
5. A autora trabalhava sobre ordens e instruções do Embaixador [artigo 13.º da petição inicial].
6. A autora utilizava todos os instrumentos de trabalho pertença da Embaixada – telefone, computador, material de escritório, entre outros, fazendo parte da lista telefónica da embaixada e fazendo parte do seu mapa de férias, e possuía email da embaixada – e-mail... [artigo 14.º da petição inicial].
7. Em 2016, através do ofício cuja cópia faz fls. 37 e 37v., o então embaixador BB informou o Director de Recursos Humanos do Ministério das Relações Exteriores do Paraguai da necessidade de ser adaptada a relação laboral que vincula as funcionárias administrativas [AA e CC] à lei laboral portuguesa, referindo a necessária e urgente formalização localmente da referida relação de trabalho”, propondo para o efeito a celebração de um contrato de trabalho em nome da Embaixada do Paraguai como entidade patronal local [artigo 18.º da petição inicial].
8. Em 30-04-2018, foi outorgado entre a autora e a Embaixada da República do Paraguai em Lisboa, representada pela Embaixadora DD, o acordo escrito denominado 'Acuerdo de Compensación Global Por Prestación de Servicios' cuja cópia faz fls. 47v. e 48 dos autos, e cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos, do qual consta para além do mais o seguinte [artigo 22.º da petição inicial]:
«Considerando que:
[…]
b) La Segunda Contratante ha prestado servicios, desde el 01 de noviembre de 2009 a la fecha, a La Primera Contratante, desempeñando funciones administrativas;
c) La Primera Contratante desea otorgar a la Segunda Contratante, una compensación global por los servicios mencionados en el considerando b), como complemento para su jubilación.
[…]
Cláusula 1ª (Compensación Global)
1. Mediante el presente Acuerdo, y a la luz de lo expuesto en los Considerandos b) y c), la Primera Contratante ofrece a la Segunda Contratante una compensación global por valor de 67.361 Euros (sesenta y siete mis trescientos sesenta y un euros), en su equivalente en guaraníes según el tipo de cambio vigente, con la finalidad de que esta última pueda crear un fondo privado de pensiones o de ahorro para la jubilación;
2. La Segunda Contratante deberá escoger, bajo su entera responsabilidad, de entre los produtos de ahorro disponibles en el mercado, para invertir la compensación global mencionada en el punto anterior.
[…]».
9. A ré pagou à autora o supra aludido montante de € 67.361 [artigos 28.º e 102.º da contestação – assente por acordo das partes].
10. Desde que foi admitida na Embaixada ré, a autora nunca auferiu subsídio de férias nem subsídio de refeição, e nunca lhe foi ministrada formação profissional [artigo 34.º da petição inicial].
11. Ultimamente, a autora auferia a quantia mensal de USD 2.300 [contravalor de €2.222,10]
[artigo 35.º da petição inicial – assente por acordo das partes].
12. Durante a vigência do contrato a autora gozou férias de acordo com a legislação do Paraguai: 12 dias úteis de férias por ano nos primeiros cinco anos de contrato; 18 dias úteis de férias do 6.º ao 10.º ano de contrato e 30 dias úteis de férias por ano a partir do 11.º ano de contrato [artigos 42.º da petição inicial e 97.º da contestação].
13. À autora não foi ministrada formação profissional [artigo 43.º da petição inicial].
14. Em 10-01-2023, através do 'memorandum' cuja cópia faz fls. 166, a ré enviou à autora a comunicação cuja cópia faz fls. 166v., comunicando-lhe que o seu contrato não seria renovado a partir de 01-02-2023, data a partir da qual a autora deixou de prestar actividade para a ré [artigos 2.º e 3.º do requerimento de ampliação do pedido – assente por acordo das partes].
15. A autora sentiu-se muito abatida com o fim da relação contratual [artigo 18.º do requerimento de ampliação do pedido]".
2. O direito.
2.1 Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, logicamente, pela primeira e assim apreciar e decidir da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do pedido de reintegração da apelada e consequente sucedâneo indemnizatório.
E neste aspecto deve reconhecer-se a pretensão da apelante, na senda e com os fundamentos, diga-se em abono da verdade, elencados nos arestos citados pela apelante4 e pela Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta,5 cujo sentido, se acrescenta, vai em linha com a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, de que também são exemplo:
I - A regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus não foi revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, uma vez que, na sua formulação mais recente, essa regra não contraria nenhum dos preceitos fundamentais da Constituição.
