Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2913/18.4PBLSB.L2-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: PERDÃO DA LEI Nº 38-A/2023 DE 2 DE AGOSTO
PENA DE PRISÃO SUPERIOR A OITO ANOS
CÚMULO JURÍDICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
1 – O art.º 7.º, n.º 1, al. g) da Lei n.º 38/2023, de 2 de agosto exceciona da aplicação do perdão os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e “vítimas especialmente vulneráveis”, nos termos do art.º 67.º A do Código de Processo Penal, incluindo-se nessa exceção o crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do Código Penal.
2- Tal exceção, que não comporta tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica – art.º 13.º da CRP -, é explicável por razões de política criminal, ponderando a gravidade das condutas criminais praticadas contra “vítimas especialmente vulneráveis”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo n.º 2913/18.4PBLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 3, foi proferido despacho judicial, em ........2023, mediante o qual não foi aplicado o perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023 de 02.08 ao arguido AA.
2. Notificado do despacho judicial em causa, e com o mesmo não se conformando, veio o arguido interpor recurso da decisão proferida, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
a. O tribunal a quo no seu despacho não aplicou ao ora recorrente a Lei da Amnistia.
b. Nessa medida ao não lhe aplicar o perdão de um ano na pena a que o recorrente foi condenado em incumprimento da Lei da Amnistia, o tribunal a quo violou o artigo 5.º da Declaração universal dos Direitos do Homem cuja receção material na Constituição é feita pelo artigo 16.º n.º 2.
c. Tal artigo da Declaração Universal dos Direitos do homem proíbe as penas cruéis, desumanas e degradantes.
d. Ao não lhe ser aplicado o já referido um ano de perdão o despacho ora recorrido submeteu o ora recorrente a um ano de prisão ilegítima, ilegal e, consequentemente, desumana, cruel e degradante. Em clara violação da Constituição.
e. Ao não declarar a inconstitucionalidade da norma da Lei da Amnistia, o tribunal a quo violou o artigo 13.º da Lei da Amnistia, que estabelece o princípio da igualdade e proíbe a discriminação entre cidadãos.
f. E inconstitucional determinar que a amnistia não se aplica no caso concreto dos autos e assim que um cidadão é eventualmente amnistiado e que outro não o é, tendo cometido ambos o mesmo crime. É violador do princípio da igualdade.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado, e ser proferido acórdão no sentido das conclusões ora apresentadas, revogando o despacho recorrido concedendo o perdão de um ano ao ora recorrente.
Assim se fazendo a esperada, costumada e serena
JUSTIÇA
3. A Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, sem apresentar conclusões, mas no sentido de que o despacho recorrido não merece qualquer censura.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado improcedente, sendo de manter o despacho recorrido.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o Tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto, cumpre apenas apreciar a seguinte questão:
• Da aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto.
2. Da decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão judicial sob recurso (transcrição):
“Nos presentes autos, por sentença transitada em julgado em .../.../2021, foi o arguido AA condenado pela prática, em .../.../2018de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 do Código Penal.
À data da prática dos factos, o arguido tinha 20 anos de idade.
O crime de roubo pelo qual o arguido foi condenado está excluído da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, atento o disposto no art.º 7º, n.º 1, al. g) que exclui os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67º-A do Código de Processo Penal em cujo nº 3 se determina que as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do mesmo diploma.
O artigo 1º, al. j) do Código de Processo Penal determina que “criminalidade violenta” são as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos, como é o caso do crime de roubo.
Assim, e face ao teor do artigo 7º, nº 1, al. g) da Lei nº 35-A/2023, de 2 de Agosto e ao artigo 67.º-A, nº 1, al. d) do Código de Processo Penal, o perdão de pena ali previsto não é aplicável nos presentes autos.
O arguido iniciou o cumprimento da pena a que foi condenado nos presentes autos em .../.../2021, tendo-se procedido à competente liquidação da pena (cfr. fls. 370 e 374).
