Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
277/24.6YUSTR.L1-PICRS
Relator: ARMANDO CORDEIRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DIREITO DE DEFESA
DECISÃO ADMINISTRATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2025
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado pelo relator):
I. Os vícios apontados à decisão administrativa e não imputados à decisão judicial, em impugnação judicial, não são conhecidos por este tribunal de recurso que visa unicamente apreciar a decisão judicial.
II. É nula a sentença que, em impugnação judicial, omita qualquer apreciação sobre a invocada violação, na fase administrativa, do direito de defesa da recorrente por indicação, para efeitos de apresentação da defesa, de moldura da coima diferente daquela que foi efetivamente considerada na decisão final, mais gravosa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem esta Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. RELATÓRIO.
BULGARIA AIR AD impugnou judicialmente a decisão administrativa proferida pela AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL (ANAC) que a condenou na coima de € 2.000,00 (dois mil euros) pela prática de uma contraordenação, prevista e punida pelo artigo 9º, nº 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 109/2008, com a publicação da condenação na página electronica que a ANAC detém na Internet, ao abrigo do disposto no artigo 13º do DL 10/2004, de 09/01.
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Por sentença proferida a 22/01/2025, foi a referida impugnação judicial julgada parcialmente procedente, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso interposto pela recorrente Bulgaria Air Ad e, consequentemente, decide-se:
- manter a decisão da Autoridade Nacional da Aviação Civil, que condenou a recorrente na coima de € 2.000,00 (dois mil euros);
- revogar a decisão de dar publicidade à punição na página electrónica que a ANAC detém na Internet.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C´s - cf. artigos 93º, nº 3 e 94º, nº 3, ambos do RGCO.
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Após trânsito, comunique-se à autoridade administrativa, nos termos do nº 4 do artigo 70º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.”
Inconformada com tal decisão, veio BULGARIA AIR AD interpor recurso da mesma para este Tribunal da Relação na parte em que “, na parte em que decide manter a decisão da Autoridade Nacional da Aviação Civil, que condenou a Recorrente numa coima de € 2.000,00 (dois mil euros), pedindo que:
“DEVE O PRESENTE RECURSO SER APRECIADO E, EM CONSEQUÊNCIA:
1. DEVE SER DECLARADA A VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUDIÇÃO E DEFESA DA RECORRENTE, NOS TERMOS DOS ARTIGOS 32.º, N.º 10 DA CRP , DO ARTIGO 50.º DO RGCO E DA JURISPRUDÊNCIA FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNALDEJUSTIÇA; CASO ASSIMNÃOSE ENTENDA, E POR MERO DEVER DE PATROCÍNIO SE COGITA, DEVE SER DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA ORA RECORRIDA, POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA, NOS TERMOS DO ARTIGO 379.º, N.º 1, ALINEA C) DO CPP;
SE ASSIM NÃO SE ENTENDER
2. DEVE SER PROFERIDA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA DA ORA RECORRENTE;
CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, E POR MERO DEVER DE PATROCÍNIO SE COGITA, DEVE SER DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA ORA RECORRIDA, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO DISPOSTO NO ARTIGO 379.º, N.º 1, ALÍNEA B) DO CPP, POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA E DO ACUSATÓRIO;
SE ASSIM NÃO SE ENTENDER
3. DEVE SER ALTERADA A DECISÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO, NOS TERMOS DO ARTIGO 75.º, N.º 2, ALÍNEA A) DO RGCO, SENDO ANTES PROFERIDA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA DA ORA RECORRENTE, POR FORÇA DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (ARTIGO 29.º, N.º 1 E 3 DA CRP), DO PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA (ARTIGO 127.º CPP) E DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REU (ARTIGO 32.º, N.º 2, 1.ª PARTE DA CRP), BEM COMO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 9.º DO DL N.º 10/2004 E 18.º DO RGCO, NA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA COIMA.
SE ASSIM NÃO SE ENTENDER,
4. DEVE SER ALTERADA A DECISÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO, NOS TERMOS DO ARTIGO 75.º, N.º 2, ALÍNEA A) DO RGCO, NO SENTIDO DE SER DECIDIDA A SUSPENSÃO DA APLICAÇÃO DA COIMA NOS TERMOS DO ARTIGO 29.º DO DL N.º 10/2004, FACE À CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE AFUNDAMENTAÇÃOE ADECISÃO, NOS TERMOS DO ARTIGO410.º, N.º 2, ALÍNEA B) DO CPP.
TERMOS EM QUE SERÁ FEITA A COSTUMADA JUSTIÇA!

