Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Relatório
AA e BB intentaram acção declarativa com processo especial, requerendo a declaração de insolvência da sociedade T…, Lda.
Por sentença de 10/12/2019, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da identificada sociedade (anteriormente havia sido proferida sentença declarando a insolvência, sentença essa que veio a ser declarada nula na sequência do despacho proferido em 25/09/2019 que julgou verificada a falta de citação da Requerida e, em consequência, declarou a nulidade do processado posterior ao despacho proferido a 06/05/2019).
O incidente de qualificação foi declarado aberto na sentença que declarou a insolvência, proferida a 10/12/2019.
Por apenso ao respectivo processo, o Administrador de Insolvência apresentou parecer de qualificação da insolvência, nos termos previstos no n.º 1, do artigo 188.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – ref.: 35567650, de 16.05.2020, pedindo a qualificação como culposa da Insolvência da devedora e a afectação pela qualificação dos seus administradores CC e DD [ref.: 37379743, de 06.12.2020, o Administrador de Insolvência esclareceu que a qualificação deve afectar apenas os administradores, deixando de abranger o sócio da insolvente, EE].
Alegou para tanto e, em síntese, que a devedora tinha vendido dois imóveis, no ano de 2018, imóveis que integravam o activo da sociedade e nos quais desenvolvia a sua actividade de serviços de Técnica e Projectos de Engenharia. Um dos imóveis foi vendido a uma empresa em que o gerente é filho do sócio gerente da insolvente CC, venda efectuada pelo montante de 183.000,00 €. O outro imóvel foi vendido ao Banco B…, SA, pelo preço de 275.000,00 €. Acrescentou que não existem evidências que os valores das vendas tenham entrado nas contas da insolvente e que à data da venda, a insolvente conhecia já inúmeras dívidas a trabalhadores, os quais não foram ressarcidos com o resultado das vendas. A insolvente, ao vender os seus imóveis, alienou a quase totalidade do seu Activo, pois que os restantes bens, bens móveis, não valem mais que 2% do activo. Caso o valor da venda tenha entrado nas contas da insolvente, houve um claro favorecimento de credores em detrimento dos restantes.
Concluiu pela qualificação da insolvência ao abrigo da alínea a) do nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Os autos foram com vista ao Ministério Público que emitiu parecer, em 11.02.2021, de qualificação da insolvência como culposa, acompanhando o parecer do Administrador de Insolvência.
O Requerido CC veio apresentar requerimento de oposição - ref.: 39000746, de 26.05.2021 -, no qual pugnou pela qualificação da insolvência como fortuita. Argumentou que, em 06.12.2019, a devedora apresentou em juízo, as contas do exercício de 2018, as quais apresentavam um activo superior ao passivo e englobavam o valor da venda dos imóveis – a venda da fracção AD à L…, Unipessoal, Lda - na conta/rubrica «278216508» o movimento «L…, Unipessoal, Lda. 183.000,00» relativo ao preço de venda do imóvel onde estava instalado o escritório da T… e a venda da fracção AC, efectuada para cobrir um crédito hipotecário concedido pelo Banco M… – ou seja, para evitar uma execução eminente que por várias vezes foi ameaçada e comunicada pelo Banco M… ao gerente DD, foi englobada na conta n.º 251111 – Empréstimos bancários curto-prazo, «2511112 Empbancários – cp M… 758.168,17».
A insolvente tinha a sua actividade centrada em Angola, o que agravou a situação financeira devido às restrições cambiais impostas em Angola, que impediam a transferência de divisas para fora do país, sendo que a T… Angola, o maior devedor da Insolvente, tinha uma dívida de aproximadamente EUR 200.000,00. Devido aos constrangimentos financeiros colocou à venda a fracção AD, em meados de 2018, tendo o comprador assumido o pagamento das dívidas da devedora com o valor da venda de € 183.000,00, através de acordos de revogação de contratos de trabalho, que foram aceites, excepto pelos trabalhadores BB e AA e o pagamento a fornecedores que beneficiavam de penhora, em processos de execução fiscal. A fracção AC onerada com hipoteca a favor do Banco C… P…, S.A. foi vendida ao Banco B…, S.A. pelo valor de € 275.000,00, saldando a dívida ao hipotecário no valor de € 259.000,00 e € 16.000,00 foram utilizados para caucionamento da garantia bancária constituída em 2017 accionada pelo Instituto da Segurança Social.
Imputou a gestão corrente da insolvente ao gerente DD, uma vez que o próprio residia em Angola, onde se dedicava, em exclusivo à gestão de uma sociedade de direito angolano, com viagens esporádicas a Portugal para verificação do seu estado de saúde e visitar a sua família. Diz que era o gerente DD que contactava com os fornecedores da insolvente, geria os respectivos projectos, sabia das contas correntes e negociava directamente em nome e por conta da mesma, sem muitas vezes dar conhecimento ao aqui Requerido da situação de gestão corrente da insolvente.
No início de 2018 foi-lhe diagnosticado um tumor e para que fossem praticados os actos necessários à actividade da insolvente, que se obriga com duas assinaturas, conferiu uma procuração, em 29 de Junho de 2018, ao Arq. FF. Concluiu que a venda dos imóveis se deveu à necessidade de resolver problemas urgentes de tesouraria da insolvente, que utilizou os valores obtidos para pagamento aos credores, sem favorecimento destes, que apenas não chegou a acordo com os dois trabalhadores requerentes da insolvência, apesar das propostas que lhes foram apresentadas, pelo que não se verifica dissipação de património, não havendo insolvência culposa.
A devedora também apresentou oposição – ref.: 39011765, de 27.05.2021, em articulado igual ao do requerido CC.
O requerido DD apresentou oposição – ref.: 39080443, de 04.06.2021 -, a pugnar pela sua absolvição, argumentando ser titular de apenas 20% do capital social da devedora e que os seus poderes de negociação na venda do imóvel eram inferiores. A venda da fracção AD favoreceu a empresa adquirente, que identifica como L… (o que se deverá a lapso), do filho do sócio CC. Acrescenta ser também um lesado pela insolvência, tendo deixado de receber os seus créditos no valor de 31.741,21 €.
A oposição foi notificada ao Sr. Administrador, aos Requerentes e ao Ministério Público.
Foi proferido despacho saneador a 12.06.2023 – fls. 314 -, no qual foram identificados os factos já assentes, foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova e teve lugar a audiência final, conforme resulta da respectiva acta.
Foi proferida sentença que qualificou como culposa a insolvência de T…, Lda, declarando afectado pela mesma CC e DD Em consequência:
a) Declarou a inibição, pelo período de dois anos de CC e DD para: - Administrar patrimónios de terceiros; - O exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação provada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. b) Determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por CC e DD
c) Condenou CC e DD a indemnizarem solidariamente os credores da insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, no montante máximo de 181 729,12€ (valor correspondente aos créditos reconhecidos pelo Administrador da Insolvência), até à força do seu património.
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Inconformado, DD interpôs recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. Ficou demonstrado nas presentes Alegações de Recurso Jurisdicional que o Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação das normas que constituem o fundamento jurídico da Sentença proferida, em termos tais que se impõe, e exige, a sua alteração, isto porque as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido da absolvição do Recorrente DD, uma vez que a Matéria de Facto Provada não permite que se impute ao Recorrente DD a Culpa na Insolvência; antes pelo contrário.
B. Antes, todavia, evidenciou-se que a Sentença padece de Nulidade, porquanto, em primeiro lugar, não se pode considerar que o Tribunal a quo tenha especificado os “fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”, com o que se verifica a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, isto porque o Tribunal de 1.ª instância não fundamentou, nem de facto, nem de direito, a razão pela qual determinou, a final, que CC e o ora Recorrente DD fossem solidariamente – e em igual medida – condenados a indemnizarem os Credores da Insolvente,
C. Tanto mais que, conforme resulta do Processo de Insolvência, a que este Incidente se encontra apensado e em cuja Factualidade assenta a Sentença ora Recorrida, o Recorrente DD detinha, apenas, uma Quota de 20% da Sociedade Insolvente, e, nessa medida, nunca a sua responsabilidade indemnizatória poderia ser de igual montante à de CC, Sócio com uma Quota de 40%.
D. Acresce, ademais, que ficou evidenciada a nulidade da Sentença nos termos da alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, relativamente à decisão do Tribunal de 1.ª instância que determinou, a final, que CC e o ora Recorrente DD fossem solidariamente – e em igual medida – condenados a indemnizarem os Credores da Insolvente.
E. Isto porque constata-se que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a medida da gravidade e imputação da situação prejudicial causada por cada um dos que foram condenados, o que deveria ter ocorrido, pois que a Sentença de Qualificação da Insolvência tem de aproximar-se tendencialmente do valor dos danos efectivamente causados pela conduta que está na base da Qualificação da Insolvência.
F. Ou seja, o Recorrente DD, a ser condenado, no que não se concede, deverá, unicamente, ser condenado a indemnizar os credores apenas na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, sendo que esse juízo apreciativo não foi, de todo, feito pelo Tribunal de 1.ª instância.
G. Acresce, ainda que a Sentença é também nula em face da alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, pois que o Recorrente DD reclamou Créditos no valor de € 31.741,21 (trinta e um mil, setecentos e quarenta e um euros e vinte e um cêntimos), razão pela qual nunca se poderia Qualificar a Insolvência como Culposa, pelo menos relativamente ao Recorrente DD, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE.
H. Apesar da presunção que resulta dessa alínea d), a qualificação imediata da Insolvência como Culposa não se pode abstrair – como fez o Tribunal de 1.ª instância – do circunstancialismo de facto, sendo que, in casu, essas circunstâncias de facto evidenciam que o Recorrente DD não dispôs dos bens em proveito pessoal, pois que, se assim tivesse sido, evidentemente que o Recorrente DD teria liquidado o seu Crédito, o que não ocorreu.
I. No mais, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido da absolvição do Recorrente DD, uma vez que a Matéria de Facto Provada não permite que se impute ao Recorrente DD a Culpa na Insolvência.
J. Em primeiro lugar, na medida em que o Recorrente DD, detentor de uma Quota de apenas 20% da Sociedade Insolvente, não detinha, relativamente a esta, qualquer Poder de Autoridade, Direcção, Fiscalização e/ou Disciplina.
K. Nada na Matéria de Facto Provada permite contrariar essa conclusão, o que equivale a dizer a Matéria de Facto Provada não permite que se impute ao Recorrente DD a Culpa na Insolvência.
L. Em segundo lugar, da Matéria de Facto Provada não se extrai: i) Que o Recorrente DD tenha tido algum poder de definição dos termos dos negócios jurídicos de compra-e-venda dos Imóveis identificados na Sentença, de onde se extrai a conclusão de que não é possível imputar ao Recorrente DD a Culpa na Insolvência; ii) Que o Recorrente tenha tido algum poder de definição quanto à aplicação dos montantes recebidos pela Sociedade Insolvente na sequência dos negócios jurídicos de compra-e-venda dos Imóveis identificados na Sentença.
M. Não obstante o disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE, e presunção da mesma decorrente, não existe qualquer evidência no âmbito da Matéria de Facto no sentido de que o Recorrente DD soubesse, ou pudesse antecipar, que os bens da Sociedade Insolvente seriam dispostos “em proveito pessoal ou de terceiros”.
N. In casu, o Recorrente DD não só não dispôs dos bens da Sociedade Insolvente em Proveito Pessoal – já que nem sequer liquidou, em seu benefício, o seu respectivo Crédito – nem em Proveito de Terceiros.
O. Como, ainda, decorre da Matéria de Facto Provada que esses bens foram dispostos em proveito de pessoas e entidades associadas ao Sócio CC.
P. Perante essa evidência de facto no sentido do benefício, directo ou indirecto, do Sócio CC, torna-se evidente que não pode ser imputada qualquer responsabilidade ao Recorrente DD.
Q. Apesar da presunção que resulta da enunciada alínea d), a qualificação imediata da Insolvência como Culposa não se pode abstrair – como fez o Tribunal de 1.ª instância – do circunstancialismo de facto, sendo que, in casu, essas circunstâncias de facto evidenciam que o Recorrente DD não dispôs dos bens em proveito pessoal, nem o fez em proveito de terceiros, já que desconhecia, em absoluto, a que se destinaria o produto da venda dos enunciados bens.