II - Essa formulação conforme ao sistema constitucional português é a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo dessa imunidade os actos praticados jure gestionis; isto é, a imunidade não abrange os actos praticados pelo Estado estrangeiro tal como o poderiam ter sido por um particular, mas apenas os que manifestam a sua soberania.
III - Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de actividade, não têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática, designadamente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-11-2002, no processo n.º 01S2172, publicado em http://www.dgsi.pt
IV - Relativamente aos litígios laborais, designadamente acções fundadas em despedimento ilícito, essa prática não tem reconhecido a imunidade do Estado estrangeiro quando o trabalhador exerce funções subalternas, e não funções de direcção na organização do serviço público do réu ou funções de autoridade ou de representação
I - Em detrimento da teoria da imunidade jurisdicional absoluta, é de perfilhar a teoria da imunidade jurisdicional relativa, hoje dominante na comunidade internacional, segundo a qual os Estados beneficiam de imunidade para os actos jure imperii, mas não para os actos jure gestionis, por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado.
II - Uma embaixada deve considerar-se um 'estabelecimento', para efeitos do disposto no art.º 18.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, quando as funções dos trabalhadores estejam ligadas à actividade de gestão levada a cabo pela mesma.
III - Na ausência de qualquer risco de o peticionado pela A. interferir com os interesses do Estado iraniano em matéria de segurança, e tendo ainda em conta, nomeadamente, o art.º 19.º do mesmo Regulamento, impõe-se concluir pelo não reconhecimento da imunidade de jurisdição invocada pela R. e, assim, no sentido da competência internacional dos tribunais do trabalho portugueses para apreciar a matéria em causa.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-11-2014, no processo n.º 1298/13.0TTLSB.L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt
III - Na ausência de qualquer risco de o peticionado pela A. interferir com os interesses do Estado iraniano em matéria de segurança, e tendo ainda em conta, nomeadamente, o art.º 19.º do mesmo Regulamento, impõe-se concluir pelo não reconhecimento da imunidade de jurisdição invocada pela R. e, assim, no sentido da competência internacional dos tribunais do trabalho portugueses para apreciar a matéria em causa.
III - Para efeitos do disposto no art.º 18.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, uma Embaixada (ou um Consulado) de um Estado estrangeiro situado no território de um Estado-Membro constitui um estabelecimento na acepção desta disposição num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado entre esta em nome do Estado acreditante.
IV - Numa interpretação do art.º 22.º, n.º 3, da Convenção de Viena, integrada e articulada com a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, poderá atribuir-se a esta última a força vinculativa própria do direito internacional consuetudinário, apesar de a mesma não se encontrar em vigor em Portugal.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-09-2022, no processo n.º 10736/18.4T8LSB.1.L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt
III - É hoje dominante a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo da imunidade os actos praticados jure gestionis.
IV - Numa acção de impugnação de despedimento intentada por uma cidadã argelina contratada pela Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia para exercer funções de cozinheira, em que o fundamento da acção é a comunicação pela Embaixada à autora de que o contrato de trabalho cessou (situação em que a parte agiu como qualquer empregador privado), a Embaixada apenas gozaria de imunidade de jurisdição se tivesse sido formulado pedido de reintegração da autora e outros que tivessem essa reintegração como pressuposto.
V - Não tendo sido formulado pedido de reintegração ou outros que tivessem essa reintegração como pressuposto, os tribunais portugueses têm competência internacional para conhecer dos pedidos formulados pela autora nessa acção - pagamento de retribuições que deveria auferir entre o despedimento e a sentença, de retribuições de férias e subsídios de férias e de Natal decorrentes do despedimento ilícito e indemnização em substituição da reintegração.
Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 Janeiro 2014, no processo n.º 2075/12.0TTLSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt
VII - Na celebração de um contrato de trabalho para o exercício das funções de tradutor numa embaixada, as partes praticaram actos de gestão privada, estranhos ao exercício da soberania.
