Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5481/11.4TDLSB.L1-3
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO AGRAVADO
ABUSO DE PODER
VIOLAÇÃO DE SEGREDO DE ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O crime de violação do segredo de Estado visa proteger os bens jurídicos do Estado Português - segurança externa e a segurança interna.
É um crime de perigo concreto, ou seja, não se exige um dano efectivo nos bens tutelados, consumando-se com a mera colocação em perigo dos interesses protegidos pela norma.
Embora nos artigos art. 193º art. 192º CP o bem protegido por ambas as incriminações seja o mesmo – a reserva da vida privada – os elementos objectivos e subjectivos são absolutamente distintos, como distinta é a razão de ser de cada uma das incriminações.
Os serviços secretos portugueses estão vinculados à Constituição e à Lei e o Secretário-Geral, os membros do seu gabinete e os funcionários e agente do SIED e do SIS não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais.
O espectro da tutela penal não se cinja às condutas que efectivamente lesem o seu núcleo essencial (…) antes se situem num momento anterior à lesão, quer pela criação de delitos de atentado quer pela construção de crimes de perigo.
O tipo objectivo consiste na transmissão, colocação na disponibilidade de pessoa não autorizada, ou na revelação pública, de documento, plano ou objecto que deva manter-se secreto ou seja sujeito a segredo de Estado, ou classificado como segredo de Estado.
O conhecimento, por particulares, desvinculados das normas próprias de segurança dos Serviços de Informações, por outros Estados ou cidadãos de países em que as fontes actuam, de dados obtidos por recurso a fontes humanas é susceptível de afectar, de modo relevante, a segurança do Estado.
Tanto comete o crime crime de acesso indevido a dados pessoais aquele que, por si, cria um daqueles ficheiros automatizados como aquele que mantém um ficheiro automatizado daquele tipo, mesmo que não seja por ele criado, ou ainda o que utiliza um qualquer ficheiro informático, tendo acedido a ele por qualquer forma.
Entende-se por “dados pessoais”, qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável.
Considera-se “ficheiro de dados pessoais” qualquer conjunto estruturado de dados pessoais acessível segundo critérios determinados, quer seja centralizado, descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico.
A imposição de interdição absoluta de registo informático daqueles conteúdos é justificada pelo perigo que está inerente para as pessoas cujos dados pessoais tenham sido processados.

Pouco importa que os factos constantes do ficheiro sejam verdadeiros ou falsos contanto que sejam susceptíveis de, ponderadas as circunstâncias do caso, diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade).
A quebra de segredo de Estado deve circunscrever-se ao tema da prova, desenvolvendo-se a partir do processo e no processo, cabendo ao juiz avaliar a relevância para o tema da prova das concretas matérias, documentos, âmbito de prova pessoal, ou qualquer outra diligência requerida e, em consequência, determinar (nos casos legalmente previstos) a quebra do segredo ou representar ao Primeiro-Ministro o respectivo levantamento ou desvinculação.
O princípio in dubio pro reo deve prevalecer no confronto com as limitações de prova decorrentes do segredo de Estado e quando a prova coberta pelo segredo de Estado é fundamental, deve ser aplicado o princípio in dubio pro reo e os arguidos absolvidos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
MJS..., casado, jurista, consultor e mestre em gestão de empresas, nascido a 28.5.1966, em Moçambique, filho de OC... e de MMC..., residente na R. B..., nº..., ...º F, L..., MSL..., divorciado, engenheiro aeronáutico, nascido a 6.03.1959, em O..., filho de AL... e de AS..., residente na R. E..., nº ..., R..., S..., RAV..., FLD..., solteiro, funcionário público, nascido a 24.6.1073, no P..., filho de AD... e de MLD..., residente na R. C..., nº ..., ...º dto. P... e GF..., solteira, licenciada em línguas e literaturas modernas, actualmente desempregada, nascida a 24.9.1976, em M..., P..., filha de AN... e de MT..., residente na R. A..., nº ..., ...º dto., frente, V..., foram julgados em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo e, a final condenados e absolvidos nos seguintes termos:
1. Absolver o arguido MJS... do crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artº. 373, n.° 1 do Código Penal e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, este imputável ao arguido nos termos do artº. 28/1 do C. Penal.
2. Absolver o arguido RAV... do crime de corrupção activa para acto ilícito, p. e p. pelo artº 374, n.°1 do Código Penal.
3. Absolver o arguido MSL... de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal.
4. Condenar o arguido MJS... pela prática dos seguintes crimes:
em co-autoria com os arguidos MSL... e FLD..., um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime) na pena de 2 anos e 3 meses de prisão e, em co-autoria com o arguido MSL..., por um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;
em autoria material, um crime de violação de segredo de Estado, na forma consumada, p. e p. pelo artº 316 n.° 1 e 3, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão e um crime de devassa por meio de informática, p. e p. pelo artº 193, nº 1 do C. Penal na pena de 8 meses de prisão.
nos termos do disposto no artº 28/1 do C. Penal, um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;
5. Em cúmulo jurídico condenar o arguido MJS... na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
6. Nos termos do disposto no artº 50 do C. Penal suspender a execução desta pena por igual período com a condição de, no prazo de seis meses, pagar ao demandante S... a quantia de 3.500€, a imputar, nos termos do artº 785 do Cód. Civil, no valor global da indemnização em que vai solidariamente condenado, aquando do seu integral pagamento.
7. Condenar o arguido MSL... pela prática dos seguintes crimes:
em co-autoria com os arguidos MJS... e FLD..., um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime) na pena de 1 ano e 9 meses de prisão e um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;
 em autoria material, um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, na pena de seis meses de prisão;
8. Em cúmulo jurídico condenar o arguido MSL... na pena de 2 anos de prisão;
9. Nos termos do disposto no artº 50 do C. Penal suspender a execução desta pena por igual período, com a condição de, no prazo de seis meses, pagar ao demandante S... a quantia de 1.000€, a imputar, nos termos do artº 785 do Cód. Civil, no valor global da indemnização em que vai solidariamente condenado, aquando do seu integral pagamento;
10. Condenar o arguido FLD... pela prática, em co-autoria com os arguidos MJS... e MSL..., de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime) na pena de 1 ano de prisão.
11. Nos termos do disposto no artº 43 do C. Penal substituir a pena de prisão por 250 dias de multa à taxa diária de 6 €, o que perfaz a multa de 1.500€.
12. Condenar a arguida GF..., pela prática de um crime de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelos arts. 44, nº 1 e 2, al. b) da Lei nº 67/98, de 26.10 na pena de 120 dias de multa e de um crime de violação de segredo profissional, p. e p. pelo artº 195 do C. Penal, na pena de 80 dias de multa;
13. Em cúmulo jurídico condenar a arguida GF... na pena única de 140 dias de multa, à taxa diária de 6 €, perfazendo um total de 840 €.
14. Julgar parcialmente provado o pedido de indemnização civil apresentado pelo assistente S... e em consequência condenar solidariamente os arguidos MJS..., MSL..., FLD... e GF..., ao pagamento de uma indemnização no valor de 15.000€.
15. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização apresentado pelo assistente PPB... e em consequência condenar o arguido MJS... no pagamento de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de 10.000€, acrescido de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação do pedido de indemnização até integral pagamento.
*
Inconformados, os arguidos MJS..., MSL..., FLD... e GF... interpuseram recurso, apresentando as seguintes conclusões:
Recurso interposto por MJS...:
1) O presente recurso versa sobre o Acórdão proferido, no dia 18.11.2016, pelas Mm.ªs Juízas de Direito (J24) da (então) 1.ª Secção Criminal, Instância Central, Comarca de Lisboa, Lisboa – hoje, Juízo Central Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – (“Acórdão Recorrido” ou “Acórdão a quo”), na parte em que condena o Arguido MJS... (1.) na pena, em cúmulo jurídico, de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por igual período sob condição de, no prazo de 6 (seis) meses, pagar ao demandante S... a quantia de € 3.500,00 (três mil euros e quinhentos cêntimos) a imputar no valor global da indemnização em que vai solidariamente condenado, (1.1.) pela prática, em co-autoria com os arguidos MSL... e FLD..., de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1 e 4, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (a que corresponde a pena concretamente aplicável de 2 [dois] anos e 3 [três] meses de prisão), e pela prática, em co-autoria com o arguido MSL..., de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP (a que corresponde a pena concretamente aplicável de 10 [dez] meses de prisão)[1]; (1.2.) pela prática, em autoria material, de um crime de violação de segredo de Estado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 316.º, n.º 1 e 3, do CP (a que corresponde a pena concretamente aplicável de 3 [três] anos e 6 [seis] meses de prisão)[2]; (1.3.) pela prática, nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, do CP, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP (a que corresponde a pena concretamente aplicável de 6 [seis] meses de prisão)[3]; e, por fim, (1.4.) prática de um crime de devassa por meio de informática, p. e p. pelo artigo 193.º, n.º 1 do CP (a que corresponde a pena concretamente aplicável de 8 [oito] meses de prisão)[4]; na parte em que condena o Arguido MJS... (2.) ao pagamento (2.1.) ao Assistente/Demandante S..., em regime de solidariamente com os arguidos MSL..., FLD... e GF..., da indemnização de € 15.000,00 (quinze mil euros)[5] e, bem assim, ao pagamento (2.2.) ao Assistente/Demandante PPB... da indemnização de €10.000,00 (dez mil euros)[6]; e, por fim e em consequência, (3.) na parte em que condena o Arguido MJS... ao pagamento das custas do processo.
Do acesso à faturação detalhada do jornalista S...
2) O Acórdão Recorrido não poderia ter dado como provados os factos elencados sob os números 31, 32, 33 e 36 do elenco dos Factos Provados e deveria ter dado como provados os seguintes factos: «O Arguido MJS... agiu com o intuito de proteger os Serviços Secretos Portugueses contra eventuais “toupeiras” e, por conseguinte, para proteger o Estado português» (facto referido sob a alínea A.) e «O arguido MJS..., quanto ao acesso à faturação detalhada, (…) [agiu] segundo o modus operandi dos serviços secretos portugueses, para o qual foi formatado durante toda a sua vida profissional» (facto referido sob a alínea B. e que corresponde àquele que consta do elenco dos Factos não Provados, p. 38, com adaptações).
3) O Acórdão Recorrido errou ao não considerar que o Arguido MJS..., com a sua conduta, quis proteger os Serviços Secretos portugueses e, por aí, o Estado português (a propósito do ponto 36 dos Factos Provados e do facto indicado sob a letra A.), tendo sido indevidamente desconsiderados os seguintes meios de prova: as declarações do Arguido MJS... [sessão de dia 19.11.2015 (10.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h19min52seg (ficheiro 20151119165618_4775332_2871061), e.g., a partir de 26min20seg a 26min41seg e sessão de dia 03.12.2015 (11.ª sessão), com registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h30min33seg (ficheiro 20151203152107_4775332_2871061), a partir de 01h03min35seg a 01h06min56], bem como os depoimentos das testemunhas H... [sessão de dia 24.09.2015 (3.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h59min40seg (ficheiro 20150924152152_4775332_2871061), de 37min56seg a 40min32seg], JM... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h13min55seg (ficheiro 20160204103341_4775332_2871061), entre o mais, de 05min05seg a 08min15seg, de 38min54seg a 40min02seg, de 41min30seg a 44min40seg e de 57min24seg a 01h02min47seg], FT... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h36min15seg (ficheiro 20160204114936_4775332_2871061), de 09min32seg a 10min06seg], JB... [sessão de dia 22.10.2015 (6.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h34min40seg (ficheiro 20151022101912_4775332_2871061), a partir de 01h23min36seg a 01h31min47seg], AF... [sessão de dia 08.10.2015 (4.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h54min17seg (ficheiro 20151008103953_4775332_2871061), a partir de 01h49min30seg a 01h53min39seg] e LO... [sessão de dia 21.12.2015 (13.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h05min55seg (ficheiro 20151221100603_4775332_2871061), de 01h08min48seg a 01h12min17seg], em conjugação com aquilo que a experiência comum ensina.
4) O Acórdão Recorrido errou ao não considerar que o Recorrente agiu segundo o modus operandi dos Serviços que sempre lhe foi incutido (a propósito do ponto 31, 32 e 33 dos Factos Provados e do facto indicado sob a letra B.) apontou claramente a parte do Manual de Procedimentos junta aos presentes autos (a fls. 4095 e ss.) – e, mais precisamente, aquilo que se alude na respetiva página 64 –, o livro Os Códigos e as Operações dos Espiões Portugueses, junto aos presentes autos a fls. 5208 e ss. – e, mais precisamente, o referido nas respetivas pp. 34 e s., 40, 73, 151 e ss., 231 e ss., 297 e ss., 328 e 335 e ss. –, a mensagem escrita enviada pelo Arguido MSL... para a testemunha CV... com o conteúdo «Temos acesso 93…?» (cf. Auto de transcrição de SMS constante de telemóvel de CV..., em audiência, no dia 17.12.2015 (12.ª sessão), a fls. ___ – referida na p. 61 do Acórdão Recorrido) em conjugação com o depoimento da testemunha CV... [sessão de dia 12.11.2015 (9.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h40min02seg (ficheiro 20151112103340_4775332_2871061), a partir de 31min17seg] e com aquilo que experiência comum ensina, o depoimento da testemunha JP... [sessão de dia 19.05.2016 (24.ª sessão), registo início às 00h00min01seg e com termo às 01h04min25seg (ficheiro 20160519160935_4775332_2871061), a partir de 20min09seg a 25min49seg, 22min08seg e de 45min42seg e de 43min38seg a 54min37seg] conjugado com a existência de clara contradição com o seu depoimento anterior, justamente em momento em que ainda não havia sido revelada qualquer parte do Manual de Procedimentos [sessão de dia 15.10.2015 (5.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h20min12seg (ficheiro 20151015102005_4775332_2871061), e.g., a partir de 46min54seg, de 49min21seg e de 50min09seg], com o facto de a mesma testemunha, enquanto Secretário-Geral do SIRP, se ter imiscuído, de forma despótica e sem qualquer base legal (!), no processo de levantamento de segredo de Estado e, bem assim, com as regras da experiência comum.
5) No mesmo sentido, apontaram, ainda, os depoimentos das testemunhas PB... [sessão de dia 28.01.2016 (16.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h37min51seg (ficheiro 20160128160042_4775332_2871061), a partir de 01min24seg, de 08min50seg, de 09min40seg, de 10min41seg, de 16min00seg, de 16min25seg, de 18min44seg, de 18min58seg, de 19min04seg, de 19min59seg, de 23min31seg, de 29min28seg, de 31min37seg, de 36min08seg, de 39min34seg, de 50min15seg, de 51min01seg, de 56min10seg, de 01h13min04seg, de 01h16min25seg, de 01h17min42seg e de 01h19min53seg, e registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h21min22seg (ficheiro 20160128143933_4775332_2871061), a partir de 00min20seg], PP... [sessão de dia 28.01.2016 (16.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h21min22seg (ficheiro 20160128143933_4775332_2871061), a partir de 00min20seg] e HP... [sessão de dia 31.03.2016 (22.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h25min15seg (ficheiro 20160331101924_4775332_2871061), a partir de 13min31seg (e, mais precisamente, a partir 14min11seg e de 14min54seg), de 15min15seg, de 16min21seg, de 17min27seg, de 18min13seg,de 19min24seg, de 20min23seg (e, mais especificamente, a partir de 21min53seg)] que demonstraram a inexistência de uma efetiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP.
6) Andou também menos bem o Tribunal a quo ao não dar a relevância suficiente e necessária ao facto de a carreira profissional do Recorrente ter sido toda desenvolvida nos Serviços Secretos portugueses, desde a altura da sua formação até ter ocupado o cargo máximo de chefia do SIED (cf. pontos 4 a 7 do elenco dos Factos Provados e Declarações do Recorrente [sessão de dia 17.12.2015 (12.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h47min42seg (ficheiro 20151217154242_4775332_2871061), a partir de 02min19seg. Refere-se, na presente nota, que o registo áudio termina aos 01h47min42seg por ser essa a indicação constante da ata da 12.ª sessão de julgamento. No entanto, deixa-se a nota de que o ficheiro facultado pela secretaria do Tribunal a quo com a gravação correspondente termina às 02h00min08seg]), sendo, assim, natural a sua “formatação” a um quadro mental muito específico.
7) Tudo isto, interpretado e conjugado segundo as regras da experiência comum, se não leva à clara conclusão de que o acesso à faturação detalhada fazia parte do modus operandi dos Serviços e que o Recorrente agiu como sempre havia sido ensinado, ao menos, servia para adensar a falta de certezas de certo modo admitida pelo próprio Tribunal a quo, devendo levar, na pior das hipóteses, à aplicação do in dubio pro reo (uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência decorrente do artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP).
8) É, pois, nestes termos, que o Recorrente suscita, ao abrigo do artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP), da norma que se retira do art. 127.º do CPP, interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido em que a mesma permite ao Tribunal dar como provados factos que contribuem de modo inequívoco para fundamentar a condenação do Arguido, mesmo que o Tribunal reconheça ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos.
9) Nos termos da versão factual defendida pelo Recorrente assim definida, deveria o Tribunal a quo ter decido pela existência de um erro não censurável por parte do Recorrente, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, CP, resultando daí a sua absolvição pela prática, em co-autoria com os arguidos MSL... e FLD..., de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1 e 4, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e pela prática, em co-autoria com o arguido MSL..., de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP.
10) Subsidiariamente, pode ainda dizer-se que, quanto muito, considerando-se o erro sobre a ilicitude em que incorreu o Recorrente censurável, dúvidas não poderiam existir no sentido de que, ainda assim, o seu grau de culpa mostrou-se reduzido, o que sempre atenuaria a medida da sua pena, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º, n.º 2, CP.
11) Acresce ainda o facto de, em relação a este preciso segmento factual, o Tribunal não deu a devida relevância ao facto de o Recorrente ter confessado os factos em julgamento, o que, também em segunda linha, sempre teria que relevar para efeitos de definição do quantum da pena, nomeadamente por se apresentar como um autêntico fator de atenuação especial da pena (artigo 72.º, n.º 1, e 73.º do CP).
12) No que toca ao pedido de indemnização civil apresentado pelo Assistente/Demandante S..., mesmo considerando a versão factual fixada pelo Acórdão Recorrido, nenhuma responsabilidade pelos danos dados como provados pode ser imputada ao Arguido MJS..., nos termos dos artigos 483.º e ss. e 562.º e ss. do CC, porquanto o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil não se verifica, designadamente mas não só ao nível da falta do nexo causal entre o facto e o dano.
13) Termos em que o Acórdão Recorrido viola em relação ao segmento factual ora em consideração, as seguintes normas: artigo 127.º CPP, artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP, artigos 17.º, n.º 1 e 2, e 72.º, n.º 1, 73.º, todos do CP e artigos 483.º e ss. e 562.º e ss. do CC.
Da violação do segredo de estado por transmissão de informação secreta
14) Para efeitos de imputação do crime de violação de segredo de Estado à data da prática dos factos (salvo se regimes posteriores sejam mais favoráveis ao Arguido), aquilo que era considerado como classificado especificamente enquanto segredo de Estado e, em assim, o disposto no artigo 316.º, n.º 1 e 3, CP deve ser interpretado, in casu, para efeitos da concreta imputação do crime de violação do segredo de Estado ao Arguido MJS..., à luz do regime de segredo de Estado definido pela Lei n.º 6/94, de 7 de abril ([antiga] Lei do Segredo de Estado) e pela Lei n.º 30/84, de 5 de setembro (Lei-Quadro do SIRP), com a redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 4/2004 de 6 de novembro.
15) Inexistindo nos autos e, sobretudo, no elenco dos Factos Provados, um ato formal, prévio, expresso e definitivo de classificação como segredo de Estado, por parte do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, dos Ministros ou, à data, do Governador de Macau (artigo 3.º da [antiga] Lei do segredo de Estado) em relação às matérias transmitidas a FS... –, a informação transmitida nunca estaria abrangida pelo segredo de Estado, mas, quanto muito, pelas classificações atribuídas no âmbito do SEGNAC.
16) As classificações atribuídas no âmbito do SEGNAC, pouco ou nada relevam para efeitos de classificação como segredo de Estado e, portanto, para efeitos da imputação ao Recorrente do crime de violação de segredo de Estado pelo qual foi condenado.
17) No caso em apreço, não pode falar-sede violação de segredo de Estado, nos termos do artigo 316.º, n.º 1 e 3, CP pelo que o Recorrente deve ser absolvido da sua prática.
18) Mesmo que assim não se entendesse, a solução de facto e de direito que se impunha também levaria à mesma conclusão, i.e., à absolvição do Arguido MJS... pela prática, em autoria material, de um crime de violação de segredo de Estado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 316.º n.º 1 e 3, do CP.
19) O Acórdão Recorrido não poderia ter dado como provados os factos elencados sob os números 58, 69, 71, 73, 74 e 75 do elenco dos Factos Provados e deveria ter dado como provados os seguintes factos: «FS... era fonte dos Serviços Secretos portugueses, tendo facultado informação sobre o Porto de Astakos e sobre dois empresários russos (AlB... e AlV...), via email, ao Arguido MJS... precisamente nesse papel» (facto referido sob a alínea C.), «A informação facultada tinha interesse para o SIED» (facto referido sob a alínea D.), «Na sequência da informação facultada por FS... ao Arguido MJS..., foram desencadeadas as ações descritas nos pontos 59, 61 e 65 dos Factos Provados, tendo sido produzido, com recurso a “fontes abertas”, um RINOT sobre os empresários russos» (facto referido sob a alínea E.), «A informação facultada a FS..., apenas sobre empresários russos, pese embora tivesse sido retirada do referido RINOT, não correspondeu ao próprio RINOT e continha “informação aberta”» (facto referido sob a alínea F.), «Quanto à alegada transmissão de informação confidencial (…) [a conduta do Arguido MJS... traduziu-se] num escrupuloso cumprimento de deveres que sobre si impendiam, sempre dentro dos poderes que lhe eram conferidos» (facto referido sob a alínea G. e que corresponde àquele que consta do elenco dos Factos não Provados, p. 38, com adaptações) e «Os interesses nacionais da independência, segurança e integridade do Estado português não foram colocados em perigo» (facto referido sob a alínea H.).
20) Ao contrário do que foi decido pelo Tribunal a quo, a prova produzida impunha a consideração que FS... era fonte dos Serviços Secretos portugueses e que as comunicações existentes entre si e o Recorrente foram estabelecidas nesse contexto, por se tratar de informação com interesse para o SIED (a propósito do ponto 58 dos Factos Provados e dos factos indicados sob a letra C. e D.).
21) Tal conclusão resulta da conjugação e da interpretação segundo as regras da experiência comum da seguinte prova produzida: do documento constante de fls. 1582 e ss., dos depoimentos das testemunhas MR... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h38min10seg (ficheiro 20160204144138_4775332_287106), a partir de 14min16seg], JB... [sessão de dia 22.10.2015 (6.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h34min40seg (ficheiro 20151022101912_4775332_2871061), a partir de 01h10min29seg], AF... [sessão de dia 08.10.2015 (4.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h54min17seg (ficheiro 20151008103953_4775332_2871061), a partir de 14min41seg, de 40min20seg e de 49min00seg], H... [sessão de dia 24.09.2015 (3.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h59min40seg (ficheiro 20150924152152_4775332_2871061), a partir de 22min32seg e de 29min32seg], FT... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h36min15seg (ficheiro 20160204114936_4775332_2871061), a partir de 19min34seg], bem como dos documentos constantes de fls. 4, 6, 12 e 114 do Apenso 4 [vol. I], de fls. 280, Apenso 4 [vol. II] e de fls. 38, Apenso 5 (e, em especial, o email de fls. 6, Apenso 4 [vol. I]), em si mesmos e em conjugação com o depoimento da testemunha FS... [sessão de dia 18.02.2016 (19.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h58min45seg (ficheiro 20160218145259_4775332_2871061) e registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h00h07min19seg (ficheiro 20160218160334_4775332_2871061), passim, mas, mais concretamente, sessão de dia 18.02.2016 (19.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h58min45seg (ficheiro 20160218145259_4775332_2871061), a partir de 27min58seg (e, mais especificamente, a partir de 28min56seg), de 44min32seg (e, mais especificamente, a partir de 44min41seg), de 46min00seg] e sessão de dia 18.02.2016 (19.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h07min19seg (ficheiro 20160218160334_4775332_2871061), a partir de 11min29seg e a partir de 58min02seg, a partir de 26min17seg e de 27min34seg] – prova que se desenvolveu na linha das explicações avançadas pelo Recorrente em sede de declarações [sessão de dia 03.12.2015 (11.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h36min50seg (ficheiro 20151203103109_4775332_2871061), entre o mais, a partir de 26min28seg, de 29min31seg e de 32min50seg, de 42min41seg e de 55min13seg, bem como registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h30min33seg (ficheiro 20151203152107_4775332_2871061), a partir de 01h21min05seg], as quais, por seu turno, se mostraram estruturadas, bem sustentadas e coerentes, seja entre si, seja (sobretudo) com aquelas que, há anos atrás, aquando do inquérito interno no SIRP, proferira perante a testemunha LO... e que constam de fls. 5 do Apenso G12 [sessão de dia 21.12.2015 (13.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h05min55seg (ficheiro 20151221100603_4775332_2871061), a partir de 01h13min23seg].
22) Mesmo que assim não se entendesse, tendo o Tribunal a quo considerado como relevante para a defesa do Arguido a obtenção de informação sobre da FoP... junto dos Serviços, a ponto de solicitar ao Senhor Primeiro-Ministro a desvinculação do segredo de Estado em relação a tal matéria, por um lado, e ao ter visto esse pedido ser negado, muito pela intervenção indevida do Secretário-Geral do SIRP no processo de desvinculação de segredo de Estado (cf. Resposta do Primeiro-Ministro, a fls. 5784 e ss.), por outro lado, o Tribunal a quo revelou ter dúvidas quanto ao aspeto ora em consideração e, ao decidir, neste ponto, a desfavor do Recorrente, acabou por desrespeitar o princípio do in dubio pro reo (decorrente do artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP).
23) É, pois, nestes termos, que o Recorrente suscita, ao abrigo do artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP), da norma que se retira do art. 127.º do CPP, interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido de a norma permitir que, na dúvida, o Tribunal dê como provados factos menos favoráveis aos Arguidos, os quais contribuem inequivocamente, para fundamentar a sua condenação.
24) O Acórdão Recorrido errou ainda ao não considerar que a informação facultada pelo Recorrente a FS... foi retirada do único RINOT realizado neste contexto, tendo sido a mesma recolhida de “fonte aberta” (a propósito dos pontos 69 e 71 do elenco dos Factos Provados e dos factos indicados sob as letras E. e F.), como se impunha dos seguintes elementos probatórios, conjugados com as regras da experiência comum: SMS 68, 69, 70 e 323, Apenso 1, do email de fls. 9, do Apenso 4 [vol. I], do email de p. 54, do Apenso 12, do documento de pp. 55 e ss., do Apenso 12, da Comunicação do Coronel J... (à data, Presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP) sobre o Comunicado do Conselho de Fiscalização do SIRP emitido a propósito do Relatório de LO... e FT... constante do Apenso 12 e o próprio Comunicado do Conselho, a fls. 474 e ss, do depoimento das testemunhas H... [sessão de dia 24.09.2015 (3.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h55min30seg (ficheiro 20150924110327_4775332_2871061), entre o mais, a partir de 01h15min47seg, de 01h19min29seg e de 01h32min54seg], MR... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h38min10seg (ficheiro 20160204144138_4775332_287106), a partir de 11min47seg], JP... [sessão de dia 15.10.2015, registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h20min12seg (ficheiro 20151015102005_4775332_2871061), a partir de 01h53min17seg e, mais precisamente, a partir de 01h54min32seg] e FS... [sessão de dia 18.02.2016 (19.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h58min45seg (ficheiro 20160218145259_4775332_2871061, a partir de 30min11seg e a partir de 30min34seg], bem como das declarações do Arguido MSL... [sessão de dia 11.01.2016 (15.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 03h55min00seg (ficheiro 20160111142157_4775332_2871061), entre o mais, a partir de 26min38, de 31min52seg, de 32min08seg, de 01h36min52seg, de 01h37min57seg e de 01h38min01seg].
