Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUTE SOBRAL | ||
Descritores: | TUTELA JURISDICIONAL ARTICULADOS INTERPRETAÇÃO INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL CONTRADIÇÃO ENTRE O PEDIDO E A CAUSA DE PEDIR | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – No atual regime processual civil, a interpretação dos articulados das partes deve ser efetuada com base nos princípios interpretativos aplicáveis às declarações negociais, valendo com o sentido que um declaratário normal lhes atribuiria, prevalecendo a substância sobre a forma, visando aproveitar ao máximo os atos praticados pelas partes, por forma a garantir o princípio da efetiva tutela jurisdicional, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como a justa composição do litígio – cfr. artigos 295º, 236º, CC e 7º, nº 1, CPC. II – A contradição entre o pedido e a causa de pedir gerador de ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea b), CPC, apenas ocorre quando se verifica uma impossibilidade prática da sua coexistência, de forma que se possa afirmar que se negam reciprocamente por falhar qualquer nexo lógico. III - Não ocorre a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir quando o autor enquadra juridicamente a pretensão no âmbito da responsabilidade extracontratual, apesar de alegar factos suscetíveis de a enquadrar no âmbito da responsabilidade contratual, concluindo com um pedido indemnizatório. IV – Por decorrência do princípio da legalidade da decisão judicial consagrado no artigo 203º da CRP e com expressão nos artigos 5º, nº 3 e 607º, nº 3, CPC, não está o tribunal limitado pelas alegações das partes no que se reporta à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo: I - RELATÓRIO 1.1– A autora “Muralha Solene, Ldª”, identificada nos autos, instaurou em 30-03-2022, a presente ação comum contra as rés “Tesla Portugal, Sociedade Unipessoal, Ldª”, “C. Santos-Veículos e Peças, S.A” e “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A” peticionando a condenação solidárias das rés no pagamento da quantia de € 22.859,05, acrescida de juros vincendos até integral e efetivo pagamento. Subsidiariamente, peticiona a condenação da 3.ª ré no pagamento da quantia de € 22.859,05, acrescida de juros. A autora alegou, em síntese: - ter celebrado com a Caixa Leasing & Factoring um contrato de locação financeira por via do qual lhe foi entregue o veículo automóvel da marca Tesla com a matrícula 66-ZR-83, o qual a 1ª ré vendeu à aludida instituição financeira; - no dia 03-04-2021 o gerente da autora perdeu o controlo desse veículo e despistou-se; -esse sinistro foi participado à 3.ª ré e o veículo foi enviado para uma oficina da 2ª ré; - a reparação do veículo prolongou-se durante cerca de 7 meses e meio, período durante o qual a autora esteve privada do uso desse veículo, o que lhe causou prejuízos, cujo ressarcimento calculou nos montantes peticionados. 1.2 – Todas as rés apresentaram contestação, impugnando os factos alegados. Acresce que a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” excecionou a incompetência em razão do território do Juízo Local Cível das Caldas da Rainha, onde o processo se encontrava pendente. Já a ré “Tesla Portugal – Sociedade Unipessoal, Ldª”, além de ter invocado a ilegitimidade ativa da autora, arguiu a ineptidão da petição inicial. Para tanto, considerou a ré que o pedido de condenação solidária de todas as demandadas no pagamento da quantia de € 22.859,05, na ausência de convenção de qualquer regime de solidariedade ou de disposição legal que a estabeleça, se mostra em contradição com a causa de pedir, o que nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Civil, gera a ineptidão da petição inicial e, consequentemente, a nulidade do processo. 1.3 – Em 13-09-2022, foi proferida decisão que julgou incompetente em razão do território o Juízo Local Cível das Caldas da Rainha e ordenou a remessa dos autos aos Juízos Locais Cíveis da Amadora (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste) – referência 101234227. 1.4 – Em 05-12-2022 foi proferido despacho que ordenou a remessa dos autos aos Juízos Locais Cíveis de Oeiras (considerando a existência de lapso no despacho anterior que havia considerado que a localidade de Carnaxide pertence à Amadora, quando aquela localidade integra o município de Oeiras) – referência 141232249. 1.5 – Exercido contraditório pela autora relativamente à defesa por exceção, foi proferido despacho saneador, em 06-11-2023 (referência 146895449), no qual foi julgada procedente a exceção de ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolvidas as rés da instância. 2 - Não se conformando com a decisão proferida, a autora da mesma interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que, indeferindo a ineptidão da petição inicial, ordene o prosseguimento dos autos, em primeira instância. A recorrente terminou as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “A. O sinistro na origem dos factos que fundamentam a presente ação não se enquadra no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório, nem nenhuma das partes no processo o invoca; B. Não se discute da obrigação de disponibilização, pela seguradora, de veículo de substituição ao abrigo do disposto no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 291/2007; C. Ao analisar a obrigação de disponibilização de veículo de substituição ao abrigo do disposto no artigo 42.º do DL n.º 291/2007, o Tribunal a quo conheceu de uma questão, que não estava em discussão e não integra o objeto do litígio; D. O Tribunal a quo conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, razão pela qual é nula Sentença recorrida, por força do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), e deve ser revogada. E. A presente ação tem como causa de pedir a privação do uso do veículo automóvel de que a A. é locatária devido à atuação das três RR. e, em primeiro lugar, do incumprimento, pela 1.