VIII - À luz da norma consuetudinária internacional que rege nesta matéria, é de reconhecer a imunidade jurisdicional à República do Iraque numa acção instaurada por um seu trabalhador com as funções de tradutor que a demandou num tribunal português, relativamente ao pedido que visava a reintegração do trabalhador, imunidade que deve estender-se à indemnização que a lei perspectiva como sucedânea daquela reintegração.
IX - O que já não sucede com os pedidos formulados que radicam no incumprimento do contrato de trabalho (subsídio de Natal) e na alegada ilicitude do despedimento (danos não patrimoniais e retribuições intercalares), pois que quanto a estes a aplicação daquela regra consuetudinária, com o conteúdo que actualmente lhe é conferido na ordem jurídica internacional, determina o afastamento da imunidade.
X - A afirmação da competência internacional do tribunal português quanto a estes pedidos é conforme, quer com o direito interno, atento o princípio da coincidência entre a competência internacional e a competência territorial plasmado no artigo 10.º do CPT (uma vez que o trabalhador reside em Portugal), quer com o direito da União Europeia na medida em que o TJUE entende que uma embaixada constitui um estabelecimento para efeitos do artigo 18.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 quando as funções do trabalhador se enquadrem na actividade de gestão do Estado (e a embaixada se encontra sediada num Estado-Membro).
Acórdão da Relação de Lisboa, de 16-11-2016, no processo n.º 1360/16.7T8LSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt
Note-se que o citado acórdão da Relação de Lisboa de 15 Janeiro 2014, no processo n.º 2075/12.0TTLSB.L1-4, foi depois assim confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça:
1. No ordenamento jurídico português, não existe norma que regule a questão da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os tribunais portugueses, problemática que tem de ser apreciada à luz das normas e dos princípios de direito internacional geral ou comum, que, segundo o n.º 1 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, «fazem parte integrante do direito português».
2. A prática da imunidade jurisdicional relativa é, hoje, a dominante, passando a resolução da questão posta por indagar se a actividade a que se refere o litígio se configura como um acto jure imperii ou jure gestionis, sendo actos jure imperii os actos de poder público, de manifestação de soberania, enquanto os actos jure gestionis são actos de natureza privada.
3. A imunidade jurisdicional dos Estados é um instituto distinto das imunidades diplomáticas e consulares, pelo que, sendo a acção proposta contra a Embaixada de um Estado estrangeiro, não está em causa a aplicação directa do regime das imunidades contido na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.
4. Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro contra o qual foi intentada acção de impugnação de despedimento por trabalhadora que exercia a actividade de cozinheira na sua Embaixada em Portugal e na residência oficial da respectiva Embaixadora.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-06-2014, no processo n.º 2075/12.0TTLSB.L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt
Desse aresto se relevando para o contexto da apelação o seguinte passo: "Saliente-se também, que a acção não tem por objecto a […] renovação do contrato de trabalho ou a reintegração da trabalhadora, hipótese em que seria possível a invocação da imunidade (Ac. do STJ de 12.01.2006, doc. n.º SJ200602180032794, www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto)".
Em suma, nesta parte procede a apelação da ré, incluindo, naturalmente, quanto à necessária revogação da sua condenação a pagar a cláusula pecuniária compulsória na medida em que dependia em absoluto da manutenção da sentença na parte atrás referida.
2.2 No que concerne à segunda questão, a saber, da apreciação da condenação da apelante a observar os direitos da apelada por férias não gozadas e horas de formação não ministradas, também se acompanha o parecer da Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta.
Com efeito, o que aqui há a fazer é apenas apurar o número de dias de férias não gozados pela apelada em função do a esse propósito estabelecido na lei portuguesa (neste sentido, decidiu, inter alia, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-11-2002, no processo n.º 01S2172, publicado em http://www.dgsi.pt: "Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro contra o qual foi intentada acção de impugnação de despedimento, por empregada doméstica, que exercia a sua actividade, consistente essencialmente em tarefas de limpeza e de confecção de refeições, na residência do respectivo Embaixador, sendo essa relação laboral regulada pelo direito português em termos idênticos ao vulgar contrato de trabalho para prestação de serviços domésticos celebrado com qualquer particular").
Assim, o art.º 237.º do Código do Trabalho estatui no n.º 1 que "o trabalhador tem direito, em cada ano civil, a um período de férias retribuídas, que se vence em 1 de Janeiro" e no n.º 3 que "o direito a férias é irrenunciável e o seu gozo não pode ser substituído, ainda que com o acordo do trabalhador, por qualquer compensação, económica ou outra, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo seguinte".