R. Como se demonstrou, a Sentença proferida está em oposição com a mais recente Jurisprudência neste âmbito, designadamente do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 30.05.2023, no âmbito do Processo n.º 791/22.8T8AZC.P1, onde se decidiu que: “IV - Para se poder concluir pelo preenchimento da situação típica de insolvência culposa prevista em qualquer das alíneas d) e f) do nº 2 do art.º 186º do CIRE não basta a demonstração de qualquer alienação ou acto de disposição (alínea d)) ou de acto que permita o uso do bem do devedor (alínea f)), sendo ainda essencial a demonstração de factualidade donde resulte o proveito pessoal da insolvente (ou do seu gerente) ou de terceiros, pois tal ‘proveito’ constitui requisito normativo em qualquer daquelas alíneas.”
S. No caso vertente, essa demonstração não foi feita, o que, para além de significar que as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido da absolvição do Recorrente DD, uma vez que a Matéria de Facto Provada não permite que se impute ao Recorrente DD a Culpa na Insolvência,
T. Também determina, por outro, a Nulidade da Sentença decorrente da alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, na medida em que o Tribunal de 1.ª instância deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado, designadamente por não ter demonstrado o proveito pessoal ou de terceiros…
U. Acresce que, conforme decidiu o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 23.11.2021, no âmbito do Processo n.º 2439/20.6T8BRR-E.L1-1: “2. Só há que falar em proveito quando o acto de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional.”; ora, no caso vertente, a venda dos Imóveis acima identificados não consubstanciou um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional – estamos perante Contratos de Compra e Venda de Imóveis –, nem tal foi, sequer, aflorado e/ou apreciado pelo Tribunal de 1.ª instância…
V. Em face do exposto, impõe-se a revogação da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, ordenando-se a sua substituição por outra que determine a absolvição do Recorrente DD.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado procedente.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto por DD, CONCLUINDO:
I. A factualidade dada como provada preenche as previsões legais dos citados preceitos, afigurando-se-nos que, nenhum preceito legal, in casu, foi violado;
II. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência de “T…, Lda.”, é culposa, sendo afetado por esta qualificação CC e DD;
III. Pelo exposto, nenhum reparo que nos afigura tecer à decisão do Tribunal a quo, porque correcta, fundamentada e conforme à Lei;
IV. Assim, o recurso interposto pelo recorrente deve improceder na sua totalidade, mantendo-se a douta sentença proferida - claramente legal, douta e justa - nos seus precisos termos.
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T…, Lda, interpôs igualmente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. Vem a Recorrente apresentar as suas alegações de recurso da sentença que qualificou a insolvência da T…, LDA. como culposa, as quais têm por objecto a (i) nulidade da sentença, (ii) a impugnação da decisão proferida em matéria de facto, com o pedido de reapreciação de prova gravada, e (iii) a impugnação da decisão proferida em matéria de Direito, com a explanação a este Tribunal Superior do sentido com que, no entender da Recorrente, as normas jurídicas adequadas ao caso deveriam ter sido aplicadas pelo Tribunal a quo, tudo em cumprimento do disposto nos artigos 639.º e 640.º, do Código de Processo Civil.
B. A douta sentença recorrida qualificou a insolvência da T…, LDA. como culposa, com fundamento no disposto na al. d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
C. Salvo o devido respeito, que é muito, considera a Recorrente que a douta sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, considerando que o Tribunal a quo (i) não especificou devidamente os fundamentos de facto e de direito que
justificavam o preenchimento da previsão normativa prevista na al. d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, e (ii) não identificou e apreciou criticamente toda a extensão das questões sobre as quais lhe cabia pronunciar-se na sentença recorrida, face aos temas da prova fixados no Despacho Saneador e à prova completar produzida no decurso da audiência de discussão e julgamento.
D. O julgador a quo omitiu do elenco de factos dados como provados/não provados factualidade extraída da prova produzida em julgamento quanto: a) ao Tema da Prova enunciado sob o ponto 3 do Despacho Saneador: “Do passivo da Recorrente à data das alienações”; b) ao Tema da Prova enunciado sob o ponto 4 do Despacho Saneador: “Da falta de lançamento nas contas da devedora dos valores das vendas”; c) Sobre os factos instrumentais e complementares que, por terem resultado da discussão da causa e/ou serem do conhecimento do julgador a quo por força do exercício das suas funções,
deveriam ter sido aditados aos temas da prova nos termos do disposto nas alíneas a), b)
e c) do n.º 2, do artigo 5.º, do CPC.
E. Considera a Recorrente, com o devido respeito, que a sentença recorrida deverá ser declarada nula, por padecer do vício de omissão de pronúncia, nos termos conjugados
do disposto nas alíneas b) e d), n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
F. Sem conceder, caso não se entenda pela nulidade da sentença, sempre se dirá que o julgador a quo procedeu ao incorreto julgamento dos factos dados como provados sob o número 24 do Ponto A da sentença recorrida, entendendo a Recorrente que face à prova gravada em audiência de discussão e julgamento, conjugada com as certidões prediais e de matriz predial dos imóveis a fls. 24/29 dos autos, devem tais factos ser alterados nos termos identificados no corpo das presentes alegações.
G. Entende ainda a Recorrente que a sentença recorrida omitiu um conjunto alargado de factos do elenco de factos que deveriam ter sido considerados provados, o que traduz erro de julgamento e de apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, o que impõe a sua reapreciação pelo Tribunal ad quem, com vista ao seu aditamento à factualidade provada, nos termos aludidos nas presentes alegações.
H. Entende ainda a Recorrente que a sentença recorrida omitiu do elenco de factos não provados, factualidade que foi manifestamente contrariada em sede de julgamento e deveria ter sido considerada como não provada pelo julgador a quo, o que traduz erro de julgamento e de apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, impondo a sua reapreciação pelo Tribunal ad quem, com vista ao seu aditamento à factualidade considerada não provada, nos termos aludidos nas presentes alegações.
I. Quanto à matéria de Direito, é ainda a Recorrente levada a considerar que o Tribunal a quo procedeu a uma incorreta interpretação e aplicação do disposto no artigo 595.º, n.º 3 (a contrario sensu), conjugado com o artigo 620.º, ambos do CPC, cuja correcta interpretação e aplicação levariam a que o Tribunal a quo não tivesse dado como assentes os factos elencados sob o n.º 24 do Ponto A da sentença recorrida, com fundamento na ausência de oposição ao despacho de fixação da matéria de facto inserido no despacho saneador, por não se formar caso julgado formal quanto a ele.
J. O julgador a quo procedeu ainda à incorrecta interpretação e aplicação do dever de gestão processual e princípio do contraditório, consagrados nos artigos 6.º e 3.º, n.º 3, todos do CPC, cuja correcta interpretação e aplicação teriam conduzido o julgador a quo a proceder à ampliação dos temas da prova fixados no despacho saneador ao abrigo do seu poder-dever de gestão processual, possibilitando à Recorrente o cabal exercício do contraditório quanto a factos decisivos para a fundamentação da sentença.
K. O julgador a quo procedeu ainda à incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 595.º, n.º 3 (a contrario sensu), conjugado com o artigo 619.º, ambos do CPC, cuja correcta interpretação e aplicação impunham que o Tribunal a quo não tivesse dado como assentes os factos elencados sob o n.º 24 do Ponto A da sentença recorrida, com fundamento no facto de terem sido provados na sentença de declaração de insolvência, uma vez que não se formou caso julgado material quanto a eles.
L. Considera a Recorrente que o Tribunal a quo procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto na alínea d), do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, cuja correcta interpretação e aplicação apenas poderia ter conduzido o julgador a quo a qualificar a insolvência da Recorrente como fortuita.
M. Caso assim não se entenda, considera a Recorrente que o Tribunal a quo procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 333.º do CT, cuja correcta interpretação e aplicação levaria o julgador a concluir que os ex-trabalhadores da Recorrente não beneficiavam de qualquer privilégio imobiliário especial sobre a fracção “AC”.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado procedente e que seja:
a) Declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto nos artigos. 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil, com todas as legais consequências;
b) Revogada a sentença recorrida e substituída por outra que conduza à qualificação da insolvência como fortuita.
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O Ministério Público também respondeu ao recurso interposto por T…LDA, CONCLUINDO:
I. A factualidade dada como provada preenche as previsões legais dos citados preceitos, afigurando-se-nos que, nenhum preceito legal, in casu, foi violado;
II. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência de “T…, Lda.”, ora recorrente, é culposa, sendo afetado por esta qualificação CC e DD;
III. Pelo exposto, nenhum reparo que nos afigura tecer à decisão do Tribunal a quo, porque correcta, fundamentada e conforme à Lei;
IV. Assim, o recurso interposto pela recorrente deve improceder na sua totalidade, mantendo-se a douta sentença proferida - claramente legal, douta e justa - nos seus precisos termos;
V. Assim decidindo se fará a habitual Justiça.
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CC também recorreu, formulando CONCLUSÕES em tudo idênticas às apresentadas pela recorrente T…, LDA, com excepção das alíneas que a seguir se reproduzem:
A. Vem o Recorrente apresentar as suas alegações de recurso da sentença de qualificação da insolvência da T…, LDA., que têm por objecto a (i) nulidade da sentença, (ii) a impugnação da decisão proferida em matéria de facto, com o pedido de reapreciação de prova gravada, e (iii) a impugnação da decisão proferida em matéria de Direito, com a explanação a este Tribunal Superior do sentido com que, no entender do Recorrente, as normas jurídicas adequadas ao caso deveriam ter sido aplicadas pelo Tribunal a quo, tudo em cumprimento do disposto nos artigos 639.º e 640.º, do Código de Processo Civil.
B. A douta sentença recorrida qualificou a insolvência da T…, LDA. como culposa, com fundamento no disposto na al. d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, afectando o Recorrente pela referida qualificação. Em consequência, determinou o tribunal recorrido a aplicação ao Recorrente das seguintes sanções:
i. Inibição, pelo período de 2 (dois) anos, para a) administrar o património de terceiros e para b) o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação provida de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
ii. Perda de quaisquer créditos detidos pelo Recorrente sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente;
iii. Condenação a indemnizar, solidariamente com DD, os credores da insolvente, no montante dos créditos não satisfeito, no montante máximo de € 181.729,12 (valor correspondente aos créditos reconhecidos pelo Administrador da
Insolvência), até à força do seu património; e
iv. Condenação no pagamento das custas do processo.
C. Salvo o devido respeito, que é muito, considera o Recorrente que a douta sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, considerando que o Tribunal a quo (i) não especificou devidamente os fundamentos de facto e de direito que justificavam o preenchimento da previsão normativa prevista na al. d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE (ii) não fixou o grau de culpa do Recorrente afectado pela qualificação, e (iii) não identificou e apreciou criticamente toda a extensão das questões sobre as quais lhe cabia pronunciar-se na sentença recorrida, face aos temas da prova fixados no Despacho Saneador e à prova completar produzida no decurso da audiência de discussão e julgamento.
(…)
L. Considera ainda o Recorrente que o Tribunal de primeira instância procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 252.º, n.ºs 6 e 7 e 261.º, n.º 2, ambos do Código das Sociedades Comerciais conjugados com o artigo 262.º do Código Civil, cuja correcta interpretação e aplicação levaria o Tribunal a quo a considerar que o Recorrente não teve qualquer tipo de intervenção na escritura de compra e venda da fracção “AC”, porquanto FF foi constituído procurador da requerida, e não do Recorrente.
(…)
O. Ao proceder à aplicação ao Recorrente das sanções previstas nas alíneas b), c), d) e e), do n.º 2, artigo 189.º do CIRE de forma indiscriminada e sem atender ao grau de culpa do Recorrente e/ou concreta gravidade da sua conduta para a alegada criação ou agravamento da situação da requerida, muito menos considerando a situação de saúde comprovada do Recorrente à data dos factos, o Tribunal a quo procedeu ainda à incorrecta interpretação e aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, com a concomitante violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.
P. No entendimento do Recorrente, a correcta interpretação e aplicação de tais preceitos legais deveria ter conduzido à fixação das sanções aplicadas ao Recorrente, designadamente a indemnização que solidariamente foi condenado a pagar, atendendo aos princípios da proporcionalidade e atendendo às circunstâncias atenuantes concretamente apuradas quanto ao seu comportamento.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado procedente e que seja:
a) Declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto nos artigos. 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil, com todas as legais consequências;
b) Revogada a sentença recorrida e substituída por outra que conduza à qualificação da insolvência como fortuita;
Subsidiariamente,
c) Revogada a decisão recorrida e substituída por outra que conduza ao afastamento do Recorrente do perímetro de afectação da insolvência como culposa.
