Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1490/21.3T9LRS.L1-5
Relator: ANA CRISTINA CARDOSO
Descritores: INSTRUÇÃO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
BURLA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/07/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - A instrução consubstancia uma fase de controlo da fase anterior do processo (o inquérito), onde foi proferida a decisão de acusar ou de arquivar, com o objetivo de apurar se tal decisão deve ser mantida ou não, se se comprova ou não.
II - No despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz não julga a causa: apenas verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação ou do requerimento de abertura da instrução. A lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança.
III - Para que se considere a prática de um crime de burla, há que ponderar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano outrem e, num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como efeito daquela conduta.
IV – Pratica o crime de burla o arguido que constitui uma sociedade unipessoal, em outubro de 2020, com um capital social que nunca realizou; constituída a sociedade, abre uma conta bancária em nome dessa sociedade, criando, naturalmente, na entidade bancária a ideia de que vai estabelecer relações comerciais pela empresa que passariam por aquela (a entidade bancária); consegue, assim, que sejam emitidos e disponibilizados 448 cheques que preenche – todos – com o valor de € 150,00, levando a que a assistente pagasse cada um deles por imperativo legal; em dezembro de 2020, obtido o pagamento dos cheques, procede ao encerramento da sociedade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
1. No Juízo de Instrução Criminal de Loures, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi proferida decisão instrutória, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, decide-se não pronunciar AA pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º do Código Penal.
Notifique, nos termos consignados na acta da diligencia instrutória com a ref.ª 161527636.
Oportunamente arquive os autos».
2. Inconformada, recorreu a assistente BB requerendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie o Arguido pela prática do crime de burla qualificada, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), 202.º, alínea b), 13.º e 14.º, todos do CP, na forma consumada (quanto aos 448 cheques) e na forma tentada (quanto aos 150 cheques que o Arguido tentou requisitar, sem sucesso – artigos 22.º, 23.º, 217.º, n.º 2, do CP), determinando a sua submissão a julgamento
Rematou a sua motivação com as seguintes conclusões:
1. «Vem o presente recurso interposto da douta decisão instrutória proferida nos autos em 11-07-2024, nos termos da qual, entendendo que não se mostram reunidos os elementos necessários para o preenchimento dos elementos típicos do crime de burla, se decidiu “não pronunciar AA pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º do Código Penal” determinando-se o arquivamento dos autos, decisão com a qual a Assistente não se conforma.
2. Da tese plasmada no douto despacho de não pronúncia decorre que uma instituição bancária apenas poderia, razoável e aceitavelmente, entregar cheques a um seu cliente quando o mesmo tivesse depositado, na conta de depósitos à ordem sobre a qual seriam sacados tais cheques, no momento da sua requisição e entrega, o valor suficiente para fazer pagar integralmente, pelo menos, o valor de 150,00€ multiplicado pelo número de cheques emitidos e entregues, tese onde não se encontra qualquer razoabilidade ou fundamento legal e que inevitavelmente ditaria o fim do cheque.
3. Ao titular da conta bancária cabe a responsabilidade e obrigação de emitir e sacar cada cheque assegurando a sua provisão. A provisão de cada um, em cada momento.
4. O elenco de factos objeto da denúncia, imputados ao Arguido e indiciariamente demonstrados em sede de instrução, incluindo que “a sociedade Denunciada foi constituída pelo Arguido com a finalidade de obter, pelo menos, o benefício económico resultante do esquema atrás relatado” e que, “logo após a apresentação a pagamento dos 448 cheques de 150,00€ cada, o Arguido dissolveu e liquidou a sociedade Denunciada, para que a recuperação e cobrança dos valores em dívida na conta bancária titulada por esta junto da Assistente não fossem possíveis, o que logrou” evidencia a premeditação e intuito lesivo da atuação do arguido.
5. Bem sabia o Arguido que, com todo o encadeamento de atos que premeditou e executou, obteria um benefício ilegítimo, que pretendeu obter sob as vestes de uma atuação lícita e regular – o que a Assistente não vislumbrou –, e causaria à Assistente um prejuízo patrimonial consideravelmente elevado – como causou –, tendo perfeito conhecimento de que o seu comportamento era proibido por lei.
6. Foram observadas todas as “condições práticas da requisição e subsequente concessão dos cheques em apreço”, não incidindo sobre a sociedade Denunciada ou sobre o Arguido qualquer inibição ou impedimento legal que a tal obstasse. A conta bancária revelava uma movimentação positiva, e nada levaria ao seu bloqueio e só depois de se encontrar na posse de todos os 450 cheques o Arguido os fez apresentar, em catadupa, a pagamento.
7. Nada autorizaria o Arguido a emitir 448 cheques com valor que sobejamente conhecia não ter provisionado na conta sacada, e que, por outro lado, sabia – e não podia desconhecer, atento o número de cheques emitidos pelo mesmo exato valor e depositados num curtíssimo período – que a entidade bancária estaria, por força de disposição legal expressa e imperativa, obrigada a pagar.
8. Todo o encadeamento de atos, com início na própria constituição da sociedade, foi ardilosamente pensado, premeditado e executado para a obtenção de um benefício indevido junto da instituição de crédito Assistente, a que o Arguido não tinha direito e com o qual desde o início premeditou locupletar-se e cuja cobrança, com a dissolução da sociedade Denunciada, pretendeu e logrou impedir.
9. O Arguido enganou a Assistente sobre o objetivo da constituição da sociedade, aparentemente regular, da abertura, em nome desta, da conta de depósitos a ordem, da requisição de cheques que permitiriam sacar valores da conta de depósitos à ordem e efetuar pagamentos, em termos que seriam absolutamente normais e correntes no âmbito do objeto de atividade da sociedade em questão (construção civil).
10. Surpreendendo a boa-fé da Assistente, fez um uso abusivo e ilícito de tais cheques, obteve um enriquecimento ilegítimo, próprio ou alheio, e de imediato encerrou a sociedade, impedindo a recuperação dos valores.
11. A Assistente, induzida em erro, é titular do património diretamente lesado pela conduta consciente e premeditada do Arguido, que, com propósito de embuste, lhe causou prejuízo patrimonial consideravelmente elevado, no montante correspondente à soma do valor titulado nos 448 cheques.
12. Independentemente das entidades finais a favor de quem foram creditados os cheques emitidos pelo Arguido, este beneficiou do respetivo valor, ou agiu em conluio com esses terceiros para obterem esses benefícios ilegítimos e indevidos, para o Arguido ou para terceiros.
13. O Arguido, atuando de forma livre, voluntária, consciente e premeditada, obteve um enriquecimento ilegítimo muito elevado à custa da confiança e da boa-fé da Assistente e de uma aparência de legalidade, logrando obter vantagens a que sabia não ter direito e defraudando expectativas.
14. A atuação do Arguido consistiu num embuste, num ardil, artimanha ou estratagema para sacar da Assistente valores que não lhe pertenciam, numa atuação e intenção que a Assistente não percecionou, pelo que não pode ser tolerada nem aceite, sendo, manifestamente, integradora de ilícito criminal.
15. A “astúcia”, enquadrando o crime de burla, traduz-se na habilidade para enganar ou para aproveitar as circunstâncias preexistentes, para defraudar. A simples mentira releva na medida em que o agente enganador tenha o domínio do erro e este erro seja penalmente relevante, o que acontecerá se ofender os princípios da boa-fé que deve presidir às relações humanas e aos parâmetros morais e ético sociais vigentes, se se traduzir numa deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico.
16. …“em cada crime de burla, para além da ratio subjacente ao património, existe uma clara violação da confiança e da boa-fé de alguém, que na relação com o agente atuou de forma leal e transparente julgando estar a atuar de forma correta de acordo com o cenário fáctico que lhe foi induzido;
17.