Por decisão proferida pelo TEP foi o arguido desligado dos presentes autos no dia .../.../2022 e ligado ao processo nº239/20.2... – cfr. mandados de fls. 359.
De acordo com a informação remetida pelo TEP (ref. CITIUS ... e ...) o arguido foi religado aos presentes autos em .../.../2022 para cumprir o remanescente da pena de prisão a que aqui foi condenado.
Por requerimento apresentado em .../.../2023 vem o arguido requerer que, “atendendo à idade do arguido à data da prática dos factos, às circunstâncias dadas como provadas nos autos, o arguido ainda pode beneficiar do perdão”.
O crime de roubo, previsto e punido pelo art.º 210º, n.º 1 do Código Penal, não consta elencado no n.º 1, al. b), i), da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, onde apenas se faz referência, na parte que agora interessa, ao roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 2, do Código Penal, o certo é que a vítima daquele será sempre uma vítima especialmente vulnerável como já se disse supra acompanhando o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 09/06/2022 e Ac. Relação de Évora de 28/02/2023, disponíveis em www.dgsi.pt., pelo que o seu agente também não poderá beneficiar do perdão da pena aplicada por tal crime por força da já citada alínea g) do artigo 7º em análise.
Pelo exposto, a situação do arguido nos presentes autos não poderá beneficiar do perdão de penas previsto na Lei nº38-A/2023, de 2 de agosto, pelo que indefere-se o requerido.
Notifique”.
3. Apreciando
Considera o recorrente que deveria ter beneficiado do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo que, ao assim não se ter entendido, foi violado o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (que por lapso apelida de Lei da Amnistia), bem como ainda o artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem cuja receção material na Constituição é feita pelo artigo 16.º n.º 2.
Ora, antes de mais, cumpre esclarecer que não se vislumbra em que medida violou o tribunal a quo esta última disposição, porquanto, independentemente de assistir ou não razão ao recorrente quanto à questão de poder ou não beneficiar do dito perdão, certo é que o condenado não foi nem se encontra submetido a qualquer pena desumana, cruel ou degradante, na aceção prevista pelo mencionado artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, porquanto as mesmas (penas) não vigoram no nosso ordenamento.
Com esse esclarecimento, e quanto ao mais, desde já também adiantamos não lhe assistir razão, conforme passaremos a explicitar.
Com efeito, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 2.º, n.º 1 e 3.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 agosto (diploma legal que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – cf. art.º 1.º), é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, com exceção dos elencados no art.º 7.º, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
In casu, pese embora o recorrente tivesse, à data da prática dos factos, 20 anos de idade, encontrando-se aqueles igualmente abrangidos pelo período temporal a que alude o art.º 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, a aplicabilidade do perdão mostra-se de facto excluída pelas disposições conjugadas do art.º 7.º, n.º 1 al. g) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, e dos art.ºs 67.º-A, n.ºs 1 al. b) e 3 e 1.º, al. l) do Código de Processo Penal.
Efetivamente, o art.º 7.º do diploma em análise exceciona da aplicação do perdão várias hipóteses, designadamente, e entre outros,
- na al. b) ponto i), os condenados pela prática de crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210.º, n.º 2 do Código Penal (roubo agravado) e;
- na al g), os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do art.º 67.º A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 78/87 de 17 de fevereiro.
Nessa medida, apesar de o crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.º, nº1 do Código Penal não constar expressa e individualmente elencado no artigo 7.º, n.º1 da Lei nº 38- -A/2023, de 2 de agosto, não podemos deixar de fazer apelo ao estatuído na alínea g) deste mesmo normativo, sendo tanto porque uma vítima do crime de roubo (previsto pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal e punido com uma pena de prisão até 8 anos), enquanto vítima de criminalidade violenta, integra o conceito de vítima especialmente vulnerável.