25) Falhou ainda o Tribunal a quo ao não reconhecer que o Arguido MJS... agiu, neste preciso contexto, em prol dos Serviços Secretos portugueses (e não em prol da GO.../Arguido RAV...) e no âmbito da sua atividade de Diretor-Geral do SIED (a propósito do facto indicado supra sob a alínea G.) quando, para além das declarações do Recorrente [sessão de dia 03.12.2015 (11.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h36min50seg (ficheiro 20151203103109_4775332_2871061), e.g., a partir de 30min57seg, de 45min02seg e de 48min56seg] e dos depoimentos das testemunhas HP... [sessão de dia 31.03.2016 (22.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h25min15seg (ficheiro 20160331101924_4775332_2871061), a partir de 12min07seg] e FT... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h36min15seg (ficheiro 20160204114936_4775332_2871061), a partir de 04min23seg], nesse sentido militava, desde logo, o facto de, à exceção de um email forjado que apareceu no presente processo (e que foi desconsiderado com meio de prova [cf. Acórdão Recorrido, p. 74, §1]), não existir – nem ter sido invocado – qualquer elemento capaz de estabelecer uma ligação entre o Recorrente e a GO.../RAV... no que toca ao tema do Porto de Astakos/empresários russos – o que é compreensível tendo em conta que o negócio não teve interesse, relevância ou peso na atividade empresarial da GO... (neste sentido, as declarações do Arguido RAV... [sessão de dia 07.01.2016 (14.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h01min53seg (ficheiro 20160107104353_4775332_2871061), passim, e, mais especificamente, e.g., a partir de 01h08min57seg, de 01h37min08seg, de 01h43min27seg e registo com início às 00h00min01seg e termos às 02h46min00seg (ficheiro 20160107144511_4775332_2871061), passim, e, mais especificamente, a partir de 01h28min24seg] e o depoimento das testemunhas JR... [sessão de dia 18.02.2016 (19.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h00min50seg (ficheiro 20160218111150_4775332_2871061), a partir de 23min45seg e a partir de 43min49seg], RF... [sessão de dia 04.03.2016 (20.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h46min48seg (ficheiro 20160304103124_4775332_2871061), a partir de 22min22seg e a partir de 29min40seg ], RG... [sessão de dia 04.03.2016 (20.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h24min08seg (ficheiro 20160304111816_4775332_2871061), a partir de 15min59seg ], VR... [sessão de dia 31.03.2016 (22.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h02min14seg (ficheiro 20160331104531_4775332_2871061), a partir de 04min31seg ] e FS... [sessão de dia 18.02.2016 (19.º sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h58min45seg (ficheiro 20160218145259_4775332_2871061), e.g., a partir de 24min40seg, 25min57seg, 31min47seg, 37min29seg]).
26) A tudo isto acresce que o Tribunal a quo tinha dados suficientes e cabais para decidir no sentido de que a conduta do Recorrente não pôs em perigo o Estado português e os respetivos interesses e relações internacionais e, erradamente, não o fez (a propósito dos pontos 73, 74 e 75 do elenco dos Factos Provados e do facto indicado, supra, sob a alínea H.), tendo tal constatação decorrido, muito claramente – e ao contrário daquilo que se refere no Acórdão Recorrido – de uma correta interpretação dos depoimentos das testemunhas H... [sessão de dia 24.09.2015 (3.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h55min30seg (ficheiro 20150924110327_4775332_2871061), a partir de 49min21seg, de 01h18min07seg, de 01h20min04seg e de 01h25min47seg, de 01h40min27seg e registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h59min40seg (ficheiro 20150924152152_4775332_2871061), a partir de 29min32seg (e, mais particularmente a partir de 30min26seg), de 02h10min59seg, de 02h16min55seg, de 02h49min40seg (e, mais precisamente, a partir de 02h51min28seg), de 02h52min39seg] e JP... [sessão de dia 15.10.2015 (5.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h20min12seg (ficheiro 20151015102005_4775332_2871061), a partir de 01h53min17seg, de 01h58min51seg, de 01h59min26seg, de 01h59min35seg e de 02h00min00seg] e das declarações do Arguido MSL... [sessão de dia 11.01.2016 (15.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 03h55min00seg (ficheiro 20160111142157_4775332_2871061), de 02h42min57seg a 02h45min02seg], bem como, aliás, do Comunicado do Conselho de Fiscalização do SIRP emitido a este propósito, a fls. 476.
27) Considere-se, ainda, que o que se acabou de dizer não é rebatível com uma qualquer alegação – como aquela avançada pelo Tribunal a quo – no sentido de que a ação do Recorrente é perigosa, porque empresários russos em questão são “influentes” e “próximos de VP...”, seja porque o Tribunal a quo não chegou a provar a alegada influência e proximidade a VP..., seja mesmo porque, em todo o caso e de acordo com as regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a informação veiculada pelo Recorrente a FS... – puramente biográfica (a ser verdade), pública e quase “cor-de-rosa” – é absolutamente inócua em termos de relações internacionais, sendo exagerado considerar-se que a sua transmissão criaria melindres tais a ponto de afetar os interesses (superiores) que devem ser considerados para efeitos do crime de violação de segredo de Estado aqui em apreço – a saber: a independência, a segurança e a integridade de Portugal.
28) Em face da versão factual defendida pelo Recorrente quanto a este segmento, não se poderá falar em violação, por parte do Arguido MJS..., do valor do segredo de Estado, seja porque o mesmo transmitiu a informação a quem era fonte dos Serviços Secretos portugueses (e não a pessoa alheia aos mesmos), seja porque nenhuma informação “secreta”, no sentido criminalmente relevante, foi veiculada, não tendo sido concretamente colocados em perigo os interesses do Estado português na independência, unidade, integridade ou segurança, tudo apontando no sentido da absolvição do Recorrente da prática, em autoria material, de um crime de violação de segredo de Estado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 316.º n.º 1 e 3, do CP.
29) Termos em que o Acórdão recorrido violou, em relação ao segmento factual ora em consideração, as seguintes normas: artigo 127.º CPP, artigos 2.º a 4.º e 316.º, n.º 1 e 3, todos do CP, artigos 2.º, 3.º e 5.º da Lei n.º 6/94, de 7 de abril ([antiga] Lei do Segredo de Estado), e artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP.
Do abuso de poder por se utilizar indevidamente base de dados subscrita pelos serviços
30) O Acórdão Recorrido não poderia ter dado como provados os factos elencados sob os números 92, 93, 94, 95, e 96 do elenco dos Factos Provados e deveria ter dado como provados os seguintes factos: «A informação retirada da base de dados D... foi transmitida a uma fonte dos Serviços (FS...)» (facto referido sob a alínea I.), «A atuação do Arguido MJS... inseriu-se numa lógica legítima, porque a favor dos Serviços Secretos portugueses» (facto referido sob a alínea J.).
31) O Tribunal a quo errou ao não considerar, pese embora tivesse elementos para tal, que a informação facultada pelo Arguido MSL... ao Recorrente se destinava a FS..., pessoa que era, nem mais nem menos, do que fonte dos Serviços Secretos portugueses (a propósito do facto indicado sob a alínea I.). Com efeito, nesse sentido, para além da prova referida supra no ponto 17) das presentes Conclusões, apontavam, claramente, o email de fls. 280, do Apenso 4 [vol. II], a explicação dada próprio Recorrente [sessão de dia 03.12.2015 (11.ª sessão), com registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h30min33seg (ficheiro 20151203152107_4775332_2871061), a partir de 01min18seg] e pelo Arguido MSL... [sessão de dia 11.01.2016 (15.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 03h55min00seg (ficheiro 20160111142157_4775332_2871061), a partir de 53min13seg], as quais, de tão claras e coerentes, se situavam nos antípodas daquela avançada pela testemunha FS... [sessão de dia 18.02.2016 (19.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h07min19seg (ficheiro 20160218160334_4775332_2871061), a partir de 58min10seg a 01h04min43seg].
32) Em todo o caso, e mesmo que assim não se entenda, certo é que, ao ter considerado como relevante para a defesa do Arguido a obtenção de informação sobre da FoP... junto dos Serviços, a ponto de solicitar ao Senhor Primeiro-Ministro a desvinculação do segredo de Estado em relação a tal matéria, por um lado, e ao ter visto esse pedido ser negado, muito pela intervenção indevida do Secretário-Geral do SIRP no processo de desvinculação de segredo de Estado (cf. Resposta do Primeiro-Ministro, a fls. 5784 e ss.), por outro lado, o Tribunal a quo admitiu ter dúvidas quanto à identidade da FoP... e, por isso, quanto ao aspeto ora em consideração e, ao decidir, neste ponto, a desfavor do Recorrente, desrespeitou o princípio do in dubio pro reo (decorrente do artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP).
33) É, pois, nestes termos, que o Recorrente suscita, ao abrigo do artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP), da norma que se retira do art. 127.º do CPP, interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido de a norma permitir que, na dúvida, o Tribunal dê como provados factos menos favoráveis aos Arguidos, os quais contribuem, inequivocamente, para fundamentar a sua condenação.
34) Por outro lado, falhou ainda o Tribunal a quo, por um lado, ao referir que o Recorrente, com a sua conduta, visava a satisfação do seu próprio interesse pessoal e, por outro lado, ao ignorar que a atuação do Recorrente se inseria numa lógica bem distinta – e, por isso, absolutamente legítima – onde os Serviços Secretos portugueses eram os únicos beneficiados (a propósito dos pontos 92, 93, 94, 95 e 96 do elenco dos Factos Provados e do facto indicado, supra, sob a alínea J.). E, como se disse, falhou, seja porque não apresentou qualquer prova naquele primeiro sentido, seja porque a prova produzida nos presentes autos indicava a solução oposta – fala-se, concretamente, das declarações do Recorrente [sessão de dia 03.12.2015 (11.ª sessão), com registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h30min33seg (ficheiro 20151203152107_4775332_2871061), a partir de 01min18seg, de 04min45seg, de 05min06seg, de 07min14seg, de 01h37min05seg] e do Arguido MSL... [sessão de dia 11.01.2016 (15.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 03h55min00seg (ficheiro 20160111142157_4775332_2871061), a partir de 53min13seg, de 57min36seg], dos depoimentos das testemunhas JB... [sessão de dia 22.10.2015 (6.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h34min40seg (ficheiro 20151022101912_4775332_2871061), de 02h16min33seg a 02h17min26seg], JM... [sessão de dia 04.02.2016 (17.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h13min55seg (ficheiro 20160204103341_4775332_2871061), de 10min53seg a 11min53seg] e de H... [sessão de dia 24.09.2015 (3.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h59min40seg (ficheiro 20150924152152_4775332_2871061), a partir de 11min01seg] e até, em certa medida, do depoimento da testemunha JP... (testemunha que, na sua veste de Secretário-Geral do SIRP, assumiu uma postura “interessada” no presente processo) [sessão de dia 15.10.2015 (5.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 02h51min18seg (ficheiro 20151015160819_4775332_2871061), entre o mais, de 58min57seg a 59min21seg].
35) Nestes termos, se o Arguido MSL... não violou qualquer dever funcional e se, em momento algum, houve a intenção de o fazer ou a intenção de prejudicar o SIED e, por aí o Estado português – pessoa que, aliás, foi “a” beneficiada com a atuação dos Arguidos –, apenas uma solução de direito se impunha: a absolvição do Recorrente pela prática, nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, do CP, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP.
36) Termos em que o Acórdão recorrido violou em relação ao segmento factual ora em consideração, as seguintes normas: artigo 127.º CPP, artigos 28.º, n.º 1, e 382.º, todos do CP e artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP.
da devassa da vida privada por meio de informática por se “manter” o “relatório” sobre PPB... na caixa de correio eletrónico
37) Por fim, o Acórdão Recorrido não poderia ter dado como provados os factos elencados sob os números 120 e 131 do elenco dos Factos Provados e deveria ter dado como provados os seguintes factos: «O “Relatório” continha informação “histórica” e informação de cariz mais “pessoal”, tendo sido este último tipo de informação aquele que afrontou o Assistente/Demandante, dada a sua falsidade» (facto referido sob a alínea K.), «Todos os factos vertidos no “Relatório” são factos públicos, no sentido de o seu acesso não ser reservado» (facto referido sob a alínea L.) e «O “Relatório” foi conhecido pelo Assistente/Demandante PPB... e pelo público em geral (sua família e amigos aí incluídos), porque, sendo parte integrante do processo n.º 5481/11.4TDLSB, a sua existência e partes do mesmo foram difundidas pela comunicação social» (facto referido sob a alínea M.).
38) Quanto ao segmento factual ora em consideração, sublinha-se, em primeiro lugar, que o Tribunal a quo, ao contrário daquilo que verteu no Acórdão Recorrido, deveria ter considerado provado que o conteúdo do “Relatório” que afetou o Assistente/Demandante PPB... foi o seu cariz pessoal pela falsidade do que a esse propósito era aí relatado (a propósito do ponto 131 do elenco dos Factos Provados e do facto indicado, supra, sob a alínea K.). Isto, porque é justamente essa a conclusão que decorre, tanto do depoimento escrito do Assistente/Demandante, a fls. 4641 e ss. – escrito na linha daquilo que já constava da Acusação Particular por crime de difamação que, com base nos mesmos factos, apresentara (cf. artigo 53.º da Acusação Particular, a fls. 371 e ss., do volume 2, do Proc. n.º 10181/12.5TDLSB apensado ao presente processo-crime) –, como dos depoimentos das testemunhas JD... [sessão de dia 05.11.2015 (8.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h49min57seg (ficheiro 20151105102559_4775332_2871061), a partir de 16min53seg], MB... [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h13min31seg (ficheiro 20151026150219_4775332_2871061), a partir de 04min01seg (e, com especial interesse, a partir de 04min21seg), a partir de 07min25seg e a partir de 11min17seg] e PN... [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h21min59seg (ficheiro 20151026160331_4775332_2871061), a partir de 06min41seg].
39) Errou ainda o Tribunal a quo ao não considerar, como devia, que os factos constantes do “Relatório” são públicos (a propósito do facto indicado, supra, sob a alínea L.), quando nesse sentido claramente apontou o depoimento da testemunha FC... [sessão de dia 05.11.2015 (8.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h36min58seg (ficheiro 20151105115107_4775332_2871061), a partir de 03min06seg, de 04min47seg, de 08min32segm de 11min59seg, de 13min00seg e de 25min30seg] – jornalista que, por força das suas funções, tem um vasto conhecimento sobre ocorrências ou alegadas ocorrências que se relacionem com o Assistente/Demandante PPB... e que, inclusivamente, em artigo jornalístico, pôde comentar o conteúdo do “Relatório” (cf. fls. 319, do vol. 2, do Proc. n.º 10181/12.5TDLSB [apensado ao presente processo-crime).
40) Por outro lado, o Acórdão Recorrido não avaliou de forma correta a realidade, pois não resultou das declarações do Recorrente [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 01h25min36seg (ficheiro 20151026101800_4775332_2871061), entre o mais, a partir de 10min30seg, de 18min45seg, de 26min13seg e de 26min43seg)] nem dos seus atos que o mesmo tivesse agido com o dolo de “manter” o “Relatório” – primeiro, fazendo-o seu e, depois, manifestando essa vontade de o manter como seu.
41) Por fim, devia o Tribunal a quo ter feito constar do Acórdão Recorrido que “Relatório” foi conhecido pelo Assistente/Demandante e pelo público em geral (sua família e amigos incluídos) através da sua difusão pela comunicação social (a propósito do facto indicado, supra, sob a alínea M.) – constatação que, aliás, sempre viria na linha daquilo que se refere nos pontos 131 e 132 do elenco dos Factos Provados. Com efeito, outra deveria ter sido a postura do Tribunal a quo já que nesse sentido militava os depoimentos das testemunhas MB... [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h13min31seg (ficheiro 20151026150219_4775332_2871061), a partir de 02min30seg], FPP... [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h47min32seg (ficheiro 20151026151554_4775332_2871061), a partir de 02min31seg e a partir de 38min45seg], PN... [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h21min59seg (ficheiro 20151026160331_4775332_2871061), a partir de 05min10seg] e LM... [sessão de dia 26.10.2015 (7.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 00h19min29seg (ficheiro 20151026162534_4775332_2871061), a partir de 01min57seg, de 08min07seg e de 16min42seg].
42) Será em face da factualidade assim comprovada que se impõe que o Arguido MJS... seja absolvido da prática de um crime de devassa por meio de informática, p. e p. pelo artigo 193.º, n.º 1 do CP, seja porque a incriminação em apreço se circunscreve a factos que sejam verdadeiros, seja porque a mesma apenas visa considerar factos não acessíveis e não cognoscíveis pelo público em geral, seja, em todo o caso, porque, de acordo com uma interpretação substantiva e teleológica do tipo legal de crime, norteada por ideias de adequação social da conduta e de valoração ético-jurídica, a mera detenção não pode servir para o preenchimento do tipo legal de devassa por meio de informática, seja, em última instância, porque não se conseguiu afirmar, in casu, qualquer dolo por parte do Recorrente.
43) No que toca ao pedido de indemnização civil apresentado pelo Assistente/Demandante PPB... e ao abrigo dos artigos 483.º e ss. e 562.º e ss. do CC, deve absolver-se o Recorrente, caso seja a sua defesa, em sede penal, considerada procedente.
44) Em todo o caso e mesmo na hipótese inversa, deve considerar-se que a solução avançada pelo Tribunal a quo, no que toca a tal pedido de indemnização civil, é ilegal, por violação das normas supra referidas, pois que não se encontram preenchidos os requisitos legais de que depende a responsabilidade civil por facto ilícito, designadamente, mas não só, por inexistir causa adequada entre o facto ilícito e o dano.
45) Termos em que, neste particular, o Acórdão Recorrido violou as seguintes normas: artigo 127.º CPP, artigo 193.º, n.º 1, CP e artigos 483.º e ss. e 562.º e ss. do CC, devendo, por isso, o Arguido MJS... ser absolvido quanto ao pedido de indemnização ora em apreço.
46) Consequentemente, deverá ser reponderado o pagamento das custas processuais a que foi condenado o Recorrente através do Acórdão Recorrido.
47) Por fim, mais se indica que opta o Recorrente por requerer apenas a subida do presente recurso, o qual não deverá subir acompanhado dos recursos interlocutórios antes interpostos em seu nome pela sua Defesa.
Nestes termos e nos demais de Direito cujo douto suprimento de V. Exas. se invoca, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência:
a) Deverão dar-se como provados os factos indicados nas presentes motivações sob as alíneas A. a M. e como não provados os factos 31, 32, 33, 36, 58, 69, 71, 73, 74, 75, 92, 93, 94, 95, 96, 120 e 131 do elenco dos Factos Provados,
E, em consequência,
b) Deverá absolver-se o Arguido MJS... do crime de acesso ilegítimo agravado, dos dois crimes de abuso de poder, do crime de violação de segredo de Estado e do crime de devassa por meio de informática pelos quais foi condenado através do Acórdão Recorrido,
Ou, quanto muito, em relação à condenação pela prática, em co-autoria, de um crime de acesso ilegítimo agravado e de um crime de abuso de poder (referente ao segmento factual “Acesso à faturação detalhada do jornalista S...”),
c) Deverá o quantitativo da respetiva pena ser atenuado, atento o diminuto grau de culpa do Recorrente, bem como o facto de o mesmo ter confessado o crime e, por aí, contribuído para a descoberta da verdade material.
Por outro lado,
d) Deverá absolver-se o Arguido MJS... do pagamento das indemnizações civis em relação às quais foi condenado – de € 15.000,00 (quinze mil euros) a favor do Assistente/Demandante S... e de € 10.000,00 (dez mil euros) a favor do Assistente/Demandante PPB....

Por fim,
e) Devem ainda retirar-se as devidas consequências ao nível do pagamento das custas processuais referentes ao presente processo.
Recurso interposto por MSL...:
I – da condenação penal
A - Vem o presente recurso do acórdão final dos autos à margem referenciados, que correram seus trâmites na actual 24ª Secção do Juízo Central Criminal de Lisboa, anteriormente 1ª Secção Criminal, da Instância Central da Comarca de Lisboa, Juiz 24, através do qual foi condenado o arguido MSL..., na pena de 2 anos de prisão.
B - O arguido entende que será desnecessário V. Exas. apreciarem e decidirem sobre o mérito do recurso por si anteriormente apresentado, que ficou retido, com subida deferida até decisão da primeira instância, pois, revelou-se entretanto inútil, desistindo o arguido da pretensão de o ver apreciado conjuntamente com o ora interposto.
C - Na óptica do arguido a decisão proferida a quo é fruto de errada apreciação da prova e é também fruto de errada aplicação do Direito.
D - O arguido procurou ao longo da sua defesa nestes autos demonstrar a sua inocência, pela única via possível, que foi a da demonstração de que, em toda a sua actuação:
a) - agiu sempre no estrito cumprimento de ordens de superior, ou superiores, hierárquicos
e, ainda mais importante,
b) agiu sempre seguindo rigorosamente a prática e procedimentos instituídos (vulgo modus operandi) dos Serviços de Informações da República Portuguesa, procedimentos esses há muito sedimentados nos serviços de informações e, inclusivamente, plasmados em manuais, em tempo dispersos, e, à data dos factos, condensados no Manual de Procedimentos do SIS, usado tanto no Serviço de Informações de Segurança (SIS) como no Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), onde prestou serviço durante cerca de 27 anos, de forma exemplar, sempre no superior interesse dos serviços de informação e, em última análise, da Nação.
E – O arguido necessitou de demonstrar a sua inocência constrangido na revelação da verdade, pois, na maioria das situações, aquela estava e está coberta pelo Segredo de Estado, que se destina a proteger os direitos colectivos à independência e interesses nacionais e à unidade e integridade do Estado bem como à garantia da segurança interna e externa, que os SIRP têm por missão assegurar, de acordo com o nº 2, do artº 2º da Lei nº 30/84, de 5 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei Orgânica nº 4/2014, de 13 de Agosto.
F - As garantias constitucionais de defesa do arguido tiveram in casu que ceder perante os referidos direitos colectivos, também constitucionalmente consagrados, assim, verificou-se a violação dos direitos fundamentais do arguido ínsitos nos artºs 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa,
G - Impunha-se neste caso a apreciar juridicamente e solucionar o confronto de valores constitucionalmente consagrados existente, pois, para além dos inalienáveis direitos individuais do arguido, também a independência, a unidade e integridade e a segurança interna e externa do Estado Português, são pilares fundamentais e inalienáveis do nosso ordenamento com consagração na Constituição da República Portuguesa. Porém, o tribunal a quo ignorou tal confronto de valores constitucionais e deu primazia aos aludidos direitos constitucionais colectivos protegidos pelo Segredo de Estado.
H - A violação do direito individual do arguido a uma defesa plena e sem qualquer restrição é no fim de contas uma “inconstitucionalidade constitucional”, pois, as limitações à defesa decorrem da necessária protecção constitucional de direitos colectivos da independência, unidade e integridade e segurança interna e externa do Estado Português também inalienáveis.
I – Nestas circunstâncias verificou-se uma impossibilidade de julgar, pois, optando por qualquer dos valores constitucionais em confronto seria sempre violada a Lei fundamental, o que não se tolera, tendo o julgamento sido feito com primazia do direito colectivo sobre o direito individual do arguido este foi privado das suas garantias fundamentais de defesa e ficaram no ar sérias dúvidas acerca da veracidade da sua tese de defesa, de que mais não fez que cumprir ordens enquadráveis no normal modus operandi dos serviços secretos.
J – Para além da apreciação dos erros na decisão da matéria de facto, o recorrente pretende de V. Exas. a extracção das consequências jurídicas da impossibilidade de prova com que se viu confrontado nestes autos, pois,
K – Não poderá ser desconsiderada toda aquela prova que se impunha produzir e que não se produziu, por força do Segredo de Estado, não obstante tenha sido o próprio tribunal a quo a julgar pela sua evidente relevância para o cabal exercício dos direitos de defesa.
L – O tribunal a quo fez “tábua rasa” de meios de prova essenciais, que o próprio, através do despacho de fls. 5604 a 5609, de 15/03/2016, julgou “… com relevância para o exercício do direito de defesa dos arguidos… A) Manual de Procedimentos do SIS, existente à data dos factos (2010).”. Nesse mesmo despacho o tribunal decidiu pedir apenas ao Primeiro Ministro a desclassificação de “… matérias que possam revestir-se de relevância fundamental…”.
M - Foi então referido, na comunicação ao Primeiro Ministro, anexa ao referido despacho de 15/03/2016, que “… (foi confirmado pelo senhor Secretário Geral do SIRP, em audiência de julgamento, a existência de um despacho recomendando a utilização do Manual do SIS ao SIED)…”.
N – A partir da prolação daquele despacho o Manual de Procedimentos do SIS deixou de se apresentar como fruto da imaginação do recorrente (e da dos senhores jornalistas que o publicitaram) e passou a integrar o mundo real e a ser considerado pelo tribunal como comprovadamente existente e em uso no SIED, onde o arguido prestava serviço à data dos factos, e mais, passou a ser considerado pelo tribunal como sendo de “…relevância fundamental…” para a sua defesa.
O – Em resposta à comunicação, do tribunal ao Primeiro Ministro, das matérias de “…relevância fundamental…” para o exercício do direito de defesa dos arguidos houve uma recusa/negação por parte do Primeiro Ministro quanto à pretendida desclassificação integral do manual, aliás, cumpre aqui deixar nota de que, o insólito da situação foi tal que, na realidade, não foi o Primeiro Ministro quem despachou sobre o Segredo de Estado e seu levantamento, mas sim o próprio Secretário Geral do SIRP, tal como se verifica dos documentos juntos aos autos.
P – Em face da recusa inicial da desclassificação do teor integral do manual veio o tribunal num segundo momento a conformar-se com a junção aos autos de meros excertos do referido Manual de Procedimentos do SIS, após ter proferido o despacho (nos autos a fls. 5606) de 15/03/2016, do qual consta o seguinte: “… Manual de Procedimentos ou, se tal contender gravemente com os interesses protegidos pelo Segredo de Estado, apenas índice do Manual e conteúdos referentes a monitorização de comunicações – alarga-se esta segunda parte … ao glossário e a conteúdos relacionados com o recrutamento e gestão de fontes humanas nas operadoras de telecomunicações…”.
Q - Também este pedido do tribunal não levou a nada, ou quase nada, e, numa clara violação do preceito constitucional do artº 205º, nº 2, da CRP, que dispõe que “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.”, apenas foram juntos aos autos alguns excertos do Manual de Procedimentos do SIS, sem que tenha vindo a parte fundamental solicitada pelo tribunal, referente à “…gestão de fontes humanas nas operadoras de telecomunicações…”.
R – Foi assim evidente a sonegação daquela importante peça probatória, que o próprio tribunal considerou relevante para a defesa do arguido, sem que a mesma tenha tido qualquer consequência nestes autos, nomeadamente estabelecendo-se neste ponto uma dúvida que sempre teria que beneficiar o recorrente.
S - Não obstante as “cortinas de fumo” que se procuraram colocar na obtenção e junção aos autos deste precioso meio de prova, adquiriu-se a certeza de que existe uma parte do manual de procedimentos que versa sobre a “…gestão de fontes humanas nas operadoras de telecomunicações…”,
T – Não obstante a recusa da junção aos autos da parte do manual que versa sobre aquela matéria, por estar classificada como segredo de Estado, adquiriu-se a certeza de que, tal como se vem afirmando, existem fontes humanas dos serviços secretos nas operadoras de telecomunicações, tendo tal facto sido confirmado pelo senhor Secretário Geral do SIRP, aquando da sua reinquirição, não obstante a recusa inicial em reconhecer sequer a existência do referido manual.
U - A complicada mecânica legal e a atribulada via sacra percorrida pelo recorrente para a simples obtenção de um meio de prova, julgado pelo tribunal como essencial para a sua defesa, revelam uma evidência, que é a de que ficaram no ar sérias dúvidas acerca da integral virtude probatória que do Manual de Procedimentos do SIS adviria para a tese de defesa do arguido e, nessa circunstância, apenas há a concluir o seguinte:
In dubio pro reo
V - Nestes autos a solução do tribunal foi a de que, na dúvida, condena-se o arguido. É precisamente contra essa circunstância que o arguido se insurge e é essa a razão primeira deste recurso, pois, tal actuação do tribunal é absolutamente injusta e violadora dos mais elementares direitos do arguido a uma defesa plena contidos no artº 32º, nº 1, da CRP e da presunção de inocência de que beneficia por força do nº2, do citado artº 32º da CRP.
X - O regime legal do Segredo de Estado, foi alterado e introduzido no ordenamento, pela Lei nº 2/2014, de 6 de Agosto, à medida, e, na pendência, destes autos, estatui que não é tribunal, ou melhor, os juízes que o compõem, quem tem competência para balizar a amplitude da actuação da defesa e a respectiva contenção e restrição a um mínimo que não seja violador do dever de sigilo, pois, essa actuação fiscalizadora cabe ao decisor político, o Primeiro Ministro, que é parte interessada sem que se verifique neste tipo de matérias a democrática separação de poderes e a submissão da actividade do poder executivo ao poder judicial como impõem, entre outros, os artºs 205, nº 2, e 202º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, que se mostram também violados.
Z - O Primeiro Ministro é o beneficiário último da actividade dos serviços do SIRP, que, aliás, estão na sua dependência funcional directa, pelo que as funções de guarda de sigilo que lhe são legalmente acometidas, pelo supra aludido regime colocam-no na posição de “jogador árbitro” o que, até para um leigo, não deixa de ser uma situação estranha e juridicamente inadmissível num estado de direito democrático.