ª R., da obrigação legal de fornecer as peças sobresselentes e os serviços técnicos pós-venda necessários à reparação dos veículos por si vendidos; F. A A. sustenta que as RR. a devem indemnizar ao abrigo do disposto no artigo 483.º do Código Civil (CC). G. Mais sustenta que, segundo o disposto nos artigos 490.º e 497.º, n.º 1, do CC, todos os autores, instigadores ou auxiliares respondem solidariamente pelos danos causados, pelo que também as RR. devem responder solidariamente pelo dano causado à A.; H. Não é correta a apreciação feita pelo Tribunal a quo de que «não são alegados factos integradores da causa de pedir do qual resulte a responsabilidade solidária da seguradora, da oficina reparadora e da empresa responsável por facultar as peças e que permita a formulação a título principal das três Rés no pagamento da quantia pecuniária reportada aos danos que a Autora alega ter sofrido com a demora com a reparação.»; I. Não existe contradição entre o pedido e a causa de pedir da qual possa decorrer a ineptidão da petição inicial que implique a sua nulidade ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.º 1, alínea b) do CPC; J. A contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, só ocorre quando se verifique uma incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente; K. Não se verifica a ineptidão da P.I., nem a nulidade do processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 186.º, n.os 1 e 2, do CPC; L. Mal andou o Tribunal a quo ao julgar verificada a exceção de nulidade por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolver as RR. da instância; M. A Sentença recorrida deve ser revogada e deve o processo prosseguir a sua tramitação normal em primeira instância.” 3. A ré “C. Santos – Veículos e Peças, SA” apresentou resposta às alegações da recorrente, pugnando pela supressão de lapso material constante da decisão recorrida, considerando que apenas por lapso ali se referiu o Decreto Lei nº 42/2017, quando se pretendia referir o Decreto Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, e pela manutenção da decisão recorrida, com as seguintes conclusões: “1. O erro/inexatidão constante da sentença deve ser corrigido, nos termos do disposto no artigo 249.º do Código Civil e 614.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, e, em consequência, sempre que na sentença recorrida se menciona “Decreto-Lei n.º 42/2007, de 21.08”, deve passar a constar “Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08”, o que se requer. Por seu turno, 2. Não assiste razão à A./Recorrente quando alega que “nos presentes autos não está em causa a aplicação do disposto no artigo 42.º do DL 291/2007”, uma vez que “o sinistro na origem dos factos que fundamentam a presente ação não se enquadra no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório, nem nenhuma das partes no processo o invoca”, e conclui que “o Tribunal a quo conheceu de uma questão – a obrigação de disponibilização, pela seguradora, de veículo de substituição ao abrigo do disposto no artigo 42.º do DL 291/2007 – que não estava em discussão e não integra o objeto do litígio”, “razão pela qual a Sentença recorrida é nula, segundo o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, e deve ser revogada.” 3. O Tribunal de primeira instância limitou-se, na sentença recorrida, a conhecer da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, invocada pela 1.ª Ré na respetiva petição inicial; 4. Fê-lo no despacho saneador que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º do CPC, é o momento processualmente adequado para o conhecimento das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes; 5. Conhecendo da exceção invocada, o Tribunal a quo expôs a sua concordância com os argumentos da 1.ª Ré, acrescentando as considerações referentes à aplicação aos autos do regime previsto no artigo 42.º do DL 291/2007. 6. A A./Recorrente insurge-se contra tais considerações, mas sem razão, uma vez que as mesmas (i) foram apenas um dos argumentos/motivos (mas não o único, nem tampouco aquele ao qual o Tribunal a quo atribuiu mais enfoque) pelos quais o Tribunal a quo entendeu ser de julgar procedente a referida exceção de ineptidão da petição inicial e (ii) movem-se dentro dos limites traçados no n.º 3 do artigo 5.º do CPC. 7. O Tribunal a quo apenas introduziu, portanto, na apreciação de uma questão invocada pelas partes – a apreciação da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial –, uma questão de direito, instrumental e acessória ao raciocínio formulado e à decisão proferida, o que não constitui um excesso de pronúncia (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-03-2021, proferido no âmbito do processo n.º 765/16.8T8AVR.P1.S1, no qual se pode ler, entre o mais, que “Não se verifica a nulidade de acórdão com base em excesso de pronúncia (…) se, no âmbito da solução a dar à questão ou questões principais a decidir (…), o julgador aborda uma questão de direito nova, instrumental a essa solução, já que, não estando sujeito às alegações das partes na sua tarefa de indagação, interpretação e aplicação de regras jurídicas, aquela abordagem se insere na oficiosidade quanto à matéria de direito (…), abrangida no comando amplo que o art. 5.º, n.º 3, do CPC confere à atuação do julgador. (…)”). 8. Questão distinta é saber se a A./Recorrente discorda da interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo quanto à eventual (in)aplicabilidade do sobredito regime ao caso dos autos e/ou quanto à decisão proferida a respeito da dita exceção 9. No entanto, se assim fosse, tal discórdia apenas poderia ser invocada com fundamento em eventual erro de julgamento e não por via da invocação da nulidade da sentença recorrida. 