Formulou extensas conclusões que podem resumir-se no seguinte:

A. Da Violação do Direito de Audição e Defesa da Recorrente (conclusões D a T).
O Tribunal efetuou uma errada interpretação e aplicação do Direito na Sentença ora recorrida, designadamente dos artigos 32.º, n.º 10 da CRP e 50.º do RGCO, dada a clara violação do direito de defesa da Recorrente, ocorrida nos presentes autos, que impunha ao Tribunal o reconhecimento dos vícios da notificação operada pela ANAC na fase administrativa do presente processo contra-ordenacional, e dos demais atos subsequentemente praticados no processo (incluindo a decisão final surpresa da ANAC constante de fls. 108 e ss. dos presentes autos), ao abrigo e para os efeitos do disposto no artigo 50.º do RGCO, do artigo 122.º do CPP e da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (Assento n.º 1/2003, Relator José António Carmona da Mota).

B. Aindaque assim não se entendesse, o que não se concede e por meracautelade patrocínio se cogita, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo sempre padecerá de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, uma vez que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a violação do direito de defesa da aqui Recorrente na sua plenitude, omitindo da sua análise a decisão surpresa operada pela ANAC na fase administrativa do processo, questão que havia sido suscitada pela Recorrente nos pontos HH.) - LL.) do recurso de impugnação judicial apresentado e, bem assim, aquando de requerimento relativo à putativa alteração não substancial dos factos operada pelo Tribunal.

C. Da Violação do Princípio da Vinculação Temática e do Acusatório (conclusões U a XX).
Existe, no mínimo, uma deficiência de descrição na acusação dos factos que integram o respetivo tipo de ilícito contraordenacional, a qual, ao ser reconhecida em audiência de julgamento, implica a absolvição da aqui Recorrente.
A putativa alteração dos factos operada pelo Tribunal não permite sanar um dos vários vícios da acusação (e decisão final), a qual se encontra irremediavelmente inquinada, senão por outros vícios, a partir do momento em que a ANAC sustentou perante a Recorrente que o critério aplicável para efeitos de imputação da alegada contraordenação, conforme configurada pela própria ANAC, corresponde ao critério da colocação dos calços.
Não o tendo feito, e tendo proferido Sentença que tenta colmatar a falta de elementos e factos da decisão administrativa, errou o Tribunal a quo, violando o princípio da vinculação temática, encontrando-se ferida de nulidade a Sentença ora recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP.

D. Da Violação do Princípio da Legalidade e In Dubio Pro Reu / Medida da Coima (conclusões YY a NNN).
O Tribunal a quo, na Sentença ora recorrida, nomeadamente na determinação da medida da coima, violou o princípio da legalidade (cfr. artigo 29.º CRP), o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigo 127.º CPP) e o princípio in dubio pro reu (cfr. artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte CRP), bem como o disposto nos artigos 9.º do DL n.º 10/2004 e 18.º do RGCO.
Dada a manifesta ausência de prova, deveria o Tribunal a quo dar como facto não provado a classificação económica da recorrente constante da acusação e da decisão final da ANAC, abstendo-se de condenar a Recorrente; ao não o fazer, violou os referidos princípios da legalidade, da livre apreciação da prova e in dubio pro reu, bem como o disposto nos artigo 9.º do DL n.º 10/2004 e 18.º do RGCO.

