Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
86/22.7T8VLS.L1-3
Relator: ROSA VASCONCELOS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
ADMOESTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGAR PROVIMENTO
Sumário: – Em matéria de contra-ordenações, o poder de cognição do Tribunal da Relação Tribunal é restrito a matéria de direito (artigo 75º, nº 1, do RGCO).

– Não pode o tribunal conhecer de alegada nulidade da sentença por omissão de pronúncia se o recurso interposto for omisso quanto às concretas questões que, na perspectiva da recorrente, carecem de apreciação por parte do tribunal a quo e relativamente às quais tenha sido omitida pronúncia.

 À prática de contra-ordenação classificada como grave não pode aplicar-se a admoestação, sanção prevista no artigo 51.º do RGCO para as situações de reduzida gravidade. O grau de ilicitude e de culpa devem ser considerados sim, mas para determinar a medida da coima no quadro da moldura legalmente prevista.

(Sumário elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.–Relatório


1.–Por sentença de 21 de Junho de 2022 foi julgado improcedente o recurso interposto pela sociedade PLU, Lda. e mantida na íntegra a decisão da entidade administrativa que lhe aplicou coima de €3.750,00 pela prática da contra-ordenação, prevista e punida pelas disposições conjugados dos artigos 12.°, n.° 3, 59.°, n.° 2, alínea p), e n.° 4, alínea b), do REASP.
2.–Inconformada, a sociedade interpôs recurso suscitando a nulidade da sentença recorrida e da decisão administrativa. Subsidiariamente, defendeu a substituição da coima imposta pela sanção de admoestação prevista no artigo 51.° do RGCO.