10. Face ao exposto, conclui-se que a sentença recorrida não padece de excesso de pronúncia no sentido que lhe é atribuído pelo artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, motivo pelo qual deve improceder a nulidade invocada pela A./Recorrente, o que se requer. Sem prescindir, 11. Apesar de a A./Recorrente, na petição inicial, ter, efetivamente, feito referência aos artigos 490.º e 497.º, n.º 1 do Código Civil, que consagram a regra da solidariedade na responsabilidade civil extracontratual, a verdade é que, pelo menos quanto à 2.ª e à 3.ª Rés, a A./Recorrente faz simultaneamente referência a supostas relações contratuais estabelecidas com a A./Recorrente. 12. Ora, em bom rigor, a causa de pedir formulada pela Autora na petição inicial parece apontar (ou assim pode ser interpretada) em dois sentidos contraditórios: por um lado, inclui elementos de facto que conduzem à aplicação do regime da responsabilidade contratual, pelo menos quanto a duas das Rés; e, por outro lado, nos argumentos de direito que invoca, faz referência exclusiva à aplicação da responsabilidade extracontratual quanto a todas as Rés. 13. Sobretudo porque o regime da solidariedade está exclusivamente previsto no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, sendo o regime regra na responsabilidade contratual o regime da conjunção. 14. Cabia, portanto, à A./Recorrente (i) ou invocar factos capazes de integrar a responsabilidade civil extracontratual de todas as Rés, por forma a espoletar a aplicação do regime da solidariedade decorrente da lei ou (ii) conforme referiu, e bem, o Tribunal a quo, invocar factos capazes de demonstrar uma solidariedade convencional. 15. No entanto, a A./Recorrente não fez – ao menos de forma clara e inequívoca – nenhuma das duas coisas, e peticionou – em aparente contradição com a causa de pedir, conforme entendeu o Tribunal a quo – a condenação solidária de todas as Rés. 16. Por esse motivo, parece ser defensável a posição assumida pelo Tribunal a quo em julgar procedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ao abrigo disposto nos n.ºs 1 e 2, alínea b) do artigo 186.º do CPC”. 4. Também a ré “Tesla Portugal, Sociedade Unipessoal, Ldª” contra-alegou, defendendo a rejeição do recurso por a recorrente não ter indicado as normas jurídicas violadas, nem o sentido com que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, incumprindo, consequentemente, o ónus de formular conclusões. Para o caso de assim não se entender, a recorrente defendeu a manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões: “A.O recurso a que ora se responde vem interposto do despacho saneador-sentença que absolveu as Rés da instância por concluir que “[A] contradição entre o pedido e a causa de pedir conduz à ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 186.º , n.º 1, alínea b) do Cód. Proc. Civil, e, consequentemente à nulidade de todo o processo, exceção dilatória geradora de absolvição da instância.”. B. No recurso interposto, a Apelante não deu cumprimento ao ónus de formular conclusões previsto no art. 639.º, n.º 2 do CPC, limitando-se a enunciar uma amálgama de excertos do corpo das alegações, que não permitem delimitar suficientemente os fundamentos do recurso, ou sequer as questões a decidir no recurso. C. No corpo das suas alegações, a Apelante vem alegar que o Tribunal a quo conheceu de uma questão que não podia conhecer e, nessa medida, a decisão enferma do vício de nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCD. A Apelante refere ainda que o Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, ao considerar verificada a exceção de ineptidão da petição inicial, que conduziu à absolvição das Rés da instância, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 186.º, n.º 1 e 2 do CPC. E. Não tem razão a Apelante porquanto a apreciação por parte do Tribunal a quo da exceção de ineptidão da petição inicial não é reconduzível ao conhecimento de uma questão que o Tribunal a quo não podia conhecer, mas tão só e apenas ao cumprimento do disposto no art. 595.º, n.º 1, alínea a) do CPC, na medida em que a Apelada havia alegado a verificação de uma exceção de ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir. F. Aliás, o Tribunal a quo não proferiu qualquer decisão ao abrigo da alegada “questão que não podia conhecer” – a aplicação do regime jurídico previsto no Decreto-Lei n.º 291/2007 – tendo apenas problematizado sobre o regime jurídico aplicável à matéria alegada nos autos para aferir da verificação da alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir. G. Sempre se diga igualmente que, apesar de não se ter pronunciado quanto ao mérito da causa, o Tribunal a quo, quer por força do princípio iuria novit curia, previsto no art. 5.º, n.º 3 do CPC, quer em virtude da referência ao Decreto-Lei n.º 291/2007 na contestação da 3.ª Ré, sempre poderia decidir o mérito da causa com base na aplicação do Decreto-Lei n.º 291/2007 aos presentes autos, sem com isso cometer qualquer nulidade. H. Já no que diz respeito ao alegado “erro de julgamento” do Tribunal a quo, cumpre notar que, ao contrário do alegado pela Apelante, a decisão em apreço não é uma decisão de mérito assente na aplicação do disposto no Decreto-Lei n.º 291/2007, mas sim uma decisão formal de verificação da existência pressupostos processuais – ou da falta deles, como é o caso da contradição entre o pedido e a causa de pedir que gera ineptidão da petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 186.º, n.