E. Da Suspensão Da Coima (conclusões OOO a ZZZ).
O Tribunal violou, uma vez mais, o princípio in dubio pro reu (cf. artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte CRP), bem como o artigo 29.º do DL n.º 10/2004, ao optar por adotar presunções e suposições em detrimento de factos provados, de modo a afastar, sem fundamentação plausível, a suspensão da aplicação da coima, nos termos do referido artigo 29.º do DL n.º 10/2004.
Padece a Sentença ora recorrida de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP, devendo ser decidida a final, caso se entenda existir prática de contra-ordenação pela ora Recorrente, o que não se concede, a suspensão da aplicação da coima, nos termos do artigo 29.º do DL n.º 10/2004.
*
Admitido o recurso, a recorrida AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL (ANAC) apresentou Resposta ao Recurso no sentido de “ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida nos precisos termos, assim se fazendo a Acostumada Justiça!”, formulando as seguintes
Conclusões
A. Invoca a Recorrente, em síntese, que o tribunal a quo face à ausência de factos e elementos passíveis de prova na acusação, seria necessário efetuar uma alteração não substancial dos factos.
B. A Recorrente ignora que o recurso apresentado se cinge apenas à sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo, e não à decisão administrativa proferida pela Recorrida.
C. Sustenta que tal contradição acarreta a nulidade da sentença de acordo com os artigos 359º, n.º 1 e 379º, n.º 1, alínea b) do mesmo código, aplicáveis ex vi artigo 41º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações , na parte em que condena a recorrente com fundamento.
D. A decisão recorrida procedeu à condenação da Recorrente por factos por que havia sido acusada, nos termos dos artigos 358º e 359º do Código do Processo Penal (cf. artigo 379º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Penal), tendo sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciar.
E. A Recorrente alega igualmente a violação do artigo 379º do Código do Processo Penal, por entender que a decisão administrativa está ferida de nulidade
F. Importa fazer a devida ressalva de que o recurso em causa visa sufragar a bondade da decisão judicial do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
G. Não obstante, o Recorrente coloca em causa, por diversas vezes, a decisão administrativa.
H. Ora, o momento de colocar em crise a decisão administrativa ocorreu com a apresentação da impugnação judicial, não tendo o Douto Tribunal a quo julgado totalmente procedente a mesma, pelo que o Recorrente não se conformou com tal decisão.
I. A Recorrente procurou atrair este Tribunal para área em que a sua intervenção é muito estrita e limitada, já que não conhece de facto, conforme estabelecido no n.º 1 do artigo 75º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
J. É manifesto, não ter a invocação da Recorrente a possibilidade de ser submetida ao disposto na alínea a) desse número –insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – ou na alínea b) – contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
K. Como o Tribunal a quo acertadamente qualificou, o fixado na sede apreciada corresponde à expressão de uma convicção sustentada em parâmetros de normalidade e razoabilidade, obtida no quadro do exercício da faculdade de apreciar livremente a prova e sempre assente nos demais factos colhidos mediante instrução dos autos.
L. A Recorrente veio ainda alegar em sede de recurso, o incumprimento dos requisitos constantes do artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações, pela decisão administrativa.
M. No entanto, em abono da verdade, sempre se dirá que não lhe assiste qualquer razão, na medida em que a decisão administrativa, cumpriu na íntegra, os requisitos exigidos, a saber: (i) a identificação do arguidos; (ii) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; (iii) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão e (iv) a coima e as sanções acessórias.
N. Cumprindo ainda os restantes requisitos, tendo prestado as seguintes informações: a) a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59º;b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho, bem como a indicação de que a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão e a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.
O. A Recorrente socorre-se uma vez mais da decisão administrativa, para tentar através do presente recurso, uma reavaliação da mesma, quando deveria assinalar, o que no seu entender, não está correcto, na sentença proferida pelo Tribunal a quo.
P. Nos termos do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro, estabelece que pode ser, total ou parcialmente, a aplicação da sanção, sendo que a suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a segurança na aviação civil.
Q. O artigo 6º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro, estabelece que a determinação da coima concreta e das sanções acessórias faz-se em função da ilicitude concreta do facto, da culpa do agente, dos benefícios obtidos e das exigências de prevenção, tendo ainda em conta a natureza singular ou coletiva do agente, sendo que neste último caso, deve atender-se ao perigo ou dano causados, ao caráter ocasional ou reiterado da infração, a existência de ocultação tendentes a dificultar a descoberta da infração, a existência de atos do agente destinados a, por sua iniciativa, reparar os danos ou obviar aos perigos causados pela infração.
R. Entende a Recorrente que o facto de ter decorrido mais de 5 anos entre os factos em causa e a sentença recorrida, é mais do que suficiente para concluir que as necessidades de prevenção especial são inexistentes.
S. Ora, quanto a este argumento, sempre se dirá que enquanto não prescrever o ilícito em causa, sendo este sancionável, as necessidades de prevenção, quer especial, quer geral, terão de ser atendidas.
T. E o propósito de tal facto, prende-se com a necessidade de prevenir que a Recorrente volte a reincidir na prática de contra-ordenações aeronáuticas civis, por parecer que o mesmo não interiorizou que deve pautar a sua conduta de acordo com o Direito, ainda mais num setor tão regulado como o da aviação civil.
U. Face ao que antecede, deve o recurso deve ser julgado totalmente improcedente.

