Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3841/19.1T8SNT.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: PEDIDO DE APOIO JUDICIÁRIO POSTERIOR AO DESPACHO FINAL
OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO DE CUSTAS
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–O pedido de apoio judiciário formulado depois da prolação e notificação do despacho final que concedeu ao insolvente a exoneração do passivo restante, não pode fundamentar-se nem no artigo 18º da Lei nº 34/2004, nem no artigo 248º do CIRE e, pese embora tenha sido concedido pelo Instituto da Segurança Social (é certo que por decisão proferida depois do trânsito em julgado da decisão final proferida no incidente de exoneração do passivo restante), não lhe pode ser reconhecida a virtualidade de desobrigar o Recorrente do pagamento das custas que lhe foram imputadas por decisão transitada em julgado.

II–A inadmissibilidade do pedido de apoio judiciário formulado após o trânsito em julgado da decisão final do processo não viola os princípios constitucionais, uma vez que, nestas situações, a concessão do apoio judiciário não teria como objectivo garantir a tutela de um qualquer direito do devedor ou permitir o seu acesso à justiça, mas tão somente o de evitar o pagamento das custas em que foi condenado por efeito dessa decisão final.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,



1.P., devidamente identificado nos autos, requereu a sua declaração de insolvência e, simultaneamente, pedido de exoneração do passivo restante.

A insolvência foi declarada por decisão transitada em julgado, bem como foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Ordenado o encerramento do processo, por despacho proferido em 04/11/2022 (refª 14055253) foi o insolvente declarado “exonerado do remanescente das dívidas, com consequente extinção de todos os créditos sobre a insolvência à data em que é concedida, tenham ou não sido reclamados neste processo, exceptuando-se os créditos por alimentos; as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários e da Segurança Social”, despacho esse que ainda determinou que as custas em dívida ficavam a cargo do requerente, nos termos do disposto no artigo 248º do CIRE.

Notificado da conta das custas do processo e das respectivas guias de pagamento, veio o insolvente, por requerimento de 29/12/2022 (refª 44266185), requerer “a junção aos autos do comprovativo de pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem como a suspensão de pagamento até à decisão do mesmo, nos termos do artigo 18 da Lei 34/2004”. Subsidiariamente, no caso de o pedido de apoio judiciário ser indeferido pelo Instituto de Segurança Social, requereu que o pagamento das custas processuais fosse realizado em prestações, nos termos previstos pelo artigo 248º do CIRE e artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais. Com o requerimento juntou cópia de um e-mail, datado de 28/12/2022, dirigido a iss-apj-lisboa@seg-social.pt, com o seguinte teor: “Vimos pelo presente apresentar pedido de apoio judiciário para custas, em nome do N. Cliente P., no âmbito do processo judicial 3841/19.1T8SNT, que corre termos no Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 2.”, nele se referindo que se anexava formulário de APJ, cópia do cartão de cidadão, procuração forense, cópia de recibo de vencimento e sentença final de exoneração do passivo restante.
Seguidamente, por requerimento de 06/04/2023 (refª 45236910), o insolvente informou o tribunal que “até à presente data não obteve resposta do Instituto de Segurança Social, quanto ao pedido de apoio judiciário apresentado.”

Entretanto, em 17/04/2023 foi proferida decisão pelo Instituto de Segurança Social a deferir o pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos do processo, decisão essa junta aos autos em 02/05/2023.
Por fim, o requerimento de 06/04/2023 foi objecto de despacho datado de 08/06/2023 (refª 144733273), que se transcreve:
“Requerimento de 6.04.2023
O Devedor formalizou o respectivo pedido de apoio judiciário junto dos serviços da Segurança Social em momento posterior ao da decisão que o condenou em custas, razão pela qual tal pedido já não pode ter efeitos neste processo.
Com efeito, o pedido de apoio judiciário, a ser concedido, abrange apenas os atos praticados após a data do pedido e não os atos anteriormente praticados (neste sentido, e a título meramente exemplificativo, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 12/06/2019, processo n.º 38/16.6T8OLH.E1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 06/10/2016, processo n.º 2998/13.0TBVCT-A.G2, disponíveis em www.dgsi.pt).
Por tudo o exposto, o pedido de apoio judiciário que o devedor agora fez, não tem como objetivo garantir a tutela de um qualquer direito, nem tem em vista permitir o acesso dos mesmos à justiça, mas tão-somente o objectivo de o desonerar do pagamento das custas.
Por conseguinte, mantêm a responsabilidade pelo pagamento das custas em que foi condenado, podendo eventualmente requerer o seu pagamento em prestações.
Notifique.”