Apresentou as seguintes conclusões da motivação:
“(-)
1.–A sentença em crise não se pronunciou sobre a nulidade invocada pela recorrente na sua impugnação, concretamente a nulidade da decisão administrativa nos termos do Art. 379° n. 1 al. c) do C.P.P..
2.–Antes, avaliou a nulidade na sentença nos termos do Art. 379° n. 1 al. b) do C.P.P., realidade que nem sequer foi suscitada pelo recorrente / impugnante.
3.–Ao não avaliar, ponderar e decidir sobre os argumentos apresentados pelo recorrente e sobre a nulidade da decisão administrativa tal como requerido, a decisão proferida é nula porquanto o tribunal deixou “de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (...)”, nos termos do Art. 379.°, n. 1 al. c) do C.P.P.
4.–Nulidade que ostensivamente está revelada no texto da sentença, e que se alega para todos os devidos efeitos legais, em conformidade com o disposto nos Art. 118.°, n.° 1 e 379.°, n. ° 2, todos do CPP.
5.–Nos termos do Art. 58.° do RGCO a decisão da autoridade administrativa deve ser devidamente fundamentada e conter, entre outros elementos, a descrição dos factos imputados.
6.–Uma leitura da decisão administrativa permite constatar que a mesma, na factualidade provada, se limita a remeter os mesmo para o “relatório indicado em 1”, sem dar como provados qualquer facto alegado pela defesa, ainda que a refira na motivação da matéria de facto...
7.–Tal descrição na factualidade provada é manifestamente insuficiente pois não pode a entidade administrativa remeter para um relatório, devendo sim individualizar os factos, todos os elencados pelas partes, referindo os provados e não provados para imputar ao arguido uma conduta que se enquadra num dado normativo legal.
8.–Tal não foi feito e os “factos não provados” nem sequer existem.
9.–E, no presente caso concreto, para o objecto processual estar definido na factualidade provada esta deveria ter expressamente referido, sequencial e logicamente, todos os factos provados alegados pelas partes, de forma directa e concreta e não remeter para um relatório. esquecendo outras posições dos autos.
10.–A omissão da fundamentação, na decisão administrativa, consubstancia uma nulidade, à semelhança do que acontece com as decisões judiciais - cfr. art.° 379.°, n. ° 1, al. c), art. ° 374.°, n.° 1 e n.° 2 e art. ° 118, n.° 1 do CPP e art.° 41.°, n.° 1 do RGCO; vide ainda RGCO anotado, Simas Santos e Lopes de Sousa, p. 389 e Comentário ao RGCO de Paulo Pinto de Albuquerque, p. 236 e seguintes.
11.–Esta nulidade de omissão de pronúncia ocorre quando se verifica violação do dever processual que a autoridade administrativa tem em relação às partes, de se pronunciar sobre todas as questões por elas suscitadas - Idem obras citadas.
12.–A nulidade que se argui para todos os devidos efeitos legais.
13.–Atendendo às circunstâncias do caso concreto, temos que a aplicação ao Recorrente de uma coima, ainda que especialmente atenuada, acarreta uma punição desproporcional, injusta e desadequada ao fim da norma em si.
14.–A Sociedade Recorrente é uma pequena empresa, semi-familiar que atravessa naturais dificuldades há dois anos derivadas da pandemia que se instalou.
15.–A coima que lhe é aplicada desestabiliza toda a sua frágil tesouraria, deficitária, logo num momento de esperança face a uma previsível e desejada normalidade ainda no decorrer deste ano, ultrapassada que seja a situação pandémica.
16.–Trata-se de uma punição exagerada, desproporcional com a culpa do Requerente (mera negligencia simples), com os benefícios retirados (nenhum) e com a total ausência de violação do bem jurídico que a norma incriminadora quis proteger: a segurança dos cidadãos, bem jurídico que se manteve incólume com a atitude da sociedade arguida.
17.–A Recorrente é ainda uma Sociedade totalmente primária no que toca a eventuais contra-ordenações sofridas, acrescendo que a infracção cometida foi prontamente reparada e se revelou efectivamente de reduzida gravidade (atendendo ao bem jurídico e ao tipo de estabelecimento do Recorrente).
18.–Enquadrando-se a sua conduta na previsão teleológica e literal, mesmo, do disposto no artigo 51.° do RGCO, deve a conduta do requerente ser punida com uma pena de admoestação, porquanto se respeitam os requisitos que aquela norma impõe para que tal aconteça, nomeadamente, a reduzida gravidade da contra-ordenação e a reduzida gravidade da culpa do agente.
19.–De facto, apesar de se tratar de uma contra-ordenação qualificada como grave se a intenção do legislador fosse a de que apenas as contra- ordenações leves pudessem ser sancionadas com admoestação, e já não as graves, por certo o teria dito de modo inequívoco no n.° 1 do art. 51.°do RGCO;
20.–Porém não o fez, usando terminologia diversa, qual seja a da "reduzida gravidade".
21.–Enquadrando-se a sua conduta na previsão teleológica e literal, mesmo, do disposto no artigo 51.° do RGCO, deve a conduta do requerente ser punida com uma pena de admoestação, acrescendo que a infracção cometida foi prontamente reparada e se revelou efectivamente de reduzida gravidade (atendendo ao bem jurídico e ao tipo de estabelecimento do Recorrente).
22.–Violou a sentença em crise as seguintes normas: art.° 379.°, n.° 1, al. b) e c), art.° 374.°, n.° 1 e n.° 2 e art.° 118, n.° 1 do CPP e art. ° 41. °, n.° 1 e 51. ° do RGCO e Artigo 9. ° do Código Civil; (...).”

3.–O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes conclusões:
“(..•)
1.–A recorrente foi condenada pela prática de contraordenação prevista e punida pelos artigos 12°, n.° 3, 59°, n.°2, alínea p) e n.°4, do REASP, na sua redação anterior em vigor à data dos factos, na coima de €3.750.00 (três mil e setecentos e cinquenta euros), especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 59°, n.°9, do referido diploma e 72°, do Código Penal.