Aqui chegados, e no seguimento do acórdão desta mesma relação e secção de 14.12.2023 (Proc. 27/22.1PJLRS-B.L1, relatado por Sandra Ferreira, disponível em http://www.dgsi.pt), “(…) cremos que o legislador no art.º 7.º n.º 1 da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, foi estabelecendo, em concreto, a inaplicabilidade do perdão e da amnistia para certos tipos de crime, vindo depois a estabelecer na al. g) do citado n.º 1, uma cláusula mais abrangente, no sentido de excecionar a aplicação da amnistia e do perdão aos condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis nos termos do art.º 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-lei nº 78/87 de 17 de fevereiro (isto, é centrando agora o foco especificamente na vítima do crime e não no concreto tipo de crime cometido).
Partindo do texto da lei vemos que o legislador não excluiu qualquer vítima especialmente vulnerável. E, de facto, se o legislador quisesse limitar a exceção à definição de vítima especialmente vulnerável, prevenida no art.º 67.º-A, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, tê-lo-ia seguramente feito.
(…)
Para quem defenda que por o crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210.º, n.º 1 do Código Penal não estar previsto expressamente no ponto i) da alínea b) do art.º 7.º da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto não está excecionada a aplicação do perdão, torna-se difícil perceber como admitirão excecionar do perdão todas aquelas situações em que, sendo cometido um crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210.º, n.º 1 do Código Penal, as vítimas sejam pessoas cuja especial fragilidade decorra, por hipótese, da sua idade ou estado de saúde, pois que claramente estas vítimas estariam abrangidas pela al. g) do referido art.º 7.º da lei 38-A/2023 de 2 de agosto, como o legislador quis e previu, e consequentemente o perdão não teria aplicação - embora o art.º 210.º, n.º 1 do Código Penal, continue a não constar da referida alínea b).
Assim, presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil) a conclusão a retirar é que estarão também abrangidas as vítimas cuja especial vulnerabilidade decorre da classificação legal dos crimes praticados, como integrando “criminalidade violenta” ou “criminalidade especialmente violenta”, nos termos do art.º 1.º al. j) e l) do Código de Processo Penal, mesmo que esse crime seja o de roubo previsto e punível pelo art.º 210.º, n.º 1 do Código Penal.”
Em face do exposto, e porque in casu verifica-se a exceção constante da al. g) do n.º 1 do art.º 7.º da Lei nº 38º-A/2023, de 2 de agosto, não pode o arguido beneficiar de qualquer perdão relativamente à pena em que o foi condenado.
Concluindo nestes termos, de igual modo se considera não ter existido violação de qualquer norma constitucional, designadamente do referido art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, sendo tanto, e desde logo, nos termos configurados pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, em resposta ao recurso interposto pelo arguido, que, por subscrevermos, passamos a transcrever: “no caso da exclusão do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo colocados como são, em plano de igualdade todos aqueles que, como o aqui recorrente, foram condenados pela prática de crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal (crime integrado no conceito de criminalidade violenta – artigo 1.º, alínea j) do Código Processo Penal) - e como tal cometido contra vítima especialmente vulnerável – artigo 67.º-A do Código Processo Penal e previsto na causa de exclusão estabelecida no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto), não existe tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica.
Da mesma forma, (…), não comporta a exclusão tratamento arbitrário, sendo explicável e objetivamente compreensível por razões de política criminal expressas numa acrescida necessidade de efetividade da pena e ponderando a gravidade das condutas criminais praticadas contra vítimas especialmente vulneráveis, como se verifica nas situações excluídas na mencionada alínea g).
A sua edição e redação cabe na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, pelo que não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo, mas sem que haja violação do artigo 13.º da CRP.”