Também o Magistrado do Ministério Público na 1ª instância apresentou Resposta ao Recurso e formulou as seguintes
Conclusões
i. A sentença recorrida não padece de qualquer nulidade;
ii. A classificação da recorrente como grande empresa resultou de um exercício de reflexão empreendido pelo tribunal recorrido segundo os ditames das regras da experiência e cuja justeza se encontra comprovada por várias fontes de informação públicas e consultáveis na internet;
iii. A inserção do facto 2) no catálogo da matéria de facto dada como provada em nada contendeu com os poderes que ao tribunal recorrido são reconhecidos, tendo em conta que o mesmo, para além do mais, tem jurisdição plena sobre todo o processado, incluindo a prova que é produzida em audiência de discussão e julgamento;
iv. Ao não aceitar-se que, perante algo que é apreendido neste mesmo contexto pelo tribunal recorrido como postulado necessário e derivado dos factos em discussão, o mesmo deva – como lhe é exigido – esgotar todas as possibilidades de assentar numa dada conclusão (seja enquanto facto provado ou até mesmo como não provado), corresponderia sempre à situação de um non liquet decisório que não tem cabimento, segundo a Lei e a própria Constituição.
v. A recorrente não apresentou quaisquer razões válidas que apontassem para claras contradições do texto da sentença recorrida, limitando-se a ‘atacar’ a decisão administrativa e a resumir a sentença proferida a um mero exequatuur da mesma – o que não se mostra de forma alguma verdadeiro, dada a solidez da sua fundamentação quer ao nível da questão-de-facto, quer ao nível da questão-de-direito;
vi. Não subsistem, do lado da recorrente, quaisquer razões válidas seja para uma redução da coima que lhe foi aplicada, seja para a respectiva suspensão da mesma;
vii. Admitir tal possibilidade seria sempre incorrer naquilo que o tribunal recorrido sempre pretendeu – como lhe cabia por Lei – evitar: a degradação da validade das normas que, no domínio do tráfego aéreo, pretendem criar um espaço de segurança para todos quantos nele, a dado momento, circulam, não podendo o princípio da ‘pontualidade’ e do respeito pelas faixas horárias atribuídas para operações de descolagem e aterragem serem tidos apenas como meras directrizes;
viii. Tudo sob pena de se cair num espaço de impunidade e de verdadeira Lex imperfecta;
ix. A sentença recorrida não apresenta qualquer contradição, nem deixou de se pronunciar sobre todas as questões que foram suscitadas pela recorrente, não carecendo por isso de qualquer remédio ou reforma.
x. Pelo que deverá ser confirmada na sua íntegra.”

Termina pedindo a improcedência do recurso e “(…) a sentença recorrida ser mantida na sua totalidade”.
*
Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público apôs o seu “visto”.

