Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1622/18.9PBPDL-A.L1-3
Relator: FLORBELA SANTOS A. L. S. SILVA
Descritores: PENA DE MULTA
SUBSTITUIÇÃO
TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
LIMITE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O art.º 58º do CP, que foi estruturado para a substituição de uma pena de prisão, prevê a possibilidade de uma pena de 2 anos de prisão ser substituída por 480 horas de trabalho, sendo que 2 anos traduzem um total de 730 dias, o que, em conversão directa daria 730 horas de trabalho a favor da comunidade.
Não está previsto o cumprimento de 480 horas de trabalho a favor da comunidade e ainda o remanescente da pena de prisão não abrangida por aquela conversão, atento o tecto máximo de 480 horas, sendo o mesmo raciocínio válido para a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade que assenta directamente nas premissas e estrutura do referido art.º 58º do CP.
A prestação de trabalho a favor da comunidade é, de per si, uma pena autónoma que visa satisfazer “as finalidades da punição” como resulta do próprio texto do nº 1 do art.º 58º do CP.
Não se pode substituir uma parte da multa por trabalho a favor da comunidade e manter o remanescente da multa activo sob pena de se estar a alterar a condenação do arguido para duas penas não previamente previstas na sentença condenatória.
Tendo sido aplicada ao arguido uma pena de multa única de 650 dias, ao se decidir pela substituição daquela pena, por uma prestação de trabalho a favor da comunidade, está-se a substituir, in totum o conteúdo da pena original por uma pena diferente, mas cujo conteúdo irá sobrepor-se ao conteúdo punitivo primitivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. A) No âmbito do processo comum singular, que corre termos pelo Juiz 1 do Juízo do Juízo Local Criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, na sequência de audiência de discussão e julgamento foi o arguido, FB______, condenado nos seguintes termos:

“IV – DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, decido:
1. Condenar o Arguido FB________, pela prática, em autoria, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de furto qualificado, previsto e punido nos termos do artigo 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal e de um crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.ºs 1 e 5 do mesmo diploma legal, na pena de 400 (quatrocentos) dias por cada um dos crimes;
2. Condenar o Arguido FB________, em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77.º, do Código Penal, na pena única de 650 (seiscentos e cinquenta) dias, à taxa diária de €5,50, o que perfaz um total de €3.575,00 (três mil quinhentos e setenta e cinco euros);
3. Condenar o Arguido no pagamento das custas do processo, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 513.º e 514.º do CPP e nos artigos 8.º, n.º 5, e 16.º do Regulamento de Custas Judiciais e da Tabela III anexa a este, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça, sem prejuízo de benefício de apoio judiciário.
Notifique.
Deposite-se nos termos do art.º 372.º, n.º 5, do C.P.P.”

B) A referida pena de multa viria a ser substituída por trabalho a favor da comunidade, por despacho de 06-02-2020, com a ref.ª 49300885, nos seguintes termos:

“Tendo em consideração o teor de fls. 89, a posição do Ministério Público manifestada e o plano de trabalho a favor da comunidade elaborado pela DGRSP que antecede, mostram-se preenchidos os pressupostos para deferir a substituição da pena de multa aplicada ao Arguido pela prestação de trabalho a favor da comunidade.
Relembre-se, também, que para a determinação dos dias de trabalho é necessário atender ao que dispõe o artigo 58.º nºs 2 e 4, por remissão do artigo 48.º n.º 2, ambos do Código Penal. E, conforme se extrai do preceituado no art.º 58.º n.º 3 daquele diploma legal, a equivalência entre os dias de multa e as horas de trabalho é aritmética, não podendo esta, no entanto, exceder as quatrocentas e oitenta horas.
Pelo exposto decido:
a) Deferir a requerida substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade pelo Arguido;
b) Determinar que o Arguido, em substituição da pena de multa de 650 (seiscentos e cinquenta) dias em que havia sido condenado, preste 650 (seiscentos e cinquenta) horas de trabalho a favor da comunidade, de acordo com o plano de execução determinado pela DGRSP.
Notifique a DGRSP, com referência às obrigações decorrentes do disposto nos artigos 496.º, n.º 3 e 498 n.ºs 2 e 4.º do C.P.P., devendo o início da execução do plano ter lugar na data imediata que se considerar mais oportuna.
Notifique também o Arguido, informando-o que, por forma a dar cumprimento plano de trabalho a favor da comunidade, deverá entrar em contacto de imediato com a DGRSP.”

C) Entretanto, o despacho que veio substituir a pena de multa por trabalho a favor da comunidade viria a ser alvo de uma correcção através de despacho de 11-02-2020 com a refª 49337101, e nos seguintes termos:

“Por padecer de manifesto lapso de escrita, pelo qual nos penitenciamos, determino a correcção do despacho que antecede e onde se lê:
(…) b) Determinar que o Arguido, em substituição da pena de multa de 650 (seiscentos e cinquenta) dias em que havia sido condenado, preste 650 (seiscentos e cinquenta) horas de trabalho a favor da comunidade, de acordo com o plano de execução determinado pela DGRSP.
Passa a ler-se:
b) Determinar que o Arguido, preste 480 (quatrocentos e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade em substituição de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa em que foi condenado, de acordo com o plano de execução determinado pela DGRSP, em conformidade com o relatório que antecede.
c) Determinar a notificação do Arguido para, no prazo de 10 (dez) dias, vir aos autos pagar os 170 dias de multa em falta, ou seja, o valor de €935,00 (novecentos e trinta e cinco euros).
Notifique.”