2.–Inconformada a Recorrente com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo recorreu da mesma, invocando, em síntese:
a)-quanto à decisão administrativa, nulidade por omissão de pronuncia nos termos do artigo 58°, do Regime Geral das Contraordenações e 379°, alínea c), do Código de Processo Penal;
b)-quanto à sentença proferida pelo Tribunal a quo, nulidade de sentença por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379°, alínea a), do Código de Processo Penal;
c)-substituição da coima aplicada por admoestação, nos termos do artigo 51° do Regime Geral das Contraordenações.

3.–Pelas razões infra expendidas, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida nos exatos termos em que foi proferida.
4.–Foi acertada a subsunção jurídico-penal dos factos considerados como provados bem como a análise das nulidades suscitas, concluindo pela inexistência das mesmas.
5.–A Douta Sentença proferida não violou quaisquer normas legais.
(•••)”

4.–O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste tribunal da relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

5.–Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.

II.–Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas, nas quais, de forma sintética e por referência à motivação do recorrente, são expostas as razões da discordância face à decisão recorrida (artigos 402°, 403° e 412°, n.° 1 do CPP). Ao tribunal de recurso cabe ainda apreciar de eventuais questões de conhecimento oficioso designadamente, se existentes, da verificação dos vícios do artigo 410° do Código de Processo Penal.
No caso, inexistindo questões de que importe conhecer oficiosamente e face às conclusões da motivação apresentadas pela recorrente são as seguintes as questões a decidir: a) da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia (artigo 279°, n.° do Código de Processo Penal); da possibilidade de aplicação de admoestação.

III.–Fundamentação

Vejamos o teor da sentença recorrida.
“(-)

Factos Provados:

Assim, da prova produzida, com relevância para a decisão a proferir, resultou provada a seguinte factualidade:
1.–Entre o dia 14 de Março de 2019, pelas 15:28 horas, e o dia 26 de Março de 2019, pelas 12:00 horas, no estabelecimento comercial LL Cópia, de PLU, Lda., sito no Parque Industrial …, em Velas, o autuante, acompanhado da testemunha policial, em acção de fiscalização e no desempenho das funções que lhe são atribuídas, verificou que a Arguida/Recorrente procedia à instalação de sistemas de videovigilância e de alarmes de intrusão sem ter efectuado o registo prévio na Direcção Nacional da PSP.
2.–O comportamento pouco zeloso e diligente da Arguida/Recorrente mostra-se desfasado do tipo de actuação que uma actividade colectiva como a Arguida normalmente avisada e cautelosa adoptaria, o que revela uma atitude interna específica da culpa negligente, punível a esse título, nos termos do artigo 8.°, n. ° 3, do RGCO e artigo 59. °, n.° 8, do REASP, segundo o qual os ilícitos contra-ordenacionais aí tipificados são imputados a título de negligência.

Mais se provou que:
3.–Em 8 de Abril de 2019 a Arguida/Recorrente efectuou o registo prévio das câmaras junto da Direcção Nacional da PSP.
4.–Na declaração de IRC entregue pela Arguida/Recorrente relativa ao ano de 2020, a mesma apresentava prejuízo fiscal de € 15.924,36 sem lucro tributável.
5.–A Arguida/Recorrente não tem antecedentes criminais nem contra-ordenacionais por factos sujeitos a registo.

Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão.
(...)

Motivação de Facto
(■■■)

Motivação de direito
Nos presentes Autos, foi a Arguida condenada pela violação dos comandos legais ínsitos nos artigos 12. °, n.° 3, e 59. °, n.° 2 al. p), da Lei n.° 34/2013, de 16 de Maio, na redacção originária:

Artigo 12.°
Empresas de segurança privada
(...)
3- Sem prejuízo do disposto no número anterior, as entidades que procedam ao estudo e conceção, instalação, manutenção ou assistência técnica de material e equipamento de segurança ou de centrais de alarme são obrigadas a registo prévio na Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública (PSP).
(...).