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O Ministério Público respondeu também ao recurso interposto por CC, CONCLUINDO:
I. A factualidade dada como provada preenche as previsões legais dos citados preceitos, afigurando-se-nos que, nenhum preceito legal, in casu, foi violado;
II. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência de “T…, Lda.”, é culposa, sendo afetado por esta qualificação CC e DD;
III. Pelo exposto, nenhum reparo que nos afigura tecer à decisão do Tribunal a quo, porque correcta, fundamentada e conforme à Lei;
IV. Assim, o recurso interposto pelo recorrente deve improceder na sua totalidade, mantendo-se a douta sentença proferida - claramente legal, douta e justa - nos seus precisos termos;
V. Assim decidindo se fará a habitual.
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A Mmª Juíza a quo proferiu despacho admitindo os recursos, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Nesse mesmo despacho pronunciou-se no sentido que a sentença não enferma das nulidades invocadas.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II – Questões a decidir:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelos recorrentes importa analisar e decidir o seguinte:
A- da nulidade da sentença por falta de fundamentação, por omissão de pronúncia e por contradição entre os fundamentos e a decisão;
B- impugnação da matéria de facto e
C- da verificação dos pressupostos considerados na sentença recorrida para qualificação da insolvência como culposa e para a afectação dos apelantes DD e CC e, em caso afirmativo, do respectivo quantum indemnizatório.
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III - Fundamentação
i) Na sentença sob recurso foi considerada como provada a seguinte factualidade como pertinente para a decisão da causa:
A. Nos autos principais foram julgados provados, na sentença que declarou a insolvência da sociedade requerida, os factos seguintes com interesse para o presente incidente:
1. A Requerida T…, LDA., pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, Lisboa.
2. Com o capital social de € 39.903,87.
3. Tem como objeto social programação, direcção e fiscalização de obras e elaboração de projectos de instalações técnicas de engenharia.
4. Mostram-se registados como gerentes CC, NIF …, residente na Rua … Lisboa e DD, NIF …, residente na Rua …, Amadora.
5. A Requerida procedeu ao depósito das contas do exercício de 2017 dep. 1606/2018-07-09 – certidão a fls. 194/197.
6. Em 02.01.2002, o 1.º Requerente celebrou com a Requerida um contrato de trabalho a termo certo, pelo qual aquele foi admitido ao serviço desta para, sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de Tirocinante(desenhador), prevendo-se um horário e trabalho de 37,5 horas semanais com entrada ás 9h e saída ás 18h, com um salário mensal de 500,00€. – cfr. fls. 16v/.
7. Na vigência do contrato, o qual foi convertido em contrato de trabalho por tempo indeterminado, fixou-se um período normal de trabalho de 8 horas diárias, num total de 40 horas semanais, auferindo o Requerente à data da resolução contratual o vencimento mensal ilíquido de 810,00€ acrescido de 6,41 a título de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho prestado.
8. No dia 7 de Setembro de 2018, o 1º Requerente enviou uma carta registada com A/R à Requerida, dando-lhe conhecimento da suspensão do seu contrato de trabalho por falta de pagamento pontual da retribuição, designadamente a falta de pagamento àquela data das seguintes importâncias: a) Subsídio parcial de Natal referente a 2017 (355,49); b) Subsídio parcial de férias referente a 2017(355,49); c) Salário do mês de Julho (734,98); d) Agosto de 2018 (734,98); e) Subsídios de alimentação, referentes aos referidos períodos (282,00). Cfr. fls. 17.
9. A Requerida não efectuou o pagamento das quantias supra referidas posteriormente, nem nada disse ao Requerente, pelo que em 02.10.2018 o 1ª Requerente enviou á Requerida uma carta registada com A/R, notificando-a da resolução do contrato de trabalho por falta de pagamento pontual da retribuição nos termos previstos na alínea a) do nº 2 e no nº 5 do artigo 394º do Código do Trabalho, designadamente, as quantias supra referidas, bem como o subsídio de férias, e todas os créditos laborais vencidos na data da cessação do contrato, tais como o salário e subsidio de alimentação de Setembro (sem prejuízo do período de suspensão), subsidio de férias não gozadas referentes a 2017, proporcionais de férias do ano cessação, proporcionais de férias não gozadas referentes ao ano da cessação (2018), proporcionais do subsidio Natal e valor referente á formação profissional que não lhe foi ministrada, tendo ainda reclamado o valor indemnizatório a que tem direito, nos termos do Art.º 396º, 1 e 2 do Cód. Trabalho, e que liquidou em 30 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade, tudo no valor global ilíquido de 19.572,79€. – Cfr. fls. 17v/, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. A referida resolução produziu efeitos a partir do dia 3.10.2018.
11. A Requerida não emitiu no prazo legal a declaração de situação de desemprego (Mod. RP 5044-DGSS), atestando a resolução do contrato por falta de pagamento da retribuição, o que só fez com a intervenção do ACT- Cfr. fls. 19.
12. Encontrando-se em dívida á data de 3.10.2018 as importâncias acima referidas, bem como as vencidas com a cessação do contrato.
13. Em 04.05.1992, o 2.º Requerente celebrou com a Requerida um contrato de trabalho por tempo indeterminado, pelo qual aquele foi admitido ao serviço desta para, sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de desenhador, prevendo-se um horário e trabalho de 37,5 horas semanais, com um salário mensal de 324,21€ (65.000$00) – cfr. fls. 20v/.
14. Na vigência do contrato, fixou-se um período normal de trabalho de 8 horas diárias, num total de 40 horas semanais, auferindo o 2º Requerente á data da resolução contratual o vencimento mensal ilíquido de 1.015€ acrescido de 6,41 a título de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho prestado. Cfr. fls. 21.
15. No dia 7 de Setembro de 2018, o 2º Requerente enviou uma carta registada com A/R à Requerida, dando-lhe conhecimento da resolução unilateral do seu contrato de trabalho, por justa causa e com fundamento na falta de pagamento pontual das retribuições, nos termos previstos na alínea a) do nº 2 e no nº 5 do artigo 394º do Código do Trabalho, designadamente a falta de pagamento das seguintes importâncias:
a) - Vencimento de Junho 2018, no valor de 156,88€
b) - Vencimento de Julho 2018, no valor de 1.015,00€
c) - Vencimento de Agosto 2018, no valor de 1.015,00€
d) - Subsídio de alimentação (Junho, Julho, Agosto e Setembro 2018), no valor de 442,29€
e) - Subsídio de férias 2017, no valor de 803,55€
f) - Subsídio de férias Não Gozadas 2017, no valor de 1.015,00€
g) - Subsídio de Natal 2017, no valor de 595,88€
h) - Vencimento de Setembro 2018, no valor de 298,00€
i) - Proporcionais Férias ano cessação, no valor de 935,00€
j) - Proporcionais de Férias não gozadas no ano cessação, no valor de 935,00€
k) - Proporcionais subsídio de Natal 2018, no valor de 583,30€
l) - Formação profissional, no valor de 1.043,00€ - cfr. fls. 22v/.
16. Tendo ainda reclamado o valor indemnizatório a que tem direito, que liquidou em 30 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade, no valor global ilíquido de 26.747,79€ (correspondente a 26 anos, 4 meses e 7 dias.
17. A resolução teve efeitos a partir do dia 10.09.2018.
18. A requerida deixou de pagar aos trabalhadores, em Junho de 2017, os subsídios de alimentação.
19. Em Dezembro de 2017, os subsídios de Natal.
20. E, em Junho de 2018 deixou de pagar os salários dos trabalhadores.
21. Os trabalhadores GG, HH, II, JJ e KK resolveram os contratos de trabalho com a Requerida por falta de pagamento da retribuição.
22. Em Outubro de 2018, as contas bancárias da Requerida já tinham saldos a descoberto, por falta de pagamento das responsabilidades assumidas perante as entidades bancárias.
23. As contas estavam bloqueadas por força de dívidas ao Estado e à Segurança Social, após a venda do imóvel foram desbloqueadas [artigo 53.º da oposição].
24. A Requerida era proprietária de duas fracções autónomas sitas na Rua …, freguesia de São Domingos de Benfica, em Lisboa, local onde era desenvolvida a actividade da Requerida pelos Requerentes e outros ex-trabalhadores, sendo ali o seu local de trabalho. Cfr. certidões da matriz e de registo predial a fls. 24/29.
25. A fracção autónoma designada pela letra “AC” correspondente ao piso -2 (loja), destinada a escritório, no prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua … e Rua …, na freguesia de Benfica, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Benfica sob o Art.º 1842 e com o valor patrimonial de 278.413,92.
26. E a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1 (loja destinada a escritório), no prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua … e Rua …, na freguesia de Benfica, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Benfica sob o Art.º 1842, e com o valor patrimonial de 59.030,00€.
27. Em 11/07/2018, foi registada uma penhora sobre este último imóvel pela sociedade G…, Lda., por falta de pagamento de uma dívida no valor de 19.835,44.
28. A Requerida colocou á venda a fracção “AC”, para o que recorreu aos serviços de mediação imobiliária da Agência … cfr. fls. 29v/31.
29. Em 25.07.2018, a Requerida colocou também à venda a fracção “AD”, pelo preço de 590.000,00€, tendo para o efeito recorrido aos serviços de mediação imobiliária da sociedade … – cfr. Contrato a fls. 31v/.
30. Por escritura pública datada de 22.11.2018 a Requerida declarou vender à sociedade comercial L…Unipessoal, Lda. a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1, pelo preço de 183 000,00, o pagamento do preço é feito mediante assunção de dívidas da T…, Lda. pela compradora L…, Unipessoal, Lda. – cfr. escritura a fls. 34.
31. Sobre o imóvel encontravam-se registadas duas hipotecas a favor da Caixa … anexa ao […], cujos cancelamentos se encontram assegurados, quanto à fracção autónoma “AD”.
32. Estava registada uma penhora a favor de G…, Lda., cujo cancelamento foi pedido junto da Conservatória do Registo Predial de Viseu.
33. Os outorgantes foram advertidos que devem mencionar a intervenção de empresa imobiliária […], tendo os mesmos declarado que neste negócio não houve intervenção de mediador imobiliário.
34. A 14.12.2018, a Requerida declarou vender ao Banco …, S.A. a fração “AC” correspondente ao piso -2 (loja), destinada a escritório, pelo preço de €275 000,00 – escritura a fls. 229.
35. Sobre a fracção subsiste registada uma hipoteca a favor do Banco …, S.A., cujo cancelamento vai ser efectuado, conforme declaração.
36. A sociedade comercial L… – Unipessoal, Lda. constituída a 11.03.2011, com o capital social de € 5.000,00€, representado por uma quota da titularidade do sócio ZZ, aquando da constituição foram nomeados gerentes LL e MM [esta última renunciou à gerência a 15.07.2013]. Cfr. fls. 41 e 42v/.
37. LL é filho de CC, sócio e gerente da Requerida [artigo 20.º da oposição].
38. Entre os dias 13.11.2018 e 23.11.2018, a Requerida celebrou acordos de revogação dos contratos de trabalho com os seguintes trabalhadores: II, OO, HH, KK, JJ e GG – cfr. fls. 222v/ a 227.
39. A 04.09.2018 foi registada, provisória por dúvidas, a constituição da sociedade T…, Lda., com o objecto social de consultadoria e serviços de gestão e formação nas áreas de engenharia, arquitetura, engenharia ambiental, fiscalização de obra, capital social de 2 000,00, distribuído pelos sócios LL – 1 900,00€ e DD – 100,00€ - cfr. fls. 43.
40. A Requerida apresentou a lista dos cinco maiores credores, que são os seguintes:
NN (EUR 18.524,00)
C… – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. (EUR 18.052,54)
PP (EUR 13.582,00)
QQ (EUR 11.166,67)
C… Portugal, S.A. (EUR 10.974,00) – cfr. fls. 219v/ e 220.
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B. A insolvente recorreu da decisão de declaração de insolvência para o Tribunal da Relação de Lisboa que proferiu o Acórdão de 14.07.2020, a julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
C. CC deduziu embargos à sentença declaratória da insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 40.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indeferidos liminarmente por decisão de 30.12.2019.
D. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, este proferiu, a 14.07.2020, Acórdão a julgar a apelação improcedente e a confirmar a decisão.
E. Nos autos principais foi apresentado pelo Administrador de Insolvência o relatório do artigo 155.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – ref.: 34655210, de 26.01.2020, no qual se escreveu:
«II – Atividades desenvolvidas nos últimos três anos, estabelecimentos e causas da insolvência (alínea c) do nº 1 do Art.º 24º do CIRE)
Trata-se de uma micro empresa, com um volume de vendas médio da ordem dos 430.000,00€ anuais, um Ativo da ordem dos 1.400.000,00€ e um quadro de pessoal de 8 trabalhadores
Operava no mercado nacional e nos mercados internacionais de língua portuguesa, com especial destaque para Angola, sobretudo após a cessão de quotas, operada no ano de 2008, com a entrada do sócio CC, o qual tinha uma forte ligação a Angola e bom conhecimento deste mercado, no âmbito da construção civil, mercado que acabou por galvanizar os recursos da insolvente com a prestação de serviços neste país a atingir o rácio de 90%, sendo os restantes 10% obtidos no mercado nacional.