Por seu turno, o art.º 238.º estabelece que no n.º 1 que "o período anual de férias tem a duração mínima de 22 dias úteis" e no n.º 2 que "para efeitos de férias, são úteis os dias da semana de segunda-feira a sexta-feira, com excepção de feriados".
Ora, a este respeito provou-se que "durante a vigência do contrato a autora gozou férias de acordo com a legislação do Paraguai: 12 dias úteis de férias por ano nos primeiros cinco anos de contrato; 18 dias úteis de férias do 6.º ao 10.º ano de contrato e 30 dias úteis de férias por ano a partir do 11.º ano de contrato" (facto provado 12).
Destarte, como de resto bem refere a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, para perfazer os dias de férias legalmente previstos em cada um dos anos de vigência do contrato de trabalho, a apelada tem ainda direito ao equivalente a 10 dias de férias nos primeiros cinco anos do contrato e a 4 dias de férias do 6.º ao 10.º ano, devendo o montante devido ser encontrado tendo por referencia a remuneração auferida à data de cada um desses anos (neste particular assistindo razão à apelante); a apurar em incidente de liquidação porquanto se desconhece os respectivos valores anuais, nos termos do n.º 2 do art.º 609.º do Código de Processo Civil.
Por fim, no que concerne às horas de formação não ministradas à apelada não assiste razão à apelante.
Com efeito, o n.º 2 do art.º 131.º estabelecia que "o trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de quarenta horas de formação contínua…" (redacção da Lei n.º 93/2019, de 4 de Setembro); o n.º 1 do art.º 132.º do mesmo diploma estabelece que "as horas de formação previstas no n.º 2 do artigo anterior, que não sejam asseguradas pelo empregador até ao termo dos dois anos posteriores ao seu vencimento, transformam-se em crédito de horas em igual número para formação por iniciativa do trabalhador"; e o art.º 134.º, como aqueles do Código do Trabalho, estabelece que "cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição correspondente ao número mínimo anual de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionado, ou ao crédito de horas para formação de que seja titular à data da cessação".
Por um lado e ao contrário do pretextado pela apelante, o contrato de trabalho com a apelada efectivamente cessou em 01-02-2023, como se vê do facto provado n.º 14; e, por outro, tal como refere a sentença recorrida competia à apelante alegar e provar ter providenciado essa formação à apelada, pois que se trata de facto extintivo do direito contra ela ajuizado, o que todavia não logrou fazer (art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil).
Assim sendo, não assiste razão à apelante devendo nesta parte ser confirmada a sentença recorrida.
***
III - Decisão.
Termos em que se acorda conceder parcial provimento à apelação e, em consequência:
a) revogar a sentença na parte em que condenou a apelante ré:
i. a reintegrar a autora no mesmo estabelecimento, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, e a pagar-lhe a quantia diária de € 100,00 (cem euros) em caso de atraso no cumprimento dessa obrigação, a título de sanção pecuniária compulsória; e
ii. a pagar-lhe as férias não gozadas nos termos declarados na sentença, sendo-o agora de acordo com o valor da retribuição em cada um dos anos a que respeitam, a apurar em incidente de liquidação;
b) no mais, confirmar a sentença recorrida.
Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
*
Lisboa, 05-06-2024.
Alves Duarte
Paula Penha
Alda Martins
_______________________________________________________
1. Cláusula 18.ª dos Contratos de Prestação de Serviços outorgados entre as partes foi decidido acordar num pacto de aforamento, no qual as partes elegeram como competente para decidir qualquer questão relacionada com o contrato celebrado entre ambas, o Tribunal da cidade de Assunção, na capital da República do Paraguai.
2. Disponível online:
http://honoriscausa.weebly.com/uploads/1/7/4/2/17427811/convencao_das_nacoes_unidas_sob re_as_imunidades_jurisdiciona-18.pdf
3. Disponível online em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b3dd7ca224ab6e2f8025714d 00333320?OpenDocument
4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-02-2006, no processo n.º 05S3279, publicado em http://www.dgsi.pt.
5. Acórdão da Relação de Lisboa de 16-11-2016 proferido no processo 360/16.7T8LSB.L1-4, inédito.