º 2, alínea b) do CPC. I. Atendendo a que a Apelante peticiona uma coisa e o seu contrário, ou seja, a condenação solidária das Rés – nas quais se inclui a aqui Apelada – com base em argumentos que apontam ora no sentido da responsabilidade civil contratual, ora no sentido da responsabilidade civil extracontratual, sem, em caso algum, sequer alegar a fonte da solidariedade das obrigações (contratuais ou extracontratuais) das Rés que aqui invoca, sempre terá que se concluir pela contradição entre o pedido e a causa de pedir deduzida pela Apelada na sua contestação. J. Neste sentido, o Tribunal a quo andou bem ao julgar a petição inicial inepta, nos termos do disposto no art. 186.º do CPC, absolvendo as Rés dos pedidos contra si formulados pela ora Apelante, sem necessidade de produção de prova adicional, impondo-se ao Tribunal ad quem que mantenha a decisão do Tribunal a quo de absolver a Apelada nos presentes autos”. 5. A “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” não apresentou contra-alegações. 6. Em 08-02-2024, foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo. Foi ainda proferido despacho que considerou não integrarem os fundamentos invocados pela apelante qualquer excesso de pronúncia, concluindo-se pela inexistência da nulidade arguida (referência 149096778). 7. Remetidos os autos a este tribunal em 11-03-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir. II – QUESTÃO PRÉVIA – Rejeição do recurso por incumprimento do ónus de formulação das conclusões, previsto no nº 2 do artigo 639º CPC A tal propósito, considerou a ré/recorrida “Tesla Portugal Sociedade Unipessoal Ldª” que a autora/recorrente não deu cumprimento ao preceito citado, impondo-se a rejeição do seu recurso. Com a epígrafe “Ónus de alegar e formular conclusões”, dispõe o artigo 639º, CPC: “1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada. 3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada. 4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias. 5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei”. Vigorando no domínio dos recursos o princípio do dispositivo, “(…) o ónus do recorrente decompõe-se na apresentação tempestiva de alegação e na formulação de conclusões” – António Santos Abrantes Geraldes[1]. O nº 2 da norma citada impõe, de facto, ao recorrente a indicação das normas violadas, do sentido que deve ser atribuída à sua interpretação e aplicação e, em caso de erro na determinação das normas aplicáveis, a indicação das que deveriam ter sido aplicadas. A falta de tais indicações constitui um dos vícios que pode afetar as conclusões do recurso, tanto mais que se pretende que estas assumam a importante função de delimitação do seu objeto. O incumprimento de tal ónus determinará a rejeição do recurso, e a deficiência das conclusões apresentadas determina convite para o seu aperfeiçoamento, nos termos do nº 3 do artigo 639º, CPC. Porém, a leitura das conclusões do recurso apresentado pela autora, evidencia ter sido dado cumprimento ao ónus previsto no nº 2 do artigo 639º, CPC. Efetivamente, ali se mostra enunciada a norma que fundamento o vício da nulidade da sentença que a recorrente invoca (615º, nº 1, alínea d), CPC), esclarecendo-se que tal excesso de pronúncia decorre do enquadramento legal do litígio no DL 291/2007, dado que, na tese da recorrente, as pretensões que deduziu fundamentam-se no regime dos artigos 483º, 490º e 497º do Código Civil (conclusões enunciadas sob as alíneas A a G). Por outro lado, das referidas conclusões extrai-se que a recorrente reage à decisão que julgou inepta a petição inicial com base no fundamento previsto na alínea b) do nº 1, do artigo 186º, CPC, alegando que tal vício “(…) só ocorre quando se verifique uma incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente”. A recorrente alega ainda que o litígio deve merecer o enquadramento jurídico que propõe (artigos 483º, 490º e 497º do Código Civil), pelo que não ocorre o apontado vício (conclusões F a M das alegações da autora). Consequentemente, mostra-se devidamente enunciado o enquadramento jurídico que, na tese da recorrente, fundamenta a interposição do recurso, quanto a ambas as questões que suscita (nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia e inexistência de contradição entre o pedido e a causa de pedir) Consequentemente, tendo a recorrente cumprido o ónus previsto no nº 2, do artigo 639º, CPC, por nada obstar à sua apreciação, indefere-se o pedido de rejeição do recurso. III – QUESTÕES A DECIDIR O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC. Consequentemente, nos presentes autos, são as seguintes as questões a decidir: - Retificação da decisão recorrida, por forma a substituir-se a alusão ao Decreto Lei nº 43/2007, de 21-08 pelo Decreto Lei nº 291/2007, de 21 de agosto; - Nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia; - Contradição entre a causa de pedir invocada pela autora e os pedidos que formulou. IV – FUNDAMENTAÇÃO Retificação de lapso material (menção do Decreto Lei nº 42/2007, de 21-08, em vez do Decreto Lei nº 291/2007 de 21 de agosto) Compulsada a decisão recorrida, verifica-se que ali se faz alusão ao “Decreto Lei 42/2007, de 21.08”, o que não pode deixar de decorrer de manifesto lapso. Efetivamente, com aquela data não foi promulgado o alegado Decreto Lei, tendo sido promulgada em 24 de agosto de 2007 uma Lei com aquele número, que operou alterações à Lei 74/98 de 11 de novembro, a qual, referindo-se à identificação e ao formulário dos diplomas legais, é manifestamente inaplicável aos presentes autos. Na realidade, compulsada a decisão recorrida, designadamente nos segmentos em que menciona os números 1 e 3 do artigo 42º, a propósito da escolha da oficina para a reparação de veículo sinistrado, verifica-se que ali se pretendeu referir o Decreto Lei nº 291/2007, de 21 de agosto (que, efetivamente, regula tal matéria). Nada obsta à retificação de tal erro material, que foi claramente percecionado quer pela recorrente, quer pelas recorridas, que apresentaram contra alegações, e que resulta dos termos e do contexto da própria decisão, ao abrigo do disposto nos artigos 614º CPC e 249º, Código Civil. Assim, suprimindo o indicado lapso, a decisão recorrida passa a ter a seguinte redação: “DO DESPACHO SANEADOR O Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. O processo é o próprio. DA NULIDADE DA PETIÇÃO INICIAL POR CONTRADIÇÃO ENTRE O PEDIDO E A CAUSA DE PEDIR Tendo a ação como causa de pedir a privação do uso do veículo automóvel identificado nos autos do qual a Autora é locatária recai sobre a 3.