Por necessidade de melhor gerir o negócio em Angola, atenta a grande projeção da empresa, foi aqui criada uma nova sociedade, com o mesmo nome da sociedade portuguesa de forma a melhor gerir, mas também potenciar o seu mercado alvo.
E, na verdade, este objetivo foi cumprido, com o aumento exponencial da faturação.
Contudo, as restrições financeiras em Angola à saída de capitais, a partir do ano de 2014, levou à degradação constante da sua estrutura financeira, com o acumular de dívidas por parte dos clientes angolanos, em valor da ordem de 1.000.000,00€, nas contas do ano de 2016 e anos seguintes.
A empresa entrou, assim, em situação de rutura financeira, pois deixou de ter meios financeiros para pagar as dividas de terceiros, trabalhadores incluídos.
Na verdade, a empresa deixou de cumprir com os trabalhadores em meados de 2017 e já não pagou os subsídios de Natal deste ano. Posteriormente, em meados de 2018, deixou de pagar os vencimentos aos seus colaboradores, o que determinou que alguns dos trabalhadores tivessem suspendido os contratos de trabalho e que tivesse sido requerida a situação de insolvência.
Ora se atendermos a que o valor da conta do Ativo – Clientes – é composta, quase que completamente, pelos créditos sobre os clientes angolanos (estes representam mais de 80% dos créditos), fácil é constatar que a empresa ficou numa situação de insolvência irreversível, pois que o seu Ativo (sem os créditos dos angolanos), fica reduzido a apenas 243.000,00€, o que representa tão só 40% do Passivo de Curto Prazo.
Conscientes da sua precária situação financeira, decidiram os sócios da insolvente efetuarem a venda de duas frações que detinham e que eram destinadas aos escritórios da sociedade, no decurso do ano de 2018, a saber:
- Frações AC e AD – lojas destinadas a escritórios, sitas no prédio urbano da Rua … e Rua …, da freguesia de Benfica, descritas na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob os nº … e inscritas na matriz urbana sob os Artºs …, frações com o Valor Patrimonial de 278.413,92€ e 59.030,00€, respetivamente.
Tais vendas, efetuadas a entidades terceiras – Banco …SA fração AC pelo preço de 275.000,00€ e à sociedade “L…, – Unipessoal, Lda” a fração AD pelo preço de 183.000,00€.
A venda à “L…, Unipessoal, Lda.” foi efetuada por assunção de dívida a esta sociedade, o que pode consubstanciar um favorecimento de credores, quando a insolvente conhecia já importantes valores em dívida a trabalhadores que rescindiram os seus contratos por dívida de remunerações, e ainda porque o gerente da sociedade L… é filho do sócio da insolvente CC
Já quanto à venda ao Banco …, SA, não se depreende das contas da insolvente que tenha a venda beneficiado os credores, porquanto a diminuição do Passivo, entre o ano de 2018 e o ano de 2019 é apenas de meros 35.797,31€.

III – Análise do Estado da Contabilidade do Devedor (alínea b) do nº 1 do Arteº 155º do CIRE)
A contabilidade da insolvente encontra-se em boa ordem, quer quanto a registos quer quanto a arquivo, encontrando-se cumpridas todas as obrigações declarativas fiscais, à exceção da IES de 2019 (cujo prazo decorre apenas em 2020).
IV – Análise das perspectivas futuras (alínea c) do nº 1 do Art.º 155º do CIRE)
Estando a empresa em plena situação de insolvência e com o estabelecimento já encerrado e já sem quaisquer vendas no ano de 2019, deverão os senhores credores votar o Plano de Insolvência junto aos autos pela insolvente, decidindo pela recuperação da Insolvente, ou votando a sua não aprovação e consequente liquidação do Ativo constante do inventário anexo e eventual resolução das vendas referidas no ponto II do relatório.»
F. Realizada assembleia de apreciação do relatório a 20.10.2020 deliberou a não apresentação de um plano de insolvência, prosseguindo os autos para liquidação.
G. No Apenso E o Sr. Administrador de Insolvência apresentou a 16.05.2020 a lista de credores do artigo 129.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:

H. Com o relatório do artigo 155.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas apresentou o Administrador de Insolvência o seguinte:


I. Bens adjudicados pelo valor de 10 350,00€ - cfr. ref.: 36413149, de 09.09.2020
J. Por requerimento de 09.09.2020 – ref.: 36412880, no Apenso de Apreensão foi aditado o «montante arrecadado existente em conta da Insolvente junto do Banco … 20.560,58€».
K. O pagamento do valor de 183 000,00 relativo à venda da fração AD, sita no prédio urbano da Rua … e Rua …, da freguesia de Benfica, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob os nº … e inscrita na matriz urbana sob o artigo …, «é feito mediante a assunção de dívidas da T…, Lda. pela compradora L…, Unipessoal, Lda.» - cfr. escritura pública junta a fls. 34 dos autos principais.
L. Nas contas do exercício de 2018 da devedora foi inscrito a débito na rubrica 278216508 – L…, U…, Lda. – doc. 12, a fls. 80, junto com a oposição – ref.: 39000746, de 26.05.2021.
M. Na mesma conta foram inscritos a crédito os seguintes valores:
Data Descrição Crédito Saldo
2018-11-30 Proc.3263201801080598 134,17 182.865,83
2018-11-30 Proc.3263201801081713 562,79 182.303,04
2018-11-30 Proc.3263201801081721 215,98 182.087,06
2018-11-30 Proc.3263201801125974 215,33 181.871,73
2018-11-30 Proc.3263201801125982 300,12 181.571,61
2018-11-30 Proc.3263201801128612 1.591,49 179.980,12 2018-11-30 Proc.3263201801140680 41,65 179.938,47
2018-11-30 Proc.3263201801144170 214,70 179.723,77 2018-11-30 Proc.3263201801144570 543,41 179.180,36 2018-11-30 Proc.3263201801145100 1.748,28 177.432,08 2018-11-30 Proc.3263201801169904 284,00 177.148,08 2018-11-30 Proc.3263201801172948 3.137,11 174.010,97 2018-11-30 Proc.3263201801182960 396,47 173.614,50 2018-11-30 Proc.3263201801202049 83,79 173.530,71
2018-11-30 Proc.3263201801205056 213,42 173.317,29 2018-11-30 Proc.3263201801205064 118,01 173.199,28 2018-11-30 Proc.3263201801206354 1.720,00 171.479,28 2018-11-30 Proc.3263201801222414 182,49 171.296,79 2018-11-30 Proc.3263201801231308 212,77 171.084,02 2018-11-30 Proc.3263201801242059 1.771,72 169.312,30
2018-11-30 Proc.3263201801248421 291,97 169.020,33 2018-11-30 Proc.3263201801253891 147,99 168.872,34 2018-11-30 Proc.3263201801262750 177,91 168.694,43 2018-11-30 Proc.3263201801266330 786,19 167.908,24 2018-11-30 Proc.3263201801277634 166,09 167.742,15.
N. Correspondentes à liquidação de 25 processos de execução tributária da insolvente, no valor total de 15 346,10 – cfr. guias e comprovativos de pagamento juntos como Doc. 14, Doc.15, Doc. 16, Doc. 17, Doc. 18, Doc. 19, Doc. 20, Doc. 21, Doc. 22, Doc. 23, Doc. 24, Doc. 25, Doc. 26, Doc. 27, Doc. 28, Doc. 29, Doc. 30, Doc. 31, Doc. 32, Doc. 33, Doc. 34, Doc. 35, Doc. 36, Doc. 37 e Doc. 38, da oposição.
O. Na aludida conta foram inscritos os seguintes movimentos:
2018-11-30 II 20.100,00
2018-11-30 HH 26.000,00
2018-11-30 OO11.500,00
2018-11-30 KK 18.000,00
2018-11-30 JJ 17.500,00
2018-11-30 GG 16.500,00.
P. Valores que L…, Unipessoal, Lda. liquidou – cfr. declarações de quitação e comprovativos de pagamentos, doc. 6 a 11, a fls. 74 a 79, juntos com a oposição.
Q. Ao fornecedor da Insolvente – G…, LDA. foi liquidado o valor de 4.554,73 – cfr. guia e comprovativo de pagamento, juntos como Doc. 13.
R. Inscrito na referida conta nos termos seguintes: 2018-11-30 Pag final da penhora GEOT 4.554,73.
S. No dia 28 de Novembro de 2018, foram liquidados os valores correspondentes a quatro processos executivos intentados contra a Insolvente pela Segurança Social, no total de EUR 29.792,20, correspondente a (i) um processo no valor de EUR 17.691,55, (ii) um processo no valor de EUR 4.896,40, (iii) um processo no valor de EUR 4.026,84 e (iv) um processo no valor de EUR 3.177,41 – cfr. Documentos Únicos de Cobrança e comprovativos de pagamento que se juntam como Doc. 39, Doc. 49, Doc. 41 e Doc. 42, da oposição já identificada.
T. Pagamentos inscritos no extracto da conta da Insolvente «278216508 – L…, Unipessoal Lda.»:
Data Descrição Crédito Saldo
2018-12-31 Seg.Social 17.691,55 35.726,97
2018-12-31 Seg.Social 3.177,41 32.549,56
2018-12-31 Seg.Social 4.026,84 28.522,72
2018-12-31 Seg.Social 4.896,40 23.626,32.
U. Em Dezembro de 2018, foram pagos quatro processos de execução tributária da Insolvente, no montante total de EUR 1.491,62, referente, para possibilitar a emissão das guias de IMT e Imposto de Selo para a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma “AC” – cfr. guias de pagamento e respectivos comprovativos de pagamento que se juntam como Doc. 43, Doc. 44, Doc. 45 e Doc. 46.
V. Pagamentos reflectidos no extracto da conta da Insolvente «278216508 – Legismircat Unipessoal Lda.»:
Data Descrição Crédito Saldo
2018-12-31 Proc.3263201801287966 711,86 22.914,46 2018-12-31 Proc.3263201801309498 243,50 22.670,96
2018-12-31 Proc.3263201801303775 358,35 22.312,61 2018-12-31 Proc.3263201801287648 177,91 22.134,70 – cfr.
doc. 12, a fls. 80.
W. No dia 12 Março de 2019, foi transferido o montante de EUR 3.100,00 para o BCP – cfr. comprovativo de transferência junto como Doc. 47, a fls. 116.
X. Foram pagas 3 prestações ao IGFSS, totalizando EUR 1.412,55 – cfr. guia de pagamento e comprovativo de transferência, juntos como Doc. 48, 49 e 50.
Y. No dia 20 de Fevereiro de 2019, foram liquidados (i) contribuições da Insolvente de Janeiro de 219 para a Segurança Social, no valor de EUR 2.345,46, (ii) de EUR 781,00 a título de Declaração Mensal de IRS e de (iii) EUR 162,00 a título de retenção na fonte de IRS, no total de EUR 3.288,46 – cfr. Doc. 51, Doc. 52 e Doc. 53, juntos a fls. 121 a 122.
Z. No dia 8 de Março, foi paga uma multa aplicada pela ACT no valor de EUR 3.264,00 – cfr. guia de pagamento de coima e comprovativo de pagamento doc. 54, a fls. 123.
AA. A venda da fracção AC, sita no prédio urbano da Rua … e Rua …, da freguesia de Benfica, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob os nº … AC e inscrita na matriz urbana sob o artigo … AC, com o valor patrimonial de 278 413,92, ao Banco …, SA pelo preço de 275.000,00€, foi lançada na conta «78713 Ai – activos tangíveis 275 000,00» - cfr. doc. 56, junto a fls. 125 e escritura junta ao processo principal a fls. 229.
AB. E, na conta 2511112 Emp. bancários-cp- … 259.000,00 para amortização do empréstimo bancário.
AC. O valor de 16 000,00 na conta 13101 Banco … reforço GB 16.000,00 [reforço da garantia bancaria junto do … – garantia accionada pela Segurança Social, que comunicou à devedora, a 26.03.2019: «Informa-se que já foi imputado à dívida da sociedade o valor de 35.035,18€ resultante do acionamento da garantia bancária e o valor de 10.012,37€ transferido pelo Banco … devido às penhoras bancárias. Nestes termos, remete-se o documento de cobrança para pagamento do remanescente da dívida para efeitos de extinção da dívida em sede de execução fiscal.»]