AA - Ao arguido recorrente MSL... impôs-se nestes autos a missão de rebater a acusação demonstrando que tudo por quanto vinha acusado não passou da prática de actos vulgares, rotineiros e absolutamente banalizados na actividade diária dos agentes dos serviços de informação.
AB - Para que se fizesse essa demonstração, impunha-se “abrir as portas” dos serviços e entrar por eles adentro para mostrar ao tribunal o que fazem e como agem os agentes que ali trabalham, como o MSL... trabalhou durante tantos e tantos anos. Porém, essa via não foi possível, pelo Segredo de Estado, nem interessou ao tribunal que foi afirmando sempre não serem os serviços dos SIRP alvo do interesse do tribunal, pois, não eram os serviços que estavam a ser julgados mas apenas os seus agentes.
AC - Ainda assim foi possível trazer aos autos alguns elementos de prova que, podendo eventualmente não ser suficientes para a demonstração cabal da inocência do arguido, pelo menos deixaram no ar, bem patentes, sérias dúvidas sobre a procedência da acusação e que serão sempre impeditivas da condenação do arguido por aplicação do elementar princípio do
in dubio pro reo
AD - A prova produzida durante as muitas e longas sessões da audiência final é, não obstante, manifestamente insuficiente para a condenação em apreço sendo o acórdão final fruto da circunstância, verificada in casu, absolutamente insanável à luz dos elementares princípios que norteiam o processo penal, que consistiu na privação de meios de defesa com que o arguido se confrontou,
AE – A prova que efectivamente foi produzida terá muito menos peso do que aquela prova que se impunha produzir e que não se produziu, por força do Segredo de Estado, não obstante tenha sido o próprio tribunal a quo a julgar pela sua evidente relevância para o cabal exercício dos direitos de defesa.
AF - A questão será a de decidir qual a relevância jurídica da “meia prova” que se fez no julgamento, ou seja, o que o arguido submete ao juízo desse tribunal superior é, para além de outras, a questão, de primordial relevância, de decidir fundadamente se na realidade é possível condenar, como se fez a quo, com base em apenas parte da prova, ou, se, pelo contrário, a justiça da decisão penal a proferir apenas seria alcançável após produção de toda a prova que fosse relevante para a defesa do arguido.
AG - O arguido tem presente, reitera-se, que se impunha fazer este julgamento respeitando sempre o regime do Segredo de Estado e que, atenta essa circunstância, era pequena a margem de manobra que lhe restava para, sem violar segredo, se defender.
AH – Contudo, a grande verdade a retirar da supra verificada circunstância é a da impossibilidade, que se verificou na prática, de se ter feito um julgamento justo, ou seja, com respeito pelos direitos fundamentais do arguido. Nesta circunstância teria sempre que se julgar concluindo pela dúvida razoável acerca das virtudes probatórias da prova que não se fez, por imperativo do Segredo de Estado, e, repete-se, a dúvida beneficia o arguido e é motivo para a absolvição e nunca para a condenação, pois, não poderá haver condenação com dúvidas. Repete-se e repetir-se-á à exaustão:
In dubio pro reo
AI - Quanto ao acesso à facturação detalhada do jornalista, assistente, S... foram incorrectamente julgados como provados os pontos 31; 32; 33; 35 e 36 e deveriam ao invés ter sido julgados como provados os seguintes factos:
A - O Arguido MSL... recebeu ordens do arguido MJS... seu superior hierárquico    
B - O arguido MSL..., endossou a FLD... a ordem recebida de MJS... para que se obtivesse a facturação detalhada do telefone 905016063, pois, estavam em causa interesses do SIRP e essa era uma actividade normal que cabia no modus operandi dos serviços secretos portugueses, que bem conhecia e que, aliás, constava do Manual de Procedimentos do SIS em uso, quer na formação quer na prática diária do departamento operacional dos serviços, que tinham fontes humanas nas operadoras de telecomunicações.
AJ - Impunha-se aferir se o acesso à facturação detalhada era ou não prática habitual dos Serviços Secretos portugueses, e se aquela prática era ou não uma actividade normal dos funcionários dos Serviços, tendo o tribunal a quo entendido erradamente que tal actividade não era habitual nos Serviços.
AK - Contudo, da prova produzida, deveria ter sido extraída pelo tribunal a conclusão inversa, ou seja, de que se provou, ou pelo menos se estabeleceu a dúvida, favorável ao arguido recorrente, de que a obtenção da facturação detalhada era um meio normal e de uso frequente nos Serviços tanto na actividade de pesquisa e recolha de informações como na de recrutamento de fontes humanas, conforme relataram os arguidos MJS... e MSL... aquando das suas declarações.
AL – Tais declarações tiveram suporte probatório no excerto do Manual de Procedimentos do SIS que foi junto aos autos, mais precisamente na sua página 64, onde se refere que os elementos necessários à “Avaliação base do Alvo” podem ser obtidos, entre outros, através de “entidades públicas e/ou prestadoras de serviços ao público”, como sejam, “Finanças; Instituições bancárias; Instituições seguradoras; PT/TV Cabo/Cabovisão, ou, Operadores de Telecomunicações Móveis”.
AM - Aquele trecho do Manual de Procedimentos do SIS indicia fortemente que a hipótese de recurso às operadoras de telecomunicações móveis era considerada na normal actividade de recolha de informações pelos serviços do SIRP. Contudo, o Tribunal a quo refere que «não encontrámos na parte do Manual de Procedimentos, que foi revelada (…) indicação segura de que essas práticas ilegais eram ensinadas». Neste ponto concreto é manifesto o erro do julgamento a quo.
AN - Ao Tribunal a quo deveria ter-se colocado a forte probabilidade de que o recorrente agiu de acordo com o “modus operandi” dos serviços secretos, pois tal hipótese tinha pleno cabimento e acolhimento através do apontado meio de prova, de primordial importância, de que o Tribunal só pôde conhecer uma parte ínfima, circunstância essa que já de si também permite estabelecer, com toda a certeza, que estarmos perante mais uma grande dúvida: o que mais virá plasmado no Manual?
AO - Se aquilo que foi possível conhecer, que foi tão pouco, já revelou o que revelou, e é de primordial importância para a sustentação da tese do arguido, como seria se se conhecesse na íntegra o Manual?
AP - Nunca haverá resposta para tal questão, pelo “sacro santo” Segredo de Estado, mas ficou a pairar a dúvida e, uma vez mais há que reafirmar
in dubio pro reo
AQ - Para além da supra apontada dúvida que se instalou pela inesperada presença nos autos de partes do Manual de Procedimentos a tese do recorrente ficou ainda mais sólida na sequência do segundo depoimento do senhor Secretário Geral do SIRP, a testemunha JP..., após o qual ficou estabelecida em definitivo uma grande dúvida acerca da legalidade dos procedimentos dos serviços operacionais do SIRP. Tendo-se colhido do Secretário Geral a confirmação de que é normal a obtenção de informações, por ofício ou por fonte humana, praticamente em toda a parte e, sobretudo, junto das operadoras de telecomunicações.
AR - De acordo o senhor Secretário Geral do SIRP, não há nem houve nunca a necessidade de recorrer a qualquer tipo de autorização judicial para obter aquelas informações, sendo uma absoluta certeza que todas as informações em causa provêm de bases de dados protegidas nos termos legais. Logo, a respectiva obtenção, nos moldes em que tal é previsto no Manual de Procedimentos e referido nas declarações do Secretário Geral do SIRP, será sempre ilegal.
AS – Do texto da sms do arguido MSL... para a testemunha CV..., “Temos acesso 93?”, resulta também a comprovação de que existiam fontes humanas dos Serviços Secretos portugueses em operadoras de telecomunicações e resulta ainda a comprovação da normalidade de obtenção de informações, que deveriam ser protegidas e sigilosas, como a facturação detalhada,
AT - O próprio tribunal a quo destaca aquela mensagem, embora o faça de forma evasiva; contraditória e ao arrepio da lógica, referindo, na página 61 do acórdão, parágrafo 5º, que “esta mensagem … podendo indiciar ou, pelo menos, não excluir, práticas anteriores semelhantes…”, deixa no ar, uma vez mais, a séria dúvida sobre a veracidade da tese do arguido, de que agiu de acordo com o modus operandi e praxis existentes nos serviços secretos.
AU – O supra referido excerto da fundamentação do acórdão proferido a quo “esta mensagem … podendo indiciar ou, pelo menos, não excluir, práticas anteriores semelhantes…” é sintomático da subjectividade que esteve presente na decisão e que esteve na base do erro de julgamento da matéria de facto, onde parece querer esconder-se ou dizer por meias palavras aquilo que é uma evidência.
AV - A utilização da expressão “podendo indiciar” revela erro do tribunal na apreciação da prova, pois, as decisões do tribunal têm que ser claras e não pode haver compromissos, meios caminhos ou inconcludências como a que atrás se aponta. Ou há indício ou não há indício, de que a mensagem em apreço aponta para práticas anteriores semelhantes, em que é que ficamos?
AX - Na apreciação de determinada prova não se permitem divagações inconclusivas como a que atrás se aponta, muito menos quando essas conduzem, como conduziram in casu, à condenação do arguido. Toda e qualquer condenação tem que provir de uma certeza, de uma convicção firme do tribunal e não de expressões dúbias como “pode ser que seja”, pois, o que se pretende é que o tribunal diga se “é ou não é”. A falta de concisão e clareza neste ponto da decisão configuram a violação do preceito da alínea b) do nº 1, do artº 389º-A, do CPP.
AZ - Ao concluir de forma evasiva e inconclusiva, como fez, o tribunal está a errar na apreciação da prova. É certo que assiste ao tribunal a faculdade de livre apreciação da prova, porém a livre apreciação da prova não significa subjectividade na apreciação da prova e se o tribunal entende que determinado facto pode indiciar outro tem que o afirmar peremptoriamente e não ficar-se por expressões dúbias.
BA - Na realidade o que o tribunal deveria ter plasmado na fundamentação quanto à referida mensagem é aquilo que é óbvio, ou seja: “esta mensagem … indicia ou, pelo menos, não excluiu, práticas anteriores semelhantes…”. Ora, se a mensagem indicia práticas anteriores semelhantes, uma vez mais estamos perante uma dúvida, que tal como as anteriores aponta para uma certeza, que é a de que terá que se julgar pela aplicação do princípio basilar do
in dubio pro reo
BB - Do segmento do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII (que aprovou o “Regime Jurídico do SIRP”), constava a norma do artº 78º, nº 2, do que instituía a permissão legal para aceder a dados de tráfego ou outros dados conexos das comunicações o que abona a favor da tese da defesa de que o arguido recorrente actuou dentro da normalidade, de acordo com o modus operandi, dos serviços secretos, pois, não fosse a declaração de inconstitucionalidade, essa legislação permitiria aos serviços de informações aceder legalmente à facturação detalhada. Dir-se-á que na Assembleia da República foi tentada, em plena pendência destes autos, a legalização de uma praxis ilegal existente.
BC - A conclusão retirada de tal circunstância pelo tribunal a quo, páginas 54 a 57 do acórdão, é reveladora de novo erro em que incorreu na apreciação a prova, pois, parece evidente que houve de parte da maioria dos deputados a pretensão expressa de legalizar uma ingerência na esfera da reserva da vida privada dos cidadãos, embora a leste de quem tem competência para decidir daquelas questões que são os tribunais, os mesmos tribunais que o senhor Secretário Geral disse não consultar nunca previamente à obtenção de informações sigilosas junto das diversas entidades e bases de dados sigilosas a que recorrem na sua normal actividade de recolha de informações.
BD - Enfim, de tudo quanto acima se consignou resulta evidente que a tese do arguido se não está demonstrada e provada é porque não o pode ser, mas ficou bem patente a dúvida acerca da sua veracidade e essa dúvida impede a sua condenação pelo elementar princípio que aqui mais uma vez se invoca: in dubio pro reo
Em conclusão não podiam ter sido dados como provados os apontados factos 31, 32, 33, 35 e 36.
BE - Quanto ao acesso à base de dados D..., há que referir que também nesse ponto foi impossível ao recorrente produzir prova por força do Segredo de Estado, pois, tanto quanto foi dado a saber ao arguido MSL... o MJS... era fonte dos serviços secretos, após a sua desvinculação, sendo-lhe atribuída a designação de FoP.... As fontes humanas dos serviços têm nomes de código para proteger a respectiva identidade e apenas seria possível demonstrar a veracidade de quanto foi alegado pelo arguido MSL... através da confirmação e prova, por documento ou testemunha, da veracidade de tal facto.
BF – Neste ponto o recorrente até beneficiou da “bondade” do tribunal a quo que julgou como sendo também matéria de “…relevância fundamental para o exercício do direito de defesa dos arguidos…” a confirmação da existência e a identificação daquela fonte humana dos serviços tendo na comunicação ao Primeiro Ministro, anexa ao despacho de fls. 5604 a 5609, sido pedida a desclassificação dessas informações nos termos que se transcrevem:“…IV – Com relevância para o exercício do direito de defesa dos arguidos MJS... e MSL..., quanto à matéria constante do despacho de pronúncia. FoP... (identificação), quando foi criada, por quem, quem a geria e eventuais relatórios produzidos em 2010 pela FoP... com relevância para o objecto do processo.”
BG - Porém nada veio dos serviços secretos na sequência de tal despacho e da comunicação ao Primeiro Ministro, pois, os documentos que permitem identificar as fontes humanas são obviamente protegidos por Segredo de Estado e a testemunha JP..., única testemunha que o poderia confirmar disse que, também por força do segredo de Estado, não poderia nunca falar sobre fontes.
BH - Assim, ficou, uma vez mais, o arguido MSL... numa “camisa de varas” sem possibilidade de provar quanto justificaria a sua actuação e permitiria demonstrar a respectiva licitude. Uma vez mais o confronto do seu direito individual, constitucionalmente consagrado, a uma defesa plena e sem qualquer restrição teve que ceder perante os direitos colectivos, também constitucionalmente consagrados, à unidade, integridade e segurança do Estado que estão protegidos pelo segredo. Ora, perante a impossibilidade de defesa, teria o tribunal que acolher a existência de nova dúvida favorável ao recorrente, a somar a todas as demais que se apontaram, absolvendo o arguido pela aplicação do elementar princípio do
in dubio pro reo
BI – No caso do acesso à base de dados D... é evidente a insuficiência da prova produzida para a condenação pelo crime de abuso de poder que não permite pela conclusão do preenchimento do tipo legal de abuso de poder.
BJ – Quanto a esta matéria não resulta da prova que efectivamente se produziu em audiência de julgamento que tenha sido obtido qualquer ganho ou proveito para o arguido MSL... ou para o arguido MJS.... Ou seja, o tribunal deu erradamente como provado, facto 93 dos factos provados, afirmando que houve por parte de MSL... o “… propósito de satisfação do interesse pessoal do arguido MJS....”.
BK – São elementos do tipo a satisfação de um interesse próprio ou alheio, contudo, nada se provou acerca do propósito do arguido de satisfação de um interesse alheio nem nada se ficou a saber sobre qual seria, afinal, esse interesse, tendo o acórdão acolhido neste ponto a tese da acusação sem que a acusação tenha feito em julgamento qualquer prova da intenção de satisfação de interesses de terceiro por parte do arguido MSL... ou sequer de quais os interesses em causa, por parte do arguido MJS....
BL – Nesta matéria a actividade probatória da acusação, limitou-se à tentativa de demonstração de que a base de dados em causa era paga e nem sequer isso se demonstrou cabalmente, pois, a prova que se exigia era muito mais do que a que foi feita - pelo menos da forma que normalmente é exigida a um qualquer cidadão que se dirija à justiça com a pretensão de demonstrar a existência de um contrato e os custos a ele associados. Ou seja, impunha-se a junção do próprio contrato ou de qualquer um outro elemento documental que demonstrasse a sua real existência.
BM - Foi usado um meio processual impróprio, pois apenas se produziu prova testemunhal, aliás, inconclusiva, que o tribunal terá entendido ser suficiente para prova de quanto apenas seria passível de ser provado por documento. Só através de cópia do contrato ou de uma qualquer factura dos alegados pagamentos à referida “D...” é que seria possível concluir, como o tribunal concluiu, que aquela é uma base de dados “… a que o SIRP acede em razão de contrato e mediante o pagamento de quantias monetárias, incluindo um preço por consulta”, facto provado 91.
BN - Não obstante a apontada insuficiência, aquele facto foi dado como provado, presume-se que, com base nas conjecturas da testemunha CV..., que não escondeu o seu despeito e motivação pessoal contra o arguido MSL..., por aquele dar ordens de pesquisa, que não passavam por si, directamente à testemunha HG..., tendo aquela testemunha afirmado que não sabia se a base de dados era paga ou não e confirmando ser usual receber ordens directas do seu director e não da chefia intermédia.
BO - Em conclusão, também os factos 91, 92 e 93, foram erradamente julgados, pois, limitaram-se a acolher as alegações e conjecturas da acusação, sem que as mesmas tenham sido cabalmente provadas, através de meio próprio, que seria a prova documental e não as especulações testemunhais de quem mostrou não ser merecedor de crédito no seu depoimento, pelo despeito e ódio pessoal ao arguido recorrente MSL... que não logrou esconder.
BP – O acórdão recorrido é fruto de errada aplicação do Direito, pois, propondo-se o a arguido MSL... demonstrar que agiu como agiu porque sempre foi ensinado a fazê-lo e ensinou outros a fazer de forma idêntica, pois, eram esses os procedimentos instituídos nos serviços do SIRP, não podendo usar dos principais meios de prova por contenderem na sua revelação com os superiores interesses da Nação, protegidos pelo Segredo de Estado, e assim o julgamento fez-se com liberdade de prova apenas para a acusação. Numa clara violação do princípio do contraditório contido no nº 5, do artº 32º da C.R.P.
BQ - Ainda assim pesaram a favor da defesa do arguido todas as insuficiências de prova que acima se apontaram e pesaram também as provas feitas em audiência que permitem concluir, senão pela veracidade da tese de defesa, que da prova produzida não poderá retirar-se mais do que a confirmação de que a actividade secreta dos serviços de informações do Estado não é consentânea com a legalidade democrática e constitucional vigentes em Portugal.
BR - Foram várias as insuficiências e deficiências da prova que no cômputo final terão que pesar na balança a favor do arguido porque permitem estabelecer uma dúvida séria acerca da sua culpabilidade quanto aos factos que lhe vinham imputados e que o próprio confessou, contudo, sem os poder justificar com a cabal demonstração de que mais não fez de que cumprir ordens e procedimentos dos serviços.
BS - Perante tanta insuficiência de prova e perante a pequena parte da prova que acima se destacou e que permite concluir pela incerteza, ou, dito ao contrário, pela dúvida razoável favorável à tese de defesa do arguido, terão V. Exas. que concluir como concluiu o recorrente e proferir decisão penal de absolvição
BT – O acórdão recorrido é ilegal porque viola os artigos 20º, nº 1; 32º, nºs 1, 2 e 5; 202º, nºs 1 e 2 e 205, nº 2, todos da Constituição da República Portuguesa. Para além disso mostra-se violado o artigo 389º-A, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
II – da errada condenação no pedido de indemnização civil
BU – O recorrente é parte ilegítima na demanda civil porquanto em todos as actos que lhe são imputados agiu sempre por conta e no interesse dos serviços do SIRP, mesmo após a sua desvinculação das funções que exercia, então no SIED, tendo sido integrado no quadro de pessoal da Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, tal como está legalmente previsto, porquanto, pelo referido tempo de serviço no SIRP, adquiriu vínculo definitivo ao Estado. Ou seja o recorrente foi, até à sua reforma em 2016, funcionário público, ou seja, funcionário do Estado Português.
BV - Enquanto funcionário ao serviço do SIRP o recorrente sempre agiu com elevado zelo profissional no estrito cumprimento das ordens emanadas dos seus superiores hierárquicos e sempre no estrito cumprimento das normas e procedimentos instituídos, tal como todas as testemunhas, quer as de acusação, quer ainda as de defesa, atestaram em depoimento ajuramentado em audiência de julgamento.
BX - Estando o recorrente impedido, por dever de sigilo e para protecção do Segredo de Estado, de descrever com a amplitude que se impunha quais as ordens recebia e quem lhas dava, bem como quais os meios operacionais, normas e procedimentos que lhe eram impostos na execução dessas ordens, sob pena de incorrer no preenchimento de tipo legal criminal de violação de Segredo de Estado, é-lhe ainda assim possível afirmar que enquanto exerceu as suas funções fê-lo sempre no exclusivo interesse do SIRP, no cumprimento da missão fundamental, que àquele cabe assegurar, a saber: a preservação da segurança interna e externa bem como a independência e interesses nacionais e a unidade e integridade do Estado Português. É por isso que o recorrente se bate pela sua absolvição, pois, nunca agiu com dolo ou no interesse próprio.
BZ - Foi possível a demonstração de que os serviços do SIRP agem no limiar da legalidade, e mesmo, nalgumas matérias e procedimentos, na completa e absoluta ilegalidade. Tal decore dos seguintes meios de prova: 1 - das partes que foi possível conhecer do “Manual de Procedimentos”; 2 - da notícia/artigo junta aos autos a fls… da revista “Sábado” denominada “A Escuta Proibida”; 3 - da notícia/artigo do semanário “O Expresso” de 7 de Março de 2016, e, finalmente, 4 - do depoimento da testemunha JP..., Secretário Geral do SIRP, que, aquando da sua reinquirição, na 24ª sessão de julgamento, em 19/05/2016, perguntado sobre o excerto da página 64 do Manual de Procedimentos, fez a revelação, aliás, bombástica, de que os serviços secretos obtêm informações em quase todas as bases de dados relevantes existentes, desde as da administração fiscal às das operadoras de telecomunicações, onde, por ofício ou através de fontes humanas, aquelas são colhidas,
CA- Provou-se que os factos que vinham da acusação/pronúncia – artigos 1º a 44º, que alegadamente lesaram o assistente demandante e fundamentam o pedido de indemnização, no qual, embora por quantia diversa, o recorrente foi solidariamente condenado, são factos que foram praticados pelo recorrente e por outros agentes ao serviço do Estado, que, por isso, não responsabilizam quem os praticou mas sim o próprio Estado mandante de tais práticas.
CB - Assim, o recorrente é parte ilegítima enquanto demandado civil nestes autos, pois, a haver qualquer responsabilidade, por quaisquer danos eventualmente sofridos pelo demandante, por qualquer facto ilícito que eventualmente tenha sido praticado com lesão da sua esfera jurídica, aquela responsabilidade não será assacável ao demandado mas sim ao Estado Português mandante dos actos que alegadamente aquele praticou.
CC - Termos em que deverá esse tribunal superior decidir da verificação in casu da excepção de ilegitimidade passiva do recorrente, que deverá ser julgada procedente e provada, e, consequentemente, deverá o recorrente ser absolvido da instância, pois, se assim se não decidir, tal como ocorreu a quo, será perpetuada a violação do preceito da alínea e) do artº 577º do Código de Processo Civil, que decorre da errada aplicação do direito que, também quanto ao pedido cível daquela decisão resulta.
CD – Sendo o recorrido parte ilegítima no pedido civil, por aplicação do regime legal da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que estabelece o regime legal da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas de Direito Público deveria ter sido julgado procedente a intervenção acessória do Ministério Público em representação do Estado Português, nos termos do artº 325º, do Código de Processo Civil, que se mostra violado por não ter sido deferido aquele incidente, bem como foram violados os preceitos dos arts. 7º e 8º da referida Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.
CE – Resulta do acórdão recorrido que a causa adequada à produção dos danos invocados pelo assistente terá sido o acto de divulgação do acesso à facturação detalhada conforme o próprio alegou, quer no pedido de indemnização civil que apresentou quer no julgamento. Assim, não poderia o Acórdão Recorrido, como fez, considerar o arguido MSL... responsável pelos danos dados causados a S..., pois, dos factos provados não resulta nenhum que lhe seja imputável no que concerne ao acto de divulgação da lista da facturação detalhada do assistente S..., logo nenhuma ilicitude ou culpa, especificamente relacionados com tal divulgação pode ser ligada ao Recorrente, ou permite concluir pela existência do necessário nexo de causalidade entre o facto ilícito e o resultado danoso provocado na esfera jurídica do assistente demandante.
CF - Termos em que deverá o recorrente ser absolvido também quanto ao pedido de indemnização ora em apreço, pois, caso assim não se faça serão violados o preceito base da responsabilidade civil por factos ilícitos, constante do artigos 483º, nº 1 do Código Civil, o que é também motivo para a procedência do presente recurso.
CG – Quanto à matéria do pedido de indemnização civil mostram-se violados no acórdão recorrido os seguintes preceitos legais: artºs 325º e 577º, alínea c) do Código de Processo Civil; artº 483º, nº 1, do Código Civil e artºs 7º e 8º da Lei 67/2007, de 31/12.
Por tudo quanto fica exposto deverá o recorrente ser absolvido da condenação penal e também da condenação solidária no pedido de indemnização civil, assim se fazendo, uma vez mais Justiça
Recurso interposto por FLD...:
1. Entende o arguido FLD..., que não deveria ter sido condenado como co-autor de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1 e 4, al. a) da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), uma vez que da prova produzida em audiência de julgamento resulta que este agiu no estrito cumprimento de uma ordem que lhe foi dada pelo seu superior hierárquico, que entendeu como legítima, pelo que, sem consciência da sua ilicitude;
2. Aliás, bem andou o douto Ministério Público que pugnou pela sua absolvição;
3. De facto, resulta da prova produzida em sede de julgamento que, face às notícias sobre os serviços que estavam a ser divulgadas nos órgãos de comunicação social e blogs, quando lhe foi dada a ordem para aceder à faturação detalhada, o Arguido entendeu essa ordem como legítima e nem sequer questionou sobre a hipótese de ser ilícita;
4. Na verdade, foi uma ordem dada como tantas outras, e sempre confiou nas ordens que lhe foram dadas pelos seus superiores hierárquicos e sempre as cumpriu o melhor e mais rápido que lhe era possível;
5. Resulta provado, pelas suas declarações e dos demais arguidos, nomeadamente, do arguido MSL..., bem como do depoimento da testemunha LO..., que ao Arguido, e por força do princípio da necessidade de conhecer e do princípio da compartimentação, apenas lhe foi dada a conhecer a ordem, não lhe tendo sido fornecidos todos os dados, inclusive, este não sabia de quem era o número de telefone de quem pretendiam a facturação detalhada;
6. Pelo que, e face às notícias que estavam a ser divulgadas sobre os serviços nos órgãos de comunicação e blogs, e que eram graves e eram e ainda são uma preocupação dos Serviços, conforme depoimento da testemunha JM..., atual diretor do SIED, sempre pensou o Arguido que se tratavam de ordens legítimas e que se destinavam a proteger um bem maior, a segurança do ESTADO!;
7. Ora, dispõe o art. 37º do Código Penal: ”Age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas.”;
8. O critério de não censurabilidade definido no art. 37.º do Cód. Penal traduz assim a ideia de que quando a ilegitimidade da ordem não seja evidente no quadro das circunstâncias representadas pelo funcionário, o ilícito-típico por ele cometido não representa a expressão de uma atitude de descuido ou leviandade perante o dever-ser jurídico-penal que caracteriza o tipo de culpa negligente;
9. O erro sobre a ilegitimidade da ordem implica necessariamente o afastamento do tipo de culpa doloso. A culpa pode, porém, ser ainda alicerçada sobre um tipo de culpa negligente, cuja materialidade “reside na atitude descuidada ou leviana revelada pelo agente e que fundamenta o seu facto e, por aí, nas qualidades desvaliosas da pessoa que no facto se exprimem” (cfr. DIAS, Figueiredo, Temas Básicos, p. 376 e s.).;
10. Desta forma, se o erro do funcionário for não censurável, além do tipo de culpa doloso, também o tipo de culpa negligente deverá considerar-se excluído, não subsistindo qualquer conteúdo material de culpa. É nisso que, em nosso entender, se traduz a exclusão da culpa assinalada no art. 37.º do Cód. Penal;
11. Ora, o arguido sempre foi habituado, desde muito novo, a cumprir as ordens sem as questionar, devido quer à convivência com o avô, quer ao facto de ele próprio ter sido militar durante largos anos, e, normalmente, o militar cuidadoso e ponderado dá cumprimento à ordem que lhe é transmitida sem mais delongas e indagações sempre que não tenha razões para duvidar da sua ilegitimidade em face das circunstâncias que lhe são dadas a conhecer;
12. No caso em apreço, o Arguido, atuou no cumprimento de ordens emanadas pelo seu superior hierárquico, convicto da licitude das mesmas;
13. Não tendo consciência da ilicitude da sua atuação, nem lhe sendo censurável o erro, pois a sua conduta foi levada a cabo com base em erro sobre os pressupostos dessa causa de justificação;
14. Pelo que, e por tudo o exposto, deve ser revogada a sentença em crise e, consequentemente, ser o Arguido Absolvido do crime de que vem acusado;
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença, modificando-se a decisão recorrida, Absolvendo-se o Arguido do crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1 e 4, al. a) da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime)
Assim se fazendo a Sã e costumeira JUSTIÇA!