ª Ré dever de facultar à Autora o veículo de substituição em duas circunstâncias: - se a oficina para reparação for escolhida pelo seguradora - desde a data (…) em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, (cfr art.º 42.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08); - se se tratar de oficina escolhida pelo sinistrado apenas durante os dias de preparação indicados no relatório de peritagem (cfr art.º 42.º, n.º 3 do Decreto[1]Lei n.º 291/2007, de 21.08) A Autora apenas alega que: “14. No dia 5 de abril de 2021, o sinistro foi participado à 3.ª R. (cf. documento n.º 6 e documento n.º 6-A). 15. O veículo foi enviado para uma oficina da 2.ª R., situada em Alfragide 16. A A. solicitou à 1.ª e à 2.ª RR. que lhe fosse facultado um veículo de substituição, mas foi recusado (cf. documento n.º 7). 17. Inicialmente, a A. foi informada de que a reparação demoraria cerca de 3 semanas a um mês.” Omite, porém, se a escolha da oficina foi da autora ou da 3.ª Ré. Não alega se requereu veículo de substituição à 3.ª Ré. Formula, no entanto, os seguintes pedidos: “Nestes e nos melhores termos de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada e, consequentemente, devem as três Rés nos presentes autos ser condenadas a pagar à Autora, solidariamente, uma indemnização no montante de € 22.859,05 (vinte e dois mil, oitocentos e cinquenta e nove euros e cinco cêntimos), acrescido de juros vincendos até total, integral e efetivo pagamento.” Acresce que não são alegados factos integradores da causa de pedir do qual resulte a responsabilidade solidária da seguradora, da oficina reparadora e da empresa responsável por facultar as peças e que permita a formulação a título principal das três Rés no pagamento da quantia pecuniária reportada aos danos que a Autora alega ter sofrido com a demora com a reparação. Logo, não traduzindo a matéria alegada a fonte da responsabilidade solidária a mesma mostra-se em desarmonia, o que é dizer, em contradição com o pedido. É que nos termos do disposto no artigo 512º, nº 1, do Código Civil a obrigação é solidária quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e este a todos libera, resultando a solidariedade dos devedores ou da lei ou da vontade das partes, como resulta do art.º 513º do mesmo Código. Analisada a petição inicial e excluindo a solidariedade decorrente da lei, não aplicável ao caso, não se vislumbra como no caso concreto, a ordem de reparação do veículo automóvel do qual a Autora é locatária na oficina da 2.ª Ré para reparação, sendo as peças fornecidas pela 1.ª Ré e atuando a 3.ª Ré como a seguradora responsável pela peritagem, decorra que a obrigação de reparação seja solidária, do lado passivo, em relação às Rés, por vontade das partes, resultando do art.º 519º, nº 1, do CC, que o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, ficando todos os devedores liberados. Logo, se perceciona a contradição entre o pedido principal e a causa de pedir. Do pedido subsidiário resulta: “Subsidiariamente, mas sem conceder, deve a 3.ª R., Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., ser condenada a pagar à A. uma indemnização no montante de € 22.859,05 (vinte e dois mil, oitocentos e cinquenta e nove euros e cinco cêntimos), acrescido de juros vincendos até total, integral e efetivo pagamento” poderia ser formulado a título principal mas apenas contra a 3.ªRé que não contra as demais Rés por, à partida se mostrar como a única responsável contratual quanto à entrega à Autora de veículo de substituição nos termos contratados, o que não se verificou. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 186.º do Cód. Proc. Civil a petição inicial diz-se inepta quando: a) falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. Importa, face aos fundamentos da exceção, aferir, no caso, da falta ou ininteligibilidade da causa de pedir. Atentos os elementos constantes da petição inicial, concluímos que, existe contradição entre o pedido e a causa de pedir, do que decorre que a petição inicial é inepta e, por isso, conduz à nulidade da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, alínea b) do CPC. A contradição entre o pedido e a causa de pedir conduz à ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 186.º , n.º 1, alínea b) do Cód. Proc. Civil, e, consequentemente à nulidade de todo o processo, exceção dilatória geradora de absolvição da instância. Nestes termos e com tais fundamentos julga-se verificada a exceção de nulidade por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolvem-se as Rés da instância. * Custas a cargo da Autora (cfr. art. 527.