Concluímos, pois, pela improcedência do recurso interposto, devendo manter-se o despacho recorrido que não aplicou ao perdão, por se mostrar excluído por força do artigo 7.º, n.º 1, alínea g) daquele diploma, não existindo violação nem do artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, nem do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso apresentado pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
*
Lisboa, 23 de janeiro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Ana Cláudia Nogueira (com voto de vencido)
Manuel José Ramos da Fonseca

Voto de vencido
Fiquei vencida na questão objeto do acórdão de saber se o crime de roubo previsto pelo art.º 210º/1 do Código Penal, não excecionado da aplicação da Lei do Perdão de Penas e Amnistia de Infrações aprovada pela L. 38-A/2023, de 02/08 (diploma a que pertencem todas as normas citadas doravante sem indicação de proveniência) por via do disposto no art.º 7º/1, b), i), deve considerar-se excecionado dessa aplicação por via do preceituado no mesmo art.º 7º/1, g), enquanto crime que é sempre praticado contra vítimas especialmente vulneráveis nos termos do art.º 67º-A/1,b) e 3, do Código de Processo Penal, já que integra a categoria da criminalidade violenta ou da criminalidade especialmente violenta, segundo o art.º 1º/j) e l), do Código de Processo Penal.
Pois bem.
Entendo que, por um lado, o legislador não quis excecionar da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia os condenados por crime de roubo simples, com previsão no nº 1 do art.º 210º do Código Penal, deixando-o expresso no texto da lei ao indicar no art.º 7º/1,b),i) apenas o nº 2 desse normativo; por outro lado, afigura-se-me que não pode atribuir-se à previsão da alínea g) um efeito de derrogação do assim expressamente consagrado, devendo outrossim dela efetuar-se interpretação que seja compatível com aqueloutra norma.
E essa interpretação da previsão contida na alínea g), que aparece reportada ao tipo de vítima do crime, em vez de ao tipo de crime, como sucede nas alíneas anteriores, até pela sua inserção sistemática, indicativa de que é menos específica e residual em relação às anteriores previsões relativas a concretos tipos legais de crime, terá necessariamente que passar por afastar a sua aplicação aos crimes violentos e especialmente violentos (cujas vítimas são legalmente consideradas vítimas especialmente vulneráveis), que não constem excecionados nas alíneas anteriores.
Explicando.
A interpretação sufragada no acórdão e que fez vencimento corresponde, na prática, a eliminar do texto do art.º 7º/1, b) i) a indicação do nº 2 do art.º 210º do Código Penal, como se aí devesse constar apenas a referência ao art.º 210º, por forma a terem-se por excecionados da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia todos os roubos, seja na forma agravada, prevista no nº 2, seja na forma simples, com previsão no nº 1; e isso corresponde a derrogar a lei.
Na verdade, quisera o legislador excecionar da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia o crime de roubo em qualquer das suas previsões, simples e agravada, e não havia qualquer razão para não o ter feito logo quando da previsão do nº 1, b), i) do citado art.º 7º.
Mais.
Esta é a meu ver a única interpretação que, além de respeitar a letra da lei, respeita também o espírito da lei.
Isto porque os trabalhos preparatórios da Lei do Perdão e Amnistia1 permitem reconstituir o pensamento e vontade do legislador no sentido que preconizamos.
Com efeito, aí se constata que a proposta inicial do Governo excluía do perdão e da amnistia o crime de roubo “em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no art.º 210º do Código Penal”.
Posteriormente, em 10 de julho de 2023, o Grupo Parlamentar do PSD apresentou proposta de alteração que excluía do perdão e da amnistia os condenados por crime de roubo previsto no art.º 210º do Código Penal.
Já a Proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS, em 14 de julho de 2023, apenas excluía do perdão e da amnistia os condenados pela prática do crime de roubo agravado, previsto no nº 2 do art.º 210º do Código Penal, tendo sido esta proposta que acabou por ficar consagrada no texto final do art.º 7º/b), i).