II. Inconformado com o despacho correctivo de 11-02-2020, veio o Ministério Público interpor recurso em 13-03-2020, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“1º Deferindo-se a substituição da multa por trabalho, não pode em simultâneo ordenar-se o pagamento de qualquer parte da multa, por absoluta falta de fundamento legal.
2º Independentemente da dosimetria da pena substituída, o condenado não pode cumprir mais do que 480 horas de trabalho, ficando assim cumprida toda a pena.
3º Sendo a pena de multa superior a 480 dias, não pode ordenar-se o pagamento dos dias de multa excedentes.
4º Tendo a decisão ora recorrida feito errada interpretação da conjugação dos artigos 48.º, n.º 2, e 58.º, n.º 3, do Cód. Penal, e violado este último preceito.
Pelo que, revogando tal decisão e substituindo-a por outra que proceda à eliminação da alínea c) do despacho ora recorrido,
V. Ex.ªs farão a costumada Justiça.”
III. O recurso foi admitido por despacho de 18-03-2020 (refª 49526638), tendo sido fixado efeito suspensivo.

IV. Não houve resposta.

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no art.º 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto aposto o seu “visto”.

VI. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VII: Analisando e decidindo.

 O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º, por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

Está em causa tão somente saber se, tendo uma multa sido substituída por trabalho a favor da comunidade no limite máximo permitido por lei, se ao arguido pode ainda ser exigido o remanescente da multa que não se encontra abrangida por aquela substituição.

Vejamos.

A substituição da pena de multa pela pena de trabalho a favor da comunidade encontra o seu assento legal no art.º 48º do Código Penal que diz o seguinte:

“1 - A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58.º e no n.º 1 do artigo 59.º”

A forma como a substituição se opera está, por sua vez, regulada no art.º 58º do Código Penal, subordinado à epígrafe “prestação de trabalho a favor da comunidade” que dispõe o seguinte:

“1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
2 - A prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas colectivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
4 - O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável.
5 - A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só pode ser aplicada com aceitação do condenado.
6 - O tribunal pode ainda aplicar ao condenado as regras de conduta previstas nos n.ºs 1 a 3 do artigo 52.º, sempre que o considerar adequado a promover a respectiva reintegração na sociedade.”

É jurisprudência assente, cfr. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 13/2013, DR, I Série de 17-10-2013, que:
“A correspondência entre a multa e a prestação de trabalho a favor da comunidade que resulte da substituição da pena de multa, nos termos do artigo 48.º, n.º 2, do Código Penal, é a estabelecida no artigo 58.º, n.º 3, do mesmo diploma, ou seja, um dia de multa corresponde a uma hora de trabalho.

Ora, no caso em apreço o arguido foi condenado num total de 650 dias de multa o que, em termos liminares determinaria 650 horas de trabalho a favor da comunidade.

Acontece que o art.º 58º do CP coloca um tecto máximo de 480 horas.

A questão que se coloca é a de saber se o remanescente da multa não abrangida pela conversão em trabalhão a favor da comunidade é ainda exigível, como foi entendimento do Tribunal a quono despacho recorrido, ou se, conforme entende o Digno Recorrente, a pena de multa foi, toda ela, substituída pelo trabalho a favor da comunidade nada mais sendo exigível ao arguido.

 Adiantando, desde já, o nosso entendimento sobre o assunto, afigura-se-nos que assiste total razão ao Digno Recorrente.

Repare-se que o art.º 58º do CP, que foi estruturado para a substituição de uma pena de prisão, prevê a possibilidade de uma pena de 2 anos de prisão ser substituída por 480 horas de trabalho, sendo que 2 anos traduzem um total de 730 dias, o que, em conversão directa daria 730 horas de trabalho a favor da comunidade.

No entanto, não está previsto o cumprimento de 480 horas de trabalho a favor da comunidade e ainda o remanescente da pena de prisão não abrangida por aquela conversão, atento o tecto máximo de 480 horas.

O mesmo raciocínio é válido para a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade que assenta directamente nas premissas e estrutura do referido art.º 58º do CP.

E assim é porquanto a prestação de trabalho a favor da comunidade é, de per si, uma pena autónoma que visa satisfazer “as finalidades da punição” como resulta do próprio texto do nº 1 do art.º 58º do CP.

Não se pode substituir uma parte da multa por trabalho a favor da comunidade e manter o remanescente da multa activo sob pena de se estar a alterar a condenação do arguido para duas penas não previamente previstas na sentença condenatória.

Ao arguido foi aplicada uma pena de multa única de 650 dias.

Ao se decidir pela substituição daquela pena, por uma prestação de trabalho a favor da comunidade, está-se a substituir, in totum o conteúdo da pena original por uma pena diferente, mas cujo conteúdo irá sobrepor-se ao conteúdo punitivo primitivo.

Assim, tendo a pena de multa sido substituída, ainda que parcialmente, pelo número máximo de dias de trabalho a favor da comunidade, nada mais há a imputar ao arguido, devendo, assim, proceder o presente recurso.

Decisão:
Em face do acima exposto concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revoga-se a al. c) do despacho recorrido, ou seja, revoga-se a determinação para o arguido pagar os 170 dias de multa em falta, num valor de € 935,00.
Sem Tributação.

Lisboa, 16 de Setembro de 2020.
Florbela Sebastião e Silva
Alfredo Costa
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[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc.º 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc.º nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art.º 412.º, n.º 1, do CPP–, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art.º 417.º, n.º 6, do CPP–, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” - proc.º 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc.º 05P1577,] (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.