Foram colhidos os Vistos.
***
II. Fundamentação de Facto.

Com interesse para a boa decisão da causa, foram considerados provados pelo tribunal de 1ª instância, os seguintes factos:

1. A recorrente tinha uma faixa horária atribuída para aterrar no Aeroporto Humberto Delgado, com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula LZ-563, no dia 30 de Maio de 2019, às 22h50 UTC.
2. No entanto, a operação veio a ser realizada pela aeronave identificada em 1., em hora não concretamente apurada, mas seguramente posterior às 23h14 UTC do dia 30 de Maio de 2019.
3. A recorrente não procedeu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, pois está obrigada a desenvolver todos os mecanismos para evitar que o sucedido aconteça.
4. A recorrente não pode ignorar as obrigações decorrentes da sua actividade enquanto transportadora aérea, conseguindo representar as consequências da sua conduta.
5. A recorrente não tem condenações anteriores pela prática de contra-ordenações.
6. A recorrente encontra-se classificada como uma grande empresa.
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Factos não provados:

a) A operação veio a ser realizada pela aeronave às 23h14 UTC do dia 30 de Maio de 2019.
b) O facto referido em 2. deveu-se a atrasos não imputáveis à recorrente, por serem decorrentes de outros voos operados pela aeronave identificada em 1., e sujeitos ao controlo de tráfego aéreo e às decisões/permissões de diversas entidades gestoras aeroportuárias, bem como ao tráfego existente em pista, que a recorrente não controla.
c) Um dos voos operados previamente pela aeronave foi para o Aeroporto de Tel Aviv, o que costuma levar a longos atrasos devido a procedimentos espaciais de segurança, que não estão ao controlo da recorrente.
d) A recorrente actuou com toda a diligência e cuidados que lhe eram exigidos, fazendo tudo o que podia e estava ao seu alcance de forma a minimizar eventuais consequências negativas para o Aeroporto e passageiros, dada a situação decorrente dos atrasos de voos anteriores.”


III. Fundamentação Jurídica.

O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal) e atento o disposto no artigo 75º n.º 1 do DL n.º 433/82, de 27/10 (RGCO) este Tribunal apenas conhece de matéria de direito.

Assim, atentas as conclusões da recorrente as questões suscitadas pelo recurso são as seguintes:

1. Ocorreu violação do direito de audição e defesa da recorrente na fase administrativa do procedimento?

2. A sentença em recurso procedeu a alteração dos factos em violação do princípio da vinculação temática e do acusatório?

3. A sentença em recurso viola o princípio da legalidade e In Dubio Pro Reu designadamente na determinação da medida abstrata da Coima?

4. A sentença em recurso errou ao não ter suspendido a execução a coima?


Primeira das referidas questões

Alega a recorrente, tal como já havia feito na impugnação judicial, que o procedimento é nulo por preterição do seu direito de defesa na fase administrativa.
Em síntese, (conclusões F e G) alega que:
“(…) em sede de audição e defesa da ora Recorrente, a ANAC comunicou-lhe o seguinte (cf. ponto 68 da notificação): «Desconhece-se a classificação económica da Bulgaria Air sendo que, na falta de obtenção da mesma, poderá ser púnica como uma microempresa, variando o montante abstrato da eventual aplicação, para cada contraordenação grave, entre 400 e 1.000, se imputada por negligência (...)”.
Na decisão final, verifica-se que a ANAC não identifica a classificação económica da ora Recorrente, reconhece que não tem elementos para fazer essa classificação e reconhece que o sector da aviação civil continua a sofrer sequelas decorrentes do vírus SARS-CoV-2 e pela doença Covid-19; contudo, quando chega ao momento de determinar o valor da coima, a ANAC aplica à ora Recorrente a moldura penal aplicável às “grandes empresas”, fazendo precisamente o oposto daquilo que notificou a ora Recorrente aquando da sua audição para exercício do direito de defesa: na falta de obtenção da classificação económica, a aqui Recorrente foi punida como grande empresa”.