Recurso interposto por GF...:
1. Entende a Arguida GF..., que não deveria ter sido condenada como autora material de um crime de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelos arts. 44º, nº 1 e 2, al. b) da Lei nº 67/98, de 26.10 e de um crime de violação de segredo profissional, p. e p. pelo art. 195º do Cód. Penal, na pena, em cúmulo jurídico, de 140 dias de multa, à taxa diária de 6€, perfazendo um total de 840€;
2. Aliás, bem andou o douto Ministério Público que pugnou pela sua absolvição;
3. De facto, resulta da prova produzida em sede de julgamento que, a Arguida sabia que dentro dos seus serviços, na “O...”, o procedimento de acesso ao número que lhe foi solicitado não era o normal, contudo estava convicta que tal procedimento se devia à gravidade dos factos que haviam vindo a público relativos aos Serviços para os quais o seu companheiro trabalhava e que, por força da “necessidade de restrição”, lhe estavam a ser solicitados pelos Serviços, por intermédio do companheiro, para que menos pessoas tivessem acesso a essa informação solicitada;
4. Na verdade, face às notícias que estavam a ser divulgadas sobre os Serviços de Informação nos órgãos de comunicação e blogs, sempre pensou a Arguida que o pedido que lhe foi feito, apesar da forma como lhe foi feito, era um pedido legítimo e que se destinava a proteger um bem maior, a segurança do ESTADO!
5. Como referiu a arguida, esta sabia, por força do seu trabalho, que não lhe era lícito aceder à facturação dos clientes aleatoriamente;
6. Contudo, sentia-se legitimada em virtude do pedido ter sido feito por quem foi, ou seja, pelos Serviços de Informação, pelas “secretas” portuguesas;
7. Na verdade, como bem refere a douta sentença (pág. 118), esta sentia uma grande admiração pelos serviços de informação;
8. Aliás, qual o comum dos cidadãos que não sentiria orgulho em puder ajudar na segurança da sua Nação!
9. Pelo que, a arguida agiu em erro sobre as circunstâncias do facto que levaram a que atuasse sem consciência da ilicitude dos seus actos, pois acreditava ser legítima a sua actuação em virtude de ter sido solicitada pelos referidos Serviços de Informação, acreditando que estava a ajudar na segurança do ESTADO!
10. De resto, como refere a douta sentença (pág. 118), a actuação posterior da arguida, quando tomou consciência da ilicitude dos seus actos, nomeadamente a rescisão do seu contrato de trabalho com a empresa, o desalento e frustração por ter interrompido uma carreira profissional, com grandes prejuízos para a sua vida pessoal e profissional, tendo passado por um período de desestabilização emocional, é bem demonstrativa do erro em que estava quando acedeu à facturação;
11. Encontrava-se assim, a Arguida em erro sobre as circunstâncias do facto, agindo sem consciência da ilicitude da sua conduta, logo, sem dolo;
12. Convicta de que o pedido era legítimo e estava a agir em prol da segurança do Estado!
13. Claramente, o que se verificou por parte da arguida foi a crença errónea de estar a agir licitamente, ou seja, um erro de valoração, mas essa sua convicção era devida ao facto de a sua intervenção ter sido solicitada pelos referidos Serviços de Informação, não a qualquer erro de valoração ética;
14. Estatui o artigo 16º do Código Penal, sob a epígrafe de “erro sobre as circunstâncias” que,
1. o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo comportamento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo; 2. o preceituado no n.º anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente; 3. fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais;
15. Ora, sendo os crimes de acesso indevido a dados pessoais e o crime de violação de segredo profissional, crimes dolosos (art. 13º do Cód. Penal), a conduta em apreço não é punível;
16. Pelo que, e por tudo o exposto, deve ser revogada a sentença em crise e, consequentemente, ser a Arguida Absolvida do crime de que vem acusada.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença, modificando-se a decisão recorrida, Absolvendo-se a Arguida dos crimes de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelos arts. 44º, nº 1 e 2, al. b) da Lei nº 67/98, de 26.10 e de violação de segredo profissional, p. e p. pelo art. 195º do Cód. Penal,
Assim se fazendo a Sã e costumeira JUSTIÇA!

O Ministério Público respondeu aos recursos, concluindo:
1. Não existiu, no concreto julgamento a que os presentes recursos respeitam, qualquer limitação ao exercício do direito de Defesa, tendo o Tribunal, conduzido a produção de prova e decidindo a final, guiado por este fundamental propósito.
2. No que à condenação por crime de acesso ilegítimo agravado e abuso de poder (acesso a facturação detalhada) respeita, verifica-se que na origem da decisão ilícita está uma percepção de poder pessoal não democrático, capaz de praticar um crime e de se ingerir na relação constitucionalmente protegida entre um jornalista e a sua fonte, apenas com vista a identificar o crítico interno e pôr termo ao escrutínio público de opções de gestão;
3. Se o acesso à facturação detalhada, medida de utilização vedada aos Serviços, fosse prática corrente, não seria normal que houvesse a necessidade de o Director do Departamento Operacional perguntar a um inferior hierárquico se tinham alguém na operadora e que, na aparente ausência de resposta, tenham recorrido à companheira de um funcionário.
4. Crime de violação do segredo de Estado: Ficou amplamente provada a entrega de documento, produzido no SIED, com recurso a fontes humanas, sobre empresários russos a terceiros, exteriores aos Serviços, a particulares ao serviço de um grupo empresarial, que guardaram o documento nos respectivos telemóveis, fora do Sistema interno do SIED, tudo em condições de acessibilidade tal que foi efectivamente acedido;
5. Não obstante as sucessivas versões apresentadas pelo arguido, em relação de exclusão entre si, provado ficou que a informação era no interesse de contexto negocial real envolvendo a GO..., como era do conhecimento do arguido que, dias antes, acordara integrar os quadros de topo daquele Grupo;
6. No que ao crime de Abuso de poder relativo à utilização e divulgação de informação recolhida em base comercial, o propósito dos agentes reportava-se à satisfação de interesses de terceiro, exteriores aos Serviços;
7. Por fim, no que ao crime de Devassa da vida privada, sob a forma agravada, se refere, MJS... tinha, em seu poder o ficheiro e enviou-o, por e-mail, a um funcionário da GO... com nota de Importância Alta, no contexto de uma grande crispação empresarial entre o GO... e PPB...; “guerra” em que o arguido MJS... tinha um papel activo, através de PF..., com a utilização de campanhas de tweets e em caixas de comentários.
Assim, mantendo o bem fundamento Acórdão recorrido, fará o Venerando Tribunal da Relação Justiça.
O assistente PPB... respondeu ao recurso interposto pelo arguido MJS..., concluindo:
A. O Recurso apresentado pelo Arguido deve ser considerado manifestamente improcedente, sendo o Acórdão recorrido uma decisão judicial correcta e devidamente sustentada, constituindo a melhor fundamentação que, nesta Resposta, se pode oferecer.
B. Não cabe ao Tribunal da Relação realizar um novo julgamento, até porque é o Tribunal de Primeira Instância que goza da imediação e da oralidade, pelo que este Tribunal só deverá alterar a decisão da matéria de facto se a mesma revelar que os elementos constantes dos autos impunham, de forma evidente, decisão diferente.
C. O Tribunal a quo decidiu correctamente julgar como provados os factos constantes dos pontos 120 e 131 dos factos provados (cf. pp. 28 e 35, respectivamente, do Acórdão).
D. Contrariamente ao pretendido pelo Recorrente, não resulta da prova produzida em audiência de julgamento que devessem ter sido julgados provados os factos constantes dos pontos K., L. e M. da Motivação de Recurso.
E. O Recorrente sustenta essa sua posição a partir de uma apreciação da prova descontextualizada e sem tomar em consideração a globalidade dos factos e da própria prova produzida.
F. No que se refere ao ponto K. da Motivação de Recurso, importa dizer que o que perturbou e abalou o Assistente foi a existência de um documento que compilava informações referentes à sua vida pessoal, familiar, social, sexual e política, com destaque para os factos que se revelavam manifestamente falsos e difamatórios, sem que tivesse prestado o seu conhecimento nesse sentido ou que tivesse tolerado tal comportamento.
G. Ou seja, o que perturbou o Assistente foi todo o conteúdo do “Relatório”, e não (apenas) a informação de cariz pessoal, devido à sua falsidade.
H. O mesmo resultou dos depoimentos prestados pelas testemunhas MB... (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151026150219_4775332_2871061, registo com início aos 6m54s de gravação) e PN... (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151026160331_4775332_2871061, registo com início aos 6m38s de gravação), que se referiram precisamente a todo o teor do Relatório como a fonte directa do transtorno e perturbação sentidos pelo Assistente, sem qualquer distinção relativamente aos vários conteúdos e factos vertidos no referido documento.
I. Também o depoimento escrito do Assistente é, quanto a este ponto, claro e objectivo, não carecendo de qualquer “interpretação correctiva”, contrariamente ao que pretende o Recorrente (cf. p. 3 do depoimento escrito do Assistente).
J. Deve, por tudo isto, manter-se inalterado o Acórdão Recorrido, considerando-se como provado o facto constante do ponto 131 dos factos provados no Acórdão, e como não provado o facto constante do ponto K. da Motivação de Recurso.
K. Relativamente ao ponto L. da Motivação de Recurso, não procede o entendimento do Recorrente no sentido de os factos vertidos no “Relatório” serem públicos, não se encontrando o seu acesso reservado ao público em geral, uma vez que não se podem qualificar como públicos (notórios ou de conhecimento geral) factos que sejam falsos – e a presença de factos falsos foi comprovada pela testemunha JD... (cf. acta de audiência de 5 de Novembro de 2015, com a referência n.º 340902794 e início às 10h24m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151105102559_4775332_ 2871061, registo com início aos 13m40s de gravação).
L. Apenas podem ser de conhecimento público factos objectivos e notórios e, por inerência, factos verdadeiros – o que não é o caso.
M. De forma a provar que os factos vertidos no “Relatório” eram públicos, o Recorrente socorre-se do depoimento de uma testemunha que afirma entender que alguns dos factos em causa eram públicos por alegadamente constarem do Blog “Muito Mentiroso”, a qual não era uma página credenciada e habilitada para a divulgação de notícias, e que já não existe (cf. acta de audiência de 5 de Novembro de 2015, com a referência n.º 340902794 e início às 10h24m, em particular o depoimento da testemunha FC..., constante do ficheiro electrónico 20151105115107_4775332_2871061, registo com início aos 28m49s de gravação).
N. Não foram, por isso, identificadas fontes credíveis que permitissem afirmar que os factos constantes do “Relatório” eram públicos (cf. acta de audiência de 5 de Novembro de 2015, com a referência n.º 340902794 e início às 10h24m, em particular depoimento da testemunha FC..., constante do ficheiro electrónico 20151105115107_ 4775332_2871061, registo com início aos 03m06s de gravação, bem como declarações com início aos 30m38s de gravação).
O. A falta de publicidade dos alegados factos constantes do “Relatório” resulta também do seu próprio texto, já que são utilizadas expressões como “fontes conhecedoras do processo”, “fidedignas fontes da época” ou “as melhores fontes”, sem se indicar que fontes seriam essas.
P. Cabia ao Recorrente demonstrar, quanto a cada uma das alegações e quanto a cada um dos pretensos factos contidos no “Relatório”, a publicidade dos mesmos, bem como as respectivas fontes, o que o Recorrente não fez.
Q. Pelo que, não tendo o Recorrente demonstrado que resultou provado que os factos vertidos no “Relatório” eram públicos e de acesso não reservado, deve o Acórdão recorrido manter-se inalterado, dando-se como não provado o facto constante do ponto L. da Motivação de Recurso.
R. Também ao contrário do alegado pelo Recorrente, resultou provado, em audiência de julgamento, que o mesmo agiu com dolo, pois teve nomeadamente a oportunidade de apagar o referido “Relatório” da sua caixa de correio electrónico, sem o utilizar, porém não o fez.
S. Na verdade, o Arguido ora Recorrente conservou o documento em causa na sua caixa de correio electrónico, sendo irrelevante não tê-lo feito na memória física do computador, porque o documento permanecia disponível para consulta e posterior utilização, nunca o tendo apagado (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, em particular declarações prestadas pelo Arguido MJS..., constantes do ficheiro electrónico 20151026101800_4775332_2871061, registo com início aos 26m13s de gravação).
T. Acresce que o Arguido também utilizou o “Relatório”, quando o enviou, anexado a um e-mail, a PF....
U. A conduta descrita não é sequer afastada pela circunstância de o Recorrente alegar que, entendendo que o documento era propriedade da empresa GO..., não o apagou, precisamente por entender que não era “seu” – é irrelevante a propriedade do ficheiro para os efeitos presentes.
V. Deve, também aqui, manter-se inalterado o Acórdão recorrido, considerando-se como provado o facto constante do ponto 120 dos factos provados, no Acórdão recorrido.
W. O Recorrente visa, ainda, demonstrar que resultou provado, em audiência de julgamento, que o Assistente, bem como o público em geral, tomaram conhecimento do Relatório através da sua divulgação nos meios de comunicação social, circunstância que é irrelevante.
X. A conduta do Recorrente, provada em audiência de julgamento, preenche, por isso, o tipo legal de crime de devassa por meio de informática, previsto e punido pelo artigo 193.º, n.º 1, do CP.
Y. Improcede, assim, o entendimento do Recorrente no sentido de defender uma interpretação restritiva do tipo legal de crime em causa, excluindo do seu âmbito de aplicação ficheiros automatizados que compilem factos falsos ou os casos em que o agente esteja somente na mera posse do ficheiro – interpretação que retira qualquer conteúdo útil à norma legal.
Z. O Recorrente sustenta a sua interpretação restritiva a partir de um alegado paradigma “descriminalizador” – argumento que não procede, na medida em que tal interpretação simplesmente ignora a letra e o espírito da norma e por a conduta em causa não ter sido objecto de qualquer descriminalização.
AA. Pelo contrário, no que concerne aos dados pessoais, a tendência legislativa tem sido no sentido de tutelar cada vez mais os direitos e de proteger os titulares dos dados.
BB. O Recorrente ignora ainda o propósito do legislador associado à incriminação do artigo 193.º, n.º 1, do CP, o qual se identifica com a necessária concretização de um mandamento constitucional de interdição absoluta de tratamento informático de dados pessoais de um sujeito jurídico, nos termos do artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa.
CC. O legislador tipificou como crime qualquer uma das três condutas descritas no artigo 193.º, n.º 1, do CP: a criação ou manutenção ou utilização de ficheiro automatizado de dados pessoais, conquanto respeitadas as restantes condições previstas no tipo incriminador.
DD. Resultou provado que o Recorrente conservou o “Relatório”, na sua caixa de correio electrónico, e utilizou-o, anexando o mesmo ficheiro a um e-mail enviado a PF..., pelo que não restam dúvidas de que o seu comportamento preencheu o tipo legal de crime em causa.
EE. Inclusive, o recurso à disjuntiva “ou”, na construção do tipo, conduz precisamente à conclusão de que basta a prática de qualquer uma daquelas condutas (criação, manutenção ou utilização) para que se encontre preenchido o tipo legal de crime de devassa por meio de informática.
FF. E não procedem quaisquer argumentos no sentido de que anexar um documento a um e-mail não comporta uma utilização do mesmo, sobretudo quando a divulgação do referido ficheiro adquire as mesmas proporções que no caso presente, sendo inclusive, mais tarde, divulgado pelos meios de comunicação social. GG. Também contrariamente ao entendimento avançado pelo Recorrente, o tipo legal de crime em causa não exige que os factos constantes de ficheiro automatizado de dados pessoais sejam verdadeiros – isso não resulta da letra nem do espírito do preceito normativo.
HH. Não procedem, assim, os argumentos avançados pelo Recorrente no sentido de que as normas da Lei de Protecção de Dados Pessoais exigem que estejam necessariamente em causa factos verdadeiros.
II. Isso não resulta, desde logo, do artigo 3.º, alíneas a) e c), do referido diploma legal, norma que oferece uma noção legal de “ficheiro de dados pessoais” e de “dados pessoais”, e de cuja leitura e análise se conclui inelutavelmente que o denominado “Relatório” deve ser qualificado como um ficheiro automatizado que compilava dados pessoais do Assistente.
JJ. Além do mais, as informações relativas a uma pessoa identificada ou identificável são consideradas dados pessoais, quer se tratem de informações verdadeiras ou falsas.
KK. Sem prejuízo do previamente exposto, recorde-se que, entre os factos vertidos no “Relatório”, encontravam-se igualmente factos verdadeiros, juntamente com outros manifestamente falsos (cf. acta de audiência de 5 de Novembro de 2015, com a referência n.º 340902794 e início às 10h24m, em particular depoimento da testemunha JD..., constante do ficheiro electrónico 20151105102559_4775332_ 2871061, registo com início aos 15m20s de gravação), pelo que, ainda que se admitisse a interpretação do Recorrente como correcta – o que não se admite –, sempre estaria preenchido o tipo legal de crime em causa.
LL. Do mesmo modo, também não assiste razão ao Recorrente quando afirma que o crime de devassa por meio de informática deve ser interpretado em conformidade com o regime próprio do crime de devassa da vida privada, precisamente por o crime de devassa por meio de informática merecer tratamento e análise autónomos, possuindo âmbitos de aplicação distintos.
MM. Novamente, o Recorrente entende que, estando em causa no “Relatório” factos públicos e cujo acesso não se encontrava reservado ao público em geral, não haveria preenchimento do tipo incriminador – interpretação que, igualmente, não encontra qualquer correspondência na letra e espírito da lei e desconsidera a norma constitucional que lhe serve de referente interpretativo (artigo 35.º da Constituição).
NN. Igualmente não procede a restrição defendida pelo Recorrente, limitando a imputação da norma incriminadora ao “proprietário” e excluindo a sua aplicação ao mero possuidor do ficheiro, pois essa interpretação não encontra correspondência na norma, a qual explicitamente tipifica como crime qualquer uma de três condutas possíveis, a criação ou a manutenção ou a utilização de ficheiro automatizado de dados pessoais, e, como já anteriormente referido, o Arguido ora Recorrente manteve e utilizou o “Relatório”.
OO. Ou seja, a propriedade do documento é irrelevante para o preenchimento do tipo objectivo do crime de devassa.
PP. Ainda que assim não fosse, e que o Relatório fosse propriedade da GO... – o que não se provou –, tal apenas reforçaria a intenção de devassa e de utilização por parte do Arguido, já que, como resultou provado, existia um litígio global entre o GI... e a GO... (cf. pontos 109 e 110 da matéria de facto provada).
QQ. Não se compreende como pode o Recorrente afirmar que não resultou demonstrada uma intenção de utilização futura do “Relatório”, quando resultou provado que o mesmo não apagou o documento, antes o enviou por e-mail a PF..., pessoa que tinha por função apurar informação relativa a empresas e pessoas singulares, nomeadamente, e em específico, relativamente à pessoa do Assistente.
RR. Quanto à imputação subjectiva do crime de devassa por meio de informática ao Recorrente, o Assistente concorda, por isso, com o entendimento sufragado pelo Acórdão ora recorrido, no sentido de que o Arguido ora Recorrente actuou com dolo.
SS. O Recorrente conhecia e representou que a conduta descrita, em particular a conservação do ficheiro na sua caixa de correio electrónico, e a respectiva utilização, quando do envio, anexado a um e-mail, a PF..., consubstanciavam um comportamento de manutenção e utilização de um “ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis”, nos termos do artigo 193.º, n.º 1, do CP.
TT. Com efeito, o Recorrente deliberadamente não apagou o ficheiro em causa da sua caixa de correio electrónico, mantendo-o na sua disponibilidade e alcance, tendo conhecimento do seu conteúdo.
UU. Em suma, o Recorrente actuou de forma livre, consciente e deliberada, pelo que agiu com dolo directo, nos termos do artigo 14.º do CP.
VV. Ainda que assim não se entendesse, deve pelo menos entender-se que o Recorrente actuou com dolo eventual, pois teria representado a realização do tipo objectivo de ilícito como consequência possível da sua conduta e ter-se-ia conformado com essa mesma realização.
WW. Finalmente, e ao contrário do entendimento sufragado pelo Recorrente, no caso presente encontram-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.º do CC, bem como a hipótese da norma especial do artigo 484.º também do CC, que tutela ofensas ao crédito e ao bom nome.
XX. A conduta do Arguido ora Recorrente é manifestamente ilícita – ilicitude essa que resulta da prática de um crime, nos termos previamente descritos, bem como da circunstância de os factos que lhe são imputados terem lesado o bom nome e o crédito do Assistente, além de terem também violado o seu direito à autodeterminação informacional.
YY. Também se encontra verificado o pressuposto do dano, como resultou, inclusive, dos depoimentos das testemunhas JD... (cf. acta de audiência de 5 de Novembro de 2015, com a referência n.º 340902794 e início às 10h24m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151105102559_4775332_2871061, registo com início aos 11m30s de gravação, bem como as declarações com registo aos 17 minutos e 43 segundos de gravação e aos 18m05s de gravação), PN... (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151026160331_4775332_ 2871061, registo com início aos 6m38s de gravação, bem como as declarações com registo aos 19m15s de gravação), MB... (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151026150219_4775332_2871061, registo com início aos 4m27s de gravação, bem como as declarações com registo aos 6m54s de gravação e aos 10m32s de gravação), PPB... (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151026151554_4775332_2871061, registo com início aos 13m09s de gravação, bem como as declarações com início aos 33m40s de gravação) e LM... (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, depoimento constante do ficheiro electrónico 20151026162534_4775332_2871061, registo com início aos 10m53s de gravação), assim provando os danos já alegados pelo Assistente, em particular o abalo emocional, transtorno e perturbação psicológica resultantes da tomada de conhecimento de um ficheiro que compilava informação sobre a sua vida pessoal, familiar, social, sexual e política.
ZZ. O Assistente sentiu-se atingido, ofendido e espiado em certos aspectos da sua vida que se afirmam pessoalíssimos e insindicáveis (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, em particular depoimento da testemunha PPB..., constante do ficheiro electrónico 20151026151554_4775332_2871061, registo com início aos 13m09s de gravação).
AAA. Os danos assim sofridos pelo Assistente foram ainda agravados por se tratar de um cidadão publicamente reconhecido, que muito preza a sua imagem e a credibilidade de que beneficia, além de prezar a sua privacidade e o recato da sua vida pessoal – como igualmente resultou provado, em audiência de julgamento (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, em particular depoimento da testemunha MB..., constante do ficheiro electrónico 20151026150219_4775332_2871061, registo com início aos 06m54s de gravação).
BBB. Assim se compreende que os danos sofridos pelo Assistente tenham produzido efeitos que ainda hoje perduram e subsistem (cf. acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, em particular depoimento da testemunha MB..., constante do ficheiro electrónico 20151026150219_ 4775332_2871061, registo com início aos 06m54s de gravação).
CCC. O pressuposto da culpa, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, também se encontra verificado.
DDD. Desde logo, porque também previamente se concluiu pela culpa penal do Recorrente, ao manter e utilizar o denominado “Relatório”, podendo-se afirmar, nos termos da lei civil, que o Recorrente, ao actuar daquele modo, representou o resultado danoso em causa e actuou com clara intenção de o produzir, sabendo que não tinha autorização ou qualquer forma de consentimento da parte do Assistente no sentido da conservação ou utilização do ficheiro em causa.
EEE. Importa, aqui, recordar que o Recorrente é uma pessoa experimentada e informada, tendo já exercido um cargo de relevo profissional, pelo que inequivocamente previu o potencial lesivo da sua conduta e sabia que tal comportamento era proibido e punido por lei (cf. ainda acta de audiência de 26 de Outubro de 2015, com a referência n.º 340520857 e início às 10h14m, em particular depoimento da testemunha PPB..., constante do ficheiro electrónico 20151026151554_4775332_2871061, registo com início aos 13m09s de gravação), pelo que se conclui que o Recorrente actuou com dolo.
FFF. Encontra-se, igualmente, verificado o pressuposto do nexo causal entre o facto lesante e os danos sofridos pelo Assistente, pois a conduta de conservação, mas sobretudo de utilização do referido “Relatório” revela-se, em concreto, condição para a produção dos referidos danos, bem como, em abstracto, não se revelava de todo em todo indiferente para a verificação desses mesmos danos.
GGG. Se não fosse a conduta do Arguido, não teriam sido lesados os direitos ao crédito e ao bom nome e de autodeterminação informacional de que é titular o Assistente, sendo expectável, de acordo com as regras da experiência comum, que o seu comportamento conduzisse à divulgação posterior do “Relatório”, assim originando os danos anteriormente referidos.
HHH. Em suma, no caso presente, encontram-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que, nos termos conjugados dos artigos 483.º e 484.º do CC, o Recorrente é devedor de uma obrigação de indemnizar os danos culposamente causados na esfera jurídica do Assistente, nos termos do Acórdão recorrido.
Termos em que deve o Tribunal ad quem julgar totalmente improcedente o Recurso interposto pelo Arguido MJS..., confirmando, na íntegra, o acórdão proferido pelo Tribunal a quo,
E assim se fazendo JUSTIÇA!
Os recursos foram admitidos.
Neste Tribunal, foi cumprido o disposto no art. 416º do Código de Processo Penal. No seu parecer a Ex.ma Srª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação conclui pela improcedência dos recursos, dizendo:
(…)
4. Do parecer, no tocante à vertente criminal da causa:
4..1 Recurso interposto pelo arguido MJS...
O recorrente impugna matéria de facto fixada, por alegado erro de julgamento, nos termos do art. 412º do CPP. E impugna matéria de direito.
4.1.1. Da impugnação da matéria de facto
Dos factos consubstanciadores de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09
-Acesso à faturação detalhada do jornalista S...
O recorrente MJS... alega:
1- terem em sido incorretamente dados como provados os factos dos artigos 31, 32, 33 e 36 do acórdão, invocando “terem sido indevidamente desconsiderados os depoimentos prestados por testemunhas que individualiza.
2-ter o acórdão recorrido errado ao não considerar que o recorrente agiu segundo o modus operandi dos Serviços, alegando o depoimento das testemunhas PB..., PP..., e HP..., que na opinião do recorrente “demonstraram a inexistência de uma efetiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP”
2.1. ter o tribunal andado menos bem ao não dar a relevância suficiente e necessária ao facto de a carreira profissional do recorrente ter sido toda desenvolvida nos Serviços secretos Portugueses (…) sendo assim natural a sua “formatação” a um quadro mental muito específico.
E conclui, alegando que “Tudo isto, interpretado e conjugado segundo as regras da experiência comum, se não leva à clara conclusão de que o acesso à faturação detalhada fazia parte do modus operandi dos Serviços e que o Recorrente agiu como sempre havia sido ensinado, ao menos, servia para adensar a falta de certezas de certo modo admitida pelo próprio Tribunal a quo, devendo levar, na pior das hipóteses, à aplicação do in dubio pro reo (uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência decorrente do artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP).
E suscita o recorrente, ao abrigo do artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP), da norma que se retira do art. 127.º do CPP, interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido em que a mesma permite ao Tribunal dar como provados factos que contribuem de modo inequívoco para fundamentar a condenação do Arguido, mesmo que o Tribunal reconheça ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos.
Vejamos em detalhe cada uma das questões suscitadas em sede de impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal, por alegado erro de julgamento.
4.1.1Alegação, na conclusão 3. do recurso, “de terem sido incorretamente dados como provados os factos dos artigos 31, 32, 33 e 36 do acórdão, invocando o recorrente “terem sido indevidamente desconsiderados os depoimentos prestados pelo arguido MJS...; pelas testemunhas H..., José Casimira Morgado, FT..., JB..., AF..., LO...
Factos dados como provados em 31, 32, 33 e 36 do acórdão:
31. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que tal acesso, através da arguida GF..., constituía um desvio não permitido pela Lei ao fim a que a base de dados se destinava.
32. E que inexiste base legal que atribua aos Serviços de Informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas.
33. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que lhes era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio.
(…)
36. Pretendendo ambos, com tal conduta, reforçar a esfera pessoal de poder interno do arguido MJS... e quanto a este, identificar e isolar funcionários de que suspeitava como fontes de informação de jornalistas. “
Alega o recorrente que, ao invés, deveria ter-se dado comprovado que
1.«O Arguido MJS... agiu com o intuito de proteger os Serviços Secretos Portugueses contra eventuais “toupeiras” e, por conseguinte, para proteger o Estado português» (facto referido sob a alínea A.) e «O arguido MJS..., quanto ao acesso à faturação detalhada, (…) [agiu] segundo o modus operandi dos serviços secretos para o qual foi formatado durante toda a sua vida profissional» (facto referido sob a alínea B. e que corresponde àquele que consta do elenco dos Factos não Provados, p. 38, com adaptações).”