AD. O requerido CC padeceu de doença como consta do relatório junto aos autos a 05.11.2023 – ref.: 47033178, cujo teor se transcreve:
AE. No dia 29.06.2018, CC e DD., na qualidade de gerentes da insolvente, constituíram procurador da sociedade FF, a quem conferiram poderes para em nome e representação da sociedade e conjuntamente com o gerente DD:
1. Praticar todos os actos de representação da mandante, nomeadamente, assinar cartas, representação em reuniões junto de entidades publicas e/ou privadas, bem como preparar e dar instruções a quaisquer funcionários e/ou colaboradores relativamente aos actos operacionais da sociedade mandante;
2. Celebrar, alterar e cessar, nos termos da lei aplicável, quaisquer contratos de trabalho celebrado com trabalhadores e/ou colaboradores da mandante em qualquer das formas e modalidades previstas na lei;
[…]
13. Relativamente ao imóvel propriedade da mandante correspondente a uma loja […] destinada ao comércio, no piso menos dois do prédio em regime de propriedade horizontal sito na freguesia de Benfica em Lisboa, na Rua … e na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … -AC e inscrito no Serviço de Finanças Lisboa -5, sob o artigo matricial …-AC, correspondente à fracção AC, vender, arrendar e trespassar, bem como prometer tais factos, podendo em consequência e nos mencionados termos, assinar, requerer e praticar todos e quaisquer actos, documentos e contratos, incluindo contratos promessa de compra e venda e escrituras notariais necessárias e convenientes à prossecução dos indicados fins; - cfr. procuração junta como doc. 64, a fls. 92/94 – ref.: 39005850, de 27.05.2021.
AF. Por carta, datada de 06.11.2018, DD comunica ao Banco … a proposta de venda da fracção AC nos termos do doc. 55, junto a fls. 124 – ref.: 39005741, de 27.05.2020, que aqui se reproduz:

AG. O requerido CC, antes da doença, residia grande parte do tempo em Angola.
AH. Era o requerido DD que se encontrava na empresa e contactava com os bancos, com os serviços de contabilidade, com a Segurança Social, com os Serviços de Finanças, com os trabalhadores.
*
B) Das invocadas nulidades da sentença
Sustentou o apelante DD que a sentença enferma de nulidade com os seguintes fundamentos:
- por falta de fundamentação – alínea b) do nº 1 do art.º 615º do C.P.Civil -, alegando que a mesma não especifica, nem de facto, nem de direito, a razão pela qual determinou, a final, que CC e o recorrente devem ser solidariamente – e em igual medida - condenados a indemnizarem os credores da insolvente;
- por omissão de pronúncia – alínea d) do mesmo normativo -, sustentando que o tribunal não se pronunciou sobre a medida da gravidade e imputação da situação prejudicial causada por cada um dos que foram condenados a indemnizar os referidos credores e ainda
- porque os fundamentos estão em oposição com a decisão – alínea c) do nº 1 do aludido artigo 615º -, uma vez que ficou provado que o recorrente reclamou créditos no valor de € 31.741,21 e apesar da presunção que resulta da alínea d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, as circunstâncias de facto evidenciam que o recorrente não dispôs dos bens em proveito pessoal, pois se assim tivesse sido o mesmo teria liquidado o seu crédito, o que não ocorreu.
Por sua vez, os apelantes T…, Lda e CC também invocaram a nulidade da sentença, alegando que:
- se verifica a nulidade nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 615º, em virtude de o tribunal a quo não ter especificado, em primeira linha, se deu por preenchida a alínea d) do art.º 186º, nº 2, do CIRE, com base no apuramento de factos que revelassem o proveito pessoal do recorrente ou o proveito pessoal de terceiros, não especificando os fundamentos de facto de que se poderia extrair a existência do referido concreto proveito;
- o tribunal a quo não identificou e apreciou criticamente toda a extensão dos fundamentos de facto sobre os quais lhe cabia pronunciar-se, face aos temas da prova fixados no Despacho Saneador e à prova complementar produzida no decurso da audiência final, tendo omitido do elenco de factos dados como provados/não provados factualidade resultante da prova produzida.
CC sustentou ainda a nulidade da sentença por omissão de pronúncia com fundamento no facto de a mesma ser omissa quanto à fixação do grau de culpa do recorrente e fundamentos que serviram de base a tal fixação.
Estabelece o nº 1 do citado art.º 615º que a sentença é nula quando:
“(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)”
A Lei impõe ao juiz que tome posição directa sobre a factualidade alegada, especificando os factos provados e não provados e também os fundamentos de direito em que estriba a decisão.
Conforme se refere no Ac. do STJ de 04/07/19, relatora: Rosa Tching, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt, a nulidade prevista na citada alínea b) “Trata-se de um vício que corresponde à omissão de cumprimento do dever contido no art.º 205º, nº 1 da CRP que impende sobre o juiz de indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão.
E, tal como é jurisprudência pacífica - [2 - Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acs.. do STJ, de 10.5.1973, in, BMJ, n.º 228º, pág. 259 e de 15.3.1974, in, BMJ, n.º 235, pág. 152.], traduz-se na falta absoluta de motivação, quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e não na motivação deficiente, medíocre ou errada”.
Sustenta-se igualmente no Ac. do mesmo STJ de 06/07/17, relator: Nunes Ribeiro, disponível também in www.dgsi.pt:
“(…) é preciso esclarecer que só a falta absoluta de motivação constitui nulidade. A insuficiência ou mediocridade da motivação - como ensinava o Prof. ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado Vol. V, pag 140, afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.
A nulidade apontada tem correspondência com o n.º 3 do art.º 607º do mesmo C. P. Civil que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes...»”.
Atento o que fica referido, é jurisprudência assente que só a falta absoluta de motivação – e não a sua imperfeição ou incompletude – constitui fundamento para a nulidade a que se refere o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Relativamente ao invocado pelo apelante DD consta da sentença o seguinte:
“O afectado deve ainda ser condenado a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos reconhecidos não satisfeitos, no caso, no montante máximo de 181 729,12 [na lista do artigo 129.º, foram reconhecidos créditos no valor total de 554.470,33€, sendo 31.741,21 € de salários do gerente DD e 341.400,00€ de suprimentos do requerido CC], valor correspondente aos créditos reconhecidos pelo Administrador da Insolvência, até à força do respectivo património, nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do mesmo diploma.
Cumpre determinar a perda de 31.741,21€ reclamados, a título de salários pelo gerente DD e 341.400,00€ de suprimentos reclamados pelo requerido CC – artigo 189.º, n.º 2, alínea d) do mesmo diploma”, sendo certo que já supra se tinha referido, a propósito do período da inibição, que a actuação de cada um dos gerentes “na prática dos actos em causa – alienação dos imóveis é idêntica e apesar da doença do requerido CC outorgou a escritura de compra e venda da fração AD e conferiu poderes concretos para a venda da fração AC, sendo conhecedor da impossibilidade da sociedade proceder ao pagamento dos salários e outras obrigações, ou seja, em situação de insolvência”.
Assim, e atento o que supra ficou referido, no sentido que só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, conclui-se que a sentença não enferma de nulidade por falta de fundamentação nos termos apontados pelo referido apelante.
E o mesmo se tem que dizer em relação ao invocado pelos apelantes T…, Lda e CC Consta da sentença, entre a demais fundamentação:
“Termos em que consideramos verificada a qualificação da insolvência pela alínea d), do n.º 2, do artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, porquanto a venda dos imóveis da devedora em situação de insolvência é um ato prejudicial ao aos credores, principalmente dos titulares de créditos com preferência de pagamento pelo produto daqueles bens.
A devedora afectou o produto da venda dos bens ao pagamento de dívidas, incluindo trabalhadores, com os quais negociou acordos de pagamento, mas não com todos os trabalhadores e com a venda dos imóveis verificou-se uma diminuição do valor da massa insolvente constituída com a sua declaração de insolvência e consequente agravamento da possibilidade de satisfação dos credores da insolvência.
A afetação do valor da venda dos imóveis pela devedora ao pagamento de créditos que não gozam de preferência de pagamento sobre o produto desses bens conduz ao favorecimento a credores em detrimento dos demais credores, incluindo trabalhadores, que pela inexistência daqueles bens imóveis para apreender para a massa não terão os seus créditos satisfeitos”.
Do referido retira-se que, segundo o entendimento do tribunal a quo, existiu proveito de terceiros, pelo que também não se verifica a falta de fundamentação susceptível de dar lugar à nulidade invocada.
Quanto ao suscitado em termos de nulidade por omissão de pronúncia, de acordo com o disposto na alínea d) do referido artigo 615º do C.P.Civil, a sentença é ainda nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A omissão de pronúncia está directamente relacionada com o comando fixado nº 2 do art.º 608º do CPC – segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
As questões aqui referidas são as relacionadas com o mérito da causa, balizadas pela pretensão deduzida, pela respectiva causa de pedir e pelas excepções peremptórias invocadas.
As questões a resolver não se confundem com os argumentos aduzidos, sendo constante a jurisprudência dos nossos tribunais no sentido que aquele preceito apenas impõe que o tribunal resolva todas as questões que as partes hajam submetido a julgamento – cfr, entre muitos outros, Ac. STJ, de 16/02/1995, Cons. Ferreira da Silva, BMJ 444, págs 595 e ss.
O mesmo é defendido pela doutrina – cfr, entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, pág. 551, Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, 2ª vol., pág. 646 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 54.
A nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
Como resulta da sentença e do excerto que supra se transcreveu, contrariamente ao invocado pelo apelante DD, o tribunal pronunciou-se sobre a medida da gravidade e imputação da situação prejudicial causada por cada um dos afectados, tendo considerado idêntica a medida da responsabilidade.
Não pode, pois, proceder a nulidade com fundamento em omissão de pronúncia invocada pelo aludido recorrente e o mesmo se tem que concluir relativamente ao suscitado, pelos mesmos fundamentos, pelo apelante CC.
Quanto ao invocado por este mesmo apelante e pela devedora T…, Lda, no sentido em que o tribunal a quo não identificou e apreciou criticamente toda a extensão dos fundamentos de facto sobre os quais lhe cabia pronunciar-se, face aos temas da prova fixados no Despacho Saneador e à prova produzida no decurso da audiência final, a verificar-se o alegado, não se estará perante qualquer nulidade da sentença, mas em face de erro de julgamento de facto, o que, oportunamente, será apreciado.
Relativamente ao alegado pelos apelantes, no sentido que os fundamentos estão em oposição com a decisão dado que, não obstante a presunção que resulta da alínea d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, também ficaram provadas circunstâncias de facto que evidenciam que o recorrente não dispôs dos bens em proveito pessoal, pois não liquidou o seu crédito, estabelece a alínea c) do nº 1 do referido artigo 615º que a sentença é ainda nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Como se diz no Código de Processo Civil Anotado, vol. I., Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Almedina, 2ª edição, pág. 763, em anotação ao aludido art.º 615º: “A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação do aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente”.
O invocado não se subsume na nulidade referida. A Mmª Juíza da 1ª instância entendeu, pelos fundamentos que invocou, que os factos provados são de molde a concluir pela qualificação da insolvência como culposa e foi isto que foi decidido. Se assim é, ou não, mais uma vez, trata-se de uma questão jurídica, que não se confunde com nulidade da sentença.
Estas nulidades, taxativamente previstas no art.º 615º, nº1, do CPC, reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).
Improcedem, pois, as invocadas nulidades da sentença.
*
C) Da Impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto
Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios: «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Citando o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, «Estabelecendo o paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as alegações destituídas em absoluto de conclusões são “ineptas”, determinando a rejeição de recurso (art.º 641º, nº 2, al. b), sem que se justifique a prolação de qualquer despacho de convite à sua apresentação.(…) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.(…)» – cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 122 e 132.
Como consequência, segundo o mesmo autor, impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam alguns dos elementos referidos - Ob. cit, pág. 135.
Verificou-se a existência de divergência jurisprudencial no que concerne a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº 2 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil). O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se nos seguintes termos: No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Cons. Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.»
No Acórdão de 11.4.2016, relatora Cons. Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, deverão nelas ser identificados com precisão os pontos de factos que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Cons. Clara Sottomayor, 1060/07.
O AUJ n.º 12/2023, relatora Cons. Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, disponível também em www.dgsi.pt, pronunciou-se expressamente no sentido que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Defendeu-se no Acórdão do mesmo Tribunal de 29.10.2015, Cons. Lopes do Rego, 233/09, que se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal da Relação, a rejeição do recurso com tal fundamento constituirá solução excessivamente formal e sem justificação razoável. O ónus imposto ao recorrente na al. b) do nº1 do artigo 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que se afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida e impugnados, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objetiva questão para apreciar – cfr Acórdão da Relação do Porto de 16.5.2005, Desemb. Cunha Barbosa, 0550879.