Artigo 59.°
Contraordenações e coimas
(...)
São graves as seguintes contra-ordenações:
(...)
p)-O exercício das atividades a que se refere o n.° 3 do artigo 12.° sem registo prévio, ou incumprimento dos requisitos e condições fixados em regulamento.
(...)
- Quando cometidas por pessoas coletivas, as contraordenações previstas nos números anteriores são punidas com as seguintes coimas:
(...)
b)-De (euro) 7500 a (euro) 37 500, no caso das contraordenações graves;
(...)
8-A tentativa e a negligência são puníveis.
9-Nos casos de cumplicidade e de tentativa, bem como nas demais situações em que houver lugar à atenuação especial da sanção, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade."
Actualmente encontra-se em vigor a citada Lei, com a redacção dada pela Lei n.° 46/2019, de 08 de Julho, que revogou a norma do artigo 12.°, na sua totalidade, introduzindo o artigo 4.°-A em substituição parcial que, no caso dos autos, mantém a punibilidade a título de contra-ordenação dos factos sob análise.
Por não se tratar, em concreto, de lei mais favorável (mantendo-se o regime, natureza e moldura da contra-ordenação), não há lugar à aplicação de lei posterior, nos termos do artigo 3°, n. ° 2, do RGCO.
Falamos de um diploma legal concebido e destinado a regular o regime do exercício da actividade de segurança privada e da organização de serviços de autoprotecção, estabelecendo ainda as medidas de segurança a adoptar por entidades, públicas ou privadas, com vista à protecção de pessoas e bens e à prevenção da prática de crimes.
Isto, na medida em que a segurança privada e a autoprotecção só podem ser exercidas nos termos daquela lei e da respectiva regulamentação, porquanto têm uma função complementar à actividade das forças e serviços de segurança do Estado.
A ratio das normas acima invocadas imbrica com questões de segurança e de preservação da prova, tentando garantir que ambos os desideratos consubstanciam valores jurídicos acautelados e, simultaneamente, devidamente regulamentados e delimitados legislativamente.
Subsunção Jurídica
Volvendo a nossa atenção para a situação de que aqui se cuida, aferimos que a actuação da Arguida/Recorrente integrou, efectivamente, a prática do ilícito contra- ordenacional que lhe vem imputado.
Fê-lo a título negligente, na senda do que aliás também foi consignado pela entidade administrativa que elaborou a decisão ora impugnada.
Ademais, em conjugação com as outras circunstâncias aquilatadas, designadamente o facto de a Arguida/Recorrente ter colmatado a situação num curto espaço de tempo, foi especialmente atenuada a coima aplicada em concreto.
Ora, vem a Arguida/Recorrente pugnar pela aplicação de uma admoestação, atento todo o circunstancialismo que envolveu a presente situação, alegando que tanto a culpa como a gravidade da infracção cometida se mostram, in casu, diminuídas.
A primeira operação a realizar, no âmbito da subsunção e tendo em consideração o invocado pela Arguida/Recorrente, será verificar se estando perante uma contra-ordenação classificada pela lei como grave, poderá ser aplicado o instituto em causa.
Para clareza argumentativa, transcreve-se a norma que prevê a admoestação.