Cumpre desde já dizer que a impugnação alargada da matéria de facto, por alegado erro de julgamento, tem de cumprir as imposições contidas no art. 412º nº3 e 4 do CPP.
Dispõe o citado artigo no seu nº3:
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4.Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Nos termos da alínea b) do nº3 do art. 412º o recorrente deve especificar “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, situação naturalmente distinta da alegação de “terem sido incorretamente desconsiderados depoimentos (conclusão 3) ou de ”ter o tribunal andado menos bem” (conclusão 6). É que não basta que o recorrente invoque a sua distinta valoração da prova produzida em julgamento, é imprescindível que o recorrente especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
O conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, concatenada com a prova documental existente, foi analisada e valorada pelo tribunal, em fundamentação que se considera ampla e objetiva, de fls. 6470 a 6484 do acórdão, quanto ao segmento do Acesso à faturação detalhada do jornalista S..., consubstanciador do crime de acesso ilegítimo agravado, tendo sido analisados e valorados crítica e objetivamente os depoimentos das testemunhas referenciadas pelo recorrente e bem assim as declarações prestadas pelos arguidos.
Deu o tribunal como provado (factos 10, 12 a 15)
10. Em 7.08.2010, a edição do jornal “Público” incluiu um artigo, subscrito por S..., com os seguintes antetítulo e título, respectivamente:Entrada e nomeação de membros do SIS para o SIED causa perturbações” e “Mudanças de espiões e dirigentes causam mal-estar em serviço das “secretas”.
11. Aí escrevia aquele jornalista, em especial, que: (…)
(….)
12. O artigo tinha um pendor crítico relativamente à orientação e organização dos Serviços, com especial ênfase nas transferências, substituições e nomeações no SIED, tudo matérias para cuja decisão o arguido MJS..., enquanto Director do SIED, contribuíra relevantemente.
13. Por outro lado, o seu conteúdo parecia resultar de um conhecimento transmitido ao jornalista S... por fontes dos Serviços, ao dar nota da existência de um “mal estar” entre os respectivos quadros, em consequência da referida reestruturação.
14. Perante isto, quis o arguido MJS... saber quais os funcionários do Serviço de Informações que poderiam ter sido fonte de informação do dito jornalista.
15. Assim, depois de ter consultado a lista de facturação detalhada dos funcionários do SIED, a que tinha acesso por força do exercício das suas funções, decidiu, em momento exacto não apurado, mas posterior a 7.08.2010 e anterior a 17.08.2010, determinar o arguido MSL..., Director do Departamento de Operações do SIED, que obtivesse os dados de tráfego do número de telefone 935016063, utilizado pelo jornalista S..., para o período de Julho e Agosto daquele ano.
Fundamenta-se designadamente a fls. 6477 do acórdão:
“(…)
“Desde logo, diga-se o que se disser, não estavam manifestamente em causa [no escrito do jornalista] assuntos de independência nacional, necessidades de salvaguarda dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português.
“Várias testemunhas pronunciaram-se sobre a gravidade das fugas de informações nos serviços, da preocupação, mal-estar, ou grande mal-estar que causavam internamente estas notícias, como sublinhou o Secretário-Geral do SIRP e a testemunha JB..., da fragilização dos serviços e do efeito “do pica-pau na arca de Noé”, como referiu a testemunha AF..., mas, na verdade, com maior ou menor ênfase, ninguém foi capaz de dizer que estavam em causa assuntos daquela natureza e gravidade.
“O próprio arguido MJS... admitiu que as fugas de informação dos serviços não são materialmente relevantes para a segurança nacional, embora tenha considerado que abriam uma brecha, que “quem viola por uma coisa viola por todas”, afirmação que, nos poderia conduzir a perigosas e indesejadas “derivas securitárias”.
“Acresce que a decisão não passou, nem podia passar, pelo crivo de uma comissão de controlo. Foi tomada pelo Director e resultou de uma ponderação individual, arbitrária, desnecessária – o arguido por via das suas funções teve acesso à facturação detalhada dos serviços que lhe indicou um suspeito -e totalmente desproporcionada, face aos interesses em causa, escusando-nos de maiores considerações face a tudo o que foi dito sobre os interesses protegidos pelo sigilo das comunicações.
“Dito isto e estando suficientemente claro que, face aos dispositivos constitucionais e legais aplicáveis, jamais os arguidos (todos) – também a arguida GF... estava obrigada a garantir a confidencialidade dos dados do utilizador da operadora para a qual trabalhava - podiam aceder à facturação detalhada do jornalista S..., devassando designadamente as suas fontes, importa agora que nos pronunciemos sobre as restantes questões suscitadas pelos arguidos MJS... e MSL....
Como é óbvio não cabe ao tribunal fiscalizar a actividade dos serviços de informações (….) nem os serviços secretos portugueses “estiveram em juízo” como referiu a defesa do arguido MJS..., mas cabe-lhe, perante tudo o que foi dito pelos arguidos, apreciar a sua responsabilidade e o seu grau de culpa - o facto de, porventura, terem sido exercidas práticas semelhantes, nestes ou noutros contextos, não exclui a responsabilidade dos arguidos pelos actos que praticaram nem os torna lícitos, como também reconheceu a defesa do arguido MJS... - não esquecendo, contudo, que os arguidos MJS... e MSL... – os arguidos que invocaram, em sua defesa, o uso reiterado destas práticas, já que o arguido FLD... disse que nunca lhe tinham feito um pedido destes e que não tinha conhecimento destas práticas - ocupavam lugares de chefia e um deles tinha atingido o topo da estrutura, era o seu Director com competência para, nos termos da lei, garantir o regular funcionamento do serviço, representá-lo, emitir ordens e instruções.“
(sublinhados nossos)
Para além dos excertos da notícia jornalística contidos no ponto 11 dos factos provados no acórdão, para maior esclarecimento e enquadramento, transcreve-se a totalidade da peça jornalística, constante de fls. 94 do Anexo I, a qual despoletou por parte do ora recorrente o acesso ilegítimo à faturação detalhada do jornalista S...:
“Entrada e nomeação de membros do SIS para o SIED causa perturbações
Mudanças de espiões e dirigentes causam mal-estar em serviço das "secretas"
S... - 7 de Agosto de 2010, 9:41  
“É uma história com espiões, mas tem tudo menos o glamour dos livros de Ian Fleming do Agente 007. Pelo contrário. Os serviços de informações portugueses cresceram nos últimos anos. Aproximadamente 20 por cento, entre 2004 e 2009 em número de funcionários, resultado do investimento pós-11 de Setembro. Os quadros e a importância das "secretas" aumentaram. Como aumentou a tensão interna com algumas nomeações, em especial no Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), o serviço "externo", onde voltou um clima de mal-estar.
Por causa da contratação de pessoal, como foi o caso de uma ex-assessora do grupo parlamentar do PS, mas também por algumas escolhas de funcionários do Serviço de Informações e Segurança (SIS) para postos no SIED, dirigido por MJS....
Este clima de descontentamento é admitido por fontes dos serviços, que pedem o anonimato. E que o explicam com as recentes mudanças nas chefias de vários departamentos do SIED, com trocas de pessoal experiente por outro dos próprios serviços. Ou, no caso de "estações" no estrangeiro, por funcionários do SIS. O responsável pelo Departamento Financeiro saiu e foi substituído; o mesmo aconteceu com um dirigente do Departamento A, "operacional". A escolha de responsáveis do SIS para "estações" do SIED no estrangeiro também causou mal-estar, lembrando um ex-responsável que essa opção não era tolerada no final dos anos 90.
Um dos casos mais recentes, e controverso internamente, foi a escolha de um ex-responsável do Departamento África do SIED para subdirector. Dentro do serviço, este é um exemplo do que é considerado de "falta de experiência" por um profissional de intelligence ouvido pelo PÚBLICO.
Dentro e fora da "secreta", há sinais de preocupação. Quer quanto aos custos destas mudanças feitas nos últimos anos e meses - em seis anos, de 2004 a 2009, os serviços terão crescido em mais de 70 novos elementos, correspondente a cerca de 20 por cento relativamente ao quadro de pessoal do SIS, SIED e gabinete do secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) e Estruturas Comuns. Outra das preocupações expressas ao PÚBLICO é o risco de perda de credibilidade externa dos serviços de informações portugueses. Receio esse que é ilustrado pela informação de que a estação em Lisboa de uma "secreta" de um importante país aliado da NATO passar a ficar na dependência de Madrid.
O PÚBLICO enviou, no início da semana, uma série de perguntas ao gabinete do secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), JP..., mas não obteve até ontem qualquer resposta. Igualmente contactado pelo PÚBLICO, o deputado MJ..., que preside ao Conselho de Fiscalização do SIRP, optou por não se pronunciar.”
Sob os títulos “Entrada e Nomeação de membros do SIS para o SIED causa perturbações” e “Mudanças de espiões e dirigentes causam mal estar em serviço das “secretas”, deu o tribunal como provado, no facto 12, que “o artigo tinha um pendor crítico relativamente à orientação e organização dos Serviços, com especial ênfase nas transferências, substituições e nomeações no SIED, tudo matérias para cuja decisão o arguido MJS..., enquanto diretor do SIED, contribuíra relevantemente.”
A questão base que se coloca no âmbito dos presentes autos, no presente segmento de matéria de facto: a notícia publicado pelo Jornal “Público”, subscrito pelo jornalista S..., punha em causa a Segurança interna e/ou externa do Estado português, o interesse nacional, face às competências funcionais atribuídas ao SIED, descritas nos factos provados de 1. a 3. do acórdão ?
Ou tinha, apenas, “um pendor crítico relativamente às transferências, substituições e nomeações no SIED, decididas primacialmente pelo recorrente”, conforme facto provado em 12 do acórdão?
Lida a notícia jornalística em causa, forçoso se afigura concluir, conforme avaliação feita pelo tribunal coletivo, que a mesma não contendia/constituía qualquer ameaça/perigo para a independência nacional, segurança interna ou externa do Estado português. A notícia tinha tão só um pendor crítico, num exercício legal, e desejável num estado de direito democrático, de escrutínio público sobre as opções de gestão do SIED- o aumento da despesa, origem dos quadros dirigentes e mudanças na Direção do SIED, da responsabilidade do ora recorrente MJS....
Cumpre registar, enfaticamente, que o facto provado em 12 do acórdão não foi não foi impugnado expressamente, ou implicitamente, pelo recorrente- a natureza do artigo [do jornalista S...] tinha um pendor crítico relativamente à orientação e organização dos Serviços, com especial ênfase nas transferências, substituições e nomeações no SIED, para cuja decisão contribuir decisivamente o recorrente MJS..., na qualidade de diretor do SIED.
Alega o recorrente, a fls. 6608 da motivação do recurso, que a notícia em causa “era preocupante por deixar transparecer que havia fugas de informações de dentro para fora dos serviços secretos Portugueses, o que alarmou o recorrente, conforme declarou em audiência de julgamento, alegando-se agora no recurso que tal situação “não foi apenas reconhecida pelo recorrente como inquietante".
Permite-se a signatária chamar a atenção para a “suavização” do discurso do ora recorrente: em julgamento afirmou que o acesso à faturação detalhada, naquelas circunstâncias, era adequado e necessário, para agora, no recurso, a apelidar de “inquietante”.
Porém, como se fundamenta no acórdão “o próprio arguido MJS... admitiu em audiência que as fugas de informação dos serviços não são materialmente relevantes para a segurança nacional, embora tenha considerado que abriam uma brecha, que “ quem viola uma coisa viola por todas”.
 Como se fundamenta a fls. 6477, “Várias testemunhas pronunciaram-se sobre a gravidade das fugas de informações nos serviços, da preocupação, mal-estar, ou grande mal-estar que causavam internamente estas notícias, como sublinhou o Secretário-Geral do SIRP e a testemunha JB..., da fragilização dos serviços e do efeito “do pica-pau na arca de Noé”, como referiu a testemunha AF..., mas, na verdade, com maior ou menor ênfase, ninguém foi capaz de dizer que estavam em causa assuntos daquela natureza e gravidade.
(…) diga-se o que se disser, não estavam manifestamente em causa assuntos de independência nacional, necessidades de salvaguarda dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português.
 (…)
Acresce que a decisão não passou, nem podia passar, pelo crivo de uma comissão de controlo. Foi tomada pelo Director e resultou de uma ponderação individual, arbitrária, desnecessária – o arguido por via das suas funções teve acesso à facturação detalhada dos serviços que lhe indicou um suspeito -e totalmente desproporcionada, face aos interesses em causa (…)
(destaques nossos)
Ao ter acedido a dados de tráfego relativos a comunicações eléctronicas ou telefónicas do jornalista S..., o recorrente atuou apenas visando o seu interesse pessoal, de reforço da sua esfera de poder, e nessa estratégia, de identificar e isolar funcionários de que suspeitava como fontes de informação de jornalistas, como é dado como provado no facto 36 do acórdão, e fundamentado, objetivamente, ao longo do acórdão.
Pelo exposto, cumpre concluir que o tribunal ao valorar concatenadamente toda a prova produzida, não incorreu em qualquer erro de julgamento ao dar como provados os factos 31,32,33 e 36 do acórdão, não se vendo que os depoimentos das testemunhas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal, conforme exigência no art. 412º nº3 al. b) do CPP, não se percecionando a existência de qualquer vício de decisão dos previstos no art. 410º nº2 do CPP (aliás, não invocados), encontrando-se o acórdão objetivamente fundamentado quanto à matéria de facto fixada.
V.I.1.2 Na conclusão 4 do recurso alega o recorrente que o tribunal errou ao não considerar que o Recorrente agiu segundo o modus operandi dos Serviços que sempre lhe foi incutido (a propósito do ponto 31, 32 e 33 dos Factos Provados e do facto indicado sob a letra B.).
Alega ainda: “Apontou claramente a parte do Manual de Procedimentos junta aos presentes autos e, mais precisamente, aquilo que se alude na respetiva página 64 – (o livro Os Códigos e as Operações dos Espiões Portugueses, junto aos presentes autos a fls. 5208 e ss. – e, mais precisamente, o referido nas respetivas pp. 34 e s., 40, 73, 151 e ss., 231 e ss., 297 e ss., 328 e 335 e ss. –;
- a mensagem escrita enviada pelo Arguido MSL... para a testemunha CV... em conjugação com o depoimento da testemunha CV... e com aquilo que experiência comum ensina, o depoimento da testemunha JP... conjugado com a existência de clara contradição com o seu depoimento anterior, justamente em momento em que ainda não havia sido revelada qualquer parte do Manual de Procedimentos (…) com o facto de a mesma testemunha, enquanto Secretário-Geral do SIRP, se ter imiscuído, de forma despótica e sem qualquer base legal (!), no processo de levantamento de segredo de Estado e, bem assim, com as regras da experiência comum. “
Se bem percebemos o alegado na conclusão 4 do recurso, conjugado com as conclusões 5, 6, 7 e 8, considera o recorrente ter o tribunal errado ao dar como provados os factos 31, 32 e 33 do acórdão, devendo ao invés ter dado como provado que o “Recorrente agiu segundo o modus operandi dos Serviços que sempre lhe foi incutido, “apontando” as provas nesse sentido na conclusão 4, e ainda, na conclusão 5., os depoimentos das testemunhas PB..., PP..., e HP...”, as quais, na opinião do recorrente “demonstraram a inexistência de uma efetiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP”.
Alega o recorrente, na conclusão 6. “Ter andado menos bem o tribunal ao não dar a relevância suficiente e necessária ao facto de a carreira profissional do recorrente ter sido toda desenvolvida nos Serviços Secretos Portugueses (…) sendo assim natural a sua “formatação” a um quadro mental muito específico.”
E alega que “Tudo isto, interpretado e conjugado segundo as regras da experiência comum, leva à clara conclusão de que o acesso à faturação detalhada fazia parte do modus operandi dos Serviços e que o Recorrente agiu como sempre havia sido ensinado. Ou, ao menos, servia para adensar a falta de certezas de certo modo admitida pelo próprio Tribunal a quo, devendo levar, na pior das hipóteses, à aplicação do in dubio pro reo.
E suscita o recorrente, ao abrigo do artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP), da norma que se retira do art. 127.º do CPP, interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido em que a mesma permite ao Tribunal dar como provados factos que contribuem de modo inequívoco para fundamentar a condenação do Arguido, mesmo que o Tribunal reconheça ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos.
Vejamos de novo em detalhe o alegado pelo recorrente.
Este impugna os factos dados como provados em 31, 32 e 33 do acórdão, e o facto não provado a fls. 38 do acórdão, alegando que ao invés, devia o tribunal ter dado como provado que o “Recorrente agiu segundo o modus operandi dos Serviços que sempre lhe foi incutido, alegando “apontar” nesse sentido os meios de prova que elenca na conclusão 4, e ainda os depoimentos das testemunhas PB..., PP..., e HP...”, as quais, na opinião do recorrente “demonstraram a inexistência de uma efetiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP”.
Dir-se-á de novo, aquilo que se afirmou em V.I.1.1 do presente parecer: A impugnação alargada da matéria de facto, por alegado erro de julgamento, tem de cumprir as imposições contidas no art. 412º nº3 e 4 do CPP, impondo-se ao recorrente que especifique “ Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” e “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - art. 412º nº3 als. a) e b).
Ora o recorrente não alega, muito menos fundamenta, que os depoimentos das testemunhas PB..., PP..., e HP...”, impõem uma decisão diversa daquela que o acórdão proferiu.
O recorrente limita-se a afirmar- numa apreciação assaz subjetiva, diga-se, que os mesmos “demonstraram a inexistência de uma efetiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP.”
Recorde-se o que o tribunal deu como provado nos aludidos factos 31, 32 e 33 :
31. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que tal acesso, através da arguida GF..., constituía um desvio não permitido pela Lei ao fim a que a base de dados se destinava.
32. E que inexiste base legal que atribua aos Serviços de Informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas.
33. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que lhes era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio.
E deu como Não provado, a fls. 6459 do acórdão, que “O arguido MJS..., quanto ao acesso à faturação detalhada, tivesse agido de acordo com orientações superiores, segundo o modus operandi dos serviços secretos portugueses, numa situação que assim o exigia”
Para impugnação de tais factos provados e facto não provado, afigura-se não ter qualquer fundamento alegar que as testemunhas aludidas pelo recorrente “demonstraram a inexistência de uma efetiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP”.
Ora, o acórdão fundamenta, fls. 6480 a 6482:
“Os membros do Conselho de Fiscalização, reportando-se embora a períodos diferentes – a testemunha PP... é membro e presidente do Conselho de Fiscalização desde 2013 e a testemunha PB... foi membro do Conselho entre Dezembro de 2008 e Março de 2013 –, disseram que, para além da situação que deu origem a este processo, e que desencadeou inquirições a todos os elementos do SIED, não tiveram conhecimento de outros casos e não encontraram qualquer fonte que se baseasse em actividade ilegal, nem nos relatórios encontraram quaisquer menções a informações obtidas durante intercepções telefónicas, revelando que nas inspecções que realizaram deram uma especial atenção a esta problemática das facturações detalhadas e intercepções telefónicas.
A testemunha PB..., que pertencia ao Conselho de Fiscalização, quando este era presidido pelo Coronel J..., considerado por várias testemunhas como um presidente pró-activo – ex. testemunha CV... – disse que não viu nenhum relatório sobre a facturação detalhada e que, a ter havido, teria de ser feito fora do sistema, como aconteceu neste caso.
Esta testemunha disse ainda que, na altura em que inquiriram individualmente os elementos do SIED, alguns deles disseram que havia precedentes mas não lhe apresentarem provas, soando-lhe, por isso, a falso.
Estas afirmações da testemunha encontram-se amplamente explanadas no parecer do Conselho de Fiscalização do SIRP, relativo ao ano de 2011 (publicado no DAR, II Série- E, de 2.07.2012).
Nesse parecer diz-se nomeadamente que “ no que se refere à chamada “Lista de Compras” que envolveu o Jornalista S..., não obstante ter sido ordenado pelo Senhor Primeiro-Ministro um novo inquérito, o CFSIRP, atento à gravidade da matéria, assumiu desde logo no quadro das suas competências e referências legais, as iniciativas urgentes e ajustadas ao caso. (Comunicado n.º 2, em Anexo, de 29/8/2011). Assim, o CFSIRP desenvolveu intensa actividade investigatória em momento imediato ao conhecimento da hipótese da existência da referida “Lista de Compras”, e apresentou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias uma análise detalhada das suas diligências e das conclusões a que chegou”.
As testemunhas de acusação e defesa, funcionários e responsáveis do SIED, também negaram a existência destas práticas nos serviços.
Apesar de os arguidos MJS... e MSL... terem desvalorizado o papel do Conselho de Fiscalização, dizendo que raras vezes viram os seus representantes nos serviços, afirmações que, como vimos, não são consensuais, e de terem subestimado os depoimentos que prestaram em julgamento, o certo é que do que foi dito pelos membros do Conselho de Fiscalização e pelos funcionários dos serviços, podemos concluir que o acesso à facturação detalhada teria de ser feito fora do sistema, como aconteceu no caso destes autos e que não era, nem é, uma prática rotineira e habitual dos serviços que, a existir, seria facilmente detectável.
Conclusão que é corroborada pela mensagem enviada pelo arguido MSL... para a testemunha CV... no dia 15.08.2010.
Esta mensagem – MSL... pergunta a CV... “temos o 93” – podendo indiciar ou, pelo menos, não excluir, práticas anteriores semelhantes - e a testemunha CV... admitiu que houve tentativas de organizações congéneres nesse sentido - leva-nos, por outro lado, a concluir que esse procedimento não era tão generalizado, rotineiro, instituído, frequente, como os arguidos afirmaram, pois se assim fosse a pergunta “temos 93” não faria sentido e o recurso à mulher de um funcionário dos serviços a uma “fonte inopinada” também não seria necessário se os serviços tivessem fontes em todas as operadoras.
(sublinhados nossos)
O comunicado a que se alude a fls. 6841 do acórdão reporta-se a Comunicado lido em 30.09.2011, após a audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, assinado por MJ... e PB....
Dele consta designadamente:
“O Conselho de Fiscalização esclarece ainda que, no âmbito da sua missão, procede a inspeções regulares, analisando, por amostragem, milhares de documentos no âmbito da produção de informações. Este Conselho está ciente do facto de poderem existir casos que apenas por denúncia podem ser detetados bem como da impossibilidade de detetar, antecipadamente, fugas de informação e/ou acções desenvolvidas fora do Sistema de Informações (…)
Manual de Procedimentos de Pesquisa de notícias através de Fontes Humanas
Fundamenta o acórdão, a fls. 6482:
“Por fim, contrariamente ao que foi dito pela defesa dos arguidos MJS... e MSL..., não encontrámos na parte do Manual de Procedimentos, que foi revelada e que corresponde integralmente à parte divulgada pela comunicação social - fls. 4095 a 4104 -, uma indicação segura de que essas práticas ilegais eram ensinadas no Manual de Procedimentos.
De facto, o que se diz na pág. 64, sobre os elementos que podem ser obtidos nas operadoras de telecomunicações móveis pode reportar-se aos chamados dados de base, para efeitos de identificação, sem tratamento, não sujeitos ao princípio da confidencialidade e que não atentam contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos visados nessas pesquisas (ou informações).
E, assim, após conjugação de todos os elementos probatórios acabados de analisar, ficámos convencidos que os arguidos MJS... e MSL... apesar de terem consciência de que praticaram actos ilegais e de que levaram outros - arguidos FLD... e GF... - a agir da mesma forma, procuraram banalizar estas práticas dentro dos serviços, e, por essa via, desresponsabilizar-se dos seus actos, como se fossem produto ou vítimas de um sistema quando, na verdade, estes arguidos, e em especial o arguido MJS... podiam e deviam não se conformar com elas, na hipótese de efectivamente existirem.
Ora, não só não se provou a reiteração dessas práticas como, conforme já foi dito, os arguidos, face às responsabilidades que tinham no SIED, não podiam deixar de responder por actos ilegais que praticaram e fomentaram, não se encontrando, por todo o exposto, qualquer circunstância justificativa dessa actuação.”
Cumpre salientar que o acesso “a informação e dados constantes das bases de entidades públicas ou de operadoras de telecomunicações, previstas no site do SIRP ou no Manual de Procedimentos, apenas estão previstas nas situações relevantes para o exercício das suas competências (sic)
O Manual de Procedimentos, numa das partes que foi desclassificada no âmbito dos presentes autos, inclui norma de caracter geral sobre a vinculação à Constituição e à lei.
Conforme resulta do Manual de Procedimentos de Pesquisa de Notícias Através de Fontes Humanas, -mais concretamente fls. 5791 a 5794 dos autos - resulta que os elementos que podem ser obtidos através “Das entidades públicas e/ou prestadoras de serviço ao público”, de entre as quais “Operadores de Telecomunicações Móveis”, reportam-se ao segmento “Recrutamento e Gestão de Fontes Humanas”, “Avaliação base do Alvo” (potenciais Fontes Humanas (FH), as quais, “de forma encoberta podem vir a satisfazer a necessidade de saber”- vide ponto 2.1, a fls. 5791, situação que não estava obviamente em causa no contexto dos factos provados de 9 a 39 do acórdão.
Como refere a Magistrada do MºPº junto do tribunal de 1ª instância, na resposta que apresentou, “A prática, a concreta subordinação à legalidade democrática, é, do ponto de vista operacional, decidida, exactamente, pelos directores dos Serviços, no caso, do SIED.
Registe-se que são os Directores dos Serviços que integram o SIRP que determinam os meios a utilizar em cada concreto caso e definem a cultura operacional de cada Serviço.
Note-se, ainda, que os arguidos MJS... e MSL... não podem refugiar-se no cumprimento de ordens: eles eram os produtores da ordem, aqueles que tinham a capacidade de decidir.
 O facto em apreço nestes autos não respeita, sequer, a uma função, competência, atribuição dos Serviços.
“Afirmam os Recorrentes [MJS... e MSL...] que:  
- o acesso à facturação detalhada pelos Serviços que integram o SIRP é uma prática de rotina,
- que se aprende na formação
-que consta do Manual de Procedimentos;
- que há fontes nas operadoras.
O que se provou, sem lugar a dúvida, foi que:
· o arguido MSL..., Director do Departamento Operacional do SIED, por determinação do Director do SIED, arguido MJS..., perguntou a CV..., seu inferior hierárquico, se “temos alguém na O...”;-
Na ausência de resposta, o arguido MSL... recorreu a um funcionário do SIED, o arguido FLD..., cuja companheira, a arguida GF..., trabalhava na O...;
- os responsáveis pelas práticas operacionais são os Directores do Serviço (SIED) e do Departamento Operacional.
Ou seja, para prática corrente, não parece normal que haja a necessidade de o Director do Departamento Operacional perguntar a um inferior hierárquico se tinham alguém na operadora (uma das 3 maiores operadoras).
E que, na aparente ausência de resposta, tenha recorrido à companheira de um funcionário.
E este é o único caso conhecido, ignorando-se, no rigor das coisas, se houve outros.
De todo o modo, a terem existido outros casos de acesso ilícito a facturação detalhada, sempre tal prática seria da responsabilidade dos arguidos MJS... e MSL..., responsáveis pela operacionalidade na acção do Serviço.”
Admite a signatária que a interpretação conferida no acórdão, a fls. 6482, sobre o conteúdo do Manual de Procedimentos, particularmente a fls. 64 (fls. 5794 do vol 20 dos autos), no sentido da legalidade de acesso do Serviços através das operadoras de telecomunicações móveis, aos dados de base, seja uma interpretação um tanto benévola.
O que, porém, não pode de modo algum questionar-se é que o tribunal tenha ficado com qualquer dúvida sobre a atuação ilegal e dolosa dos arguidos no caso concreto dos autos, de acesso à faturação detalhada do jornalista S..., por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar porque o tribunal deu como provado que a notícia subscrita pelo jornalista, publicada no jornal “Público no dia 07.08.201, não contendia com qualquer assunto de segurança interna ou externa do estado português, de salvaguarda dos interesses nacionais.
Veja-se a fundamentação a fls. 6477 do acórdão:[Na notícia jornalística] “não estavam manifestamente em causa assuntos de independência nacional, necessidade de salvaguarda dos interesses nacionais e da segurança interna do Estado português”
Em segundo lugar porque competia especialmente aos arguidos MJS... e MSL..., enquanto detentores de cargos de chefia do SIED (Diretor do SIED e Diretor do Departamento Operacional do SIED) garantirem o regular funcionamento do Serviço, emitir ordens e instruções, no cumprimento da legalidade.