De igual modo, não cumpre o ónus do aludido artigo 640º, nº 1, do C.P.Civil, o recorrente que faz uma transcrição integral dos depoimentos que culmina com uma alegação genérica de erro na decisão da matéria de facto - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.7.2015, Cons. Abrantes Geraldes, 961/10.
É também entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspectiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas – cfr Acórdãos do STJ de 20-12-2017 e 5-09-2018, respectivamente, nos processos nºs 299/13.2TTVRL.C1.S2 e 15787/15.8T8PRT.P1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt.
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Assim, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. art.º 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr a este respeito Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV vol., Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg. e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 660 e seg.).
In casu, os apelantes T…, Lda e CC impugnaram a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento ao estabelecido no supra referido nº 1 do art.º 640º, pelo que cumpre decidir;
Invocaram os mesmos que não foi feita prova que a actividade da requerida T… também fosse desenvolvida na fracção C do prédio sito na Rua …, freguesia de S. Domingos de Benfica, em Lisboa.
Dizem que tal não resulta dos depoimentos das testemunhas AA e BB, nem das certidões da Conservatória e da matriz relativas às fracções em causa e que, como tal, deve ser relegado para o elenco dos factos não provados o seguinte:
“A actividade da requerida era desenvolvida pelos recorrentes e outros ex-trabalhadores na fracção AC, sendo ali o seu local de trabalho”.
Conforme consta da sentença que declarou a insolvência da devedora, ficou ali demonstrado que:
“24. A Requerida era proprietária de duas fracções autónomas sitas na Rua ..., freguesia de São Domingos de Benfica, em Lisboa, local onde era desenvolvida a actividade da Requerida pelos Requerentes e outros ex-trabalhadores, sendo ali o seu local de trabalho. Cfr. certidões da matriz e de registo predial a fls. 24/29”.
Aquando da prolação do despacho saneador a Mmª Juíza a quo fez desde logo constar sob a epígrafe: “IV. Factos Assentes:
AA. Nos autos principais foram julgados provados, na sentença que declarou a insolvência da sociedade requerida, os factos seguintes com interesse para o presente incidente:”, tendo seguidamente passado a reproduzir-se os respectivos factos.
No julgamento realizado no presente incidente de qualificação, por AA um dos requerentes da insolvência e que colaborou com a devedora desde 1997 a 2002, data em que passou a ser trabalhador efectivo da mesma e assim se manteve até Setembro de 2018, na área técnica do desenho, foi referido que sempre teve a ideia que “faziam parte da gerência os dois imóveis” e que os trabalhadores desenvolviam a sua actividade na “parte superior, no edifício superior, na parte do apartamento, espaço superior, na loja, salvo erro na D, acho que sempre laborámos aí. As debaixo eram geridas pelos sócios, eventualmente, da forma como bem entendessem”.
Por sua vez, BB, que trabalhou para a devedora, como desenhador, desde 1990 até Setembro de 2018 e também requerente da declaração de insolvência, referiu que a fracção inferior, sita no -2, foi alienada ao Banco… e que a fracção AD, que servia de escritório, esteve uns meses à venda na KW por 600.000, mas que nessa altura não chegou a ser vendida.
A sociedade devedora tem como objecto a programação, direcção e fiscalização de obras e elaboração de projectos de instalações técnicas de engenharia e a fracção AD, conforme consta da certidão da conservatória do registo predial junta com a petição inicial da insolvência, destina-se a escritório e a AC trata-se de uma loja destinada a escritório.
Contrariamente ao alegado pelos recorrentes, os elementos probatórios referidos permitem concluir que também a fracção AC estava afecta ao desenvolvimento da actividade da insolvente. AA referiu que a mesma era “gerida pelos sócios … da forma como bem entendessem”. Da conjugação crítica dos elementos referidos e tendo em conta o objecto social da requerida devedora, não se pode concluir, contrariamente ao que pretendem os apelantes, que não tenha ficado demonstrado que esta fracção não se encontrasse afecta à actividade da mesma, pelo que improcede nesta parte a impugnação da matéria de facto. Quanto ao demais suscitado, em termos de impossibilidade legal de ser considerada, para efeitos da decisão a proferir neste apenso de qualificação, a factualidade provada no referido ponto da sentença que declarou a insolvência da devedora e porque se trata de uma questão jurídica, será infra apreciado.
Sustentam também os mesmos que, atento o que consta do balanço e balancete intercalar da insolvente, datado de 31-10-2018, juntos aos autos com o requerimento apresentado em 24/10/2023, deve ser aditado aos factos provados que o valor do passivo da requerida à data das alienações era de € 919.719,96 e que imediatamente após as mesmas passou a ser de € 633.964,98.
Encontra-se provado que, atento o que consta da escritura pública de compra e venda, o pagamento do valor de 183.000,00 relativo à venda da fracção AD, sita no prédio urbano da Rua … e Rua …, da freguesia de Benfica, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob os nº … AD e inscrita na matriz urbana sob o artigo … AD, «é feito mediante a assunção de dívidas da T…, Lda. pela compradora L…, Unipessoal, Lda.» - cfr. escritura pública junta a fls. 34 dos autos principais e seguidamente elencados as dívidas da responsabilidade da devedora que a compradora liquidou.
No que respeita à fracção AC, encontra-se demonstrado que a venda da mesma ao Banco … foi efectuada pelo preço de 275.000,00€ e que tal operação foi lançada na conta «78713 Ai – activos tangíveis 275 000,00» - cfr. doc. 56, junto a fls. 125 e escritura junta ao processo principal a fls. 229 - e na conta 2511112 Emp. bancários-cp-… 259 000,00 para amortização do empréstimo bancário e o valor de 16 000,00 na conta 13101 Banco … reforço GB 16 000,00 [reforço da garantia bancaria junto do … – garantia accionada pela Segurança Social, que comunicou à devedora, a 26.03.2019 o seguinte: «Informa-se que já foi imputado à dívida da sociedade o valor de 35.035,18€ resultante do acionamento da garantia bancária e o valor de 10.012,37€ transferido pelo Banco … devido às penhoras bancárias. Nestes termos, remete-se o documento de cobrança para pagamento do remanescente da dívida para efeitos de extinção da dívida em sede de execução fiscal.»]
Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não dever reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (cfr o Acórdão da Relação de Coimbra de 27.05.2014, relator: Moreira do Carmo, in www.dgsi.pt).
Na sentença objecto de recurso, entendeu-se qualificar a insolvência como culposa por força do disposto na alínea d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE e fazendo já parte do elenco dos factos provados a que se destinaram as contrapartidas obtidas com a alienação das fracções, não se vislumbra, considerando a matéria em discussão nos autos, que a factualidade em apreço possa assumir relevância para a decisão, nem tão pouco, sendo caso disso, no que concerne à afectação dos gerentes da devedora e das consequências daí advenientes para os mesmos.
Mas ainda que assim não fosse e caso, aquando da apreciação da questão jurídica objecto do recurso, se pudesse vir a reputar como relevante a factualidade em causa, encontrando-se a mesma provada por documentos, conforme os recorrentes invocam, sempre tais factos seriam tidos em consideração por este tribunal por força do disposto no art.º 607º, nº 4, do CPCivil, aplicável no que concerne à fundamentação dos acórdãos ex vi do art.º 666º, nº2, do mesmo diploma.
Pelo exposto, também nesta parte não há fundamento para alterar a decisão da matéria de facto.
E o mesmo se diga relativamente ao aditamento que os recorrentes pretendem que seja efectuado aos factos provados com a seguinte redacção:
«A alienação das fracções “AC” e “AD” resultou numa mais valia-contabilística para a requerida na ordem dos € 149.270,42».
A venda de um activo fixo tangível deverá originar um cálculo extra contabilístico para apuramento da mais-valia ou menos-valia, sendo este cálculo resultado da diferença entre o valor de venda do activo e o valor líquido contabilístico (quantia escriturada) do mesmo bem, conforme disposto no parágrafo 70 da Norma Contabilística e de Relato Financeiro 7.
Atento o objecto do recurso, o tratamento em termos contabilísticos da alienação das fracções não releva para a decisão a proferir, pelo que também não há que proceder ao aditamento da matéria em causa.
Sustentaram ainda os recorrentes T…, Lda e CC que deve ser dado como não provado que os valores das “vendas” das fracções não tenha sido lançado nas contas da devedora, atento o que constava do ponto 4 dos temas da prova, com a seguinte redacção: “Da falta de lançamento nas contas da devedora dos valores das vendas”.
Consta do ponto L. dos Factos Provados: “Nas contas do exercício de 2018 da devedora foi inscrito a débito na rubrica 278216508 – L…, Unipessoal, Lda. – doc. 12, a fls. 80, junto com a oposição – ref.: 39000746, de 26.05.2021”, ou seja, foi inscrita a débito nas aludidas contas na rubrica 278216508 e sob a descrição – L…, Unipessoal, Lda, o valor de € 183.000,00 e do ponto M. constam os valores que foram inscritos a créditos relativos aos processos de execução tributária da insolvente ali referidos, constando ainda a seguir os demais valores que a mesma sociedade L… liquidou.
Resulta ainda dos pontos AA., AB. e AC. o lançamento nas contas da insolvente a venda da fracção AC e os movimentos inerentes.
Estando provada esta factualidade, é evidente que não resultou provado o seu contrário. De um facto, não provado não se pode extrair o seu oposto, mas tendo ficado provado que as operações aludidas foram inscritas na contabilidade da requerida devedora, é evidente que é desnecessário que conste como não provada a falta de inscrição das mesmas operações.
Deste modo, também relativamente a este segmento não há que alterar a decisão da matéria de facto.
No que respeita à impugnação apresentada unicamente pelo apelante CC, pretende o mesmo que, atento o que consta da respectiva escritura de compra e venda junta aos autos, seja aditado aos factos provados que “A escritura pública referente à venda da fracção “AC” foi outorgada pelo gerente DD e FF, este último na qualidade de procurador da requerida T…, LDA.”
O contrato de compra e venda encontra-se junto aos autos de insolvência, resultando do mesmo que quem teve intervenção no acto em causa, em representação da sociedade devedora, foram DD e FF, este na qualidade de “procurador”.
Foi junta com a oposição do requerido a procuração outorgada em 29 de Junho de 2018, pelos dois gerentes a favor de FF, na qual aqueles declararam que constituem o mesmo procurador da sociedade, conferindo-lhe poderes para, em nome da representada, relativamente ao imóvel em causa, correspondente a loja destinada a comércio, “vender, arrendar e trespassar…”.
Como se disse supra, encontrando-se os documentos em causa juntos aos autos, caso o invocado pelo apelante assuma relevância para a decisão, sempre os factos em causa serão atendidos por este tribunal em obediência ao disposto no nº 4 do art.º 607º do C.P.Civil, pelo que não há que alterar a decisão da matéria de facto de modo a aditar os mesmos.
Quanto ao requerido pelo mesmo apelante de modo a que seja aditado, face ao que resulta da conjugação do extracto de conta de empréstimos do recorrente, que constitui o doc. nº 3 junto com o requerimento do recorrente de 24/10/2023, com o valor dos créditos reconhecidos ao recorrente sobre a requerida no montante total de € 341.000,00 nos termos que constam do ponto G. dos Factos Assentes, que “No período compreendido entre 01-01-2016 e 31-12-2018, o requerido CC efectuou empréstimos à requerida no valor global de € 338.067,66” e que “Após a alienação das fracções AC e AD e já no decurso do ano de 2019, o requerido CC efectuou suprimentos adicionais à requerida no montante de € 3.332,34”.
Atento o que já se encontra no ponto G. dos factos provados, no sentido em que consta da lista de créditos apresentada pelo Administrador da Insolvência no apenso E – Reclamação de Créditos – que foi reconhecido por este o crédito reclamado pelo apelante no valor de € 341.400,00, tendo como fundamento o “valor de suprimentos efetuados à insolvente”, entende-se que não há que aditar qualquer outra factualidade aos factos provados no que a tal concerne.
Sustentou ainda o apelante CC que deve ser aditado aos factos não provados que tenha tido lugar a intervenção pessoal do mesmo na escritura pública referente à venda da fracção “AC”.
Como se disse supra, resulta do documento de compra e venda da fracção em causa quem teve intervenção da mesma e em que qualidade, pelo que é desnecessário que fique a constar dos factos não provados que o apelante tenha tido teve intervenção pessoal no acto em apreço.
Improcede, pois, nos termos referidos, a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelos apelantes.
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Decidida que se encontra a impugnação da decisão da matéria de facto, passemos a conhecer das questões suscitadas pelos requeridos/recorrentes em termos de Direito.