º do Cód. Proc. Civil)” * Nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia Como resulta das conclusões do recurso apresentadas pela recorrente sob as alíneas A a E, a ação tem por fundamento a privação do uso do automóvel de que a autora é locatária devido à atuação conjugada das três rés. Considera, em consequência, a autora que o “sinistro na origem dos factos que fundamentam a presente ação não se enquadra no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório, nem nenhuma das partes no processo o invoca” (conclusão A). Na perspetiva da recorrente, “não se discute da obrigação de disponibilização, pela seguradora, de veículo de substituição ao abrigo do disposto no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 291/2007”, pelo que ao enquadrar a obrigação nesses termos “(…) o Tribunal a quo conheceu de uma questão, que não estava em discussão e não integra o objeto do litígio” (Conclusões B e C), conhecendo questão que lhe estava vedada, o que gera a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC). Nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil, “É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. A propósito do vício ora em análise, tem vindo a referir-se que, com maior propriedade, trata-se de um fundamento de anulabilidade da sentença, relacionado com os seus limites, ocorrendo quando o juiz incorre em excesso de pronúncia – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[2]. Na realidade, excetuados os casos em que a lei permite (ou impõe) o conhecimento oficioso de questões que não foram suscitadas pelas partes (cfr. artigos 5º, nºs 2 e 3 e 608º, nº 2, CPC), o conhecimento da causa pelo juiz está fortemente condicionado às alegações das partes. Consequentemente, não lhe é lícito conhecer de “causas de pedir não invocadas” ou “exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes”, nem condenar ou absolver “em quantidade superior” ou em “objeto diverso ao pedido” - Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit pág. 737. Porém, nos termos do disposto no artigo 5º nº 3 do Código de Processo Civil: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”. Ora, da alegação da autora resulta que a atuação conjugada das três rés determinou que, durante cerca de oito meses, se visse privada da utilização de viatura que adquiriu no regime de locação financeira, o que lhe causou inúmeros danos. Mais concretamente, considerou que a falta de diligência de todas as rés prolongou, de forma injustificada e ilícita, a reparação do veículo. No que se reporta ao enquadramento jurídico da pretensão deduzida, a autora imputou às rés a prática de factos ilícitos extracontratuais, nos termos do disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, considerando ser solidária a respetiva responsabilidade, nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil. A decisão recorrida, no âmbito da apreciação da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, considerou recair sobre a 3ª ré o dever de facultar à autora veículo de substituição, nos termos do disposto nos artigos 42º e 43 do DL 292/2007, de 21 de agosto. Ora, tal enquadramento jurídico efetuado na decisão recorrida do litígio no âmbito do DL 291/2007, de 21 de agosto (Regime do Sistema Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), sendo diverso do propugnado pela autora, mostra-se fundamentado ao abrigo da norma que estabelece que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5º, nº 3, CPC). A este propósito, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 15-03-2018[3], considerando: “Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino Iura novit Curia, – atualmente consagrado no n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”). Ao abrigo deste princípio, o tribunal pode e deve apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões jurídicas distintas daquelas que foram concitadas pelas partes. Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil – serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objeto da causa”. Questão diversa (e que se apreciará de seguida por integrar o objeto do recurso) é a de saber se tal enquadramento, efetuado no momento da prolação do despacho saneador e a propósito do conhecimento da arguida exceção de ineptidão da petição inicial (cfr. artigo 186º, nº 2, alínea b), CPC), se revela prematuro ou desadequado. Porém, tal sindicância deverá ser efetuada por via do recurso da própria decisão, e não da arguição da nulidade que, nos termos expostos, não se verifica. Pelo exposto, indefere-se a arguição da nulidade da decisão recorrida, com base em excesso de pronúncia (cfr. artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC. * Da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir A propósito da ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º do Código de Processo Civil: “1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2 - Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. 3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. 4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo”. A nulidade do processo por ineptidão da petição inicial configura exceção dilatória nominada que determina a absolvição dos réus da instância – cfr.- artigos 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea b), 278º, nº 1, alínea b), CPC. O pedido, que nos termos do disposto nos artigos 3º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea e), CPC, deve ser formulado pelo autor na petição inicial, consiste na providência processual requerida ao tribunal para tutela da “(…) situação jurídica ou do interesse (…) materialmente protegido”- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[4]. Na definição destes autores, a causa de pedir consiste no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer”[5]. Assim, a causa de pedir será constituída “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019[6]. Nos termos do disposto nos artigos 5º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea d), CPC, incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir A contradição entre o pedido e a causa de pedir suscetível de gerar a ineptidão da petição inicial nos termos do artigo 186º , nº 2, alínea b), CPC, reporta-se a uma “(…) contradição lógica, distinta da inconcludência jurídica, isto é, da situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da ação (…)Em primeiro lugar, há que ter em conta que a ocorrência de factos impeditivos do efeito jurídico pretendido pelo autor , ainda que eles sejam alegados na petição inicial, é irrelevante para a configuração do vício (…) em segundo lugar (…) não basta que o efeito jurídico pretendido pelo autor