Não se conformando com este despacho veio o Requerente interpor o presente recurso, cujas conclusões se transcrevem:
A.-O Recorrente apresentou-se à Insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante no dia 04.03.2019, tendo a sentença sido proferia a 12.03.2019, e em 23.05.2019, proferido despacho de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente para o pagamento das custas do processo e demais dívidas da massa insolvente.
B.-Em 04.11.2022 foi concedida ao insolvente a exoneração do passivo restante, com incapacidade para pagamento da conta de custas pela massa insolvente, revertendo as mesmas para o Insolvente, e tendo a conta de custas, sido elaborada em 15.12.2022, no valor de € 3.537,80 (três mil, quinhentos e trinta e sete euros e oitenta cêntimos).
C.-Confrontado com a conta de custas elaborada e perante a incapacidade de pagamento da mesma, o Recorrente apresentou pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos do processo, o qual juntou aos autos, em 29.12.2022, e requereu a suspensão do pagamento da conta de custas até decisão do pedido de apoio judiciário apresentado.
D.-Em 17.04.2023, foi proferida decisão, pelo Instituto de Segurança Social, a deferir o pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos do processo, tendo sido a decisão junta aos autos pela ISS em 02.05.2023.
E.-Em 08.06.2023, foi proferido despacho de indeferimento do requerimento apresentado pelo Recorrente, com fundamento em que o pedido de apoio judiciário é posterior à decisão de condenação em custas, pelo que o mesmo não pode ter efeitos nos autos, estando assim, o Recorrente obrigado a proceder ao pagamento das custas processuais no valor de € 3.537,80.
F.-Nos termos conjugados dos artigos 304.º e 248.º do CIRE, as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente, mas em caso de insuficiência da massa para o pagamento das custas é o Insolvente responsável pelo pagamento das mesmas.
G.-Apenas com a prolação do despacho final de exoneração do passivo restante, foi apurada a incapacidade financeira da massa insolvente para a liquidação das custas, revertendo a responsabilidade de pagamento de custas pelo Insolvente, e com a notificação da conta de custas verificada a incapacidade financeira do Insolvente para liquidar o valor das custas processuais, pelo que apresentou pedido de apoio judiciário, o qual lhe foi concedido, e não impugnado.
H.-O pedido de apoio judiciário não foi feito em momento anterior, pois durante os anos em que decorria o processo, estava em vigor o n.º 4 do artigo 248.º do CIRE que previa a impossibilidade de acesso do Insolvente a apoio judiciário, norma essa que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021, de 15.06.2021, e revogada pela Lei 9/2022 de 11.01, por violação do artigo 20.º, n.º 1 da CRP, considerando o Tribunal Constitucional que a proibição de o devedor requerer a dispensa do pagamento da taxa de justiça, nos casos em que tenha pedido a exoneração do passivo restante “ofende os princípios da igualdade e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva”, acrescentando que tal comporta uma “denegação de acesso à justiça e tratamento discriminatório do requerente de exoneração de passivo restante que padeça de insuficiências de meios económicos para satisfazer a tributação e encargos processuais”.
I.-Ao não aceitar o Tribunal a quo a decisão de deferimento do apoio judiciário concedido ao Recorrente, como abrangendo a conta de custas do processo, desconsiderou o Tribunal a quo, que foi concedido apoio judiciário ao Recorrente por os serviços da Segurança Social terem considerado que houve ocorrência de encargo excecional superveniente.
J.-Mais, desconsiderou o Tribunal “a quo” os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 480/2020, 489/2020, 490/2020 e 418/2021, que declararam a inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE “na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica, por violação dos arts. 20º, nº1 e 13º, nº2, da Constituição”.
K.-O sentido normativo da decisão recorrida, ofende os princípios da igualdade e do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, com referência aos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição, por comportar denegação de acesso à justiça e tratamento discriminatório do requerente de exoneração de passivo restante que padeça de insuficiência de meios económicos para satisfazer a tributação e encargos processuais, face aos requerentes da declaração de insolvência que não formulem idêntico pedido.
L.-Exigir, perante o quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual – Recorrente, o pagamento do remanescente de custas e encargos que a massa insolvente e o período de três anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica (fresh start), a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.
M.-É assim válida a conclusão de que a decisão recorrida não garante o acesso à justiça, com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, por parte daqueles que careçam de meios económicos suficientes para suportar os encargos inerentes ao respetivo desenvolvimento processual, ofendendo a garantia de não denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, e comportando tratamento discriminatório ilegítimo fundado na situação económica do sujeito, violando os artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição e o direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.º, 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem Violadora flagrante dos Princípios da Justiça consagrada na Constituição da República Portuguesa e princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa!
N.-Neste sentido, tem-se pronunciado a generalidade da jurisprudência, admitindo que, verificando-se após a prolação do despacho final de exoneração do passivo restante, e imputação das custas do processo ao Insolvente, em substituição da massa insolvente, e verificando-se nesse momento a situação de incapacidade de pagamento das custas pelo Insolvente, seja admitido o pedido de apoio judiciário, considerando o mesmo tempestivo.