Embora aponte à sentença em recurso a nulidade por omissão de pronuncia, como veremos posteriormente, resulta evidente da alegação da recorrente que estes concretos vícios são apontados à decisão da autoridade administrativa e não à sentença em recurso.
O presente recurso tem como objeto a decisão judicial e não a decisão da autoridade administrativa.
Como exemplarmente se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência, n. 3/2019 disponível in www.dgsi.pt e https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/3-2019-122857882 e que uniformizou a seguinte jurisprudência: “Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, de 23 maio de 2019:
Em sede de 1.ª instância, o Tribunal conhece de toda questão em discussão - "o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa".
(…)
De tudo podemos concluir que a fase judicial não constitui uma reapreciação da questão, mas uma primeira apreciação judicial da questão contraordenacional sem limite dos poderes de cognição do juiz, que abarcam todo o objeto do processo. A impugnação judicial não constitui "um recurso em sentido próprio, mas de uma fase judicial do processo de contra-ordenação em que o tribunal julga do objecto de uma acusação consistente na decisão administrativa de aplicação da sanção na fase administrativa, com ampla discussão e julgamento da matéria de facto e de direito e de decisão final".
(são nossos os destaques)

No caso, como vimos e resulta das conclusões – e das alegações – da recorrente, esses vícios já não são imputados à decisão em recurso.

A matéria novamente invocada não é sequer passível de impugnação autónoma para este tribunal da Relação, o que reforça a conclusão de que do que agora se recorre é da sentença judicial e não da decisão administrativa (cf. art. 73.º do RGCO, aplicável).

As nulidades, objeto de recurso, são unicamente aquelas que, segundo a recorrente, persistem na decisão judicial e não as, unicamente, apontadas à decisão administrativa.

Pelo exposto, não sendo matéria imputada à decisão judicial, não se conhece da arguição dos alegados vícios.

Vimos, contudo, que a recorrente imputa o vício de nulidade à sentença porque “não se pronunciou sobre a violação do direito de defesa da aqui Recorrente na sua plenitude, omitindo da sua análise a decisão surpresa operada pela ANAC na fase administrativa do processo” (conclusão T).

Estabelece o art. 379.º, n. 1, al. c), do Código Processo Penal, aqui aplicável que
“1. É nula a sentença
a) (…)
b),
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

É pacífico que a imputada nulidade apenas ocorre quando o tribunal não se pronuncie sobre as questões que lhe cabe conhecer e não sobre os motivos, argumentos ou razões alegados para sustentarem as questões cuja apreciação submetem ao tribunal.

No caso, invocada a violação do direito de defesa da recorrente na fase administrativa, cabia ao tribunal, na sequência da impugnação judicial, e por ter sido expressamente suscitada, conhecer de tal questão.

Esta questão, respeitante à determinação da moldura da coima aplicável em abstrato, ou seja, da medida da punição, foi concretamente suscitada pela recorrente nos pontos 116 a 147 da sua impugnação judicial (a impugnação salta do n. 120 para o 145): nos pontos 120 e 146 refere, expressamente que tal conduta “configura um ato ilegal, violador dos direitos de defesa da Arguida” e que “(…) se pretendia atuar de modo contrário ao notificado, devia ter comunicado previamente tal decisão à Arguida, para que esta se pudesse defender da classificação que, afinal, lhe iria ser atribuída com “grande empresa”, perante a falta de elementos”.
As conclusões HH) a LL) repetem estas alegações, expressando que tal conduta “configura um ato ilegal, violador dos direitos de defesa da Arguida”.

Percorrida a sentença, verifica-se que aprecia a invocada violação do “direito de defesa da recorrente, previsto no artigo 32º, nº 10 da CRP” no julgamento dos pressupostos processuais, mas unicamente quanto aos factos, genericamente, respeitantes ao horário do cometimento da imputada infração.