não se retire da norma jurídica constitutiva por ele invocada: sempre haverá que ter em conta todas as outras normas constitutivas do sistema aplicáveis aos factos alegados, das quais o juiz o poderá oficiosamente retirar (…) em terceiro lugar, não basta ainda à contradição entre o pedido e a causa de pedir que nenhuma norma constitutiva estatua o efeito jurídico pretendido como consequência dos factos invocados como causa de pedir (…) é preciso que haja oposição entre o pedido e causa de pedir, que o pedido brigue com a causa de pedir” – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7]. Ora, por forma a indagar da verificação do mencionado vício, haverá que ter presente que da alegação contida na petição inicial extrai-se, no essencial, o seguinte: - A autora em janeiro de 2019 celebrou um contrato de locação financeira que teve por objeto um veículo de marca Tesla, Modelo S Long Range, tendo-se comprometido a pagar à locadora 48 rendas, no valor global de € 75.105, 69, ficando com a opção de aquisição do veículo no termo do contrato, pelo valor de € 1.502,11, acrescido de IVA; - Em cumprimento de tal contrato, a autora celebrou com a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” “um seguro com cobertura de danos próprios decorrentes de choque, colisão e capotamento e privação de uso por sinistro” (artigo 10º da petição inicial); - No dia 03-04-2021, o gerente da autora, condutor habitual da referida viatura, sofreu um sinistro, que consistiu no despiste da viatura, o qual foi participado à ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA”; -Com vista à sua reparação, o veículo foi enviado para uma oficina sita em Alfragide, pertencente à ré “C. Santos-Veículos e Peças, SA”.; - A autora solicitou às rés “Tesla Portugal-Sociedade Unipessoal, Ldª” e “C. Santos – Veículos e Peças, SA” um veículo de substituição mas o mesmo foi-lhe recusado; - A reparação do veículo arrastou-se ao longo de quase 8 meses, o que se deveu à atuação de todas as rés; - Assim, a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” atrasou as averiguações iniciais, tendo demorado cerca de um mês a proceder às diligências que entendeu convenientes e a dar indicação à ré “C. ...” para iniciar a reparação; -Já a ré “Tesla Portugal-Sociedade Unipessoal, Ldª” não respondeu atempadamente ao pedido de assistência técnica que lhe foi dirigido pela “C. ... – Veículos e Peças, Ldª”, nem procedeu ao envio das peças necessárias para o efeito, tendo ainda atrasado a realização das peritagens das baterias; - Por seu turno, a ré “C. ... - Veículos e Peças, Ldª” só quando a reparação do veículo já se encontrava num estado avançado constatou que era necessário encomendar novos percussores dos cintos de segurança, e, mais tarde, que o veículo apresentava problemas na caixa de direção, e que era necessária a instalação de tal peça, em estado novo; - Acresce que quando a ré “C. ... - Veículos e Peças, Ldª” contactou o representante da autora para proceder ao levantamento do veículo, este apresentava ainda vários danos que exigiram o prolongamento da reparação; - Durante o período em que a viatura esteve a aguardar reparação, a autora da mesma não usufruiu, mas pagou as rendas contratualmente previstas e vencidas no valor de € 11.930,56; - Durante esse mesmo período, a autora suportou um acréscimo em despesas de combustíveis que computou em € 2.000,00 (o veículo em questão era elétrico e no período da reparação a autora teve que recorrer a outro veículo, movido por combustíveis fósseis); - A autora sofreu incómodos e transtornos, que considerou compensáveis com a quantia de € 2.000,00; - A autora, durante o período em que a viatura esteve imobilizada, para reparação, deixou de retirar qualquer benefício da sua utilização, o que gerou na sua esfera jurídica um lucro cessante de € 5.867,63 (que calculou com base no critério da correspondência a metade da depreciação sofrida pela viatura, que alegou ter sido de € 11.735,26). - Na perspetiva da autora, a atuação das rés não foi diligente, gerando a violação do seu direito de propriedade, imputando-lhes a prática de facto ilícito extracontratual, nos termos do disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, considerando ser solidária a responsabilidade de todas as demandadas nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil; - A autora solicitou, a título principal, a condenação solidária das rés no pagamento do valor global de € 22.859,05 e subsidiariamente, pediu a condenação da ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” no pagamento daquele valor. A interpretação de tal articulado deverá ser efetuada de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código. Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, de harmonia com o princípio interpretativo exposto, conclui-se que a autora atribui às rés a prática de factos ilícitos (que enquadra juridicamente no domínio da responsabilidade extracontratual prevista nos artigos 483º e ss do Código Civil), considerando que a atuação de todas as rés, em conjunto e no concreto facto histórico que descreve naquele articulado, gerou os danos de que pretende ser compensado por via da presente ação. Danos esses que, de harmonia com o enquadramento jurídico que conferiu à causa, responsabilizam solidariamente todas as rés, nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil. Ora, tal enquadramento jurídico não se afigura isento de dúvidas e até de imprecisões. Desde logo, no artigo 90º da petição inicial, invoca a autora um direito de propriedade sobre o veículo que foi objeto do contrato de locação financeira descrito, contrato esse que por não estar ainda cumprido integralmente, e por não ter sido exercida ainda a opção de compra, não lhe confere tal direito – cfr. artigo 1º Dl 149/95, de 24 de junho, na sua atual redação. Porém, julgamos