I – Não exclui, sem mais, a existência de «engano astuciosamente provocado» exigido tipicamente pelo art. 217º do C. Penal a circunstância de alguém actuar «dentro de estrita legalidade» e de o fazer «sem subterfúgios e abertamente»
II – Se o agente preencheu 6 cheques de uma sua conta não provisionada pelo valor de 149,00 €, ou seja, pouco abaixo do limite dentro do qual a instituição de crédito é obrigada a pagá-lo ainda que haja insuficiente provisão nessa conta sacada (art. 8º do Dec. Lei nº 454/91, de 28/12, na redacção dada pela Lei nº 48/2005, de 29/8) e os deposita numa sua conta aberta em outra entidade bancária contando com a obrigação legal de pagamento para indevidamente aumentar o respectivo património em 894,00 €, usou deliberadamente esse mecanismo legal e a coincidência procurada entre sacador e beneficiário – não assente em qualquer pagamento fraccionado – para enganar a instituição em que apresentou os cheques a pagamento com o fim de ilegitimamente obter tal quantia a que sabia não ter direito provocando prejuízo à entidade bancária sacada.
(…)
Que no caso em presença preexistirá a toda esta actuação um propósito de obtenção de enriquecimento é facto que para o qual não temos grandes dúvidas.
(…)
Mais, diversamente do sustentado no despacho recorrido, entendemos também que se tratou de uma actuação astuciosa.
(…)
A circunstância de todos os cheques ostentarem como valor sacado € 149,00 não pode a esse título deixar de ser considerado significativo.
(…)
o argumento principal esgrimido nos autos que associa o seu comportamento a um mero (e normal) exercício de um direito não poderá, quanto a nós, ser atendido.
(…)
onde encontrar no entanto tal astúcia?
No pretenso funcionamento procurado do referido mecanismo legal.
Se o arguido pretendesse levantar de uma só vez aqueles € 894,00 sabia que com grande probabilidade o controle bancário colocado ao seu levantamento não o iria permitir.
Subdividindo-o e parcializando-o em montantes inferiores a € 150,00 e apresentando os respectivos cheques a pagamento num outro banco, tinha a reforçada expectativa em como seriam realmente creditados, abrindo caminho à sua futura utilização.
Desta maneira enganou a Caixa …, que assim procedeu.
[Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/05/2010 (Processo 5331/07.6TDLSB.L1-5, Relator Luís Gominho – in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (mj.pt))]
18. Da mesma exata forma deveria ter sido interpretada – na decisão recorrida – a disposição legal que tipifica o crime de burla e nela enquadrada a atuação do Arguido, que preencheu, emitiu e apresentou ou fez apresentar a pagamento centenas de cheques no valor de 150 € cada um – “com a consciência de que, ante o seu valor, seriam pagos por imperativo legal, e que a sua emissão não integra”, de per si, “ilícito criminal (cf. crime de emissão de cheque sem provisão), dado o valor de cada cheque” –,no mesmo dia, à ordem das mesmas entidades (incluindo cerca de uma centena e meia de cheques à ordem do próprio Arguido), somando um valor global objetivamente muito elevado, com a consciência de que o Arguido não teria provisionado, sequer, o valor suficiente para pagar um só desses cheques.
19. Pelo exposto, os factos objetivos e subjetivos apurados e descritos apresentam-se, manifestamente, como integradores de ilícito criminal, nomeadamente do crime de burla qualificada, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), 202.º, alínea b), 13.º e 14.º, todos do CP, na forma consumada (quanto aos 448 cheques) e na forma tentada (quanto aos 150 cheques que o Arguido tentou requisitar, sem sucesso – artigos 22.º, 23.º, 217.º, n.º 2, do CP), sendo este o sentido em que, no entendimento da Assistente, tais normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas ao caso dos autos, na decisão final da instrução.
20. Deles resulta, em conformidade com o previsto, designadamente, no artigo 283.º, n.º 2, do CPP, a possibilidade razoável de vir a ser aplicada ao Arguido, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, pelo que a Assistente entende como inevitável, pretende e requer que a decisão de não pronúncia seja revertida nesta sede de recurso, sendo a mesma revogada e em sua substituição proferido douto acórdão que pronuncie o Arguido AA, nascido aos .../.../1975, filho de CC e DD, titular do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até .../.../2030, NIF ..., residente na ..., concelho de ..., pela prática do apontado ilícito criminal, na forma consumada e tentada, determinando a sua submissão a julgamento.
21. A decisão recorrida mostra-se violadora e, nos termos expostos, contém uma errada interpretação – entre outras que V. Ex.as doutamente suprirão – das seguintes disposições legais: 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alínea a), 202.º, alínea b), 13.º, 14.º, 22.º, 23.º, 217.º, n.º 2, todos do Código Penal».
3. O recurso foi admitido, com subida, imediata, nos autos, e com efeito devolutivo.
4. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, concluindo que «a decisão recorrida ponderou devidamente a matéria submetida a apreciação e, em consequência, deverá manter-se a decisão de não pronúncia do arguido».
5. Respondeu igualmente ao recurso o arguido AA, apresentando as seguintes conclusões:
« 1º. A douta decisão instrutória recorrida cumpriu o dever de fundamentação legalmente exigido, realizando um adequado enquadramento jurídico e correta interpretação das disposições legais (art.ºs 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal);
2º. Não merece, por isso, qualquer censura, devendo ser integralmente confirmada».
6. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
7. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, o arguido secundou o parecer do Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso.
Pela recorrente foi apresentada resposta ao parecer, reiterando a procedência do recurso.
8. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a questão a decidir é saber se deve ser pronunciado o arguido pela prática do crime de burla qualificada que a assistente lhe havia imputado no pedido de abertura da instrução.
DA DECISÃO INSTRUTÓRIA RECORRIDA
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«DECISÃO INSTRUTORIA
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I- RELATÓRIO
O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento (ref.ª citius 158374514), por ter considerado que não existiam indícios suficientes da prática, pelos denunciados, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal.
O BB, assistente, não se conformando com o arquivamento, requereu a abertura da instrução e pediu a prolação de despacho de pronúncia de AA e ..., pela prática daquele ilícito, nos termos e com os fundamentos que constam do requerimento com a ref.ª 14456871.
Em síntese, reproduziu os factos relatados na participação criminal apresentada, entendendo que o arguido predeterminou a sua actuação, criando a sociedade unipessoal, aderindo ao serviço homebanking e requisitando, através deste serviço, os módulos de cheques que lhe foram entregues, titulados pela sociedade, com o propósito os emitir a seu favor ou de sociedades que representa, para assim beneficiar do respectivo valor, sabendo não dispor de fundos na conta bancária respectiva e bem assim que a instituição bancária iria proceder ao seu pagamento, por imperativo legal, face ao valor de cada cheque.
Por despacho de 05.12.2024 (ref.ª ) foi declarado extinto o procedimento criminal instaurado contra a sociedade ... por extinção da pessoa colectiva e determinado o arquivamento dos autos quanto a esta denunciada, e declarada aberta a instrução relativamente ao arguido AA, por referencia aos factos descritos no RAI e ao ilícito imputado pela assistente.
Em sede de instrução foram inquiridos EE e FF, funcionários da assistente, intervenientes e/ou conhecedores dos factos, seguindo-se debate instrutório com observância do legal formalismo.
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- SANEAMENTO
O tribunal é competente.
Não excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
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– INDÍCIOS E QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Segundo o disposto no art.º 308º, n.º 1 do C.P.P. “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Indícios suficientes são os elementos de facto trazidos pelos meios probatórios ao processo que, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos que lhe são imputados.