Veja-se a fundamentação a fls. 6478, 6473, e 6483 do acórdão cujos excertos se transcrevem: “Como é óbvio não cabe ao tribunal fiscalizar a actividade dos serviços de informações (…) mas cabe-lhe, perante tudo o que foi dito pelos arguidos, apreciar a sua responsabilidade e o seu grau de culpa - o facto de, porventura, terem sido exercidas práticas semelhantes, nestes ou noutros contextos, não exclui a responsabilidade dos arguidos pelos actos que praticaram nem os torna lícitos, como também reconheceu a defesa do arguido MJS... - não esquecendo, contudo, que os arguidos MJS... e MSL... – os arguidos que invocaram, em sua defesa, o uso reiterado destas práticas, já que o arguido FLD... disse que nunca lhe tinham feito um pedido destes e que não tinha conhecimento destas práticas - ocupavam lugares de chefia e um deles tinha atingido o topo da estrutura, era o seu Director com competência para, nos termos da lei, garantir o regular funcionamento do serviço, representá-lo, emitir ordens e instruções. “
[A decisão] “Foi tomada pelo Director e resultou de uma ponderação individual, arbitrária, desnecessária – o arguido por via das das suas funções teve acesso à facturação detalhada dos serviços que lhe indicou um suspeito -e totalmente desproporcionada, face aos interesses em causa (…) e totalmente estranha ao funcionamento e objetivos do SIED (fls. 6473)
Perante o exposto, afigura-se descabido, ressalvado o respeito por melhor opinião a invocada arguição de inconstitucionalidade da norma que se retira do art. 127º do CPP, ”interpretada no sentido, dado pelo tribunal a quo, em que a mesma permite ao tribunal dar como provados factos que contribuem de modo inequívoco para fundamentar a condenação do arguido, mesmo que o tribunal reconheça ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos.”
É que, ainda que o tribunal pudesse ter manifestado dúvidas de que práticas ilegais constassem no Manual de Procedimentos, fazendo uma interpretação restritiva sobre os elementos que pudessem ser obtidos nas operadoras de telecomunicações móveis, do que não teve dúvida nenhuma é que tal acesso apenas podia ocorrer estando em causa interesses nacionais, o que, manifestamente, considerou não ser o caso da notícia subscrita pelo jornalista S....
Mas mais, também não teve o tribunal quaisquer dúvidas sobre a ilegalidade e atuação dolosa dos arguidos quanto ao acesso à faturação detalhada do citado jornalista, cabendo justamente ao recorrente MJS..., enquanto Diretor nacional do SIED, emitir ordens e instruções, no cumprimento da legalidade.
Dir-se-á que, na qualidade de Diretor Nacional do SIED, competia especialmente ao recorrente ser o garante da legalidade dos procedimentos do SIED; era o recorrente quem tinha o dever funcional de zelar por que os procedimentos fossem conformes à legalidade, independentemente do que constasse do Manual de Procedimentos; ao Diretor Nacional do SIED caberia alterar ou propor a alteração de procedimentos desconformes à legalidade.
No ponto 30 da motivação alega o recorrente que “ a consideração feita pelo tribunal a quo no facto provado em 36 (pretendendo ambos, com tal conduta, reforçar a esfera pessoal de poder interno do arguido MJS... e quanto a este, identificar e isolar funcionários de que suspeitava como fontes de informação de jornalistas) que não encontra qualquer tipo de justificação na FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO do Acórdão, em termos de prova cabal que o sustente, não podendo deixar de ser considerada, por isso, como não provada.
Ora, contrariamente ao alegado pelo recorrente - quer na motivação, quer nas conclusões do recurso 2 e 3, o tribunal recorrido fundamentou amplamente, a fls. 6477 a 6480, as provas concatenadamente apreciadas que serviram de base á convicção do tribunal, fundamentadas dos factos provados em 36, 29 a 35 do acórdão. Ali se diz:
29. Os arguidos MJS... e MSL... sabiam que o número de telefone 9... era utilizado pelo jornalista S..., sendo que o arguido MJS... pretendia conhecer os destinatários das respectivas comunicações telefónicas.
30. O que conseguiu, determinando o arguido MSL... e este, o arguido FLD... a, nas circunstâncias acima descritas, aceder, através da arguida GF..., à base de dados daquela operadora de telecomunicações em que o número estava activado.
31. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que tal acesso, através da arguida GF..., constituía um desvio não permitido pela Lei ao fim a que a base de dados se destinava.
32. E que inexiste base legal que atribua aos Serviços de Informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas.
33. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que lhes era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio.
34. E que os dados relativos às comunicações telefónicas constituem dados pessoais, relativos à vida privada e, no caso, também, às fontes de um jornalista, estando, todos eles, protegidos por Lei.
35. O arguido MJS... determinou o arguido MSL... e este determinou o arguido FLD..., seu inferior hierárquico, a, nas circunstâncias descritas, proceder conforme descrito, como se tal concreto poder lhes fosse conferido por lei.
36. Pretendendo ambos, com tal conduta, reforçar a esfera pessoal de poder interno do arguido MJS... e quanto a este, identificar e isolar funcionários de que suspeitava como fontes de informação de jornalistas.
E em termos de fundamentação, salienta-se o que consta de fls. 6477 a 6480 do acórdão, já parcialmente transcrito no presente parecer, e cuja integralidade se dá aqui por reproduzida.
Da Violação de Segredo de Estado por transmissão informação secreta
Alega o recorrente MJS... que:
-Inexistindo nos autos e, sobretudo, no elenco dos Factos Provados, um ato formal, prévio, expresso e definitivo de classificação como segredo de Estado,(……) em relação às matérias transmitidas a FS... –, a informação transmitida nunca estaria abrangida pelo segredo de Estado, mas, quanto muito, pelas classificações atribuídas no âmbito do SEGNAC.
-As classificações atribuídas no âmbito do SEGNAC, pouco ou nada relevam para efeitos de classificação como segredo de Estado e, portanto, para efeitos da imputação ao Recorrente do crime de violação de segredo de Estado pelo qual foi condenado.
- No caso em apreço, não pode falar-se de violação de segredo de Estado, nos termos do artigo 316.º, n.º 1 e 3, CP pelo que o Recorrente deve ser absolvido da sua prática. Conclusões 15,16 e 17 do recurso
Ora, na fundamentação do acórdão de fls. 6517 a 6523, cotejando-se o disposto no art. 316º nº1 e 3 do CP, redacção vigente à data da prática dos factos, anterior às alterações pela Lei orgânica 4/2014 de 13.08, e a versão atual, bem assim o disposto no art. 32º da Lei Quadro do SIRP, aprovada pela Lei 30/84 de 05.09, refere-se que “Em qualquer uma das redações do artº 316 do C. Penal não se oferecem dúvidas que o crime de violação do segredo de Estado visa proteger os bens jurídicos do Estado Português, e que esses bens serão a segurança externa (na sua vertente de independência e integridade nacionais) e a segurança interna. “
“É um crime de perigo concreto, ou seja, não se exige um dano efectivo nos bens tutelados, consumando-se com a mera colocação em perigo dos interesses protegidos pela norma.
“Com efeito, “A indiscutível relevância dos bens jurídicos referidos justifica que o espectro da tutela penal não se cinja às condutas que efectivamente lesem o seu núcleo essencial (…) antes se situem num momento anterior à lesão, quer pela criação de delitos de atentado quer, como é o caso vertente, pela construção de crimes de perigo” (Comentário Conimbricense do C. Penal, tomo III, pág. 118).
“O tipo objetivo consistia, e consiste na actual redacção, na transmissão, colocação na disponibilidade de pessoa não autorizada, ou na revelação pública, de documento, plano ou objecto que deva manter-se secreto ou seja sujeito a segredo de Estado, ou classificado como segredo de Estado. “
Fundamenta-se a fls. 6520 do acórdão:
“Transpondo o que se disse para os presentes autos, afigura-se nos inquestionável que, no caso vertente, as informações remetidas pelo arguido MJS... para representantes da GO... no negócio que estava em curso, nas condições descritas, consubstanciam formal e materialmente matérias e conteúdos sujeitos a segredo de Estado e cujo divulgação, fora dos círculo de autorizados, era susceptível de criar um perigo concreto para o Estado Português, para a sua diplomacia e relações internacionais com outros países, neste caso com a Rússia.
(sublinhados nossos)
Mais se dá aqui por reproduzida a fundamentação de fls. 6521 a 6523 do acórdão.
A fundamentação objetiva aduzida no acórdão, contraria, cabalmente, a afirmação do recorrente contida na conclusão 16 do recurso de que “As classificações atribuídas no âmbito do SEGNAC, pouco ou nada relevam para efeitos de classificação como segredo de Estado e, portanto, para efeitos da imputação ao Recorrente do crime de violação de segredo de Estado pelo qual foi condenado.”
Impugna ainda o recorrente os factos provados em 58, 69, 71, 73, 74 e 75 do acórdão, invocando o teor do documento de fls. 1582 e o depoimento de testemunhas que identifica na conclusão 21, pretendendo que “Ao contrário do que foi decido pelo Tribunal a quo, a prova produzida impunha a consideração que FS... era fonte dos Serviços Secretos portugueses e que as comunicações existentes entre si e o Recorrente foram estabelecidas nesse contexto, por se tratar de informação com interesse para o SIED (a propósito do ponto 58 dos Factos Provados e dos factos indicados sob a letra C. e D.).”
De novo pretende o recorrente que a sua muito própria avaliação dos depoimentos e demais prova produzida em julgamento se sobreponha a convicção formada pelo tribunal. O Acórdão encontra-se objetivamente fundamentado quanto à presente matéria de facto- de fls. 6490 a 6491; de fls.6497 a 6501, no âmbito da qual se refuta o teor das declarações prestadas pelo recorrente MSJ... e se avalia crítica e objetivamente a demais prova produzida. Considera-se igualmente encontrar-se o acórdão objetivamente fundamentada quanto à matéria de direito em causa, e não ter ocorrido qualquer erro de julgamento quanto à materialidade fática dada como provada e respetiva subsunção legal ao crime de violação de segredo de Estado p. e p. pelo art. 193º nº1 do CP.
Arguição de inconstitucionalidade
Suscita o recorrente nas conclusões 22 e 23 a questão da inconstitucionalidade da interpretação conferida pelo tribunal ao art. 127º do CPP da seguinte forma: “Mesmo que assim não se entendesse, tendo o Tribunal a quo considerado como relevante para a defesa do Arguido a obtenção de informação sobre a FoP... junto dos Serviços, a ponto de solicitar ao Senhor Primeiro-Ministro a desvinculação do segredo de Estado em relação a tal matéria, por um lado, e ao ter visto esse pedido ser negado, muito pela intervenção indevida do Secretário-Geral do SIRP no processo de desvinculação de segredo de Estado (cf. Resposta do Primeiro-Ministro, a fls. 5784 e ss.), por outro lado, o Tribunal a quo revelou ter dúvidas quanto ao aspeto ora em consideração e, ao decidir, neste ponto, a desfavor do Recorrente, acabou por desrespeitar o princípio do in dubio pro reo (decorrente do artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP).”
Ora, contrariamente ao alegado pelo recorrente, o tribunal não ficou com dúvidas face à não desclassificação do segredo de estado quanto à “FoP... como resulta de fls. 6490/6491 e 6497 a 6503 do acórdão, pelo que é descabida a arguição da alegada inconstitucionalidade, ressalvado o respeito por melhor interpretação:
Transcreve-se, de novo, o excerto constante da fundamentação de fls.6491 do acórdão:
“Certo é que, quanto ao facto de FS... ser alegadamente “fonte” dos serviços de informações, não se fez qualquer prova - o arguido MSL... disse que não conhecia o FS... e tinha informação de que a FoP... era o arguido MJS..., que a terá criado, e para a qual enviava documentos - e a fazer-se seria irrelevante, face ao contexto em que o arguido recebeu o pedido de informações e as enviou, sabendo, é inquestionável, que se destinavam à GO....
(realçado nosso)
Deste modo, a alegada inconstitucionalidade de interpretação do art. 127º do CPP é absolutamente descabida, ressalvado o respeito por melhor opinião.
-Do crime de abuso de poder por se utilizar indevidamente base de dados subscrita pelos serviços
Base de dados da “D...
Alega o recorrente, na conclusão 30 do recurso que “O Acórdão Recorrido não poderia ter dado como provados os factos elencados sob os números 92, 93, 94, 95, e 96 do elenco dos Factos Provados e deveria ter dado como provados os seguintes factos: «A informação retirada da base de dados D... foi transmitida a uma fonte dos Serviços (FS...)» (facto referido sob a alínea I.), «A atuação do Arguido MJS... inseriu-se numa lógica legítima, porque a favor dos Serviços Secretos portugueses» (facto referido sob a alínea J.).
Alega, na conclusão 31.: “O Tribunal a quo errou ao não considerar, pese embora tivesse elementos para tal, que a informação facultada pelo Arguido MSL... ao Recorrente se destinava a FS..., pessoa que era, nem mais nem menos, do que fonte dos Serviços Secretos portugueses (a propósito do facto indicado sob a alínea I.). Com efeito, nesse sentido, para além da prova referida supra no ponto 17) das presentes Conclusões, apontavam, claramente, o email de fls. 280, do Apenso 4 [vol. II], a explicação dada próprio Recorrente (…) e pelo Arguido MSL... [sessão de dia 11.01.2016 (15.ª sessão), registo com início às 00h00min01seg e termo às 03h55min00seg (ficheiro 20160111142157_4775332_2871061), a partir de 53min13seg], as quais, de tão claras e coerentes, se situavam nos antípodas daquela avançada pela testemunha FS... (…)
32.Em todo o caso, e mesmo que assim não se entenda, certo é que, ao ter considerado como relevante para a defesa do Arguido a obtenção de informação sobre da FoP... junto dos Serviços, a ponto de solicitar ao Senhor Primeiro-Ministro a desvinculação do segredo de Estado em relação a tal matéria, por um lado, e ao ter visto esse pedido ser negado, muito pela intervenção indevida do Secretário-Geral do SIRP no processo de desvinculação de segredo de Estado (cf. Resposta do Primeiro-Ministro, a fls. 5784 e ss.), por outro lado, o Tribunal a quo admitiu ter dúvidas quanto à identidade da FoP... e, por isso, quanto ao aspeto ora em consideração e, ao decidir, neste ponto, a desfavor do Recorrente, desrespeitou o princípio do in dubio pro reo (decorrente do artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP).
A prova indicada pelo recorrente na conclusão 31 do recurso, em reforço da sua tese de o tribunal ter errado ao não considerar que FS... era fonte dos Serviços Secretos portugueses, não impõe decisão diversa da proferida pelo tribunal coletivo como impõe a alínea b) do nº3 do art. 214º do CPP, como se passará a expor:
- o ponto 17 das conclusões do recurso, não refere qualquer elemento de prova, mas sim a conclusão 18, a qual, porém, versa sobre matéria distinta - porto de Astakos e empresários russos relacionada com a matéria provada em 58,69, 73 a 75 do acórdão;
-o email junto a fls. 280 Apenso IV, vol II, o qual se afigura ser inócuo no sentido de poder contribuir para a alegada prova de FS... ser fonte dos Serviços Secretos portugueses;
-a explicação dada pelo próprio recorrente, que o mesmo considera de clara e coerente, contrariada pela convicção formada pelo tribunal, como resulta da fundamentação de fls. 6490/6491 e 6497 a 6503 do acórdão;
- declarações do arguido MSL... “na sessão de dia 11.01.2016 (15.ª sessão), ficheiro 20160111142157_4775332_2871061), a partir de 53min13seg”, sendo que o recorrente não procedeu à transcrição de tal segmento de declarações do arguido MSL... nas motivações do recurso, limitando-se a referir a hora de tal segmento de declarações (a partir de 53min13 seg), alegando a fls. 6691 do recurso: ”Em sentido congruente, as declarações do arguido MSL...”.
Note-se, de resto, que a transcrição de declarações deste arguido se mostra efetuada a fls. 6673 da motivação do recurso, na sessão de 11.01.2016, a partir de01h37m57s, mas por referência à matéria de facto alusiva a empresários russos e RINOT, e não à matéria de facto que o recorrente ora pretende impugnar.
Pelo exposto, forçoso se torna concluir não ter o recorrente MJS... dado cumprimento à imposição contida na parte final do nº4 do art. 412º do CPP, não apresentando concretas provas que imponham decisão diversa da proferida, sequer que contribuam para suscitar as dúvidas que pretende deverem ter ficado a pairar no espírito do tribunal coletivo, não tendo ainda dado cumprimento so disposto no nº4 do art. 412º do CPP.
“Relatório sobre PPB...
Impugna o recorrente os factos dados como provados em 120 e 131 do acórdão.
Indica como provas da sua impugnação :
-o depoimento escrito do Assistente/Demandante a fls. 4641 e seguintes, depoimentos das testemunhas JD..., MB... e PN....”
Vejamos os factos provados no acórdão, ora impugnados pelo recorrente:
“120. O arguido agiu de modo livre, consciente e deliberado, bem sabendo que este seu comportamento era proibido e punido por lei.
131. O assistente ficou chocado e perturbado com o teor do “Relatório”, em especial com a parte relativa aos seus filhos e à sua vida intima; “
Ora, ao contrário do alegado, enviesadamente, pelo recorrente, nas conclusões 37 a 42 do recurso, a génese da existência do Relatório em causa encontra-se descrito nos factos provados de 104 a 119 do acórdão, destacando os seguintes factos:
“106. Neste contexto, competia ao arguido MJS... reunir informações de diversa natureza que pudessem ser de utilidade para os interesses estratégicos da GO....
107. Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 9.05.2011, PF..., assumiu o cargo de Director de Auditoria de Sistemas e Tecnologias de Informação do GO..., usando, entre outros, os e-mails “(p...)@gmail.com e (p...)@(...).com.
108. No âmbito dessa relação profissional competia a PF..., sob ordens de MJS..., apurar, designadamente, informações relativamente a empresas e pessoas singulares.
109. Desde 2009/2010, que o GO... pretendia obter uma maior participação no capital social do GI..., proposta que terá sido rejeitada por PPB....
(……)
“112.. No dia 4.09.2011, às 17h. 35m., o arguido MJS... dirigiu e-mail a PF... do seguinte teor “Amigos para além do pedido para vocês fazerem um relatório conjunto sobre a Finertec, pedia-vos que vissem também o que existe em fontes abertas sobre o balsinhas, em particular sobre os empréstimos que tem, que bancos, quando vencem, etc. Interessa a estrutura financeira e económica da empresa. Gostava de, idealmente, ter resultados no final desta semana. Abraço”.
113. Nesse dia, às 21h.17m., PF... respondeu a MJS... da seguinte forma: “Vou ver o que consigo. Abr.”.
114. No dia 17.10.2011, às 10h. 9m., MJS... (usando o endereço (d...)@gmail.com, em seu nome) enviou para PF..., com nota de “Importância: Alta “Anexos: Attachment”, um documento que detinha, elaborado em ficheiro no formato Word, atribuindo-lhe a designação de “relatório”.
115. Tal documento/relatório começa com uma folha de introdução contendo, no centro da página, os únicos dizeres “Até na cama o PPB... é preguiçoso”.
116. Desenrolando-se, nas páginas que compõem tal relatório, a descrição de factos relativos à vida pessoal, familiar, social, sexual, partidária/política de PPB....
117. Contendo: “Factos relevantes – (….)
118. Designadamente (excertos do documento): (……)
119. O arguido MJS... manteve no seu computador (na caixa do correio electrónico) um ficheiro informático, em formato Word, que lhe foi apreendido, contendo o documento supra mencionado, intitulado “Relatório”, com dados relativos à vida de PPB..., designadamente à sua vida e convicções pessoais, familiares, políticas, partidárias e profissionais, com nomes de amigos e inimigos, filhos e bens.”
E fundamenta o tribunal, a fls. 6505/6506 do acórdão:
“A prova documental - apenso B - revelou que o arguido MJS... guardava, ou mantinha, na sua caixa de correio electrónico o denominado “Relatório” e que no dia 17.10.2011, usando o endereço, em seu nome, enviou este “Relatório” para PF..., factos que o arguido admitiu, mas desvalorizou.
(…)
Ficámos ainda convencidos que o arguido MJS..., apesar de ter desvalorizado o texto, de o ter considerado “lixo”, mostrando algum incómodo pelo facto de o relatório ter sido encontrado no seu correio electrónico – (…), à data dos factos quis efectivamente guardar o relatório, estando perfeitamente ciente do seu conteúdo.
A nossa convicção advém das próprias declarações do arguido que, embora dizendo que era um mau texto e que se limitou a deixá-lo na caixa do correio, apenas porque não tinha por hábito apagar os emails da empresa, confirmou que o enviou a PF... para certificar a fidedignidade de alguns factos, mostrando que, afinal, o texto lhe suscitou interesse e curiosidade.
Por outro lado (…) lamentou o facto de ter sido o alvo principal da guerra entre os dois grupos, o que significa que PPB... não lhe era indiferente.
A esta “guerra empresarial” e às circunstâncias e contexto em que surgiu o relatório referiram-se nomeadamente o assistente PPB..., no depoimento prestado por escrito e o seu amigo JD..., conhecedor profundo das razões dos desentendimentos entre o arguido RAV... e o assistente PPB... e entre GO... e a GI....
Resultou destes depoimentos que a “guerra empresarial” entre os Grupos GI... e GO... deu origem a várias acções em tribunal (…)”
Os factos provados, particularmente em 112, 114 e 119 do acórdão não se mostram impugnados pelo recorrente MJS..., nos termos do art. 412º nº3 e 4 do CPP.
Relativamente ao presente segmento do recurso, dão-se por reproduzidos, com a devida vénia, os fundamentos aduzidos na Resposta do Assistente PPB..., junta a fls. 7008 dos autos, em consonância com as posições doutrinárias e jurisprudenciais citadas quer em tal Resposta, quer na fundamentação do acórdão ora sob recurso.
Pelo exposto, pronunciamo-nos pela improcedência global do recurso interposto pelo arguido MJS....
5. Recurso da arguida GF...
A recorrente pugna por prolação de decisão absolutória relativamente aos crimes pelos quais foi condenada: um crime de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelos arts. 44, nº 1 e 2, al. b) da Lei nº 67/98, de 26.10 (na pena de 120 dias de multa) e de um crime de violação de segredo profissional, p. e p. pelo artº 195 do C. Penal, (na pena de 80 dias de multa)
Alega ter atuado em erro sobre as circunstâncias do facto, atuando sem consciência da ilicitude dos seus atos, pois acreditava ser legítima a sua atuação em virtude de ter sido solicitada pelos serviços de Informação, acreditando que estava a ajudar na segurança do estado
Mais alega que sendo tais crimes de natureza dolosa, a sua conduta não ser legalmente punível.
Invoca a recorrente, para sustentar tais alegações, segmentos das declarações que prestou em audiência de julgamento, segmentos esses que, adiante-se desde já, se afigura não terem a virtualidade de imporem decisão diversa da proferida, conforme exigido pela alínea b) do nº3 do art. 412º do CPP.
E faz uma afirmação perfeitamente gratuita, sem qualquer correspondência com o texto do acórdão, numa postura que não poderá deixar de se considerar de má fé.
Na conclusão 10 do recurso afirma: “ De resto, como refere a douta sentença (pág 118) a atuação posterior da arguida, quando tomou consciência da ilicitude dos seus atos, nomeadamente a rescisão do seu contrato de trabalho com a empresa, o desalento e a frustração por ter interrompido uma carreira profissional com grandes prejuízos para a sua vida pessoal e profissional, tendo passado por um período de desestabilização emocional, é bem demostrativo do erro em que estava quando acedeu à faturação”.
(bolt e sublinhado da arguida/recorrente)
Vejamos o que consta da fundamentação do acórdão “a fls. 118”, fls. 6539 dos autos:
“A arguida GF... actuou com culpa muito reduzida. A sua intervenção nos factos deveu-se à relação que tinha com FLD... e à confiança e admiração pelo seu trabalho nos serviços de informações, e pelos próprios serviços.
Em julgamento assumiu, sem rodeios e disfarces, a sua culpa e adoptou uma postura de grande humildade e de sincero arrependimento.
Este comportamento da arguida GF... mostra-se totalmente coerente com tudo o que fez logo que os factos foram tornados públicos.
Sem hesitações, rescindiu o seu contrato com a empresa, deixando de ter direito ao subsídio de desemprego.
No julgamento foi notório o seu desalento e frustração por ter interrompido uma carreira profissional ascendente e gratificante.
Os factos aqui em causa causaram grandes prejuízos para a sua vida pessoal e profissional, tendo ficado durante vários anos sem trabalho.
Refere-se no relatório social que a arguida, não obstante ter atravessado um período de desestabilização emocional, reagiu aumentando as suas qualificações académicas com a licenciatura e reingressando no mercado de trabalho, tendo contado com o apoio incondicional da família (pais, companheiro) e dos amigos.
Justifica-se, neste caso, grande benevolência.
As exigências de prevenção especial apresentam uma intensidade muito reduzida.
E, assim, não menosprezando a gravidade dos factos praticados pela arguida GF..., afigura-se-nos que as exigências de punição se satisfazem plenamente com a aplicação de uma pena de multa.
A taxa diária da pena de multa terá em conta a situação financeira algo debilitada da arguida e do seu agregado familiar que vive quase exclusivamente da remuneração auferida pelo arguido FLD..., tendo ambos dois filhos menores a seu cargo. “
Os factos dados comprovados relativamente à arguida GF... encontram-se descritos nos factos 15 a 22, 38 e 39 do acórdão, os quais aqui se dão por reproduzidos.
A fundamentação ocorre designadamente a fls. 6471, 6472 e a fls. 6483, do que se destaca:
“A arguida GF... confessou, com grande humildade, que tinha consciência de que não podia praticar aqueles actos e que cedeu ao pedido do companheiro. Não revelou, nem sequer alegou, falta de consciência da ilicitude da sua conduta.
Esta afirmação da arguida GF... coincidiu com o que tinha sido dito pela testemunha RPC....
Acrescentou que sabia que, no âmbito das suas funções, não podia fazer esses acessos porque o pedido não era feito pelos canais oficiais mas confiava no companheiro (arguido FLD...) e que nunca lhe tinha sido feito um pedido desta natureza.
Disse, por fim, que dada a urgência com que o pedido lhe foi feito não ponderou muito, “ponderou que seria uma necessidade maior”.
E fundamentação fls. 6483
A arguida GF... confessou, com grande humildade, que tinha consciência de que não podia praticar aqueles actos e que cedeu ao pedido do companheiro. Não revelou, nem sequer alegou, falta de consciência da ilicitude da sua conduta.
Conforme se pode verificar, as alegações/versão ora apresentadas pela recorrente não têm correspondência com o afirmado durante o julgamento, postura que levou o tribunal coletivo a condená-la numa pena assaz condescendente, sendo que os segmentos transcritos das declarações que proferiu em julgamento, ponderada a globalidade do mesmo, não têm a virtualidade de impor decisão diversa da proferida pelo tribunal coletivo.
 Muito menos a firmação contida na conclusão 10 do recurso, a qual não tem qualquer correspondência com o texto do acórdão, designadamente a fls. 118 do mesmo (fls. 6539 dos autos), como pretenderia a recorrente fazer crer.
Pelo exposto, deverá o recurso da arguida ser considerado improcedente.
6. Recurso do arguido FLD...
O recorrente FLD... pugna por decisão de absolvição relativamente aos crimes por que foi condenado: em co-autoria com os arguidos MJS... e MSL..., e um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime), tendo sido condenado na pena de 1 ano de prisão, a qual foi substituída por 250 dias de multa à taxa diária de 6 €, o que perfaz a multa de 1.500€.
Resulta da fundamentação do acórdão, a fls. 6472: “ O que disseram os arguidos: “O arguido FLD... disse que o pedido lhe foi feito pelo arguido MSL..., não sabia que se tratava da facturação de um jornalista, que nunca lhe tinham feito um pedido destes, sempre confiou nas ordens que lhe eram dadas, foi instruído para cumprir ordens, tinha grande admiração pelos arguidos MJS... e MSL...”.
Os factos relevantes dados como provados relativamente á atuação do recorrente FLD... encontram-se em 16 a 24, 26,27, 30 a 37 do acórdão, dos quais destacaremos os factos facto 22 a 24 do acórdão:
“22. Na posse do ficheiro de Excel, obtido e transmitido, pelo modo descrito, pela arguida GF..., o arguido FLD..., em 17.8.2010, trabalhou esse ficheiro no domínio que lhe estava destinado como UTIL25O, atribuindo-lhe a designação de “Book7.xls”, completando-o, por determinação do arguido MSL..., com referências identificadoras dos destinatários das chamadas realizadas por S....
23. E, em 18.08.2010, no seu domínio de trabalho na Rede Externa do SIED, acessível através do user UTIL25O que lhe fora distribuído, trabalhou os respectivos dados, em ficheiro no formato Word, atribuindo-lhe a designação de “Lista de compras.doc”.