Artigo 51. ° do RGCO
Admoestação
1–Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
2–A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.
O primeiro elemento a ter em conta na interpretação é o literal, conforme resulta do artigo 9. ° do Código Civil.
O recurso a este elemento exige, sendo a mais avisada doutrina, o recurso simultâneo ao elemento lógico, contendo tal interpretação estes dois elementos, de forma incindível.
O sub elemento lógico compreende, por seu lado o elemento sistemático (a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada), o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global e a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Cabe, ainda, aqui o elemento racional ou teleológico, onde se enuncia qual a razão de ser da norma e o fim visado pelo legislador ao proceder à sua elaboração.
É com estes elementos que vamos analisar se o argumento da Arguida/Recorrente é merecedor da nossa concordância.
Alega a Arguida/Recorrente que as expressões utilizadas pela lei são diversas (o mesmo será dizer que reduzida gravidade não equivale nem se restringe, segundo a primeira, à contraordenação leve), pelo que diferente deve também ser a solução jurídica adoptada.
O raciocino parte de uma premissa verdadeira, mas é certo que se o texto/palavras utilizadas fossem as mesmas, não haveria lugar à interpretação que aqui se faz, mas à mera subsunção.
A pedra-de-toque reside em saber se tal diferença permite, interpretativamente, o resultado almejado por aquela.
No texto da norma em que se pune a contra-ordenação (cf artigo 59. °, n.° 2, alínea p), da Lei 34/2013, de 16 de Maio) refere-se que ”são graves as seguintes contraordenações: [...]p) O exercício das atividades a que se refere o n.° 3 do artigo 12.° sem registo prévio, ou incumprimento dos requisitos e condições fixados em regulamento”, o que foi também mantido na nova redação, por reporte ao artigo 4°-A. da mesma Lei.
A possibilidade de se aplicar a admoestação está prevista no artigo 51.°, n.° 1, do RGCO, onde se lê que "quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.
As contra-ordenações têm um escalonamento de gravidade, podendo ser leves (cf. artigo 59.°, n.° 3), graves (cf. artigo 59.°, n.° 2) ou muito graves (cf. artigo 59.°, n.° 1). Cada uma das categorias excluí as restantes, não se admitindo que existam flutuações entre estas.
Estando claramente definidos os conceitos, resulta diáfano que a lei quis e distinguiu as contra-ordenações por gravidade, não havendo forma de interpretar que a "gravidade reduzida” prevista na norma da admoestação pode abranger contra-ordenação que a lei qualifica e adjectiva como "grave” ou "muito grave”, já que tal aceitação subverte o elemento literal e, como tal, é inadmissível à luz do artigo 9.°, n.° 2, do CC, por se tratar de interpretação "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso ".
Debrucemo-nos, além disso, no elemento sistemático. A Lei n. ° 34/2013, de 16 de Maio consagra o regime do exercício da actividade de segurança privada, punindo diversas condutas como contra-ordenação.
Encontra-se, assim, ao abrigo das regras gerais previstas no Decreto-Lei n. ° 433/82, de 27 de Outubro, que consagra o denominado regime geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, entre nós conhecido por RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).
Este último diploma é norma geral em relação à Lei 34/2013 e esta última é norma especial em relação àquela. Do que dissemos resulta que apenas há a aplicação do regime especial quando o mesmo assim o determine, aplicando-se, na falta de regra específica, as regras gerais.
O RGCO prevê a admoestação como sanção, no artigo 51.°, explicitando o seu regime.
A Lei 34/2013 não faz referência à admoestação em nenhuma das suas normas.
Ora, não sobrevém qualquer dúvida que a aplicação da admoestação tem de seguir o regime previsto no RGCO, por imposição legal, e que apenas pode ser aplicada em caso de contra-ordenação leve, por não ser grave ou muito grave, como aí determinado.
O elemento teleológico também é contrário ao entendimento da Arguida/Recorrente. As contra-ordenações estão, como já mencionamos, previstas por categoria (de gravidade) e é dentro de cada categoria que se fixa a respectiva coima.

Existem, assim, diferentes molduras, por categoria de contra-ordenação. Na lei 34/2013 estão previstas as seguintes molduras:
a)-as contra-ordenações leves são puníveis com coima de €1.500,00 a €7.500,00, no caso de pessoa colectiva e de €150,00 a €750,00, no caso das pessoas singulares;
b)-as contra-ordenações graves são puníveis com coima de €7.500,00 a €37.500,00, no caso de pessoa colectiva e de €300,00 a €1.500,00, no caso das pessoas singulares e as contra- ordenações muito graves são puníveis com coima de €15.000,00 a €44.500,00, no caso de pessoa colectiva e de €600,00 a €3.000,00, no caso das pessoas singulares.