Já em 2003 o TRC propugnava que “O processo está ao serviço, como direito adjectivo, da aplicação do direito, que, por sua vez, só tem significado por se dirigir à realidade factual, isto é, a norma jurídica corresponde a uma hipótese de facto, tornada geral e abstracta, para a qual se indicia uma panaceia, um tratamento jurídico. A decisão judicial é a meta do processo e, essa decisão haverá que reflectir, com certeza e segurança, a verificação de uma realidade factual (um fenómeno social concreto) à qual o direito concede tutela e, daí, o tratamento que o direito dá a essa realidade (já transformada em fenómeno jurídico). A certeza é um acto intelectual pelo qual se reconhece sem reserva a verdade de uma realidade factual objectiva. Para a busca da certeza o processo penal propõe dois métodos, (no sentido de caminho para o conhecimento da verdade dos factos): um primeiro juízo de probabilidade seguido de um juízo de comprovação. O juízo de probabilidade é aquele que já propunha o direito romano: provável era aquilo que, segundo as aparências, pode ser declarado como verdadeiro ou certo. Esta visão de probabilidade tem de ser gradualista, ter vários graus, consoante a sua maior ou menor proximidade da certeza, conforme se vai estabelecendo a comprovação das aparências. O art.º 308º aponta para um juízo de probabilidade – de no futuro se verificar os pressupostos para a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – teremos que os indícios são as aparências, tidas estas, numa concepção indutiva confirmativa, como um conjunto de dados de facto cuja comprovação se afigura como seguramente verificável” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/5/2003, disponível in www.dgsi.pt ).
Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2/2/2021, proferido no processo n.º 524/17.0PILRS.L1-5, in www.dgsi.pt. “Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento do arguido”.
Nessa aferição o tribunal aprecia a prova (indiciária, obviamente) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.
Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” (in Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pág. 189).
Assim, os indícios qualificam-se de “suficientes” quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função deles, for maior do que a absolvição.
No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo “indícios suficientes” de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a este conceito não pode alhear-se do mencionado princípio.
No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “a interpretação normativa dos artigos citados (286º nº 1, 298º e 308º nº 1, do CPP) que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art.º 32º nº 2, da Constituição” – e no mesmo sentido da aplicação deste princípio em qualquer fase do processo, nomeadamente no inquérito e na instrução, se perfilam, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 04/01/2006, Proc. nº 0513975 e de 22/10/2008, Proc. nº 0814910, bem como os da Relação de Lisboa de 02/05/2006, Proc. nº 849/2006-5 e 16/11/2010, Proc. nº 3555/09.TDLSB.L1-5, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
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IV - Enquadramento jurídico – da atipicidade da conduta objectiva descrita no RAI:
Nos termos do disposto no art.º 217º, nº 1 do Código Penal comete o crime de burla "quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial ".
Temos assim como elementos do tipo objectivo do crime de burla na tipologia apresentada pelo Professor Figueiredo Dias:
• O património, entendido na esteira de Cramer como a totalidade dos "bens" (numa acepção ampla) economicamente valiosos que um indivíduo detém com a aquiescência do ordenamento jurídico e que consubstancia o bem jurídico protegido com a incriminação da burla;
• O processo de execução vinculada, por força do qual o atentado ao património do ofendido é realizado através de um artifício fraudulento tendente a induzir a vítima em erro. Por isso, no crime de burla a acção relevante deverá ser levada a efeito por actuação do sujeito passivo do crime, ou seja, a pessoa burlada;
• A verificação de um prejuízo patrimonial consubstanciado numa diminuição de valor no património do lesado, que tenha por causa adequada a actuação do agente.
Assim, para que se verifique a prática de um crime de burla há a considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza ou mantenha em erro ou engano o lesado e, num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo à custa de um prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro.
Por outro lado, deverá existir uma relação de causa-efeito entre os meios empregues e o erro ou o engano e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património do terceiro ou do lesado.
Relativamente ao tipo subjectivo, numa interpretação conjugada dos artigos 217º, nº 1 e 13º do Código Penal, a burla integra um crime doloso, não tendo lugar o seu sancionamento na forma negligente. Enquanto pressuposto do delito, tal dolo pode assumir as modalidades de dolo directo, necessário ou eventual (art.º 14º do mesmo código).
Para além do que, para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo exige-se ainda que o agente tenha a intenção de conseguir através da sua conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. A burla consubstancia, portanto, um delito de intenção.
Assim, o agente deverá actuar com conhecimento e vontade de realização da globalidade dos elementos do tipo objectivo e ainda com a específica intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
No que diz respeito aos elementos objectivos típicos do crime, importa determo-nos sobre o significado de “erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou”.
A jurisprudência é vasta e consensual sobre o que pretende o legislador com esta exigência típica objectiva:
O TRE entende que “(…)o agente atuou astuciosamente, com manha, com malícia, para efeitos do preenchimento típico do crime de burla previsto no art. 217º nº1 do C. Penal, sempre que a situação concreta em que o agente envolve o sujeito passivo encerra erro ou engano juridicamente relevante provocado por ele de forma adequada a levar este último - enquanto sujeito concreto no contexto em que se situa -, à disposição patrimonial pretendida”. (Acórdão TRE, de 07.06.2016 (https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/D15B865A453529E080257FEE00394B29 )
Também o STJ, já em 1998 entendia que “Enquanto elemento objectivo do tipo legal do crime de burla, a conduta astuciosa não é qualquer conduta que seja idónea para viciar a vontade na sua formação, causa de erro no dolo civil. O engano (acto de enganar), na burla, não é apenas "engano bastante", como no C.Penal Espanhol", mas engano de forma particular, limitando a punibilidade a certas modalidades mais graves do dolo civil ou seja àquelas que correspondam a meios enganatórios susceptíveis de integrarem o conceito de "astúcia". A astúcia significa manha ou ardil que, para ser relevante para o efeito considerado, não se limita à mentira nem se confina à atitude psicológica (astuciosa) do agente uma vez que é, ainda, imprescindível que uma outra e outra se consubstanciem numa manobra exterior fraudulenta ou "mise-en scène" capaz de induzir a vítima em erro. (Acórdão STJ de 01.04.1998 in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/61A558F3C70B252B802568FC003BB2CF ).
Mais recentemente o TRL consignou que “(…) os elementos objectivos do tipo de ilícito em causa, ou seja do crime de burla, são integrados pela existência de um prejuízo patrimonial, de um erro ou engano que determinem outrem à prática de actos causadores do referido prejuízo para si ou para terceiros e que esse erro ou engano tenha sido alicerçado em práticas ou factos astuciosamente provocados” (Acórdão TRL, de 29.04.2021
(http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ab141713e51c548a80258711002e7b82?OpenDocument )
Por fim, especificamente conexo com o caso dos autos, entendeu o TRL em 2017 que “Para que ocorra o crime de burla nos contratos civis, o propósito, do arguido, de enganar, precede ou é contemporâneo da sua celebração. O princípio da subsidiariedade do direito penal tem como reverso um princípio de autorresponsabilização dos titulares concretos dos bens jurídicos, que pode levar à ausência de tutela jurídico-penal. Se a vítima não aproveitou as oportunidades de auto-tutela que lhe foram oferecidas e que lhe era exigível que o fizesse, colocou-se fora do âmbito de tutela da norma incriminadora”. (Acórdão TRL de 26.04.2017, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/0845cc7bf1e908988025812200455ffb?OpenDocument ).
Vejamos agora as acções imputadas pela assistente ao arguido:
1. “A Denunciada ...," foi constituída em ...2...-10, tendo como sócio único e gerente o denunciado AA, titular da quota única de 35.000,00€, e sede social no domicílio deste.
2. Em ...2...-10 a sociedade Denunciada, representada pelo Denunciado AA, seu sócio-gerente único, celebrou com a Assistente um contrato de abertura de conta de depósito à ordem (“Conta Empresas”) processada no ... (042), a que foi atribuído o n.º ...