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D) Verificação dos pressupostos de qualificação da insolvência como culposa
Conforme consta da sentença ora sob recurso, entendeu o tribunal a quo que, face aos factos provados, se encontra preenchido o disposto no art.º 186º, nº 2, alínea d) do CIRE e que assim não se pode deixar de concluir que a insolvência é culposa.
O artigo 185º indica claramente a finalidade do incidente de qualificação da insolvência: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá-la numa das categorias tipificadas na lei.
Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita.
Estabelece o artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, que: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
São, assim, requisitos da insolvência culposa:
1) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Por sua vez, estabelece o n.º 2 deste artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores tenham incorrido em algum dos comportamentos elencados nas suas diversas alíneas.
Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris – Sociedade Editora, 2015, pág. 680, o legislador veio estabelecer no nº 2 do mesmo artigo uma presunção inilidível que complementa a noção geral fixada no nº 1. O nº 3, mediante uma presunção ilidível, dá por verificada a existência de culpa grave quando ocorram determinadas circunstâncias ali previstas.
Continuam os mesmos autores que: “Segundo o nº 1, a insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, determinados, estes, nos termos do art.º 6º. Essa atuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
Uma vez que o preceito nada dispõe, em particular, nessa matéria, as noções de dolo e de culpa grave devem ser entendidas nos termos gerais de Direito”.
A qualificação impõe que tenha ocorrido (pelo menos) uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito, na asserção do disposto no art.º 6º do CIRE que:
- tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
- tal conduta seja dolosa ou com culpa grave, excluindo-se, assim, a culpa simples – neste sentido v.g., entre outros, Manuel Carneiro da Frada in “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, Ano 66, Set. 2006, pág. 689;
- tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, nos três anos anteriores ao dia da entrada do requerimento inicial do processo de insolvência na secretaria do tribunal, relevando, para além desse prazo, todos os actos praticados entre aquele dia e a data de declaração de insolvência, nos termos previstos no art.º 4º, n.º 2, do CIRE.
A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado sobre o alcance das presunções previstas nos nºs 2 e 3 do referido artigo 186º, nomeadamente, no que concerne a saber se é de presumir também o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Relativamente às presunções previstas no nº 2, tem sido entendimento maioritário que se tratam de presunções quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade.
Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6/10/2011, P.46/07.8TBSVC-O.L1.S1, in www.dgsi.pt:
«1. A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
2. O nº 2 do art.º 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa.
3. O nº 3 do mesmo art.º 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.
4. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”. Esclarece-se igualmente no aresto em referência: “Definindo, assim, este preceito legal em que consiste a insolvência culposa, começando por fixar, para o efeito, uma noção geral no seu nº 1. Implica sempre, tal insolvência culposa, uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. Deixando, contudo, tal actuação de ser atendida – devendo considerar-se as noções de dolo e de culpa grave, na falta de outro critério específico, nos termos gerais de Direito – para o efeito da qualificação da insolvência em análise, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Estabelecendo, de seguida, em complemento da noção antes fixada, o seu nº 2, presunções inilidíveis, ou seja, presunções absolutas ou jure et de jure, não admitindo prova em contrário (cfr., ainda, art.º 350.º, nº 2 do CC). Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores aí referidos – sem prejuízo de se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – à qualificação da insolvência como culposa.»
Aludindo ao Ac. do STJ supra citado, diz o Ac. da RG de 18/10/2018, relatora Maria Luísa Ramos, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Com efeito, como se deduz do preceito legal em referência - art.º 186º do CIRE que regulamente a “Insolvência Culposa”, e é cabalmente esclarecido no Ac. STJ citado, apenas nas situações previstas no nº 3 do indicado artigo, estabelecendo este presunções ilidíveis, relativas ou juris tantum, que assim podem ser ilididas por prova em contrário, se exige a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, não abrangendo esta presunção ilidível a do nexo de causalidade entre tais actuações omissivas e a situação da insolvência verificada ou do seu agravamento, e, já não nas situações previstas no nº 2 do art.º 186º do CIRE, em que a lei estabelece presunções inilidíveis, ou presunções absolutas ou jure et de jure, que não admitem qualquer prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores referidos nas respectivas alíneas à qualificação da insolvência como culposa.
No mesmo sentido v. Luís Alberto Carvalho Fernandes e João Labareda C.I.R.E. Anot., Vol. II, Págs. 14 e 15. “...as previsões deste número 2, consubstanciam presunções jure et de jure de insolvência culposa, portanto em si mesmas definitivas, por não elidíveis”».
Como se refere no Ac. da Rel. de Guimarães de 09/04/2019, relatora: Margarida Almeida Fernandes, o qual também pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Para facilitar a determinação de uma insolvência culposa o legislador optou estabelecer factos-índice da mesma, de diferente natureza, nos nºs 2 e 3 do citado preceito.
Da verificação de algum dos factos-índices previstos no nº 2 resulta sempre a insolvência culposa do devedor que não seja pessoa singular. Encontramo-nos nesta sede perante presunções absolutas, iuris et de iure ou inilidíveis (não admitem prova em contrário – art.º 350º nº 2 in fine do C.C.), quer da culpa grave, quer do nexo de causalidade entre a conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Mas, da verificação dos factos-índices previstos no nº 3 resulta apenas, quanto a nós, uma presunção ilidível da violação, com culpa grave, de obrigações impostas aos administradores do insolvente exigindo-se a subsequente prova do referido nexo de causalidade.
Esta tese baseia-se na letra da lei, pois, enquanto no nº 2 se refere “Considera-se sempre culposa a insolvência” (sublinhado nosso), no nº 3 alude apenas a “Presume-se a existência de culpa grave” inexistindo aqui qualquer presunção quanto à verificação dos demais requisitos previstos no nº 1. A propósito do nº 3 do citado preceito refere-se no Ac. da R.G. de 12/07/2017 (Conceição Bucho), in www.dgsi.pt “este normativo é claro e inequívoco, no sentido de que não admite, com o apoio mínimo no texto da lei que o artigo 9º, nº 2 do Código Civil exige, uma interpretação mais abrangente, que inclua no âmbito da presunção estabelecida no nº 3 do artigo 186º do CIRE também o exigido nexo de causalidade entre a actuação descrita naquele preceito legal e o despoletar da situação de insolvência ou do seu agravamento.” Esta é a posição da jurisprudência largamente maioritária defendida, entre outros, também pelos Ac. do S.T.J. de 06/10/2011 (Serra Baptista), da R.L. de 26/04/2012 (Ezaguy Martins), R.C. de 10/07/2013 (Falcão de Magalhães), R.E. de 08/05/2014 (Francisco Xavier), R.G. de 01/06/2017 (Maria João Matos) e de 11/07/2017 (José Cravo) todos consultáveis no www.dgsi.pt. Cremos que a doutrina maioritária também o defende - vide, entre outros, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., Quid Juris, p. 680-681; A. Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 – 2ª ed. ver. e actual., Almedina, p. 423.» Após a alteração introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11/01, ficou claro que as situações tipificadas no nº 3 do art.º 186º do CIRE constituem meras presunções de culpa grave, sem presunção de causalidade quanto à situação de insolvência.
Todavia, não é isto que se verifica, como se viu, relativamente às situações elencadas no nº 2 do mesmo normativo, o qual dispõe, no que ora releva:
“2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)”
Prevê-se nesta alínea que se considera sempre culposa, na modalidade de dolo ou culpa grave, a insolvência do devedor, quando o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto, tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal “dos administradores ou de terceiros”.
Tem-se entendido que os comportamentos ali previstos tanto são aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor – por exemplo venda ou a doação dos bens -, como os que, embora não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem.
É que “Como é por demais consabido, o processo de insolvência liquidatário traduz-se em processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art.º 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza.
Para cumprimento daquele fim a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º do CIRE). A preocupação do legislador em salvaguardar a garantia patrimonial dos credores e o cumprimento da universalidade da insolvência liquidatária vai ao ponto de dotar o AI do poder-dever de proceder à resolução extrajudicial de negócios para recuperação das atribuições patrimoniais que, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, assim, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores (cfr. arts. 120º e ss. do CIRE). Subjacente à tutela legal visada cumprir com os institutos da qualificação da insolvência e da resolução de atos de caráter patrimonial pelo AI (este com efeito directo sobre a massa insolvente) estão dois princípios estruturante do processo falimentar: a garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e a satisfação igualitária dos direitos dos credores. É também em benefício da preservação desta garantia patrimonial e da melhor e mais rápida satisfação dos direitos dos credores que o legislador previu a obrigação específica de o devedor se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do seu conhecimento, presumindo-o de forma inilidível decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de créditos fiscais, contribuições sociais, créditos laborais, ou rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 18º e 20º, al. g) do CIRE), impondo o cumprimento da liquidação/venda dos bens do insolvente no âmbito do processo de insolvência para controlo da legalidade do mesmo e da afetação legal devida do produto que dela resulte.
No contexto destes princípios e finalidade, a qualificativa prevista pela al. d), tal como as previstas pelas als. e), f) e g), assumem uma função de pré-proteção dos credores do devedor em situação de insolvência atual ou iminente, sancionando condutas suscetíveis de em abstrato lesar o património e prejudicar a solvabilidade do devedor, independentemente da verificação do perigo concreto de conduzirem a essa situação. Exige ‘apenas’ que de qualquer um dos atos ali previstos resulte benefício para o administrador que o praticou ou para terceiro especialmente relacionado com o devedor nos termos taxativamente previstos pelo art.º 49º, enquanto manifestação sintomática da violação do específico dever de fidelidade a que o administrador está vinculado na gestão do património que lhe está confiado e, assim, daquele perigo (abstrato) de lesão do património e da solvabilidade do respetivo titular. É por referência a estes princípios – da garantia patrimonial e de tratamento igualitário dos credores sociais - que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d)” – cfr Ac TRL de 02/10/2023, Proc. nº 1941-13.0TYLSB-A.L1, relatora Amélia Sofia Rebelo, subscrito pela ora relatora enquanto 2ª adjunta e que pode ser consultado também in www.dgsi.pt.
“[N]os casos em que existe uma frustração do princípio da igualdade entre os credores, estão em causa as situações em que o devedor satisfaz antecipadamente um crédito de um determinado credor, na sua totalidade, em prejuízo dos restantes. (…) sendo satisfeito, em primeiro lugar sem qualquer critério, um credor que, em circunstâncias normais, receberia o mesmo e na mesma altura que os restantes.” – cfr Marisa Vaz Cunha, Garantia Patrimonial e Prejudicialidade, Almedina, 2017, p. 83.
Aqui chegados, cumpre começar por apreciar o invocado pelos recorrentes T…, Lda e CC, no que concerne a saber se o tribunal a quo podia ter considerado, em termos de factos assentes, os factos elencados sob o nº 24 do Ponto A da sentença recorrida e, em caso afirmativo, se tal terá como fundamento a ausência de oposição ao despacho de fixação da matéria de facto inserido no despacho saneador.
Intrinsecamente relacionada com esta questão está a suscitada no sentido de saber se os factos dados como provados na sentença de insolvência formam, ou não, caso julgado quanto a eles.
Os recorrentes não se insurgem quanto à aquisição dos demais factos que resultaram provados na sentença que declarou a insolvência, nem tão pouco daqueles que resultam do incidente de reclamação de créditos, mas tão só quanto à factualidade consignada no nº 24 do Ponto A dos “Factos Assentes, factualidade que foi considerada provada naquela outra sentença e que é a seguinte:
“24. A Requerida era proprietária de duas fracções autónomas sitas na Rua …, freguesia de São Domingos de Benfica, em Lisboa, local onde era desenvolvida a actividade da Requerida pelos Requerentes e outros ex-trabalhadores, sendo ali o seu local de trabalho. Cfr. certidões da matriz e de registo predial a fls. 24/29”.
Como se decidiu no Acórdão do STJ de 17/05/2018, Proc. nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, relatora: Rosa Tching, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso».
Também temos certo que “o caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida num primeiro processo, não se estende aos factos aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados, isoladamente, da decisão a que serviram de base, num outro processo” - cfr o mesmo acórdão imediatamente supra citado.
Todavia, o presente incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que determinaram a situação de insolvência e se as mesmas foram puramente fortuitas ou correspondem, pelo contrário, a uma actuação negligente ou fraudulenta do devedor.
Tal incidente pode ser declarado aberto pelo juiz aquando da prolação da sentença de declaração da insolvência, caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente, oficiosamente ou a requerimento do requerente da insolvência (artigo 36.º, n.º 1, al. i), do CIRE).