24. O arguido FLD... entregou o ficheiro em Excel, designado “book7.xls”, ao arguido MSL... que, por sua vez, no mesmo dia, o transmitiu ao arguido MJS....”
Como se fundamenta a fls. 6471 do acórdão: “A prova documental mostrou também que o ficheiro Excel foi tratado no computador de FLD..., na chamada rede externa do SIED, ao contrário do que era habitual nos serviços (depoimento da testemunha LO...).
Por fim, também resultou claro, da prova documental, que esse ficheiro, ao qual o arguido FLD... atribuiu a designação de “lista de compras”, foi enviado pelo arguido MSL... para o arguido MJS..., com a designação de “book7.xls”, e que essa lista continha anotações com a identificação de alguns dos destinatários das comunicações efectuadas pelo jornalista S... (apenso 15, fls. 4 a 8).
(sublinhado nosso)
Em face de tal prova documental, Apenso 15, fls. 4 a 8, as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, no que tange à existência de faturação detalhada, ficam fortemente abaladas.
Fundamenta-se ainda a fls. 6483 do acórdão:
“O arguido FLD... também admitiu os factos mas escudou-se nas ordens recebidas dos superiores, que respeitava e admirava, e na sua educação “militar”, pautada pela disciplina e o respeito pelas ordens dos superiores hierárquicos.
O arguido FLD... ingressou nos serviços de informações em 2004, isto é, à data dos factos era funcionário dos serviços há seis anos, é descrito como um profissional muito competente e dedicado e, nessa qualidade, não devia ignorar o modo de actuação dos serviços e os seus limites – estão referidos nos sites próprios, no manual, parte dos deveres profissionais (…)
Por outro lado, o modo informal como o procedimento foi levado a cabo, fora dos canais dos serviços de informações e com recurso à sua companheira que não tinha qualquer ligação aos serviços – não é por acaso que as normas de recrutamento de fontes humanas para os serviços de informações são muito exigentes e obedecem a critérios de selecção rigorosos, havendo que acautelar a segurança do serviço e a confidencialidade dos seus actos e procedimentos – e fora do sistema do SIED, reforçam a convicção de que o arguido tinha consciência que estava a actuar fora dos limites e que estava a praticar uma conduta ilícita.
Por tais razões ficámos igualmente convencidas que o arguido FLD... tinha consciência da ilicitude da sua conduta.
Claro que, nesta actuação em cadeia, as responsabilidades e a culpa deste arguido são muito inferiores às responsabilidades do arguido MSL... e mais ainda do arguido MJS..., questão que será devidamente ponderada na determinação da pena concreta”, tendo o tribunal considerado que “as exigências de prevenção especial apresentam, neste caso, uma intensidade muito reduzida.”
(realce nosso)
Daí que a sua condenação pela prática, em co-autoria, de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09, o tenha sido em pena de 1 ano de prisão, a qual foi substituída por multa, afigurando-se não padecer o acórdão de erro de direito (nem de facto) na imputação dos factos provados ao tipo legal de crime pelo qual o recorrente veio a ser condenado, na forma de co-autoria, pronunciando-nos pela improcedência do recurso interposto pelo arguido FLD....
7. Do recurso interposto pelo arguido MSL...
O recorrente MSL... alega dever ser absolvido da condenação penal e também da condenação solidária no pedido de indemnização civil.
O mesmo foi condenado pela prática dos seguintes crimes:
- em co-autoria com os arguidos MJS... e FLD..., um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão
- e um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;
- em autoria material, um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, na pena de seis meses de prisão;
Em cúmulo jurídico o arguido MSL... foi condenado na pena de 2 Anos de prisão, suspensa na sua execução com condições.
Nas suas extensas e repetitivas conclusões, o recorrente MSL... alega, em síntese:
“O arguido necessitou de demonstrar a sua inocência constrangido na revelação da verdade, pois, na maioria das situações, aquela estava e está coberta pelo Segredo de Estado, que se destina a proteger os direitos colectivos à independência e interesses nacionais e à unidade e integridade do Estado bem como à garantia da segurança interna e externa, que os SIRP têm por missão assegurar, de acordo com o nº 2, do artº 2º da Lei nº 30/84, de 5 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei Orgânica nº 4/2014, de 13 de Agosto.
“ As garantias constitucionais de defesa do arguido tiveram in casu que ceder perante os referidos direitos colectivos, também constitucionalmente consagrados, assim, verificou-se a violação dos direitos fundamentais do arguido ínsitos nos artºs 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa,
(conclusões E e F)
V - Nestes autos a solução do tribunal foi a de que, na dúvida, condena-se o arguido. É precisamente contra essa circunstância que o arguido se insurge e é essa a razão primeira deste recurso, pois, tal actuação do tribunal é absolutamente injusta e violadora dos mais elementares direitos do arguido a uma defesa plena contidos no artº 32º, nº 1, da CRP e da presunção de inocência de que beneficia por força do nº2, do citado artº 32º da CRP.”
Relativamente às questões suscitadas relacionadas com o segredo de Estado, não particularizando o recorrente MSL... em que concreta situação a manutenção do segredo de estado prejudicou o seu direito de defesa, dão-se aqui por reproduzidos os fundamentos constantes do acórdão aduzidos a fls. 6466 a 6470, onde se afirma designadamente:
“Salvo melhor opinião, afigura-se-nos que globalmente os direitos de defesa dos arguidos não foram prejudicados com a metodologia seguida e que, no julgamento, todos puderam defender-se sem grandes constrangimentos, tanto mais que, como se veio a constatar, uma parte considerável das matérias já não estava protegida pelo segredo de Estado, por força de desclassificações feitas na fase de inquérito, e outra não tinha qualquer relação, directa ou indirecta, com o objecto do processo.
Por isso foi fácil, no final, individualizar e identificar as matérias que podiam ser relevantes para a defesa dos arguidos.
Essa individualização teve em conta, não só as declarações prestadas pelos arguidos como toda a prova produzida em julgamento, resultando já da conjugação de vários elementos probatórios, a desnecessidade de comunicar matérias que, em face da prova produzida, se tinham mostrado irrelevantes para a descoberta da verdade e para o objecto do processo.
As respostas do Primeiro-Ministro ainda que insuficientes - essa insuficiência terá obviamente consequências como se verá na motivação da matéria de facto que se segue - por não terem abrangido todas as matérias comunicadas, permitiram ainda assim, revelar, para além da carta de exoneração apresentada pelo arguido MJS... ao Secretário-Geral do SIRP, um extracto do Manual de Procedimentos que tinha suscitado grande controvérsia ao longo do julgamento e ao qual nos referiremos mais à frente.
Por clareza de exposição, faremos uma apreciação crítica e conjugada dos vários meios de prova, seguindo a metodologia da acusação/pronúncia.“
Saliente-se, de resto ter o tribunal dado como não provado, perante a prova inconclusiva, incluindo resposta do Primeiro- Ministro dizendo não terem sido encontradas nos serviços quaisquer informações internas ou relatórios, o ponto 78 do despacho de pronúncia, relacionado com o porto de Astakos (fls. 6497 do acórdão); face a respostas de testemunhas, evasivas e invocando segredo de Estado, e à resposta inconclusiva do Primeiro -Ministro quanto à comunicação que lhe foi feita - fls. 5977/8 e 6028, foram dados como não provados os factos incriminadores dos arguidos quanto a matéria relacionada com Aviões da Líbia em Alverca (fls. 6504 do acórdão)
Alega ainda o recorrente que:
“ Quanto ao acesso à facturação detalhada do jornalista, assistente, S... foram incorrectamente julgados como provados os pontos 31; 32; 33; 35 e 36. (conclusão AI)
E que deveriam ao invés ter sido julgados como provados os seguintes factos:
A - O Arguido MSL... recebeu ordens do arguido MJS... seu superior hierárquico
B - O arguido MSL..., endossou a FLD... a ordem recebida de MJS... para que se obtivesse a facturação detalhada do telefone 905016063, pois, estavam em causa interesses do SIRP e essa era uma actividade normal que cabia no modus operandi dos serviços secretos portugueses, que bem conhecia e que, aliás, constava do Manual de Procedimentos do SIS em uso, quer na formação quer na prática diária do departamento operacional dos serviços, que tinham fontes humanas nas operadoras de telecomunicações.
AM - Aquele trecho do Manual de Procedimentos do SIS indicia fortemente que a hipótese de recurso às operadoras de telecomunicações móveis era considerada na normal actividade de recolha de informações pelos serviços do SIRP. Contudo, o Tribunal a quo refere que «não encontrámos na parte do Manual de Procedimentos, que foi revelada (…) indicação segura de que essas práticas ilegais eram ensinadas». Neste ponto concreto é manifesto o erro do julgamento a quo.
AN - Ao Tribunal a quo deveria ter-se colocado a forte probabilidade de que o recorrente agiu de acordo com o “modus operandi” dos serviços secretos, pois tal hipótese tinha pleno cabimento e acolhimento através do apontado meio de prova, de primordial importância, de que o Tribunal só pôde conhecer uma parte ínfima, circunstância essa que já de si também permite estabelecer, com toda a certeza, que estarmos perante mais uma grande dúvida: o que mais virá plasmado no Manual? “
As provas que no entender do recorrente “deveriam ter levado o tribunal a extrair conclusão inversa da constante dos factos provados são:
· as declarações dos arguidos MJS... e MSL...
· o Manual dos procedimentos
· declarações da testemunha JP...
· texto do arguido MSL... para a testemunha CV...
· o segmento do Decreto da assembleia da república nº 426/XII “que instituía a permissão legal de aceder a dados de tráfego ou outros dados conexos das comunicações.
Damos aqui por reproduzida a fundamentação aduzida neste parecer quanto ao recurso interposto pelo arguido MJS..., salientando não ter o recorrente MSL... transcrito quaisquer segmentos do depoimento prestado em audiência pela testemunha JP..., não cumprindo as imposições fixadas no art. 412º nº3 e 4 do CPP, ao pretender proceder à impugnação alargada da matéria de facto fixada pelo tribunal, conforme fundamentação na parte final do Acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 (DR 77 SÉRIE I de 2012-04-18): “Por tudo o que ficou exposto, afigura -se -nos que, em casos como o presente, a norma do n.º 4 do artigo 412.º do CPP deve ser interpretada no sentido de as especificações constantes das alíneas b) e c) do n.º 3 se mostrarem cumpridas, caso o recorrente transcreva as concretas passagens em que funda a impugnação da matéria de facto”.
Apenas uma nota quanto ao alegado no segmento do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII “que instituía a permissão legal de aceder a dados de tráfego ou outros dados conexos das comunicações”.
Como lucidamente se fundamenta a fls. 6473 do acórdão:
Resulta da Lei Quadro do SIRP – Lei nº 30/84, de 5 de Set. – e da Lei Orgânica do Secretário-Geral do SIRP, do  e do SIS que os serviços de informações estão vinculados à Constituição e à Lei e que o Secretário-Geral, os membros do seu gabinete e os funcionários e agentes do  e do SIS não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais (respectivamente arts. 2º e 4º e artº 6/2/3 da Lei Orgânica).
Daqui decorre que a actividade dos serviços de informações está sujeita ao escrupuloso respeito pela Constituição e pela lei, designadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias (ainda artº 3º/1 da Lei Quadro e artº 6º/1 da Lei Orgânica).
Nestes autos está em causa o acesso, por funcionários dos serviços de informações, à facturação detalhada de um jornalista.
(…)
Dito isto, convém sublinhar que, aquela norma, declarada inconstitucional, não ia tão longe quanto foram os arguidos neste processo, por duas razões essenciais:
• só admitia o acesso a tais dados - dados conservados pelas operadoras de telecomunicações - quando, e apenas quando, estivessem em causa actividades de recolha, processamento, exploração e difusão de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português (no exclusivo âmbito do disposto no nº 2, do artº 78 do Decreto nº 426/XII);
• fazia depender o acesso a esses dados de uma autorização prévia e obrigatória, de uma “Comissão de Controlo Prévio”, constituída por três magistrados judiciais, designados pelo Conselho Superior de Magistratura, de entre Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com, pelo menos, três anos de serviço nessa qualidade; Invocavam-se, aliás, na exposição de motivos, que acompanhava a proposta de lei que deu origem ao Decreto supramencionado, estratégias nacionais de combate ao terrorismo e novos desafios colocados pelas novas ameaças à segurança nacional que impunham o acesso a meios operacionais consagrados pela primeira vez, de modo transparente e expresso, na lei positiva.
Neste contexto os deputados aprovaram uma lei que, não fosse a declaração de inconstitucionalidade, permitiria aos serviços de informações que, no futuro, nas condições referidas, pudessem aceder à facturação detalhada.
Ora, não se vê qualquer semelhança, ou aproximação, entre o que foi aprovado na Assembleia da República e, como vimos, rejeitado pelo Tribunal Constitucional, e o que fizeram os arguidos, por ordem do arguido MJS....
Desde logo porque, diga-se o que se disser, não estavam manifestamente em causa assuntos de independência nacional, necessidades de salvaguarda dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português.
Várias testemunhas pronunciaram-se sobre a gravidade das fugas de informações nos serviços, da preocupação, mal-estar, ou grande mal-estar que causavam internamente estas notícias, como sublinhou o Secretário-Geral do SIRP e a testemunha JB..., da fragilização dos serviços e do efeito “do pica-pau na arca de Noé”, como referiu a testemunha AF..., mas, na verdade, com maior ou menor ênfase, ninguém foi capaz de dizer que estavam em causa assuntos daquela natureza e gravidade.
O próprio arguido MJS... admitiu que as fugas de informação dos serviços não são materialmente relevantes para a segurança nacional, embora tenha considerado que abriam uma brecha, que “quem viola por uma coisa viola por todas”, afirmação que, nos poderia conduzir a perigosas e indesejadas “derivas securitárias”.
Acresce que a decisão não passou, nem podia passar, pelo crivo de uma comissão de controlo. Foi tomada pelo Director e resultou de uma ponderação individual, arbitrária, desnecessária – o arguido por via das suas funções teve acesso à facturação detalhada dos serviços que lhe indicou um suspeito -e totalmente desproporcionada, face aos interesses em causa, escusando-nos de maiores considerações face a tudo o que foi dito sobre os interesses protegidos pelo sigilo das comunicações.
Dito isto e estando suficientemente claro que, face aos dispositivos constitucionais e legais aplicáveis, jamais os arguidos (todos) – também a arguida GF... estava obrigada a garantir a confidencialidade dos dados do utilizador da operadora para a qual trabalhava - podiam aceder à facturação detalhada do jornalista S..., devassando designadamente as suas fontes, importa agora que nos pronunciemos sobre as restantes questões suscitadas pelos arguidos MJS... e MSL.... “
Conforme factos dados como provados em 1 e 2 do acórdão “ Compete ao SIRP e ao SIED assegurar, no respeito da Constituição da República Portuguesa e da lei, a produção de informações necessárias/que contribuam para a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português.
Ora, conforme facto provado em 12 do acórdão- não impugnado pelos recorrentes MJS... e MSL..., nos termos do art. 412º np3 e 4 do CPP;- “o artigo [do jornalista S..., publicado no jornal Público de 07.08.2010], “tinha um pendor crítico relativamente à orientação e organização dos Serviços, com especial ênfase para nas transferências, substituições e nomeação do SIED, tudo matérias para cuja decisão o arguido MJS..., enquanto diretor do SIED, contribuir relevantemente.”
O artigo jornalístico, em causa não constituía /não contendia com qualquer ameaça/perigo para independência nacional, interesses nacionais, segurança interna ou/e externa do Estado Português.
O artigo jornalístico em causa não revelava, sequer, qualquer segredo sobre a organização do SIED - tinha pendor crítico, num exercício legal de escrutínio público sobre opções de gestão do SIED - o aumento da despesa, origem dos quadros dirigentes e mudanças na Direção do SIED.
O acesso “a informação e dados constantes das bases de entidades públicas ou de operadoras de telecomunicações, previstas no site do SIRP ou no Manual de procedimentos, apenas estão previstas nas situações relevantes para o exercício das competências funcionais/materiais do SIRP/SIED,
O Manual de Procedimentos, numa das partes que foi desclassificada no âmbito dos autos, inclui norma de caracter geral sobre a vinculação à Constituição e à lei.
Como refere o MP em 1ª instância, “A prática, a concreta subordinação à legalidade democrática, é, do ponto de vista operacional, decidida, exactamente, pelos directores dos Serviços, no caso, do SIED.
Registe-se que são os Directores dos Serviços que integram o SIRP que determinam os meios a utilizar em cada concreto caso e definem a cultura operacional de cada Serviço.
Note-se, ainda, que os arguidos MJS... e MSL... não podem refugiar-se no cumprimento de ordens: eles eram os produtores da ordem, aqueles que tinham a capacidade de decidir.
O facto em apreço nestes autos não respeita, sequer, a uma função, competência, atribuição dos Serviços.”
Afirmam os Recorrentes [MJS... e MSL...] que:
- o acesso à facturação detalhada pelos Serviços que integram o SIRP é uma prática de rotina,
- que se aprende na formação
- que consta do Manual de Procedimentos;
- que há fontes nas operadoras.
O que se provou, sem lugar a dúvida, foi que:
• o arguido MSL..., Director do Departamento Operacional do SIED, por determinação do Director do SIED, arguido MJS..., perguntou a CV..., seu inferior hierárquico, se “temos alguém na O...”;
• - na ausência de resposta, o arguido MSL... recorreu a um funcionário do SIED, o arguido FLD..., cuja companheira, a arguida GF..., trabalhava na O...;
• os responsáveis pelas práticas operacionais são os Directores do Serviço (SIED) e do Departamento Operacional.
Ou seja, para prática corrente, não parece normal que haja a necessidade de o Director do Departamento Operacional perguntar a um inferior hierárquico se tinham alguém na operadora (uma das 3 maiores operadoras).
E que, na aparente ausência de resposta, tenha recorrido à companheira de um funcionário.
E este é o único caso conhecido, ignorando-se, no rigor das coisas, se houve outros.
De todo o modo, a terem existido outros casos de acesso ilícito a facturação detalhada, sempre tal prática seria da responsabilidade dos arguidos MJS... e MSL..., responsáveis pela operacionalidade na acção do Serviço.”
Alega ainda o recorrente MSL... ter ocorrido “erro na apreciação da prova quanto ao acesso à base de dados D...”
Alega encontrarem-se erradamente julgados os factos [provados] 91, 92 e 93 (conclusão BO do recurso).
O recorrente, ao invés de dar cumprimento às exigências contidas no art. 412º nº3 e 4 do CPP, indicando as concretas provas que imporiam decisão diversa da proferida pelo tribunal, e de transcrever as concretas passagens em que funda a impugnação, seja na motivação do recurso, seja nas respetivas conclusões, limita-se a alegar “que os factos 91, 92 e 93 limitaram-se a acolher as alegações e conjecturas da acusação, sem que as mesmas tenham sido cabalmente provadas, através de meio próprio, que seria a prova documental e não as especulações testemunhais de quem mostrou não ser merecedor de crédito no seu depoimento, pelo despeito e ódio pessoal ao arguido recorrente MSL... que não logrou esconder” (conclusão BO)
O recorrente não deu cumprimento aos citados dispositivos legais para impugnação alargada da matéria de facto- art. 412º nº3 e 4 do CPP, não podendo a signatária deixar de salientar ter o próprio recorrente MSL... afirmado em audiência de julgamento, que “ não conhecia o FS... e que tinha informação de que a FoP... era o arguido MJS..., que a terá criado, e para a qual enviava documentos”.
Ainda assim, aqui se dão por reproduzidos os fundamentos expendidos no presente parecer sobre tal segmento do recurso do arguido MJS..., salientando-se tão só as considerações tecidas sobre a não desclassificação do segredo de Estado quanto à “FoP...”.
Alega o recorrente a fls. 6793 da motivação do recurso, e na parte final da conclusão BH, que “Perante a impossibilidade de defesa, teria o tribunal que acolher a existência de nova dúvida favorável ao recorrente (…) absolvendo o arguido pela aplicação do elementar princípio do in dúbio pro reo”.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente MSL... (e também por MJS...), o tribunal não ficou com dúvidas face à não desclassificação do segredo de Estado quanto à “FoP...”, como resulta da fundamentação do acórdão de fls. 6490/6491 e 6497 a 6503, que a qui se dá por reproduzida, transcrevendo-se o excerto constante de fls. 6490/6491:
“O arguido justificou-se, sustentando que FS..., para quem enviou a informação, era fonte dos serviços de informações e que lhe deu essa informação para receber outras em troca, desconhecendo que se destinava à GO... e que FS..., sua “fonte” “devidamente registada nos serviços” – seria a FoP... -, trabalhava para a GO... e representava o Grupo em qualquer negociação relacionada com os empresários russos.
Esta afirmação do arguido, não nos mereceu crédito, por várias razões:
- não só porque FS... e o arguido se conheciam há muito tempo, pertenciam à mesma loja da maçonaria, eram ambos amigos do arguido RAV..., que também pertencia à maçonaria e que disse que o FS... era funcionário da GO... há cerca de dois anos, reportando-se à data do negócio de Astakos;
- sendo FS... “sua fonte” não era credível, que o arguido MJS..., que foi descrito por todos como organizado, bem informado, muito competente, bom estratega, atributos que são, aliás, inerentes às funções que exercia e aos quais podemos acrescentar a curiosidade e o interesse que estão igualmente associados àquelas funções, não soubesse que FS... trabalhava na GO....
- aliás, de acordo com o “Manual de Procedimentos” – extracto desclassificado na sequência do pedido de levantamento do segredo de Estado apresentado pelo Tribunal – o recrutamento do alvo (potencial fonte humana) passa pelo conhecimento de um vasto conjunto de informações sobre esse alvo, de cariz pessoal, psicológico e profissional, mencionando-se expressamente, aquilo que nos parecia já uma evidência, os “dados profissionais”, o “local de trabalho”, “horários e suas actividades (fls. 64 do Manual de Procedimentos).
Esta afirmação foi ainda desmentida pela testemunha FS... que, não só negou que fosse fonte dos serviços como disse que o arguido sabia que ele trabalhava na GO... e nas lojas em que se encontrava, conhecia-o a ele e ao RAV... e “sabia que ele trabalhava para o RAV...”.
Fique, porém, claro que a falta de credibilidade das afirmações do arguido MJS... resulta essencialmente do facto de tais afirmações chocarem flagrantemente com as regras da experiência, pelas razões já expostas, e não tanto do desmentido da testemunha FS... cujo depoimento, em matéria de credibilidade, nos mereceu algumas reservas e dúvidas.
Certo é que, quanto ao facto de FS... ser alegadamente “fonte” dos serviços de informações, não se fez qualquer prova – o arguido MSL... disse que não conhecia o FS... e que tinha informação de que a FoP... era o arguido MJS..., que a terá criado, e para a qual enviava documentos - e, a fazer-se, seria irrelevante, face ao contexto em que o arguido recebeu o pedido de informações e as enviou, sabendo, é inquestionável, que se destinavam à GO....
Por tudo o exposto, considerando, como já assinalado, encontrar-se o acórdão objetivamente fundamentado, quer quanto a matéria de facto, quer de direito, não se vendo que tenha ocorrido qualquer erro de julgamento, nem padecendo o acórdão de qualquer dos vícios de decisão previstos no nº2 do art. 410º do CPP, afigurando-se ajustadas as medida de pena aplicadas a cada um dos arguidos/recorrentes, pronunciamo-nos pela improcedência global de cada um dos recursos interpostos e, subsequentemente, pela manutenção do acórdão condenatório proferido.
O assistente RAV... AL... aproveitou a oportunidade de exercício do direito de resposta ao parecer para tomar posição na instância recursiva, dizendo:
O assistente, subscreve, integralmente o teor do parecer do MP a que ora se responde, ao qual lhe apraz, apenas, acrescentar o seguinte:
A tese dos arguidos - de que ao acederem aos metadados do telefone utilizado pelo assistente S... - agiram de acordo com os procedimentos habituais dos serviços, ainda que resultasse provada (no que não se prescinde) também de forma alguma lhes aproveitaria.
Efectivamente, os serviços secretos portugueses têm o seu quadro legal de actuação solidificado pela Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa, aprovada pela Lei no 30/84, de 5/09 e na Lei Orgânica do SIRP, aprovada pela Lei no 9/2007, de 19.02 (artº 26) com as alterações introduzidas pela Lei nº 4/2014 de 13.08. Normas estas nos termos das quais, e como não podia deixar de ser, os serviços secretos estão vinculados à Constituição e à Lei e o Secretário-Geral, os membros do seu gabinete e os funcionários e agente do SIED e do SIS não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais (vid. arts. 2º e 4º e artº 6/2/3 da Lei Orgânica supra referida).
Ora, se é certo que os presentes autos abriram uma discussão, que se crê era há muito necessária, sobre quais os poderes e os meios de actuação dos serviços secretos portugueses, face à constatação de que aos Serviços secretos estão vedadas formas de actuação que são utilizadas por serviços congéneres de outros países; e que cada vez são mais as vozes que se levantam a favor da flexibilização da apertada malha legal, e constitucional, sobretudo em virtude de fenómenos globais, e transnacionais, como é o caso do terrorismo, a verdade é que, sob pena de vivermos num verdadeiro "big-brother" Orwelliano e de ficarem definitivamente postos em causas princípios que temos por básicos, adquiridos e fundamentais a um estado de direito - como é o caso do direito à protecção das fontes - a ponderação de interesses que, em concreto, em cada momento, se impõe fazer não pode recair sobre os dirigentes dos serviços, qualquer que seja o respectivo grau hierárquico.
O acesso aos denominados metadados é um meio de prova cujo acesso é limitado, apenas possível de aceder por via judicial e apenas quando está em causa a investigação de crimes de particular gravidade e danosidade social.
Sendo que, ainda recentemente, na sequência de um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade de um novo regime jurídico do sistema de Informações da República Portuguesa pronunciou-se o Tribunal Constitucional - Acórdão n.º 403/2015 - pela inconstitucionalidade de norma que previa o acesso a, entre outros, dados de tráfego das comunicações que permitisse identificar os respectivos intervenientes, a data, a hora, etc. Mesmo estando o acesso a tais dados sujeito ao controlo prévio de comissão constituída para o efeito!
Mas os arguidos arrogam-se mais... Em suma, a tese dos arguidos é tão descabida como se alguém, acusado de um crime de furto, alegasse em sua defesa que "lá em casa sempre todos o fizeram" e pretendesse, por essa via, ser absolvido do seu crime. Ou, se se apurasse que determinado agente policial tinha obtido informações mediante o recurso à tortura, alegasse, em sua defesa que naquela esquadra todos os colegas e superiores o faziam...
Poderia a sua conduta ser desculpada, ou desculpável, quaisquer que fossem os superiores interesses que se visaram cumprir com a obtenção de informação mediante tortura... é manifesto que não.
Ora, os serviços secretos, como pessoa jurídica colectiva não tem em si mesma convicções, personalidade ou noção do bem ou do mal. Tem uma base legal que regula as suas competências, objectivos e os meios a que pode aceder para os fins propostos. E a base legal, mais não é do que uma estrutura fixa e mais ou menos flexível dentro da qual se movimentam os homens e mulheres que, por via das suas carreiras profissionais exercem funções dentro dos serviços. O modus operandi dos serviços secretos é, pois, construído pela actividade de cada um e a globalidade dos seus quadros que, dentro do quadro legal de que dispõem têm de, diariamente, decidir sobre as formas concretas de actuar na prossecução dos objectivos do serviço. E é o conjunto formado por cada um dos homens e mulheres que, enquanto indivíduos dotados de discernimento têm de decidir e actuar, que definem o "modus operandi" dos serviços secretos. Ou dentro dos limites legais que lhe são impostos como é o respectivo dever, ou então, como é o caso dos arguidos, a decidir agir sem base legal e violando de forma flagrante e ostensiva direitos legal e/ou, como in casu, constitucionalmente consagrados.
O que é certo, e incontestável é que os arguidos quadros dos serviços secretos portugueses e com plena percepção do bem e do mal decidiram, no âmbito da sua actividade agir de forma que bem sabiam estar-lhes vedada e que constituía um crime. E fizeram-no descurando e ignorando a Constituição e a Lei de Bases dos Serviços nos quais, ainda que em diferentes graus, ambos os arguidos tinham funções dirigentes. Na verdade, os arguidos MJS... e MSL..., arvoraram-se o direito de, quais majestades por direito divino, assumirem, por si mesmos, o poder de decidirem sobre qual era, em concreto, o interesse do estado português e usarem o mesmo como argumento para as suas condutas ilegais.
A tese aberrante e arrogante que os arguidos levaram a julgamento e agora reiteram - habilmente, reconheça-se - em sede de recurso, não pode deixar de ser, pois, alvo do mais veemente repúdio por parte desse Venerando Tribunal.