Quanto à invocada violação do direito de defesa por indicação da moldura da coima para efeitos de apresentação da defesa, na fase administrativa, diferente da moldura da coima que veio a ser considerada na decisão final, a sentença é completamente omissa. Aa únicas referência ocorrem apenas no que respeita à fundamentação do facto 6:
“(…) para o facto provado em 6) o Tribunal atendeu ao que decorre das regras da experiência comum, tendo em conta que se trata da companhia aérea nacional da Bulgária.
E, ao apreciar a medida da coima, que:
“Conforme resulta do facto provado em 6) a recorrente encontra-se classificada como grande empresa, pelo que se encontra correcta a moldura da coima aplicável determinada pela entidade administrativa”.

Ora, a mera indicação do facto (em 6), a sua fundamentação e a determinação da coima aplicável nada relevam para a consideração da questão expressa e tempestivamente colocada à apreciação do tribunal pela recorrente.

Impunha-se que o tribunal a quo se pronunciasse expressa e inequivocamente sobre a invocada violação, na fase administrativa, do direito de defesa da recorrente por indicação, para efeitos de apresentação da defesa, de moldura da coima diferente daquela que foi efetivamente considerada na decisão final, mais gravosa.

Tal falta de pronúncia gera a invocada nulidade.

Assim, concluímos que ocorre a invocada nulidade, a qual não pode ser suprida por este tribunal ad quem.

Impõe-se, pelo exposto, declarar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à invocada violação do direito de defesa da recorrente no âmbito da fase administrativa.

Deverá, pois, ser proferida outra sentença que conheça desta invocada violação, com as consequências que de tal decisão advierem.

Atenta a verificação desta nulidade fica prejudicado o conhecimento das restantes questões.

Não são devidas custas atento o vencimento do recurso por parte da recorrente e a isenção legal dos recorridos.

IV. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em dar provimento ao recurso interposto pela BULGARIA AIR AD e declarar nula a sentença por omissão de pronúncia quanto à invocada violação do direito de defesa da recorrente no âmbito da fase administrativa.
Sem custas.

Lisboa, 02/05/2025
A.M. Luz Cordeiro
Alexandre Au-Yong Oliveira
José Paulo Abrantes Registo (com declaração de voto)

Declaração de voto
I - Discordo do entendimento que fez vencimento na parte em que não conheceu da questão da alegada preterição das garantias de defesa durante a fase administrativa do processo, invocada pela empresa recorrente, mediante a argumentação de que o vício é apontado à decisão administrativa e não à sentença.
II - Desde que observados os requisitos previstos pelas als. a) a e) do n.º 1 do art. 73.º do DL n.º 433/82, a lei permite recorrer para o tribunal da relação, sem quaisquer restrições, da “sentença” proferida pelo tribunal de primeira instância.
III - Salvo o devido respeito, a posição que fez vencimento estabelece uma restrição ao direito ao recurso que não colhe enquadramento nem na letra, nem no espírito da lei, ao sustentar que a sentença não é recorrível para o tribunal da relação desde que aprecie questões relativas à fase administrativa do processo contra-ordenacional, como é o caso, da alegada preterição das garantias de defesa.
IV - Das conclusões do recurso afigura-se incontornável que a recorrente pretende, efectivamente, impugnar a sentença, ou seja, que quis contestar a apreciação empreendida pelo tribunal a quo sobre a questão da “omissão de elementos essenciais na acusação para o exercício do direito de defesa”.
V - Segundo se deixou alegado no recurso, “errou assim o Tribunal a quo ao apreciar a violação do direito de defesa suscitada pela Recorrente, à luz dos artigos 32.º, n.º 10 da CRP e 50.º do RGCO, porquanto omitiu dessa análise a decisão surpresa”, o que significa que se impugnou a sentença (e não a decisão administrativa).
VI - Deste modo, de acordo com o disposto no art. 73.º, n.º 1, do DL n.º 433/82 (este dispositivo permite, sem quaisquer restrições, que o sujeito processual recorra para a relação da “sentença”), teria conhecido o recurso interposto pela empresa recorrente, na sua totalidade, muito em particular do segmento da sentença que se pronunciou sobre a questão jurídica acima mencionada.

José Paulo Abrantes Registo