3. Na mesma data de ...2...-10, foi processada em Sistema de Informação ...), sobre a identificada conta à ordem, a adesão ao sistema de canais de distribuição à distância, Multicanal, ficando registado como utilizador o denunciado AA, na qualidade de representante único da sociedade.
4. Em ...2...-10 às 07:39:09.533, foi requisitado via homebanking – Net 24 Empresas – com as credenciais de acesso do denunciado AA, no IP origem ..., um livro de 150 cheques normais, com data de validade e cláusula não à ordem, sobre a conta de depósitos à ordem com o nº ...1
5. À data de ...2...-10, a conta n.º ...apresentava o saldo de € 1.206,50, ficando com o saldo de € 1.045,60 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo.
6. Em ...2...-11 às 14:00:38.767, foi requisitado via homebanking – Net 24 Empresas – com as credenciais de acesso do denunciado AA, no IP origem ..., um livro de 150 cheques normais, sem data de validade e cláusula não à ordem, sobre a conta de depósitos à ordem com o n.º ...
7. À data de ...2...-11, a conta n.º ...apresentava o saldo de € 1.045,60, ficando com o saldo de € 884,70 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo.
8. Em ...2...-11 às 09:46:04.567, foi requisitado via homebanking – Net 24 Empresas – com as credenciais de acesso do denunciado AA, no IP origem ..., um livro de 150 cheques normais, com cláusula não à ordem e sem data de validade, sobre a conta de depósitos à ordem com o n.º ...
9. À data de ...2...-11, a conta n.º ...apresentava o saldo de € 1.284,70, ficando com o saldo de € 1.123,80 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo.
10. Em ...2...-11, no mesmo canal de homebanking - Net 24 Empresas, verificou-se ainda a tentativa da requisição adicional de 150 cheques, sobre a mesma conta n.º 042.10.038856-2, rejeitada por motivo de ultrapassagem do número máximo de cheques ativos, pois que 500 cheques ativos eram, por defeito, o limite reconhecido pelo sistema informático como suscetível de ser atribuído por cada conta nova titulada por empresas, cujos intervenientes não registassem incidentes com cheques.
11. O segundo e o terceiro módulos de cheques, referidos em 6. e 8., foram requisitados no dia do levantamento do módulo anteriormente requisitado.
12. Os três módulos de 150 cheques cada foram levantados pessoalmente pelo Denunciado AA, em balcões diferentes da Assistente, conforme solicitou nos respetivos atos de requisição, em nenhum dos casos correspondentes ao balcão titular da conta n.º ...:
– O Módulo ... foi entregue em ...-...-2020 às 9:15 no balcão 121
– (...)
– O Módulo ... foi entregue em ...-...-2020 às 8:58 no balcão 071
– (...)
– O Módulo ... foi entregue em ...-...-2020 às 8:42 no balcão 283
– (...)
13. Em ...-...-2020 os Denunciados detinham em seu poder 450 cheques ativos para utilização.
14. Nos atos de entrega dos módulos de cheques, o Denunciado AA apôs assinatura em Certificado de Operações sob a afirmação "Assumo(imos) inteira responsabilidade pelas consequências do extravio, subtração ou uso ilícito dos cheques”.
15. Desde a data da abertura da conta n.º 042.10.038856-2, foram registados na mesma os seguintes movimentos a crédito:
– ...2...-10 ENTREGA NUMERÁRIO 300,00€
– ...2...-10 ENTREGA NUMERÁRIO (“...”) 230,00€
– ...2...-10 ... (“...”) 676,50€
– ...2...-11 TR-IPS-AA (“...”) 400,00€
16. Após ...2...-11 e até ao presente não foi realizado nenhum outro movimento a crédito na conta de depósitos à ordem n.º ...17. Desde a data da abertura da conta n.º ...até ...2...-11, foram registados na mesma os seguintes movimentos a débito:
– ...2...-10 REQ. CHEQUES -147,50€
– ...2...-10 DEB.-I.S. S/CHQ -13,40€
– ...2...-11 REQ. CHEQUES -147,50€
– ...2...-11 DEB.-I.S. S/CHQ -13,40€
– ...2...-11 REQ. CHEQUES -147,50€
– ...2...-11 DEB.-I.S. S/CHQ -13,40€
– ...2...-11 TRF.IPS P/ F (“...”) -700,00€
– 2020-11-20 LEV.ATM (“...”) 6162 -200,00€
– 2020-11-20 LEV.ATM 6162 (“...”) -200,00€
– 2020-11-20 COMPRA ... -20,00€
17. O Denunciado AA, agindo na qualidade de representante da sociedade Denunciada, emitiu, assinou e preencheu, pelo menos, 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, com a cláusula “não à ordem” de diversas entidades, entre os quais 148 cheques não à ordem do próprio denunciado AA.
18. Os 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, emitidos pelos Denunciados foram apresentados a pagamento sobre a conta à ordem n.º ...através do Sistema de Telecompensação de Cheques / Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), nas seguintes datas:
– 117 cheques em ...2...-11
– 119 cheques em ...2...-11
– 86 cheques em ...2...-11
– 60 cheques em ...2...-11
– 61 cheques em ...2...-11
– 2 cheques em ...2...-12
– 3 cheques em ...2...-12
19. Os 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, emitidos pelos Denunciados, foram pagos pela Assistente, em cumprimento do imperativo legal previsto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 454/91, de ... (com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 66/2015, de 06 de julho), e o respetivo valor debitado na conta de depósitos à ordem n.º ...
20. Na data de ...2...-11, antes do débito do primeiro dos 448 cheques emitidos pelos Denunciados, a conta de depósitos à ordem n.º ...apresentava o saldo de 3,80€.
21. Na data de ...2...-11, após o débito de 117 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 17.546,20€.
22. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 119 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 35.396,20€.
23. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 86 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 48.296,20€.
24. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 60 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 57.296,20€.
25. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 61 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 66.446,20€.
26. Na data de ...2...-12, após o débito de mais 2 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 66.746,20€.
27. Na data de ...2...-12, após o débito de mais 3 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...apresentava o saldo devedor de 67.196,20€.
28. Os Denunciados bem sabiam que, na conta de depósitos à ordem sacada, não detinham fundos suficientes para pagamento de todos os 448 cheques que emitiram, no valor de 150,00€ cada, entre ...2...-11 e ...2...-12.
29. Os Denunciados bem sabiam que, não obstante a conta de depósitos à ordem sacada não deter fundos suficientes para pagamento dos 448 cheques que emitiram, os mesmos seriam obrigatoriamente pagos pela Assistente, nos termos legais.
30. Até à presente data não foi paga, sequer parcialmente, a dívida de 67.196,20€ assim constituída junto da Assistente, e todos os contactos da Assistente com o Denunciado AA se mostraram infrutíferos, tendo o mesmo deixado de responder às tentativas de contacto da Assistente.
31. O Denunciado AA, único sócio e gerente da Denunciada ...", era o seu Beneficiário Efetivo.
32. A Denunciada ...," foi constituída em ...2...-10, tendo como sócio único e gerente o denunciado AA, titular da quota única de 35.000,00€, e sede social no domicílio deste.
33. No registo da constituição da sociedade comercial Denunciada foi inserida a Menção: o capital social será entregue nos cofres da sociedade até ao final do primeiro exercício económico”.
34. Pela Apresentação AP. ..., foi efetuado o registo de DISSOLUÇÃO E ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO da sociedade Denunciada.
35. O capital da sociedade Denunciada ..." nunca foi realizado”.
*
Revertendo as considerações acima expostas quanto aos elementos típicos do ilícito imputado, não se encontra nesta descrição da assistente a referencia a qualquer acção/omissão ou comportamento concludente astucioso do arguido, por via do qual tenha determinado a instituição bancária a efectuar actos de disposição patrimonial.