que se trata de lapso colmatado pela leitura global do articulado, do qual resulta que no período em que o veículo esteve imobilizado aguardando reparação, a autora, embora tenha suportado os encargos inerentes à locação financeira, pagando as rendas devidas, não o pode afetar à sua atividade, o que gerou um dos danos que pretende ver ressarcidos por via da presente ação. Ou seja, mais do que a lesão do direito de propriedade (cuja aquisição naquele momento constituiria mera expetativa), a autora viu lesado, de forma prolongada, o direito ao uso da viatura, direito esse que lhe era conferido pelo contrato em questão. Por outro lado, também o enquadramento do litígio efetuado pela autora no âmbito da responsabilidade extracontratual não se afigura isento de dúvidas, uma vez que os factos concretos que carreou para os autos poderão vir a merecer enquadramento diverso, quer no âmbito da responsabilidade do produtor, quer no domínio contratual. Ou seja, sendo manifesto que parte da factualidade alegada, ao contrário do que defende a recorrente, pode bem vir a ser subsumida à responsabilidade contratual, o certo é que a opção final de enquadramento jurídico apenas na decisão de mérito poderá vir a ser efetuada. No atual estado dos autos, tendo por base a alegação da autora, não pode deixar de ser configurada a eventual existência de um concurso entre a responsabilidade contratual e extracontratual que ocorre quando, como refere Fernando A. Ferreira Pinto[8] “um único facto danoso, praticado por uma só pessoa, integra simultaneamente os pressupostos de aplicação dos regimes da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, representando, pois, concomitantemente, a inexecução de uma obrigação em sentido estrito e a violação do genérico dever de neminem laedere. São duas, por conseguinte, as suas caraterísticas essenciais: por um lado, do ponto de vista subjetivo, lesante e lesado correspondem, respetivamente, ao devedor e ao credor de uma relação obrigacional, por outro lado, do ponto de vista objetivo, o dano aquiliano é consequência direta do inadimplemento da obrigação”. De todo o modo, interpretada a causa de pedir e os pedidos formulados, não pode concluir-se que se verifique, entre ambos, uma incompatibilidade formal, reveladora de falta de absoluto nexo lógico, ou sequer que ambos se excluam reciprocamente. Ao invés, independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido formulado (indemnização) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando a apontada contradição, sem embargo de, no momento próprio, o tribunal a quo optar por diverso enquadramento jurídico para o litígio. Efetivamente, como já referido se no nosso regime processual civil, fortemente influenciado pelo princípio do dispositivo, cabe às partes carrear para o processo os factos (pelo menos os essenciais) que integrarão o objeto do processo, e ao tribunal incumbe a apreciação das questões que lhe incumbe conhecer com base nos fundamentos jurídicos que considere aplicáveis. Julgamos ser esta a posição que se revela mais conforme ao atual regime processual civil, relativamente ao qual se deve afirmar o “princípio da prevalência do fundo sobre a forma” com, se necessário, o convite à correção de imprecisões da matéria de facto ou à sua complementação, com base nos poderes de gestão inicial do processo conferidos ao juiz, e sempre com a perspetiva da justa composição do litígio e, consequentemente, da efetiva tutela jurisdicional– cfr. artigos 6º, 7º, e 590º CPC e artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. A este propósito, refere-se no acórdão da Relação de Évora de 17-06-2021[9]: “No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a atividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis (…) Efetivamente, a generalidade das exceções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal” e na mesma decisão, citando Abrantes Geraldes[10] a propósito da falta de requisitos dos pedidos, refere-se que “(…) deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador». Importa, pois, determinar a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que, julgando improcedente a exceção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ordene a prossecução dos autos. Revelando-se procedente o recurso, as custas serão integralmente suportadas pelas recorridas “Tesla Portugal-Sociedade Unipessoal, Ldª” e “C. Santos-Veículos e Peças, Ldª”, por terem contra-alegado e ficado vencidas – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC * III – DECISÃO Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando, em consequência, a decisão recorrida e, em sua substituição, julgar improcedente a exceção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ordenando o prosseguimento da normal tramitação dos autos. Custas da apelação pelas recorridas “Tesla Portugal-Sociedade Unipessoal, Ldª” e “C. Santos - Veículos e Peças, Ldª” – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC D.N. Lisboa, 9 de maio de 2024 Rute Sobral Carlos Castelo Branco Paulo Fernandes da Silva _______________________________________________________ [1] Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 181. [2] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2ª, 3ª edição, pág. 735 [3] Proferido no processo nº 2057/11.0TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt [4] Ob. Cit pág. 352. [5] Ob. Cit. Pág. 353. [6] Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt [7] Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Vol 1º, pág. 354 e 355. [8] O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, Revista de Direito Comercial, www.revistadedireitocomercial.com pág. 3 e 4 [9] Proferido no processo nº 112/20.4T8TBV-E1, disponível em www.dgsi.pt [10] Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2ª edição pág. 126, 132, 147 a 150 e 158 |