A ratio legal é punir com coima mais elevada a contra ordenação muito grave em relação à grave, e esta última com coima mais elevada do que a classificada como leve.

Só neste último caso, até pelo menor montante patrimonial em que se consubstancia a coima, poderá haver a "substituição" da coima por admoestação, sob pena de, também aqui, se admitir uma latitude ao decisor que permite conformar a concreta moldura a aplicar, ao invés da determinação do quantum dentro de uma moldura já pré estabelecida pelo legislador.

Também aqui o argumento da Arguida/Recorrente se mostra com falta de substracto bastante para ter provimento.

Tudo isto em cumprimento da presunção legal de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, imposta ao intérprete aquando da fixação do sentido e alcance da lei, presunção ilidível mediante prova em contrário que, aqui, não se logrou fazer (cf artigos 9.°, n.° 3 e 350.°, n.° 2, ambos do Código Civil).

Por fim, cumpre ainda aludir à jurisprudência obrigatória, fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.° 6/2018, de 14-11, segundo o qual ”a admoestação prevista no artigo 51.°, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10, não é aplicável às contraordenações graves previstas no art. 34.°, n. ° 2, do Decreto-Lei n. ° 78/2004, de 03.04”.

Ainda que no douto acórdão referido não se analise a mesma Lei, no artigo 34. °, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 78/2004 de 03 de Abril refere-se, em paralelo, que "constitui contra- ordenação grave, punível com coima de (euro) 500 a (euro) 3700, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 5000 a (euro) 44800, no caso de pessoas colectivas” o comportamento concretizado nas alíneas subsequentes.
Assim, temos que o raciocínio jurídico subjacente à posição vertida naquele acórdão uniformizador é aplicável, mutatis mutandis, nos presentes autos, não cabendo, também por esta via, aplicar tal regime de admoestação a uma contra-ordenação que seja qualificada como grave na própria lei.
No mesmo sentido vão aliás, outros Arestos, como se pode aferir, a titulo de exemplo, através do Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 17/09/2014, processo n.° 656/13.4TBPNF.P2,'ou do Tribunal da Relação de Évora de 08-03-2018, processo n.° 2551/17.9T8ENT.E1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
Posto isto, e sem necessidade de ulteriores considerações, deve manter-se a coima aplicada.
No mais, tal sanção já foi objecto de especial atenuação pela entidade administrativa, considerando, entre outras circunstâncias, que a Recorrente colmatou a sua falta a breve trecho, pelo que a decisão por aquela tomada deve manter-se in totum (à luz dos artigos 59. °, n.° 9 do referenciado diploma e 72. ° do Código Penal por remissão do artigo 32.° do Regime Geral das Contraordenações).
Como referido supra as questões trazidas à apreciação deste tribunal de recurso respeitam: a) à nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia (artigo 379.°, n.° 1 alínea c) do Código de Processo Penal); e b) à pretendida substituição da coima aplicada por admoestação, sanção prevista no artigo 51.° RGCO.
Quanto à primeira questão, refere-se, desde já, que nenhuma razão assiste ao recorrente. Tal como no inicial recurso da decisão da entidade administrativa, em nenhum segmento do recurso ora interposto foram identificadas as concretas questões que, na perspectiva da recorrente, careciam de apreciação por parte do tribunal a quo e relativamente às quais tenha sido omitida pronúncia. Num e noutro caso, limitou-se a recorrente a invocar terem sido “alegados relevantes factos pela defesa"’ que não surgem como provados ou como não provados na decisão. Ora, a mais do poder de cognição deste Tribunal ser restrito à apreciação da matéria de direito (artigo 75°, n° 1, do RGCO), a verdade é que, face à referida ausência de concretização, se desconhecem que factos sejam esses[1]. Acresce que a sentença recorrida conheceu da nulidade suscitada em toda a sua amplitude e em termos que merecem total concordância deste tribunal. Pronunciou-se a mesma sobre os requisitos formais e substanciais da decisão administrativa descritos no artigo 58.°, n.° 1 do RGCO e sobre as exigências de fundamentação, necessariamente atenuadas relativamente às exigidas no caso de sentença penal. E pronunciou-se expressamente sobre a concreta nulidade colocada pela recorrente, indeferindo-a, como flui dos seguintes segmentos da sentença recorrida:
“(-)
A Arguida/Recorrente invocou, no seu requerimento recursório, a nulidade da decisão ora posta em crise, alegando que a mesma não contém uma descrição, no âmbito da factualidade provada, que se mostre suficiente para ancorar o sentido do dispositivo, na medida em que a entidade administrativa se limita a remeter para um relatório, não individualizando os factos imputados à arguida.
Por outro lado, ainda segundo a recorrente, nem sequer foi tida em consideração a defesa apresentada, seja como factualidade tida por demonstrada ou como não comprovada.
Ora, atentando na decisão administrativa aqui em crise, aferimos que a mesma é, efectivamente parca, na factualidade que aduz.
Todavia, não é por isso que deixa de se mostrar suficiente para a respectiva percepção, justificação e possibilidade de impugnação por parte da Arguida e sindicância por parte do Tribunal.
Se, por um lado, no segmento da decisão administrativa "dos factos provados" é referenciado que os factos tidos por demonstrados se encontram descritos no "relatório" indicado em 1), isto é, a factualidade é consignada por remissão, a verdade é que por outro lado, no aludido campo "relatório" os factos que deram origem à decisão de aplicação de coima se encontram descritos.
Neles consta o dia, a hora e o local em que ocorreu a infracção, e ainda em que é que a mesma se consubstanciou.
De resto, da decisão administrativa em causa deflui concomitantemente que, pese embora não tenha sido expressamente enunciado no campo destinado aos factos tidos como demonstrados, foram tomadas em consideração as circunstâncias que, in casu, poderiam (como puderam) influenciar na medida concreta da coima, e designadamente o tipo de culpa aferido, a inexistência de benefício económico com a prática da contraordenação e o facto de a Recorrente ter entretanto efectuado o registo prévio junto da entidade competente.
No mais, a Arguida não demonstra qualquer facto que ateste a não verificação da infracção imputada, ou que infirme a força probatória do auto de notícia levantado, sendo que dela também não resulta qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
A decisão recorrida enuncia ainda os factos objectivos e subjectivos dados como demonstrados, as normas violadas, indica simultaneamente as provas obtidas, a coima aplicada e as razões da ponderação realizada na respectiva determinação, ainda que tudo de forma muito sumária.
Ora, pese embora se perspective tratar-se aquela de uma decisão bastante concisa e escorreita, certo é que a mesma não consubstancia uma verdadeira e própria sentença, nem é qualificada nesses moldes pela lei, pelo que não tem que obedecer ao formalismo de que esta última se reveste.
Com efeito, entendemos - a par de muita da jurisprudência nacional - que a fase administrativa dos Autos de contra-ordenação se caracteriza, pela própria natureza do processo em causa, pela celeridade e simplicidade processual, e nessa medida o correspondente dever de fundamentação deverá ser observado a essa luz e âmbito, e necessariamente com uma exigência muito menor face ao que se espera de uma sentença penal.
Assim, não se demanda da entidade administrativa uma concretização factual modelar, com detalhe profundo, bastando-se com uma alegação de factos minimamente escorreita, passível de compreensão e alcance ao homem médio quanto às condutas adoptadas ou omitidas, circunstanciadas e contextualizadas em tempo, lugar e espaço.
Por outro lado, através da impugnação judicial deduzida, mormente o seu teor, o Tribunal logra percepcionar que a Recorrente alcançou com a acuidade necessária os factos que lhe foram imputados na decisão administrativa, tanto mais que se defendeu com densidade argumentativa, contrapondo factos relativamente ao que lhe era imputado, ficando demonstrado que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de contraditório e de defesa pois que percebeu o que se decidiu e por que razão assim se decidiu.