Na verdade, no caso concreto, não há como discordar do Ministério Publico, porquanto a atuação do arguido, cidadão que constitui uma sociedade unipessoal, a regista, consigna que o capital social não seria realizado, apresenta os documentos respectivos em instituição bancária, com a qual celebra contrato de abertura de conta e contrato de prestação de serviços de homebanking e, através deste serviço, requisita e obtém, por via de procedimento (absolutamente idêntico ao adoptado por qualquer cidadão que usa estes serviços), 450 cheques, num espaço de cerca de oito dias, emitidos em nome da sociedade que representa, que foram disponibilizados pela assistente com base em informações verdadeiras, não criou uma falsa representação da realidade, na verdade, tampouco adoptou qualquer comportamento astucioso e menos ainda induziu a assistente em erro.
O comportamento adoptado pelo arguido, determinante da disponibilização dos livros de cheques é transversal e idêntico ao de qualquer cidadão que utiliza os serviços de homebanking disponibilizados pela instituição bancária, não se caracteriza por qualquer astucia, nem contém nenhum ardil que tenha determinado a assistente a acto de disposição patrimonial.
Efectivamente o arguido terá tirado partido de fragilidades do contrato de prestação de serviços de homebanking e/ou dos procedimentos instituídos pela instituição bancária prévios à disponibilização de cheques.
Admitimos que a emissão destes 450 cheques por parte do arguido foi efectuada com a consciência de que, ante o seu valor, seriam pagos por imperativo legal, e que a sua emissão não integra ilícito criminal (cf. crime de emissão de cheque sem provisão), dado o valor de cada cheque. Porém, aproveitar-se de tais factos não constitui manobra ardilosa, tampouco revela engano por parte da assistente, que, novamente, como bem refere o Ministério Publico, descurou as mais elementares regras de prudência negocial e bancária, fornecendo 450 cheques a uma sociedade sem histórico bancário, com menos de um mês de existência, e conhecedora do saldo bancário da respectiva conta à ordem, inferior à quantia máxima a que alude o n.º 1 do art.º 8.º do D.L. n.º 454/91, de 28.12, relativamente a 150 cheques que continha cada módulo (ou seja, 22.500€).
De resto, e agora analisando objectivamente o teor do RAI, nele nem sequer se descreve qualquer conduta astuciosa, mas tão só uma sequencia cronológica de acontecimentos que não contem menção a falsas representações da realidade, e consequentemente que a assistente tenha sido condicionada no(s) seu(s) acto(s) de disposição patrimonial por engano criado pelo arguido, limitando-se a concluir, em sede de elementos subjectivos do tipo de crime, que “A sociedade Denunciada foi constituída pelo Denunciado com a finalidade de obter, pelo menos, o benefício económico resultante do esquema atrás relatado” e “Logo após a apresentação a pagamento dos 448 cheques de 150,00€ cada, o Denunciado dissolveu e liquidou a sociedade Denunciada, para que a recuperação e cobrança dos valores em dívida na conta bancária titulada por esta junto da Assistente não fossem possíveis, o que logrou”.
Assim, e concluindo, sem prejuízo da responsabilidade civil do arguido decorrente de eventual incumprimento contratual, e/ou de responsabilidade civil extracontratual, como bem referido em Acórdão acima mencionado, o princípio da subsidiariedade do direito penal tem como reverso um princípio de autorresponsabilização dos titulares concretos dos bens jurídicos, que pode levar à ausência de tutela jurídico-penal. Se a vítima não aproveitou as oportunidades de autotutela que lhe foram oferecidas e que lhe era exigível que o fizesse, colocou-se fora do âmbito de tutela da norma incriminadora.
Em face do exposto, por manifesta atipicidade penal dos comportamentos descritos no RAI, outra solução não resta senão a de se concluir pela prolação de despacho de não pronúncia».
Por ter interesse para a decisão da causa, transcreve-se igualmente o despacho proferido pelo Ministério Público aquando do encerramento do inquérito e que motivou a abertura da instrução por parte da assistente:
«II. Os presentes autos tiveram início com a queixa de fls. 3, apresentada por “BB.” contra AA e “...”, limitando-se a juntar a documentação de fls. 4 a 20, que aqui se dá por integralmente reproduzida, em que se indicia a prática, em abstracto, de crimes de burla qualificada e de emissão de cheque sem provisão, p. e p. respectivamente nos termos dos artigos 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal e 11.º, n.º 2, do D.L. n.º 454/91, de ....
Instaurado inquérito, constatou-se que, em face da complexidade da criminalidade em investigação, seria desde logo necessário concretizar “todas as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que o denunciado primeiramente procedeu à abertura da conta bancária, e posteriormente requisitou os livros de cheques, e finalmente sacou cada um desses cheques, sem ter provisão, nomeadamente, uma vez que se tratam de cheques com a instrução "não à ordem", onde, e por quem foi cada um deles depositado, quem são os titulares das contas beneficiadas, e qual foi o circuito financeiro sequente aos depósitos que houve nas contas beneficiadas, a fim de determinar quem está envolvido em coautoria com o denunciado, como é, e por quem, foi distribuído o dinheiro, e ainda, se além do crime de burla qualificada, houve branqueamento” (cf. relatório da Polícia Judiciária a fls. 39 e segs.), após o que se justificaria a sua análise e subsequente desenvolvimento da investigação pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público.
Para o efeito, e uma vez que tais informações e documentos se encontram ao seu alcance, no dia 24/11/2021 foi solicitado à Assistente o envio, em 20 dias, de:
- ficha de assinaturas, com menção da data e local onde o denunciado procedeu à abertura da conta à ordem da ... com o nº..., titulada por "...", bem como de todos os documentos pessoais, fiscais e outros que concedeu, por fotocópia, para o efeito;
- suporte documental comprovativo das circunstâncias de modo, tempo e local onde cada uma das requisições foi realizada, com indicação do IP, caso tenha sido em homebanking, e dos locais onde, e por quem, foram levantados cada um dos livros de cheques;
- indicação de data local e conta onde foi depositado cada um dos 448 cheques, com o devido suporte documental do talão de depósito, da identificação completa, locais de residência, trabalho e contactos dos titulares (cf. fls. 45).
No dia .../.../2021, a Assistente remeteu aos autos ficha de assinaturas e dos documentos apresentados na abertura de conta, listagem com indicação das entidades onde foram entregues para depósito os cheques emitidos, com a respectiva referência de arquivo, e esclarecimento quanto às datas das requisições (fls. 58 a 78).
No dia .../.../2022, a Assistente solicitou a prolação de despacho fundamentado de dispensa ou levantamento de sigilo bancário, tendo em vista a remessa dos demais elementos solicitados a fls. 45 (cf. fls. 98).
No dia .../.../2022, a Assistente foi notificada de tal despacho fundamentado, e bem assim para, em 20 dias, remeter os elementos em falta (fls. 106 a 109).
Como se dispõe no artigo 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “[o] inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”.
E nos termos do artigo 277.º, n.º 2, deste diploma, o inquérito é arquivado “(…) se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes”.
Ora, face aos elementos disponíveis, não se entrevêem diligências viáveis que pudessem conduzir ao apuramento da existência de crime e de quem foram os seus agentes.
Com efeito, apesar do hiato temporal desde a sua solicitação, permanece por juntar aos autos, nomeadamente, a indicação da data e local onde foi depositado cada um dos 448 cheques, com o devido suporte documental do talão de depósito, da identificação completa, locais de residência, trabalho e contactos dos titulares, sendo certo que a Assistente nem procedeu a tal junção nem esclareceu por que razão não o fez, e bem assim que, na eventualidade de tais elementos se encontrarem na posse de outra instituição bancária, nada impediria a Assistente (enquanto principal interessada e lesada) de, munida do despacho fundamentado de dispensa do sigilo bancário, solicitar tais elementos a essas instituições, na articulação e cooperação sugerida a fls. 40 v.