Trata-se de um incidente do próprio processo de insolvência, pelo que não está em causa a invocação num processo diferente de factos que serviram de base à sentença proferida num outro processo, mas de factos que resultaram provados no mesmo processo de que o incidente é dependência.
Aquando da prolação do despacho saneador, a Mmª Juíza a quo fez desde logo consignar sob o ponto A. dos “Factos Assentes” a factualidade que tinha ficado provada na sentença que declarou a insolvência e que fez constar que era seu entendimento que a mesma tinha interesse para a decisão do presente incidente. As partes notificadas desse despacho nada disseram.
A questão também não se coloca em termos de estarem abrangidos pelo caso julgado os factos considerados assentes aquando da prolação do despacho saneador – como se viu supra não estão - mas na possibilidade de os factos que resultaram demonstrados na sentença que declarou a insolvência serem tidos em consideração para efeitos da decisão do presente incidente por força do princípio da aquisição processual enunciado no art.º 413º do C.P.Civil. De acordo com este princípio o juiz, quando decide a matéria de facto, tomará em consideração todas as provas constantes dos autos, sendo certo que, in casu, foi dado conhecimento às partes, previamente à prolação da sentença, da intenção por parte do tribunal de ter em consideração os factos em apreço.
Deste modo, nada obsta a que a factualidade supra referida seja considerada para efeitos da decisão do presente incidente de qualificação da insolvência.
Acresce que, conforme se já referiu aquando da decisão da impugnação da matéria de facto, resultou, efectivamente, demonstrado, face às declarações de AA e BB e ao teor da certidão conservatória do registo predial junta com a petição inicial da insolvência, que a actividade da devedora era desenvolvida em ambas as identificadas fracções.
A acção de insolvência foi instaurada em 20-02-2019.
Ficou demonstrado que:
Por escritura pública outorgada em 22.11.2018, a Requerida declarou vender à sociedade comercial L…, Unipessoal, Lda, a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1, pelo preço de 183 000,00, sendo o pagamento do preço feito mediante assunção de dívidas da T…, Lda, pela compradora L…, Unipessoal, Lda. – cfr. escritura a fls. 34. 31.
Em 14.12.2018, a Requerida declarou vender ao Banco …, S.A. a fração “AC” correspondente ao piso -2 (loja), destinada a escritório, pelo preço de €275 000,00 – escritura a fls. 229.
Resulta ainda dos factos apurados na sentença que decretou a insolvência que a requerida deixou de pagar aos trabalhadores, em Junho de 2017, os subsídios de alimentação, em Dezembro de 2017, os subsídios de Natal e em Junho de 2018 deixou de pagar os salários dos trabalhadores.
Os trabalhadores GG, HH, II, JJ e KK resolveram os contratos de trabalho com a Requerida por falta de pagamento da retribuição.
Em Outubro de 2018, as contas bancárias da Requerida já tinham saldos a descoberto, por falta de pagamento das responsabilidades assumidas perante as entidades bancárias e as contas estavam bloqueadas por força de dívidas ao Estado e à Segurança Social, após a venda do imóvel foram desbloqueadas.
Interpretada com o sentido e o alcance supra expostos, a alínea d) compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores (de direito ou de facto) ou para um terceiro.
Com o produto das vendas, a devedora procedeu ao pagamento de credores, como resulta dos pontos K a AC dos Factos Provados, entre os quais trabalhadores, credor hipotecário, dívidas fiscais, fornecedor com penhora sobre o imóvel, mas tais pagamentos foram efectuados em detrimento de outros credores, nomeadamente dos demais trabalhadores da devedora.
Como refere Carneiro da Frada, em A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66 (2006), II, Setembro de 2006, pgs. 692 e 693, na situação da alínea d) do nº 2 do art.º 186º pune-se a “mera disposição de bens do devedor em proveito pessoal”, podendo mesmo a disposição ter tido uma contrapartida idónea. Está em causa a infracção de uma disposição de proteção, sendo compreensível o estabelecimento de uma presunção de culpa. O caso da alínea d) é um dos casos em que prescinde da prova de um prejuízo directo e se abstrai da causalidade entre o comportamento e a insolvência. Estamos ante violações do dever de fidelidade em que o administrador não pauta a sua conduta pelos interesses da sociedade, mas pelos seus ou de terceiros.
A lei não exige qualquer elemento subjectivo adicional (intenção de prejudicar credores), para o preenchimento do referido tipo do art.º 186º do CIRE e, independentemente de qualquer intenção, a afectação dos recursos monetários do devedor a outra sociedade prejudica os respectivos credores por diminuir ou a respetiva garantia geral, que é sempre o património do devedor.
Como bem se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de 02/10/2023 supra citado, os actos de disposição de bens do activo do devedor em situação de insolvência qualificam-se como prejudiciais independentemente da questão do pagamento do preço/valor dos bens pelos adquirentes, na medida em que impedem os credores da insolvência de, em sede de liquidação do activo e do passivo do insolvente, concorrerem ao produto daqueles bens para integral e/ou parcial satisfação dos respetivos créditos.
Este prejuízo mantém-se independentemente da afectação dos valores recebidos ao pagamento de créditos sobre o insolvente, se estes não corresponderem aos que em sede de liquidação do activo e do passivo beneficiariam de preferência de pagamento sobre o produto daqueles bens. A circunstância de o devedor satisfazer antecipadamente créditos de determinados credores, na sua totalidade, em prejuízo dos demais, traduz-se em violação do princípio de satisfação igualitária dos direitos dos credores, e de acordo com as preferências legais de pagamento de que gozam.
Atento o que ficou referido, estamos em presença de vendas efectuadas em benefício de terceiros, tendo o valor sido afecto a pagamento de determinados credores em detrimento dos demais. Foi efectuado, nomeadamente, o pagamento a seis trabalhadores e não foram satisfeitos os créditos de outros trabalhadores que constam da relação de bens apresentada pelo AI como beneficiando de privilégio imobiliário especial nos termos do art.º 333º do Código do Trabalho. As vendas tiveram lugar no período estabelecido como relevante para efeitos de qualificação da insolvência. Como se explicitou supra, tendo-se provado factos que se subsumem na alínea d) do citado n.º 2 do art.º 186º, esses factos, por si, integram presunção iuris et de iure de insolvência culposa e, ao contrário do que acontece com o n.º 3 do art.º 186º, o n.º 2 deste artigo, não se presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a actuação do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
Assim, contrariamente ao invocado pelos apelantes, a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa.
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E) Da afectação dos apelantes, da medida de inibição e da responsabilidade dos recorrentes em termos de indemnização dos credores
Sustentou o apelante DD que é detentor apenas de uma quota de 20% da sociedade insolvente e que não detinha relativamente à mesma, poder de autoridade, direcção, fiscalização ou disciplina e que, como tal, não lhe deve ser imputada a culpa da insolvência. Diz ainda que não teve qualquer poder de definição quantos aos termos dos negócios, nem quanto à aplicação dos montantes recebidos e que não dispôs dos bens em proveito pessoal, nem em proveito de terceiros, já que desconhecia a que se destinaria o produto da venda dos bens.
Por sua vez, CC invocou que o tribunal a quo procedeu à aplicação ao mesmo das sanções previstas nas alíneas b), c), d) e e), do n.º 2, artigo 189.º do CIRE de forma indiscriminada e sem atender ao seu grau de culpa e à concreta gravidade da sua conduta para a alegada criação ou agravamento da situação da requerida e muito menos considerando a sua situação de saúde. Diz que, ao proceder da forma referida, o tribunal violou o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.
No entendimento do Recorrente, a correcta interpretação e aplicação de tais preceitos legais deveria ter conduzido à fixação das sanções aplicadas ao mesmo, designadamente a indemnização que solidariamente foi condenado a pagar, atendendo aos princípios da proporcionalidade e atendendo às circunstâncias atenuantes concretamente apuradas quanto ao seu comportamento.
Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afectadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e) Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afectados – cfr nº 2 do art.º 189º do CIRE.
Não obstante a diferença de quotas dos sócios da devedora, o que é certo é que, à data da prática dos factos, ambos os recorrentes eram gerentes da devedora, sendo que, de acordo com o disposto no art.º 64º, nº 1, do CSC, os gerentes devem observar deveres de cuidado em termos de gestão da sociedade e deveres de lealdade, no interesse da mesma, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
Resultou demonstrado que ambos os apelantes tiveram intervenção, na qualidade de gerentes da devedora, na escritura de compra e venda outorgada em 22 de Novembro de 2018, relativa à fracção AD e no que concerne ao contrato de compra e venda outorgado relativamente à fracção AC quem teve intervenção no acto em causa, em representação da sociedade devedora, foram o recorrente DD e FF, na qualidade de “procurador” da sociedade. Este contrato foi outorgado em 14 de Dezembro de 2018 e na procuração outorgada em 29 de Junho do mesmo ano, pelos dois apelantes, a favor de FF, foi-lhe ali conferido poderes para, em nome da representada, relativamente ao imóvel em causa, “vender, arrendar e trespassar…”.
Nada resulta dos autos no sentido que esta venda tenha sido realizada à revelia de CC. Pelo contrário, seis meses antes este outorgou a procuração supra referida, conferindo poderes ao procurador para vender a identificada fracção.
Por outro lado, não obstante a situação de doença deste apelante e o facto de anteriormente residir grande parte do tempo em Angola e ser o requerido DD que se encontrava na empresa e contactava com os bancos, com os serviços de contabilidade, com a Segurança Social, com os Serviços de Finanças, com os trabalhadores, CC manteve-se como gerente da sociedade, teve intervenção directa na venda da fracção AD e, como se disse, nada resulta no sentido que a venda da fracção AC tivesse sido realizada sem o seu consentimento. O facto de os créditos deste não terem sido pagos com o produto das alienações também não permite afastar ou considerar a sua culpa reduzida.
Deste modo, não há fundamento para estabelecer a culpa de cada um dos gerentes em diferente proporção, sendo que a inibição dos mesmos foi fixada pelo tribunal a quo no mínimo.
Quanto ao montante fixado a título de indemnização, nos termos do nº 4 do referido art.º 189º:
“Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”
Como se decidiu no Ac. do STJ de 12/12/2023, Proc. nº 3146/20.5T8VFX-B.L1.S1, relatora: Cons. Maria Olinda Garcia, a indemnização em causa trata-se de uma “responsabilidade extracontratual, a apurar na medida da verificação dos respetivos pressupostos gerais, cujo montante tem como limite máximo o valor dos créditos graduados.”
Também no Ac. da Rel. do Porto de 13.04.2021 (proc. nº 252/20.0T8AMT-A.P1) pode ler-se: “A indemnização a suportar ao abrigo do nº 2, al. e) e do nº 4 do art.º 189º do CIRE deve assim aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afetado que conduziu à qualificação da insolvência. Se, por exemplo, a qualificação da insolvência decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a indemnização deve ascender ao valor do património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pela satisfação dos créditos. É por isso que as normas em apreço estabelecem que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e se isso não for possível deve fixar, ao menos, os critérios que permitirão liquidar o seu valor, o que não seria necessário se a indemnização devesse corresponder apenas à diferença entre o valor dos créditos e o pagamento a ser obtido na distribuição do produto da liquidação do ativo.”
Na sentença recorrida escreveu-se o seguinte:
“O afectado deve ainda ser condenado a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos reconhecidos não satisfeitos, no caso, no montante máximo de 181 729,12 [na lista do artigo 129.º, foram reconhecidos créditos no valor total de 554.470,33€, sendo 31.741,21 € de salários do gerente DD e 341.400,00€ de suprimentos do requerido CC], valor correspondente aos créditos reconhecidos pelo Administrador da Insolvência, até à força do respectivo património, nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do mesmo diploma.
Cumpre determinar a perda de 31.741,21€ reclamados, a título de salários pelo gerente DD e 341.400,00€ de suprimentos reclamados pelo requerido CC– artigo 189.º, n.º 2, alínea d) do mesmo diploma”.
Atento o que supra ficou referido e o montante pelo qual as fracções foram vendidas – respectivamente, € 275.000,00 e € 183.000,00 -, entende-se que o valor fixado pelo tribunal a quo está em conformidade com o estabelecido na alínea e) do nº 2 e com o nº 4 do art.º 189º do CIRE.
Face a tudo o que ficou dito, entende-se que não se verifica qualquer violação do princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição de excesso consagrados no nº 2 do artigo 189º da Constituição da República Portuguesa. As medidas estabelecidas são proporcionais e conformes com o grau de culpa dos afectados.
Nestes termos, improcedem na íntegra os recursos interpostos.
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IV-Decisão
Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar os recursos improcedentes, mantendo a sentença recorrida.
Custas: pelos apelantes.
Registe e Notifique.
Lisboa, 12/11/2024
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
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