De resto, preceitua o artigo 58.°, n.° 1, do DL n.° 433/82, de 27/10, doravante RGCO, que:

“1–A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a)-A identificação dos arguidos;
b)-A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c)-A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d)-A coima e as sanções acessórias.

Dir-se-ia, então, com base na impugnação deduzida, que a decisão administrativa enferma da nulidade prevista no artigo 379. ° do n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.°do DL n. ° 433/82 de 27/10.
Contudo não será assim. Desde logo, e no que se reporta ao elemento objectivo, temos que o mesmo foi plasmado de modo perceptível, o que a Recorrente compreendeu com a interposição do recurso.
Por outro lado, verifica-se ainda que o elemento subjectivo também se mostra elencado e discriminado.
Assim, não falta a tal conspecto decisório qualquer informação ou exteriorização relativa à culpa da Recorrente, e que se aquilata traduzir-se ao nível da negligência (cfr. artigo 8.° do RGCO).
(•••)”

Assim, e quanto à nulidade suscitada é de improceder o recurso interposto.
É igualmente de improceder a pretensão da recorrente no que respeita à aplicação de admoestação em substituição da coima imposta.
Na verdade, tendo a arguida incorrido na prática de contra-ordenação considerada como grave (alínea p) do n.° 2 do artigo 59.° da Lei n.° 34/2013, de 16 de Maio), não pode aplicar-se-lhe a sanção prevista no artigo 51.° do RGCO para as situações de reduzida gravidade, não valendo a argumentação expendida pela recorrente de que uma conduta subsumível à prática de contra-ordenação grave pode apresentar contornos que permitam identificar um diminuto grau de ilicitude e uma culpa igualmente diminuta. O grau de ilicitude e de culpa devem ser considerados sim, mas para determinar a concreta sanção a aplicar no quadro da moldura legalmente prevista.

Regista-se, ainda, que embora no contexto de contra-ordenação ambiental (prevista no artigo 34.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 78/2004, de 3 de Abril), no acórdão n.° 6/2018, de 14 de Novembro do Supremo Tribunal de Justiça, foi fixada jurisprudência no sentido de que a “admoestação prevista no art.° 51.°, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10, não é aplicável às contraordenações graves previstas no art.° 34.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 78/2004, de 03.047” Consignando-se no mesmo acórdão que, “(...) sempre que o legislador, de forma geral e abstrata, classifica a infração como sendo grave, não poderá o julgador modificar a lei atribuindo menor gravidade àquela ilicitude. Por isto, não pode deixar de se entender que a classificação legal de uma contraordenação como grave afasta logo a possibilidade de o julgador considerar que aquela mesma contraordenação grave afinal é de "reduzida gravidade". (...).”

Nestes termos, e como referido, é de improceder a pretensão da recorrente de aplicação da sanção de admoestação prevista no artigo 51.° do RGCO.

IV.–Dispositivo

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da 3a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC’s.
Notifique.


(Acórdão elaborado pela relatora em suporte informático e revisto pelos signatários - artigo 94°, n.° 2 do Código de Processo Penal).


Lisboa, 22 de Fevereiro de 2023.



Rosa Vasconcelos
Francisco Henriques
Maria da Conceição Miranda




[1]Apenas em requerimento dirigido ao Senhor Comandante da Divisão da PSP de Angra do Heroismo, constante de fls. 30 a 33 dos autos, foram tecidas considerações quanto à actividade desenvolvida pela sociedade arguida, ao seu geral cumprimento das regras e quanto ao desejável carácter pedagógico da actuação das entidades policiais sobre as quais recai “a obrigação de informar os cidadãos.”.