Ora, como acima descrito e melhor explanado no referido relatório da Polícia Judiciária, os elementos em falta revelam-se indispensáveis ao desenvolvimento da investigação.
Pelo exposto, e em face do desinteresse demonstrado pela Assistente na obtenção dos elementos indispensáveis à prossecução da investigação criminal, não resta senão determinar o arquivamento do inquérito, sem prejuízo da sua reabertura mediante a junção de todos os elementos solicitados, nos termos do artigo 279.º, n.º 1, do Código de Processo Penal».
FUNDAMENTAÇÃO
Da pretendida pronuncia do arguido pela prática do crime de burla qualificada que a assistente lhe havia imputado no pedido de abertura da instrução
Nos termos do artº 286º, nº 1 do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
A instrução consubstancia uma fase de controlo da fase anterior do processo (o inquérito), onde foi proferida a decisão de acusar ou de arquivar, com o objetivo de apurar se tal decisão deve ser mantida ou não, se se comprova ou não. A instrução não é, assim, um pré-julgamento, tal como não se traduz numa forma de completar ou ampliar a investigação feita no inquérito e, por isso, também não pode constituir um novo inquérito.
No despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz não julga a causa: apenas verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação ou do requerimento de abertura da instrução. A lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (vide artº 283º, nº 2, do CPP). Não impõe a mesma exigência de verdade requerida em fase de julgamento.
A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjetivo, mas antes exige um juízo objetivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução deve resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação.
Aqui chegados, a assistente pretende que o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de burla qualificada.
Discorrendo sobre o crime de burla em geral, e como se expende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.2009 (in http://www.dgsi.pt/jstj, Relator Fernando Fróis), «a verificação do tipo legal do crime de burla, pressupõe, portanto, a existência dos seguintes elementos típicos:
- A indução em erro ou engano de uma pessoa (o lesado e/ou burlado) sobre factos;
- O erro ou engano provocado com astúcia;
- Tendente a determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
- Com intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
O crime de burla surge como forma de captar o alheio, em que o agente se serve do erro, causado ou mantido, através da sua conduta astuciosa, ou do engano prolongado pela omissão do dever de informar, para, através desta falsa representação da realidade, insidiosamente induzir a vítima a defraudar o seu património ou de terceiros».
Também se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007 (in http://www.dgsi.pt/jstj, Relator Simas Santos), que «o crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar (…).
É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa "economia de esforço", limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta. (…)
O n.º 1 do art. 217.º do C. Penal não se refere somente ao prejuízo causado ao burlado, mas também ao prejuízo patrimonial causado a outra pessoa, pela prática dos actos praticados, por meio do erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocado pelo burlão. (cfr., entre outros, os AcSTJ de 18/1/2001, Acs STJ, IX, 1, 218, de de 8/2/2001, proc. nº 2745/00-5, de 12/12/2002, proc. nº 3722/02-5, de 23/5/2002, Acs STJ, X, 2, 212, de 20/3/2003, proc. nº 241/03-5, de 3/2/2005, proc. nº 4745/04-5, de 9/6/2005, proc. nº 1302/05-5, todos com o mesmo relator).
Como já entendeu este Tribunal, entendimento que se mantém, (Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito pelo mesmo relator), a astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado.
Como refere Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, VII, 168) “com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como infracção penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da prisão e a fraude subtil daquela “criminosos astutos e afortunados” de que nos conta FERRIANI. Há as trapaças minúsculas do comércio a varejo e as burlas maiúsculas dos jogos de Bolsa. Há a fraude grosseira, de empulhar pascácios, e a fraude de alta escola, de embair os mais argutos”.
Mas não se deve esquecer que neste crime, a matéria punível não é a fraude mesma, o engano ou o induzir em erro, mas a locupletação ilícita ou a injusta lesão patrimonial, sendo o engano somente um momento precursor do crime. Esta concepção, hoje adquirida pelo direito penal, traduz-se, aliás, na inserção sistemática do respectivo tipo entre os crimes contra o património».
O crime de burla (que é qualificado quando se verifica alguma das previsões do artigo 218º do CP), apresenta os seguintes elementos objetivos:
- Que o agente astuciosamente induza em erro ou engano outrem sobre os factos;
- Que, através desses meios, determine essa pessoa à prática de atos que causem a esta ou a outra pessoa prejuízo patrimonial.
Para que se pratique um crime de burla, há que ponderar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano outrem e, num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como efeito daquela conduta.
Trata-se de um crime de dano que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro.
É ainda um ilícito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento.
E é um crime material ou de resultado, em que a consumação passa por um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial.
Para que o crime de burla se verifique é necessário que o agente, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, induza em erro ou engano outrem sobre factos que astuciosamente provocou, conseguindo por via da criação desse erro ou do engendrar desse engano, que esse outrem pratique factos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial. Para que o crime de burla se verifique é necessário que se configure e estabeleça uma relação causal adequada entre o erro e o engano criados e a prática de atos pelo ofendido que, a esta ou a outra pessoa, sejam patrimonialmente prejudiciais (vide Ac. do STJ de 21.05.1998, relator Oliveira Guimarães, no site da dgsi).
Na verdade, importa que o ofendido pelo crime tenha sido induzido em erro ou engano, provocado pelo agente, por via de astúcia. Sem astúcia a conduta do agente é atípica. E esta resulta de uma habilidade para enganar alguém, a subtileza para defraudar, podendo resultar de uma atividade sagazmente urdida para conduzir ao erro ou engano de alguém – tudo dependendo da maior ou menor ingenuidade do enganado, do seu maior ou menor grau de inteligência ou outra disposição psicológica – ou pode resultar de uma não atividade do agente, de igual forma ardilosamente provocada - vide Carlos Alegre, in Crimes Contra o Património, Cadernos do Ministério Público, 1988, pág. 109.
Parafraseando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.12.2021 (relator Jorge Gonçalves, no site da dgsi), «No que concerne à configuração material do crime de burla, pode este assumir duas modalidades. A primeira, ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe por palavras ou declarações expressas uma falsa representação da realidade. A segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, através de actos concludentes, isto é, condutas que não consubstanciam, em si mesmas, quaisquer declarações, mas que segundo um critério objectivo, a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade, se mostram adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto.
Quanto ao elemento objectivo do tipo “erro” ou “engano” há que ter presente que o mesmo tem de ser idóneo para determinar outrem à prática de actos que lhe causem a si ou a terceiro prejuízo patrimonial».
No domínio do elemento subjetivo, a burla constitui um crime doloso que se pode manifestar em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14.º do Código Penal. Exige-se ainda que o agente tenha a “intenção” de conseguir um enriquecimento próprio ou alheio, sendo, no entanto, de salientar que, apesar de se exigir que o agente pactue com tal intenção, a consumação do crime não depende da concretização do enriquecimento, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima.
Descendo ao caso concreto, são os seguintes os atos imputados pela assistente ao arguido:
1. “A Denunciada ...," foi constituída em ...2...-10, tendo como sócio único e gerente o denunciado AA, titular da quota única de 35.000,00€, e sede social no domicílio deste.
2. Em ...2...-10 a sociedade Denunciada, representada pelo Denunciado AA, seu sócio-gerente único, celebrou com a Assistente um contrato de abertura de conta de depósito à ordem (“Conta Empresas”) processada no ... (042), a que foi atribuído o n.º ...
3. Na mesma data de ...2...-10, foi processada em Sistema de Informação ..., sobre a identificada conta à ordem, a adesão ao sistema de canais de distribuição à distância, Multicanal, ficando registado como utilizador o denunciado AA, na qualidade de representante único da sociedade.