O.-Neste sentido, pronunciaram-se:
a.-Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão proferido em 07.09.2021;
b.-Tribunal da Relação do Porto nos Acórdãos proferidos em 08.03.2022, 11.09.2018, e 13.06.2018;
c.-Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão proferido em 17.5.2012;
d.-Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão proferido em de 28.11.2013.

P.-Dúvidas não restam, que obrigar o Insolvente a liquidar as custas processuais no processo de insolvência, sem que o mesmo tenha capacidade financeira para tal, é recolocar o insolvente na situação financeira que o processo de insolvência pretendeu terminar, indo em oposição clara ao Acórdão 418/2021 do Tribunal Constitucional, violando o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e desconsiderando o benefício de apoio judiciário concedido.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, que conclui do seguinte modo:
1º.-O apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a insuficiência económica for posterior e nesse caso, deve logo ser requerido, na primeira intervenção subsequente ao conhecimento da insuficiência económica. E mantém-se na fase de recurso e de execução subsequente.
2º.- O pedido de apoio judiciário formulado após ser notificado da conta de custas, não tem como objetivo garantir a tutela de um qualquer direito, nem tem em vista permitir o acesso do mesmo à justiça, mas tão-somente o objectivo de desonerar o devedor do pagamento das custas.
3º.-O que o devedor pretende agora é apenas uma “isenção de custas”, no momento processual de iniciar aquele pagamento, o que é contrário ao regime de apoio judiciário.
4º.-Não fere os princípios constitucionais a solução segundo a qual não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão.
5º.-O despacho judicial ora recorrido, apreciou correcta e devidamente a questão, e aplicou correctamente a Lei.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
De acordo com as conclusões formuladas, o Recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por, em suma, o tribunal lhe manter  a responsabilidade pelo pagamento das custas em que foi condenado, em resultado de ter formulado pedido de apoio judiciário após a decisão que o condenou no pagamento das custas, sustentando que tal decisão o recoloca na situação financeira que o processo de insolvência pretendeu terminar, opondo-se ao Acórdão nº 418/2021, do Tribunal Constitucional e violando o artigo 20º da Constituição, ao desconsiderar o benefício de apoio judiciário concedido.

3.Com relevância para a decisão, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

4.Cumpre, pois, analisar se, como sustenta o Recorrente, “a decisão recorrida não garante o acesso à justiça, com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, por parte daqueles que careçam de meios económicos suficientes para suportar os encargos inerentes ao respetivo desenvolvimento processual, ofendendo a garantia de não denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, e comportando tratamento discriminatório ilegítimo fundado na situação económica do sujeito, violando os artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição e o direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.º, 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem Violadora flagrante dos Princípios da Justiça consagrada na Constituição da República Portuguesa e princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa” (cfr. alínea M. das conclusões recursórias).

4.1.-Resulta do despacho recorrido que o tribunal a quo considerou que o pedido de apoio judiciário que o devedor formulou não tem por objectivo garantir a tutela de um qualquer direito, nem teve em vista permitir o acesso à justiça por parte daquele, mas tão-somente o objectivo de o desonerar do pagamento das custas. Por essa razão, decidiu manter a sua responsabilidade pelo pagamento das custas em que havia sido condenado.
Com efeito, decorre do artigo 248º, nº 1 do CIRE que o devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante goza do benefício do diferimento do pagamento das custas – nele se incluindo o pagamento da taxa de justiça – até que seja proferida a decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período de cessão sejam insuficientes para o respectivo pagamento integral. Ou seja, o insolvente singular não está isento nem dispensado da obrigação de pagamento das custas do processo de insolvência, pese embora seja a massa insolvente a responder em primeira linha pelas custas do processo ou, na ausência ou insuficiência desta, os rendimentos cedidos pelo devedor durante o período de cessão do rendimento disponível. Mas, na falta destes, mantem-se a responsabilidade do insolvente, caso em que a obrigação de pagamento das custas e encargos do processo se torna exigível com a decisão final do incidente do pedido de exoneração do passivo restante.[1]
Segundo o nº 4 do referido artigo 248º do CIRE, a concessão do benefício previsto no nº 1 afastava a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono. Por isso, quando o devedor beneficiasse do pagamento das custas nos termos do nº 1 do artigo 248º, havia fundadas dúvidas quanto à possibilidade de poder, simultaneamente, recorrer ao apoio judiciário, para além da nomeação e pagamento de honorários de patrono.[2] A ausência de consenso nesta questão acabou por ser resolvida pelo Tribunal Constitucional que, no Acórdão nº 418/2021, de 15/06/2021, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 4 do artigo 248º do CIRE, na parte em que impedisse a obtenção de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tivessem obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível fossem insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.