Assim e face à redação definitiva que fez vencimento, há que concluir que os condenados por crime de roubo previsto no nº 1 do art.º 210º do Código Penal não estão excluídos do benefício do perdão e da amnistia previsto na Lei do Perdão e da Amnistia na medida em que a mencionada subalínea i) da alínea b) do nº 2 do art.º 7º apenas exclui os condenados por crime de roubo previsto no nº 2 do art.º 210º do Código Penal, não podendo deixar de se considerar ter sido intencional o concreto âmbito dessa exclusão do nº 1, considerado o chumbo da proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PSD.
De resto, a proposta de alteração do grupo parlamentar do PSD que viria a ser chumbada, ia ao encontro do contributo do Conselho Superior da Magistratura que sugeria a aplicação da Lei da Amnistia a “todos os condenados por crimes de roubo previsto e punido pelo artigo 210º do Código Penal e roubo qualificado, face à enorme expressão e gravidade deste tipo de crimes, consabidamente causadores de grande alarme social” (3.5.3.1.), ficando deste modo bem evidenciado que a questão foi colocada e discutida, tendo sido ultrapassada com a prevalência da proposta do grupo parlamentar do PS, vazada em lei.
Já a remissão para o conceito de vítima especialmente vulnerável consagrado no art.º 67º-A do Código de Processo Penal, que decorrerá do contributo do Conselho Superior do Ministério Público2, não constava do projeto de lei que continha o seguinte nessa alínea: “Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes”; tudo indica, pois, que, ao introduzir tal alteração na formulação final da alínea g), do nº 1 do art.º 7º, não contou o legislador com a possibilidade interpretativa que agora se adota no acórdão de, através de um jogo de remissões, poder anular a indicação expressa do nº 2 do art.º 210º feita na prévia alínea b), i), do mesmo nº1 do art.º 7º.
Certo é que o legislador não podia deixar de saber que existia o nº 3, do art.º 67º-A do Código de Processo Penal, a considerar sempre como vítima especialmente vulnerável a vítima de criminalidade violenta nos termos do art.º 1º/j) do Código de Processo Penal, e que o roubo previsto e punido pelo art.º 210º/1 do Código Penal, por se dirigir contra a integridade física e liberdade pessoal da vítima, cai necessariamente nesta categoria de criminalidade violenta; pelo que, sabia também que ao inserir na referida alínea g) do nº 1 do art.º 7º a remissão para o art.º 67º-A do Código de Processo Penal poderia dar ensejo à tese propugnada no acórdão, que necessariamente terá que ter considerado afastada pela indicação expressa no catálogo das exclusões da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia do roubo do nº 2 do art.º 210º do Código Penal, deixando de fora o roubo do nº 1.
Neste quadro, uma reconstituição do pensamento legislativo que leve à exclusão do roubo do nº 1 do art.º 210º do Código Penal da aplicação da Lei do Perdão e Amnistia, será, pois, contrária à presunção legal consagrada no art.º 9º/3 do Código Civil de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
Em suma: resulta clarividente do texto da lei e do pensamento do legislador reconstituído em termos lógicos e mediante análise do processo legislativo que o legislador quis deliberadamente aplicar a Lei do Perdão e Amnistia aos condenados por crimes de roubo na previsão do nº1 do art.º 210º do Código Penal; simplesmente não atentou que, ao introduzir na alínea g), do nº1 do art.º 7º a remissão para o disposto no art.º 67º-A, desta norma haveria nova remissão para o disposto no art.º 1º/j) e l), ambos do Código de Processo Penal, e desse modo, estava a abrir a porta a interpretações como aquela que o acórdão sufraga e que, na prática, representam uma derrogação da norma contida na própria norma traduzida na expressão popular de «fazer entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta.».
Assim, muito embora admita alguma equivocidade do texto legal, entendo que nem a letra nem o espírito da lei consentem a interpretação sufragada no acórdão.
Julgaria, pois, procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, e efetuando a aplicação do perdão à pena em que o arguido se encontra condenado.
Ana Cláudia Nogueira

1. In
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095.
2. In https://app.parlamento.pt/webutils/docs .