4. Em ...2...-10 às 07:39:09.533, foi requisitado via homebanking – Net 24 Empresas – com as credenciais de acesso do denunciado AA, no IP origem ..., um livro de 150 cheques normais, com data de validade e cláusula não à ordem, sobre a conta de depósitos à ordem com o nº ...
5. À data de ...2...-10, a conta n.º ...apresentava o saldo de € 1.206,50, ficando com o saldo de € 1.045,60 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo.
6. Em ...2...-11 às 14:00:38.767, foi requisitado via homebanking – Net 24 Empresas – com as credenciais de acesso do denunciado AA, no IP origem ..., um livro de 150 cheques normais, sem data de validade e cláusula não à ordem, sobre a conta de depósitos à ordem com o n.º ...
7. À data de ...2...-11, a conta n.º ...apresentava o saldo de € 1.045,60, ficando com o saldo de € 884,70 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo.
8. Em ...2...-11 às 09:46:04.567, foi requisitado via homebanking – Net 24 Empresas – com as credenciais de acesso do denunciado AA, no IP origem ..., um livro de 150 cheques normais, com cláusula não à ordem e sem data de validade, sobre a conta de depósitos à ordem com o n.º ...
9. À data de ...2...-11, a conta n.º ...apresentava o saldo de € 1.284,70, ficando com o saldo de € 1.123,80 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo.
10. Em ...2...-11, no mesmo canal de homebanking - Net 24 Empresas, verificou-se ainda a tentativa da requisição adicional de 150 cheques, sobre a mesma conta n.º ... rejeitada por motivo de ultrapassagem do número máximo de cheques ativos, pois que 500 cheques ativos eram, por defeito, o limite reconhecido pelo sistema informático como suscetível de ser atribuído por cada conta nova titulada por empresas, cujos intervenientes não registassem incidentes com cheques.
11. O segundo e o terceiro módulos de cheques, referidos em 6. e 8., foram requisitados no dia do levantamento do módulo anteriormente requisitado.
12. Os três módulos de 150 cheques cada foram levantados pessoalmente pelo Denunciado AA, em balcões diferentes da Assistente, conforme solicitou nos respetivos atos de requisição, em nenhum dos casos correspondentes ao balcão titular da conta n.º 042.10.038856-2:
– O Módulo ... foi entregue em ...-...-2020 às 9:15 no balcão 121
– (...)
– O Módulo ... foi entregue em ...-...-2020 às 8:58 no balcão 071
– (...)
– O Módulo ... foi entregue em ...-...-2020 às 8:42 no balcão 283
– (...)
13. Em ...-...-2020 os Denunciados detinham em seu poder 450 cheques ativos para utilização.
14. Nos atos de entrega dos módulos de cheques, o Denunciado AA apôs assinatura em Certificado de Operações sob a afirmação "Assumo(imos) inteira responsabilidade pelas consequências do extravio, subtração ou uso ilícito dos cheques”.
15. Desde a data da abertura da conta n.º ... foram registados na mesma os seguintes movimentos a crédito:
– ...2...-10 ENTREGA NUMERÁRIO 300,00€
– ...2...-10 ENTREGA NUMERÁRIO (“...”) 230,00€
– ...2...-10 ... (“...”) 676,50€
– ...2...-11 TR-IPS-AA (“...”) 400,00€
16. Após ...2...-11 e até ao presente não foi realizado nenhum outro movimento a crédito na conta de depósitos à ordem n.º ...17. Desde a data da abertura da conta n.º ...até ...2...-11, foram registados na mesma os seguintes movimentos a débito:
– ...2...-10 REQ. CHEQUES -147,50€
– ...2...-10 DEB.-I.S. S/CHQ -13,40€
– ...2...-11 REQ. CHEQUES -147,50€
– ...2...-11 DEB.-I.S. S/CHQ -13,40€
– ...2...-11 REQ. CHEQUES -147,50€
– ...2...-11 DEB.-I.S. S/CHQ -13,40€
– ...2...-11 TRF.IPS P/ F (“...”) -700,00€
– 2020-11-20 LEV.ATM (“...”) 6162 -200,00€
– 2020-11-20 LEV.ATM 6162 (“...”) -200,00€
– 2020-11-20 COMPRA ... -20,00€
17. O Denunciado AA, agindo na qualidade de representante da sociedade Denunciada, emitiu, assinou e preencheu, pelo menos, 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, com a cláusula “não à ordem” de diversas entidades, entre os quais 148 cheques não à ordem do próprio denunciado AA.
18. Os 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, emitidos pelos Denunciados foram apresentados a pagamento sobre a conta à ordem n.º ...através do Sistema de Telecompensação de Cheques / Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), nas seguintes datas:
– 117 cheques em ...2...-11
– 119 cheques em ...2...-11
– 86 cheques em ...2...-11
– 60 cheques em ...2...-11
– 61 cheques em ...2...-11
– 2 cheques em ...2...-12
– 3 cheques em ...2...-12
19. Os 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, emitidos pelos Denunciados, foram pagos pela Assistente, em cumprimento do imperativo legal previsto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 454/91, de ... (com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 66/2015, de 06 de julho), e o respetivo valor debitado na conta de depósitos à ordem n.º ...
20. Na data de ...2...-11, antes do débito do primeiro dos 448 cheques emitidos pelos Denunciados, a conta de depósitos à ordem n.º ...apresentava o saldo de 3,80€.
21. Na data de ...2...-11, após o débito de 117 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 17.546,20€.
22. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 119 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 35.396,20€.
23. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 86 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 48.296,20€.
24. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 60 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 57.296,20€.
25. Na data de ...2...-11, após o débito de mais 61 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 66.446,20€.
26. Na data de ...2...-12, após o débito de mais 2 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...passou a registar um saldo devedor de 66.746,20€.
27. Na data de ...2...-12, após o débito de mais 3 cheques, a conta de depósitos à ordem n.º ...apresentava o saldo devedor de 67.196,20€.
28. Os Denunciados bem sabiam que, na conta de depósitos à ordem sacada, não detinham fundos suficientes para pagamento de todos os 448 cheques que emitiram, no valor de 150,00€ cada, entre ...2...-11 e ...2...-12.
29. Os Denunciados bem sabiam que, não obstante a conta de depósitos à ordem sacada não deter fundos suficientes para pagamento dos 448 cheques que emitiram, os mesmos seriam obrigatoriamente pagos pela Assistente, nos termos legais.
30. Até à presente data não foi paga, sequer parcialmente, a dívida de 67.196,20€ assim constituída junto da Assistente, e todos os contactos da Assistente com o Denunciado AA se mostraram infrutíferos, tendo o mesmo deixado de responder às tentativas de contacto da Assistente.
31. O Denunciado AA, único sócio e gerente da Denunciada ...", era o seu Beneficiário Efetivo.
32. A Denunciada ...," foi constituída em ...2...-10, tendo como sócio único e gerente o denunciado AA, titular da quota única de 35.000,00€, e sede social no domicílio deste.
33. No registo da constituição da sociedade comercial Denunciada foi inserida a Menção: o capital social será entregue nos cofres da sociedade até ao final do primeiro exercício económico”.
34. Pela Apresentação AP...., foi efetuado o registo de DISSOLUÇÃO E ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO da sociedade Denunciada.