Actualmente, revogado que foi o nº 4 do artigo 248º pela Lei nº 09/2022, de 11 de Janeiro, aquelas dúvidas deixaram de subsistir: o benefício do nº 1 não afasta a concessão de outras formas de apoio judiciário.[3]

4.2.-Quando se suscitou a inconstitucionalidade do nº 4 do artigo 248º do CIRE, como se refere no Acórdão desta Relação de 28/11/2023 (proc. 28014/15.9T8SNT.L1-1), disponível em www.direitoemdia.pt, o que estava em causa era “o valor, relevância ou eficácia do apoio judiciário concedido pela Segurança Social ao insolvente requerente da exoneração do passivo restante; ou seja, se o apoio judiciário previsto pelo art. 248º do CIRE se sobrepunha ou prevalecia sobre o apoio judiciário anteriormente concedido ao insolvente ao abrigo da Lei nº 34/2004, em termos de o afastar ou de o fazer “caducar”, e aferir da constitucionalidade de tal regime. Não estava em causa a questão da oportunidade da apresentação do pedido de apoio judiciário junto da Segurança Social pelo insolvente beneficiário da exoneração do passivo restante, como é inequivocamente demonstrado pelo facto de o art. 18º do Decreto Lei nº 34/2004, de 29.07 sequer surgir ali invocado ou referido”. Por isso, também no caso dos autos, o juízo de inconstitucionalidade declarado pelo Acórdão do TC nº 418/2021 não tem aplicação.
Tal como na situação tratada no citado aresto, também no presente recurso o que está em causa é a “eficácia dessa concessão [de apoio judiciário] sobre a obrigação de pagamento das custas contadas a cargo do recorrente, por referência ao momento processual em que a requereu”.
Na verdade, é preciso ter em conta o disposto no artigo 18º, nº 2 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, onde se determina que o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica.
Ora, o que se verifica no caso dos autos foi que o “devedor formalizou o respectivo pedido de apoio judiciário juntos dos serviços da Segurança Social em momento posterior ao da decisão que o condenou em custas” (cfr. despacho recorrido).

Com efeito, resulta dos autos que:
- o Recorrente apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante no dia 04/03/2019, tendo a sentença sido proferida a 12/03/2019;
- em 23/05/2019, foi proferido despacho de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente para o pagamento das custas do processo e demais dívidas da massa insolvente;
- em 04/11/2022 foi concedida ao insolvente a exoneração do passivo restante, com incapacidade para pagamento da conta de custas pela massa insolvente, revertendo as mesmas para o insolvente;
- a conta de custas, no valor de € 3.537,80 (três mil, quinhentos e trinta e sete euros e oitenta cêntimos), foi elaborada em 15/12/2022;
- notificado da conta, o Recorrente apresentou pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos do processo, o qual juntou aos autos, em 29/12/2022, e requereu a suspensão do pagamento da conta de custas até decisão do pedido de apoio judiciário apresentado;
- em 17/04/2023, foi proferida decisão, pelo Instituto de Segurança Social, a deferir o pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos do processo, decisão que foi junta aos autos pelo ISS em 02/05/2023.
Confirma-se, assim, que o apoio judiciário requerido pelo devedor foi concedido pela Segurança Social já depois da prolação e notificação do despacho final que lhe concedeu a exoneração do passivo restante. Daí que não se possa sustentar que, neste caso, a concessão do apoio judiciário teria como objectivo garantir a tutela de um qualquer direito do devedor ou permitir o seu acesso à justiça. A insolvência estava finda, tal como o incidente de exoneração do passivo restante, estando portanto extintos todos os créditos reclamados contra o devedor, do que resultava garantido o recomeço que a exoneração permite. Por isso, está certo o MP quando refere nas suas contra-alegações que “o que o devedor pretende agora é apenas uma “isenção de custas”, no momento processual de iniciar aquele pagamento, o que é contrário ao regime do apoio judiciário.

Na verdade, como conclui a Relação do Porto, no Acórdão de 12/01/2021 (proc. 5135/14.0TBVNG.P1), disponível em www.direitoemdia.pt, “o apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais; o instituto foi criado para que esses cidadãos possam aceder ao sistema judicial independentemente dessas carências económicas; não estando em causa o exercício de qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, tratando-se apenas, prosaicamente, de evitar pagar as custas já determinadas no âmbito de um processo findo o acionamento desse mecanismo não pode ser validamente desencadeado”. [4]

Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não está em causa “o acesso à justiça, com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, por parte daqueles que careçam de meios económicos suficientes para suportar os encargos inerentes ao respetivo desenvolvimento processual” (cfr. alínea M. das conclusões). Como decidido pela Relação de Évora, em situação semelhante à dos autos, no Acórdão de 30/03/2023 (proc. 988/18.5T8OLH.E1) se “apenas requereu o benefício de apoio judiciário após ter-se verificado o desfecho do processo, então não está já em causa o acesso ao direito; pretende só eximir-se do pagamento das custas, o que não encontra acolhimento do instituto do apoio judiciário”.[5]
Desta feita, como já antes havia decido esta Relação, o pedido de apoio judiciário formulado pelo ora Recorrente não pode fundamentar-se nem no artigo 18º da Lei nº 34/2004, nem no artigo 248º do CIRE e, pese embora tenha sido concedido pelo Instituto da Segurança Social (é certo que por decisão proferida depois do trânsito em julgado da decisão final proferida no incidente de exoneração do passivo restante), “não lhe pode ser reconhecida  a virtualidade  de desobrigar o Recorrente do pagamento das custas que lhe foram imputadas por decisão transitada em julgado”.[6]
Assim, conclui-se pelo acerto da decisão recorrida, que se mantém.

5.Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo Recorrente (cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido (em data anterior à da interposição do recurso).



Lisboa, 16/01/2024



Nuno Teixeira - (Relator)
Pedro Henrique Brighton - (1º Adjunto)
Manuel Ribeiro Marques - (2º Adjunto)



[1]Cfr. neste sentido TRL, Ac. de 28/09/2021 (proc. 104/14.2T8BRR.L1-1), no qual o ora relator interveio como adjunto, e que se encontra disponível em www.direitoemdia.pt.
[2]Cfr., o TRP, Ac. 06/02/2018 (proc. 749/16.6T8OAZ.P2), publicado em www.direitoemdia.pt, em cujo sumário se consignou que “o devedor, com a apresentação do pedido de exoneração do passivo restante, beneficia do diferimento do pagamento das custas do processo. Por outro lado, com a apresentação do mesmo pedido, fica impedido de apresentar incidente de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.[…] Estando o devedor, nesta situação específica, impedido de apresentar incidente de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, ter-se-á que lhe conceder essa possibilidade no momento em que essa impossibilidade desaparece. Ou seja, no momento de indeferimento liminar do incidente ou no momento da revogação da exoneração.” O mesmo Tribunal, no Ac. de 16/06/2018 (proc. 1525/12.0TBPRD.P1), igualmente disponível em www.direitoemdia.pt, decidiu que, apesar de o regime do artigo 248º do CIRE afastar a aplicação da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, até à decisão final de exoneração do passivo restante, não obstava  a que o devedor pudesse beneficiar do regime geral do apoio judiciário depois daquela decisão final, sob pena de grave atropelo ao princípio constitucional da igualdade no acesso ao direito e aos tribunais.
[3]Cfr. MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, “A exoneração do passivo restante e a Lei n.º 9/2022 – alterações de regime, problemas resolvidos, problemas criados e problemas ignorados”, Revista de Direito Comercial, www.revistadedireitocomercial.com de 15/07/2022, pp. 1389-139.
[4]SALVADOR DA COSTA, Apoio Judiciário, 9ª Edição, Almedina, Coimbra, 2013, pág, 122 é do entendimento de que deve ser indeferido o pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo apresentado nos serviços de segurança social depois do trânsito em julgado da decisão final. Também o Tribunal Constitucional  tem sublinhado que o apoio judiciário “não pode ser visto como meio destinado a obter, após o julgamento da causa e a condenação em custas, a dispensa do pagamento dos encargos judiciais a que a participação no processo deu causa (por todos, o Acórdão nº 112/2001)” - cfr. Decisão Sumária nº 460/2018 in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20180460.html.
[5]Publicado em www.direitoemdia.pt.
[6]Cfr. o já citado Acórdão do TRL de 28/11/2023 (proc. 28014/15.9T8SNT.L1-1), disponível em www.direitoemdia.pt.