35. O capital da sociedade Denunciada ..." nunca foi realizado”.
Em síntese útil:
- O arguido constitui uma sociedade unipessoal em ........2020;
- Cinco dias depois, representando a sociedade de que era único sócio e gerente, celebrou com a Assistente um contrato de abertura de conta de depósito à ordem em ........2020, a que foi atribuído o nº n.º ...;
- Em ........2020, requisitou um livro de 150 cheques, tendo, nessa data, a conta o saldo de € 1.206,50, ficando com o saldo de € 1.045,60 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo;
- Em ........2020, requisitou um livro de 150 cheques, tendo, nessa data, a conta o saldo de € 1.045,60, ficando com o saldo de € 884,70 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo;
- Em ........2020, requisitou um livro de 150 cheques, tendo, nessa data, a conta o saldo de € 1.284,70, ficando com o saldo de € 1.123,80 após o débito do custo dos cheques e respetivo Imposto de Selo;
- Em ........2020, tentou requisitar mais 150 cheques, o que foi recusado por assim ultrapassar o máximo de 500 cheques ativos;
- O arguido emitiu, assinou e preencheu, pelo menos, 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, apresentados a pagamento entre os dias ........2020 e ........2020;
- Os 448 cheques com o valor de 150,00€ cada, emitidos pelo arguido, foram pagos pela Assistente, em cumprimento do imperativo legal previsto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 454/91, de ...;
- Em ........2020, antes do débito do primeiro dos 448 cheques emitidos, a conta de depósitos à ordem n.º ...apresentava o saldo de 3,80€, passando, nessa data, a ter saldo devedor de € 17.546,20, que foi sucessivamente aumentando até apresentar o saldo devedor de € 67.196,20 em ........2020;
- O arguido bem sabia que, na referida conta, não existiam fundos suficientes para pagar os 448 cheques que emitiu e bem sabia que, não obstante a conta de depósitos à ordem sacada não deter fundos suficientes para pagamento dos 448 cheques que emitiram, os mesmos seriam obrigatoriamente pagos pela Assistente, nos termos legais;
- O capital social da sociedade unipessoal constituída pelo arguido nunca foi realizado;
- Pouco depois de conseguir o pagamento dos cheques, mais exatamente em ........2020, foi efetuado o registo da dissolução e encerramento da sociedade.
É evidente que existe astúcia por parte do arguido: conhecedor da obrigação legal de pagamento de cheques no valor de € 150,00 cada, emite 448 cheques desse exato valor. E, assim, consegue que cada um deles seja pago.
Dito por outras palavras: o arguido aproveita-se da circunstância de a lei impor a uma entidade bancária o pagamento de um cheque, emitido através de módulo por si fornecido, de valor igual ou inferior a € 150,00.
Poder-se-ia argumentar que não existe aqui uma atuação do arguido, induzindo (ou mantendo) em erro ou engano outrem (a assistente) sobre os factos. Poder-se-ia até defender que a conduta do arguido relatada nos autos é semelhante à de qualquer pessoa que emite um cheque de € 150,00, sabendo que o mesmo será, por imposição legal, pago pela entidade bancária e que entender o contrário seria dizer que a generalidade das atuações que se traduzem em emitir cheques no valor igual ou inferior a € 150,00 (sendo certo que a maioria das pessoas sabe da obrigação de as entidades bancárias assegurarem o pagamento dos cheques emitidos através de módulos por estas fornecidos) equivaleria à prática de um crime de burla.
Porém, não podemos olvidar que:
1. O arguido constitui uma sociedade unipessoal, em outubro de 2020, com um capital social que nunca realizou.
2. Constituída a sociedade, abre uma conta bancária em nome dessa sociedade, criando, naturalmente, na entidade bancária a ideia de que vai estabelecer relações comerciais pela empresa que passariam por aquela (entidade bancária, entenda-se).
3. Consegue, assim, que sejam emitidos e disponibilizados 448 cheques que preenche – todos – com o valor de € 150,00, levando a que a assistente pagasse cada um deles por imperativo legal.
4. Em dezembro de 2020, ocorre a liquidação da sociedade.
O arguido, na verdade, não pretendeu alguma vez ter atividade comercial através da empresa que criou. Tanto que não realizou o capital social. Criou a empresa para ter o tratamento de empresário junto da assistente e para desta obter a omissão de cheques, que preencheu de modo a obter o respetivo pagamento obrigatório por lei. Obtido o pagamento dos cheques, o arguido encerrou a empresa.
Isto é, tudo indicia que, afinal, a única atividade da sociedade constituída pelo arguido foi dirigida à requisição de 448 cheques e ao seu preenchimento naquele valor cujo pagamento a lei determinava que fosse feito pela assistente.
Não deixa de ser extraordinário constatar que o arguido não emitiu um único cheque de valor superior a € 150,00.
O arguido, assim, criou, dolosamente, uma situação de erro ou de engano junto da assistente, encenando uma aparência de empresário que determinou que aquela lhe entregasse módulos de cheque.
E, como refere, o douto acórdão desta Relação citado pela assistente nas suas conclusões (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.05.2010, processo 5331/07.6TDLSB.L1-5, Relator Luís Gominho), «se o agente preencheu 6 cheques de uma sua conta não provisionada pelo valor de 149,00 €, ou seja, pouco abaixo do limite dentro do qual a instituição de crédito é obrigada a pagá-lo ainda que haja insuficiente provisão nessa conta sacada (art. 8º do Dec. Lei nº 454/91, de 28/12, na redacção dada pela Lei nº 48/2005, de 29/8) e os deposita numa sua conta aberta em outra entidade bancária contando com a obrigação legal de pagamento para indevidamente aumentar o respectivo património em 894,00 €, usou deliberadamente esse mecanismo legal e a coincidência procurada entre sacador e beneficiário – não assente em qualquer pagamento fraccionado – para enganar a instituição em que apresentou os cheques a pagamento com o fim de ilegitimamente obter tal quantia a que sabia não ter direito provocando prejuízo à entidade bancária sacada».
Em tal aresto também se acrescenta que «se o arguido pretendesse levantar de uma só vez aqueles € 894,00 sabia que com grande probabilidade o controle bancário colocado ao seu levantamento não o iria permitir.
Subdividindo-o e parcializando-o em montantes inferiores a € 150,00 e apresentando os respectivos cheques a pagamento num outro banco, tinha a reforçada expectativa em como seriam realmente creditados, abrindo caminho à sua futura utilização.
Desta maneira enganou a Caixa …, que assim procedeu.
No fundo, é o que se diz por outras palavras no art. 18.º do requerimento de abertura de instrução, quando se refere que “ao actuar nos termos relatados o denunciado procurou, de forma ardilosa, engendrar uma situação que levasse o Banco a crer que estava perante casos enquadrados na previsão do art. 8.º, n.º 1 do DL 454/91, de 28/12 (…), para, dessa forma, lograr, de forma ilegítima, conseguir do Banco o pagamento dos cheques” e obter (diríamos nós), a importância correspondente ao seu valor somado».
Revertendo ao caso em análise, em face do que acima se expôs, tudo indicia que o arguido cometeu um crime de burla qualificada de que foi vítima a assistente.
Destarte, e em conclusão, deverá o arguido ser pronunciado pela prática de um crime de burla qualificada, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alínea a), e 202.º, alínea b), do CP, o que conduz à procedência do recurso interposto pela assistente.

DECISÃO
Nestes termos, e em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto pela assistente, revogando a decisão recorrida e, em sua substituição, pronuncia-se o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alínea a), e 202.º, alínea b), todos do Código Penal, pelos factos constantes do requerimento de abertura da instrução, sendo as provas as aí indicadas.
Sem custas.
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 7 de janeiro de 2025
Ana Cristina Cardoso
Pedro José Esteves de Brito
Ester Pacheco dos Santos
____________________________________________
1. Esclarece-se que o excerto que está em itálico não surge escrito na decisão recorrida, que apenas refere o que se transcreveu em texto normal, com a frase interrompida a meio. Porém, o que ora se acrescentou em itálico corresponde à parte restante da frase, assinalada pela assistente no requerimento de abertura de instrução como facto indiciado com o nº 4. Crê-se ser isento de dúvidas que, na decisão instrutória, a frase surge incompleta por manifesto lapso de escrita.