Sempre se dirá ainda que também nenhum acolhimento pode ter o argumento, específico dos arguidos MSL... e RAV... Lopes Dias que agiram em cumprimento de ordem emanada pelo respectivo superior hierárquico, pois que, conforme os próprios certamente não desconheciam, não estavam obrigados a cumpri-la.
Ainda no que concerne aos recursos dos arguidos FLD... e GF... apenas se aditaram às palavras do MP singelas considerações:
Reconhece aliás em sede de alegações de recurso o arguido FLD... que o pedido para que acedesse, através da sua companheira, funcionária da O..., aos metadados do número de telefone do jornalista S..., era um pedido invulgar e que nunca lhe tinha sido feito. Não se tratava, portanto, de uma ordem vulgar, comum, dentro do modus operandi dos serviços. Ora, se é certo que o arguido FLD... estava sujeito ao poder disciplinar dos seus superiores hierárquicos, a verdade é que não estava obrigado a cumpri-la. E não estava, não só porque a mesma consubstanciava a prática de um crime, mas também porque o arguido FLD... não tinha acesso directo aos dados telefónicos da O..., pelo que a sua recusa em caso algum o poderia prejudicar. Bastar-lhe-ia dizer que a sua companheira - sobre a qual não incidia qualquer poder hierárquico por parte dos demais arguidos - não o fazia e ficaria totalmente liberto da "ordem" que lhe havia sido dada bem como de qualquer censura, de carácter pessoal ou profissional por parte dos seus superiores.
O arguido RAV... Lopes Dias agiu pois da forma descrita na sentença, porventura porque pretendeu evidenciar-se aos olhos dos seus superiores. Mas fê-lo com plena consciência da ilicitude do acto, de tal modo que conforme refere nas suas alegacões, foi convencido também pelo facto de “só duas pessoas saberem". Ora, ainda que se tenha em conta o princípio da compartimentação da informação - segundo a qual cada funcionário do serviço apenas conhece o que tem de conhecer e não é detentor da totalidade dos dados relativos a determinado facto, a verdade é que de tal afirmação não pode deixar de resultar que o mesmo conhecia a ilicitude da sua conduta, porém confiou que a mesma nunca viria a ser conhecida, e pela mesma nunca poderia ser censurado. Com a sua conduta, o arguido FLD..., demonstrou, aliás, uma total desconsideração pela sua companheira e pela vida profissional daquela, pois que não se absteve de a pôr em causa, como pôs, com consequências conhecidas.
Do mesmo modo a arguida GF..., não estava sujeita a qualquer poder hierárquico, quer pelo seu companheiro quer pelos demais arguidos. Aceita-se que, conforme bem entendeu a sentença sob recurso, seja mais diminuído o seu grau de culpa, mas de forma alguma se aceita que, como pretende, seja isenta de responsabilidade criminal pela sua conduta. De facto, bastar-lhe-ia dizer ao seu companheiro RAV... Lopes Dias que não o fazia, por não querer pôr em causa a sua carreira profissional e nenhuma consequência adviria para si. Nenhuma!
Os arguidos FLD... e GF... agiram pois de forma livre e consciente, bem sabendo que com a mesma praticavam um crime.
Não merece pois o Acórdão sob recurso qualquer censura pois procedeu a uma correcta avaliação dos factos apurados em audiência de julgamento e não padece de qualquer das ilegalidades que os arguidos pretendem assacar-lhe, pelo que deverá ser mantido nos precisos termos em que foi proferido.
Termos em que, Julgando os recursos improcedentes por não provados farão V. Exªas, Venerandos Desembargadores a costumada Justiça!
*
O Recorrente MSL... declarou pretender a realização da audiência para ver debatidas todas as questões colocadas à apreciação na motivação e nas conclusões.
Em exame preliminar o relator consignou que o recurso devia ser julgado em conferência porquanto:
Apesar do Recorrente MSL... manifestar o propósito de que o recurso seja decidido em audiência, fundamenta esse pedido de forma genérica a fls. 6770, para apreciação de “todos os pontos da motivação e conclusões deste recurso”. Porém, não requer a renovação da prova nem procede à especificação dos “pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos” como lhe impõe o art. 411º nº 5 do Código de Processo Penal. A referência genérica a “todos os pontos” não cumpre a obrigação de especificação exigida pela lei. Por isso, por falta de fundamentação, tendo em atenção que a audiência serve exactamente para debater esses pontos ou para a renovação da prova, não sendo indicado quais os pontos concretos a debater nem sendo requerida a renovação da prova, a realização de audiência torna-se um acto inútil. Consequentemente, o acórdão será proferido em conferência, sendo a adequação deste procedimento decidido definitivamente no acórdão a proferir (atendendo a que o processo irá há tabela na próxima sessão).   
A exigência de especificação – concretização – de cada um dos pontos a debater encontra suporte em várias decisões desta Relação, tendo em atenção que esta leitura restritiva se impõe pela circunstância do legislador ter considerado a audiência como «acto processual supérfluo», pois «a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações» (ver a motivação da proposta de lei 109/X), procurando imprimir celeridade processual e, ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável, o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma excepção[7].
Assim, acordam os juízes que compõem este tribunal que, in casu, não se justifica a realização de audiência.
*
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
As relações reconhecem de facto e de direito, (art. 428º do Código de Processo Penal).
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal).
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
¾ No recurso interposto por MJS...:
A. Impugnação da matéria de facto;
B. Violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo;
C. Elementos do tipo dos vários crimes;
D. Erro;
E. Medida da pena;
F. Responsabilidade civil
¾ No recurso interposto por MSL...:
A. Nulidade do acórdão por insuficiência da fundamentação;
B. Impugnação da matéria de facto;
C. Violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo;
D. Elementos do tipo;
E. Causa de exclusão da ilicitude;
F. Responsabilidade civil (ilegitimidade passiva e ausência de pressupostos).
¾ No recurso interposto por FLD...:
A. Impugnação da matéria de facto;
B. Causa de exclusão da ilicitude.
¾ No recurso interposto por GF...:
A. Impugnação da matéria de facto;
B. Erro sobre as circunstâncias.
Tendo em atenção a ordem lógica do conhecimento das questões, abordar-se-ão os fundamentos recursivos com a seguinte ordem:
1. Nulidade do acórdão por insuficiência da fundamentação;
2. Impugnação da matéria de facto;
3. Violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo;
4. Elementos do tipo;
5. Causas de exclusão da ilicitude;
6. Existência de erro;
7. Medida da pena;
8. Responsabilidade civil.
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:
FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
1. Compete ao Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) assegurar, no respeito da Constituição da República Portuguesa e da lei, a produção de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional e à garantia da segurança interna.
2. O Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) é o organismo que, integrando o SIRP, tem como atribuição a produção de informações que contribuam para a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado Português.
3. Compete ao SIED:
Promover, por forma sistemática, a pesquisa, a análise e o processamento de notícias e a difusão e arquivo das informações produzidas, devendo, nomeadamente:
a) Accionar os meios técnicos e humanos de que tenha sido dotado para a produção de informações, desenvolvendo a sua actividade de acordo com as orientações fixadas pelo Primeiro-Ministro e no âmbito das instruções e directivas dimanadas do Secretário-Geral do SIRP;
b) Elaborar os estudos e preparar os documentos que lhe forem determinados;
c) Difundir as informações produzidas, de forma pontual e sistemática, às entidades que lhe forem indicadas;
d) Comunicar às entidades competentes para a investigação criminal e para o exercício da acção penal os factos configuráveis como ilícitos criminais, salvaguardado o que na lei se dispõe sobre segredo de Estado;
e) Comunicar às entidades competentes, nos termos da lei, as notícias e informações de que tenha conhecimento e respeitantes à segurança do Estado e à prevenção e repressão da criminalidade;
4. O arguido MJS... desempenhou as funções de Director do SIED entre 1.04.2008 e 1.12.2010.
5. Cabia-lhe, nos termos da lei, garantir o regular funcionamento do Serviço, sendo responsável pela manutenção da fidelidade da sua actuação às finalidades e aos objectivos legais, no quadro das instruções e directivas dimanadas do Secretário-Geral do SIRP.
6. E competia-lhe:
a) Representar o SIED;
b) Participar no conselho administrativo;
c) Emitir as ordens de serviço e as instruções julgadas convenientes, no âmbito das atribuições legalmente cometidas ao SIED;
d) Submeter à aprovação tutelar todos os actos que dela carecessem;
e) Executar as determinações do Primeiro-Ministro e do Secretário-Geral e as deliberações dos órgãos de fiscalização definidos pela Lei Quadro do SIRP;
f) Exercer o poder disciplinar, dentro dos limites determinados por lei;
g) Elaborar o relatório anual de actividades do SIED;
7. O arguido MJS..., tendo ingressado no Serviço de Informações de Segurança (SIS) em Abril de 1991, desempenhara, no interior do SIRP, as seguintes funções e cargos:
- director de Área, a partir de Outubro de 1996;
- director do Departamento, a partir de Fevereiro de 1999;
- chefe de Gabinete do Secretário-Geral do SIRP, desde Maio de 2005 até à sua nomeação como Director do SIED.
8. O arguido MSL... desempenhava as funções de Director do Departamento Operacional do SIED.
Facturação detalhada do jornalista S...
9. No contexto do percurso que vinha realizando no SIRP, o arguido MJS... esteve associado à remodelação do SIED.
10. Em 7.08.2010, a edição do jornal “Público” incluiu um artigo, subscrito por S..., com os seguintes antetítulo e título, respectivamente: “Entrada e nomeação de membros do SIS para o SIED causa perturbações” e “Mudanças de espiões e dirigentes causam mal-estar em serviço das “secretas”.
11. Aí escrevia aquele jornalista, em especial, que:
“ Os serviços de informações portugueses cresceram nos últimos anos. Aproximadamente 20 por cento, entre 2004 e 2009 em número de funcionários, resultado do investimento pós 11 de Setembro. Os quadros e a importância das “secretas” aumentaram. Como aumentou a tensão interna com algumas nomeações, em especial no Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), o serviço “externo” onde voltou um clima de mal-estar.
Por causa da contratação de pessoal, como foi o caso de uma ex-assessora do grupo parlamentar do PS, mas também por algumas escolhas de funcionários do Serviço de Informações e Segurança (SIS) para postos no SIED, dirigido por MJS....
 Este clima de descontentamento é admitido por fontes dos serviços, que pedem o anonimato. E que o explicam com as recentes mudanças nas chefias de vários departamentos do SIED, com trocas de pessoal experiente por outro dos próprios serviços. Ou, no caso de “estações” no estrangeiro, por funcionários do SIS. O responsável pelo Departamento Financeiro saiu e foi substituído; o mesmo aconteceu com um dirigente do Departamento A, “operacional”.
 Um dos casos mais recentes, e controverso internamente, foi a escolha de um ex-responsável do Departamento Africa do SIED para subdirector. Dentro do serviço, este é um exemplo do que é considerado de “falta de experiência” por um profissional de intelligence ouvido pelo PÚBLICO.
 Dentro e fora da “secreta’ há sinais de preocupação. Quer quanto aos custos destas mudanças feitas nos últimos anos e meses - em seis anos, de 2004 a 2009, os serviços terão crescido em mais de 70 novos elementos, correspondente a cerca de 20 por cento relativamente ao quadro de pessoal do SIS, S1ED e gabinete do secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) e Estruturas Comuns”.
12. O artigo tinha um pendor crítico relativamente à orientação e organização dos Serviços, com especial ênfase nas transferências, substituições e nomeações no SIED, tudo matérias para cuja decisão o arguido MJS..., enquanto Director do SIED, contribuíra relevantemente.
13. Por outro lado, o seu conteúdo parecia resultar de um conhecimento transmitido ao jornalista S... por fontes dos Serviços, ao dar nota da existência de um “mal estar” entre os respectivos quadros, em consequência da referida reestruturação.
14. Perante isto, quis o arguido MJS... saber quais os funcionários do Serviço de Informações que poderiam ter sido fonte de informação do dito jornalista.
15. Assim, depois de ter consultado a lista de facturação detalhada dos funcionários do SIED, a que tinha acesso por força do exercício das suas funções, decidiu, em momento exacto não apurado, mas posterior a 7.08.2010 e anterior a 17.08.2010, determinar o arguido MSL..., Director do Departamento de Operações do SIED, que obtivesse os dados de tráfego do número de telefone 935016063, utilizado pelo jornalista S..., para o período de Julho e Agosto daquele ano.
16. O arguido MSL..., por seu turno, ao tomar conhecimento que a arguida GF..., companheira do arguido FLD..., agente a exercer funções sob a sua direcção, trabalhava na O.../NOS, tendo acesso à facturação detalhada dos clientes, determinou a este arguido que obtivesse a referida informação junto daquela operadora.
17. Em execução do solicitado pelo seu companheiro, a arguida GF... acedeu à base de facturação da O.../NOS e, nesta, à facturação detalhada do número de telefone supramencionado, à data disponibilizado pelo jornal “Público” a S..., através da aplicação Customer Process Management (CPM) que suporta o sistema de facturação da O... e acessível através de browser em ambiente web.
18. Esta aplicação permite a extracção da informação directamente para Excel e apresenta informação sobre as comunicações, no formato data-início e data-fim e o IMEI.
19. A arguida GF..., através do utilizador CCPSUPO1 que lhe foi atribuído pela entidade patronal - por via do pedido “SD 1148045” -, e usando, fora das instalações da O..., a Virtual Private Network (VPN) corporativa, no dia 17.08.2010, às 23h 23m e 38s, efectuou uma pesquisa de chamadas para o período de 18.07.2010 a 25.07.2010, relativamente ao contrato 253..., associado ao número de telefone 935016063.
20. No mesmo dia, às 23h 24m 50s, efectuou nova pesquisa, relativa ao mesmo contrato, agora com referência ao período de 18.07.2010 a 12.08.2010.
21. De seguida, às 23h 25m 39s, procedeu à extracção, para Excel, do detalhe das chamadas, para o período de 18.07.2010 a 12.08.2010.
22. Na posse do ficheiro de Excel, obtido e transmitido, pelo modo descrito, pela arguida GF..., o arguido FLD..., em 17.8.2010, trabalhou esse ficheiro no domínio que lhe estava destinado como UTIL25O, atribuindo-lhe a designação de “Book7.xls”, completando-o, por determinação do arguido MSL..., com referências identificadoras dos destinatários das chamadas realizadas por S....
23. E, em 18.08.2010, no seu domínio de trabalho na Rede Externa do SIED, acessível através do user UTIL25O que lhe fora distribuído, trabalhou os respectivos dados, em ficheiro no formato Word, atribuindo-lhe a designação de “Lista de compras.doc”.
24. O arguido FLD... entregou o ficheiro em Excel, designado “book7.xls”, ao arguido MSL... que, por sua vez, no mesmo dia, o transmitiu ao arguido MJS....
25. O arguido MJS..., nesse dia, guardou, na memória do seu telemóvel, o referido ficheiro Excel - book7.xls - e os ficheiros primeira.lista.doc, 96.......pdf e telemóveis.xls, que continham a facturação detalhada dos oficiais do SIED que julgava responsáveis pelas fugas de informação
26. Ainda em cumprimento da solicitação que lhe fora feita pelo arguido FLD..., a arguida GF..., através do user “GFT...”, que entretanto lhe tinha sido atribuído em substituição do user “C..., no dia 1.09.2010, às 9h 02m 50s, nas instalações da O..., sitas na Sra. da Hora, em Matosinhos, efectuou nova pesquisa para o mesmo contrato, com o número 253..., e com referência ao período de 12.08.2010 a 15.08.2010.
27. De seguida, pelas 09h 02.m 54s, procedeu à extracção do detalhe das comunicações em causa para Excel.
28. Entretanto, no interior do SIED, o arguido MJS... confrontou alguns dos seus funcionários e dirigentes com o facto de os seus números de telemóvel constarem da facturação detalhada de S....
29. Os arguidos MJS... e MSL... sabiam que o número de telefone 9... era utilizado pelo jornalista S..., sendo que o arguido MJS... pretendia conhecer os destinatários das respectivas comunicações telefónicas.
30. O que conseguiu, determinando o arguido MSL... e este, o arguido FLD... a, nas circunstâncias acima descritas, aceder, através da arguida GF..., à base de dados daquela operadora de telecomunicações em que o número estava activado.
31. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que tal acesso, através da arguida GF..., constituía um desvio não permitido pela Lei ao fim a que a base de dados se destinava.
32. E que inexiste base legal que atribua aos Serviços de Informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas.
33. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que lhes era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio.
34. E que os dados relativos às comunicações telefónicas constituem dados pessoais, relativos à vida privada e, no caso, também, às fontes de um jornalista, estando, todos eles, protegidos por Lei.
35. O arguido MJS... determinou o arguido MSL... e este determinou o arguido FLD..., seu inferior hierárquico, a, nas circunstâncias descritas, proceder conforme descrito, como se tal concreto poder lhes fosse conferido por lei.
36. Pretendendo ambos, com tal conduta, reforçar a esfera pessoal de poder interno do arguido MJS... e quanto a este, identificar e isolar funcionários de que suspeitava como fontes de informação de jornalistas.
37. Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... agiram em conjugação de esforços e de intentos.
38. A arguida GF... bem sabia não poder legalmente aceder a tais dados, da forma descrita, e que a sua revelação a terceiros, sem o consentimento do titular dos mesmos, constituía crime.
39. Sabia ainda que não estava obrigada a cumprir quaisquer ordens, instruções ou pedidos formulados pelo seu companheiro, o arguido FLD....
Contratação do arguido MJS... pelo GO...
40. O arguido MJS... era, há vários anos, amigo do arguido RAV.... 41. Em 2006, aquando da criação do GO..., o arguido RAV... tinha convidado o arguido MJS... a integrar o grupo, convite que este, na altura, declinou.
42. No período posterior ao Verão de 2010, o arguido MJS..., quis sair do SIED, por discordar de decisões tomadas pelo Secretário Geral do SIRP, e avaliou as hipóteses de ingressar no GO....
43. Neste contexto, no dia 22.10.2010, o arguido MJS... enviou ao arguido RAV... um sms questionando-o sobre se o queria contratar para trabalhar no Grupo pedindo-lhe uma resposta sincera.
44. Perante a resposta afirmativa de RAV..., que lhe disse que estaria disposto a contratá-lo de imediato e que mantinha a proposta sine die, o arguido MJS... perguntou ao seu interlocutor quanto poderia valer, por mês, líquido.
45. E, ainda nesse dia, seguiu-se troca de mensagens entre ambos sobre a contratação do arguido MJS... pelo GO... e sobre o valor da remuneração que o arguido iria auferir, tendo o arguido RAV... reiterado o interesse em contratá-lo, dada a confiança que depositava nele e a amizade que os unia, informando-o que ganharia mais do que se fosse promovido, e que se tivesse uma outra oferta oferecia o mesmo.
46. O arguido MJS..., depois de ter dito quanto recebia nos serviços de informações - 4.000€ líquidos, com carro, motorista, telefone ilimitado, carro para uso privado e combustível -, insistiu com o arguido RAV... para que lhe indicasse um valor líquido que considerasse justo e que ele pudesse compensar com o que levava e com o seu trabalho.
47. No dia seguinte - dia 23.10.2010 - o arguido MJS..., em nova mensagem, informou o arguido RAV... que, depois de longa noite de reflexão e conversa com a mulher, tinha decidido pertencer à sua equipa a partir de 1.12.2010.
48. E no dia 24.10.2010 enviou mensagens a RF..., à data Vice-Presidente executivo da GO..., e ao arguido RAV... agradecendo e manifestando entusiasmo, expectativa e apreensão e referindo a RAV... que tudo faria para o recompensar.
49. O concreto estatuto remuneratório veio a ser delineado nos dias seguintes, tendo o arguido MJS... assinado em 28.12.2010 uma carta convite, que lhe foi dirigida por RF..., na qual este “nos termos da deliberação da Assembleia Geral da GO... Strategy Investments, SGPS, SA” de 23.12.2010, formaliza o convite a MJS... para que assuma o cargo de Vice-Presidente da GO... Shared Services, SA, Presidente da A..., membro do Conselho de Administração da I... e bem assim, de assessor do Conselho de Administração da GO... Strategy Investments, SGPS, SA”.
50. Nessa carta convite estabeleciam-se as seguintes condições de contratação: o arguido iniciava funções no dia 2.01.2011; auferia um salário anual bruto de 213.931,89€, correspondente a um valor mensal líquido de 10.000€, devido por todas as funções desempenhadas no GO..., pago em catorze prestações mensais; dispunha de uma viatura, nas condições aprovadas pelo GO... para os membros dos Conselhos de Administração das empresas que o integravam; tinha direito ao seguro de saúde do grupo, telemóvel e computador portátil e a bónus pagos em função do seu futuro desempenho profissional.
51. Esta remuneração estava em linha com as remunerações pagas a outros quadros que exerciam funções semelhantes no GO....
52. Em 6.01.2011 foi constituída a sociedade “GO... Shared Services, S.A.”, empresa de serviços partilhados do Grupo, que veio a absorver as estruturas de apoio administrativo, financeiro, de recursos humanos, tecnologias de informação e logísticas das diferentes unidades de negócio do Grupo.
53. Na qual o arguido MJS... começou por ocupar o lugar de Vice-Presidente, passando, a partir de Março, a ocupar o lugar de Director Executivo.
54. O crescimento do GO... tinha feito com que em 2010 o Grupo repensasse a estrutura organizativa, criando uma empresa de serviços partilhados do Grupo, que absorveu todas as estruturas de apoio administrativo, financeiro, de recursos humanos, tecnologias de informação e logísticas das diferentes unidades de negócio do Grupo.
55. O arguido MJS..., durante o período em que exerceu as funções de chefe de gabinete do Secretário-Geral do SIRP, tinha estado directamente envolvido na implementação dos serviços partilhados, no âmbito do sistema de informações.
Informação sobre empresários russos e RINOT
56. Na sequência de uma apresentação feita à GO..., por um intermediário, esta, através dos seus representantes FS... e VR..., decidiu avaliar as possibilidades de desenvolver um negócio associado à construção de infraestruturas no Porto de Astakos, na Grécia, porto privado com capitais russos e gregos.
57. Para tanto, com o conhecimento e o acordo do arguido RAV..., FS... e VR... mantiveram contactos com dois empresários russos, alegadamente com influência na respectiva esfera de poder nacional, AlB... e AlV....
58. No âmbito destes contactos com os cidadãos russos, em finais de Outubro de 2010, FS... solicitou ao arguido MJS... que obtivesse, junto do SIED, que este ainda dirigia, informação sobre os referidos empresários de nacionalidade russa, indicando, no sms que lhe enviou, o “porto de Astakos”.
59. Em 30.10.2010, o arguido MJS... determinou a oficial do SIED que efectuasse uma pesquisa, em fonte aberta, sobre o porto grego de Astakos.
60. O resultado deveria incluir, entre outros, dados sobre a utilização habitual (“militar, comercial?”), a empresa proprietária e o mapa de satélite respectivo.
61. No mesmo dia, o arguido MJS... determinou o arguido MSL... a que fosse produzida informação, por recurso às “fontes humanas”, com acesso à Rússia, sobre “antecedentes” dos referidos empresários, cujos nomes lhe forneceu.
62. Mais lhe indicou que a informação deveria constituir um Relatório Interno de Informação.
63. O arguido MSL..., no exercício das funções de Director do Departamento Operacional do SIED, determinou internamente que fosse obtida a referida informação junto do oficial de informação que, no local e à data, tinha a responsabilidade pela área geográfica em causa.
64. Para o efeito, foram activados os necessários meios humanos do SIED e consequentemente produzida informação escrita sobre as origens, actividades negociais e circunstâncias relativas à capacidade de decisão dos referidos empresários.
65. No dia 1.11.2010, o arguido MJS... contactou também o então oficial de ligação na Rússia, transmitindo-lhe a mesma solicitação.
66. Em 2.11.2010, este oficial transmitiu-lhe a informação por si elaborada, para o endereço de e-mail imischotmail. com.
67. Esta informação foi obtida, pelo oficial de ligação, por recurso a fontes abertas.
68. No SIED, com informações obtidas, sobre os dois empresários de nacionalidade russa, foi registado o Relatório Interno de Informação (RINOT) constante do apenso 12.
69. Uma parte substancial da informação vertida neste RINOT foi obtida por recurso a fontes abertas e uma outra parte por recurso a fontes humanas.
70. Este RINOT, constituído por três folhas e contendo informações sobre os dois empresários russos, está classificado como confidencial, por conter matéria classificada, mostrando-se consignado no próprio documento que é proibida a sua transmissão ou revelação a pessoas não autorizadas e que a distribuição, transferência, reprodução, o arquivo e a destruição desse documento estão regulamentados na Resolução de Conselho de Ministros nº 50/88, de 8 de Setembro (SEGNAC 1).
71. Na posse dos documentos produzidos, nas circunstâncias referidas nos pontos 62 a 69, sobre os identificados empresários russos - RINOT mencionado no ponto 69 e outras informações -, o arguido MJS... enviou-os a FS..., a 2.11.2010, para o endereço de email do destinatário (...)@(...).co.za.
72. Por sua vez, FS..., enviou o documento sobre os empresários russos, em 6.11.2010, a VR..., com a menção de “TOP TOP SECRET”, para os endereços (...)@gmail.com e (...)@(...).pt.
73. O conhecimento, por particulares, desvinculados das normas próprias de segurança dos Serviços de Informações, por outros Estados ou cidadãos de países em que as fontes actuam, de dados obtidos por recurso a fontes humanas é susceptível de afectar, de modo relevante, a segurança do Estado.
74. Designadamente, por ser susceptível de gerar conflito diplomático entre o Estado Português e outro a que a informação se refere e de pôr em causa a segurança de missões e de recursos humanos, no exterior.
75. A transmissão desses dados a terceiros potência, de modo não controlável, o risco de propagação da informação.
76. Sabia o arguido MJS... que, exercendo funções de Director de uma das componentes do Serviço de Informações da República, lhe competia colocar os recursos e operações, exclusivamente, ao serviço do interesse público e garantir a protecção dos seus agentes e estrutura e do segredo de Estado.
77. E que lhe incumbia, em razão de ser membro e director do SIED, especial e legalmente consignado, dever de proteger os documentos classificados, sujeitos a segredo de Estado.
78. O arguido MJS..., na primeira semana de Novembro de 2010, informou o Secretário-Geral do SIRP da sua decisão de sair dos serviços de informações e no dia 8.11.2010 apresentou o respectivo pedido de exoneração de Director do SIED.
79. Na carta dirigida ao Secretário-Geral do SIRP, o arguido referia não ter condições para exercer o cargo de Director do SIED, e que tal se devia nomeadamente a despachos do Secretário-Geral de finais de Julho e de Outubro que conjugados constituíam uma desautorização e contribuíam para a descredibilização dos cargos dos Directores dos serviços e em particular do cargo desempenhado por si, esvaziando-o quase por completo das capacidades de exercer as poucas competências relevantes que lhe eram conferidas por lei.
80. Em 18.11.2010, foi aceite o pedido de exoneração, bem como foi deferido o pedido de licença sem vencimento, tudo com efeitos a partir de 30 de Novembro.
81. Em 2.01.2011, o arguido MJS... iniciou, formalmente, as suas funções no GO..., nas condições supramencionados nos pontos 49 a 52.
82. Por ter expressado interesse, junto de JB..., em receber os relatórios elaborados pelo serviço de prevenção respectivo, o arguido MJS..., desde que deixou de exercer funções no SIED, até, pelo menos à data da realização de busca ao seu domicílio, recebia, diariamente, relatórios, constituídos por sínteses de notícias ou “takes” de órgãos de comunicação social nacionais e estrangeiros e das principais agências noticiosas internacionais, sobre acontecimentos e política internacionais.
83. A compilação e o envio, para lista de destinatários que ocupavam cargos políticos e públicos definida pelo SIED, eram efectuados pelos funcionários do serviço diário de prevenção.
84. O arguido MJS..., também diariamente, reencaminhava os relatórios recebidos do SIED para RAV..., RF..., PaG, JR..., FS..., PF..., VR..., VC..., JEM..., JA..., RG..., AnC..., FMC..., MC... e JA..., todos, à data, do GO..., bem como a dirigentes do universo político-partidário.
85. E fazia-o, após reencaminhamentos das mensagens de texto para as diversas contas de correio electrónico de que dispunha, nomeadamente: ....mail.com e ...tmail com.
Informação obtida na base de dados do SIED, “D...”
86. Em 10.12.2010, FS... solicitou ao arguido MJS... informação sobre as sociedades H...,S.A., M... Consultadoria, Lda., M... Gestão de empresas, Lda., I... Construções, S.A., C..., Lda. e B..., Lda., todas com participação de HJ....
87. O arguido MJS... pediu a MSL..., em data não apurada, mas compreendida entre 10 e 21 de Dezembro, que recolhesse e lhe transmitisse informação sobre as sociedades com participação do referido empresário residente na Região Autónoma da Madeira.
88. O arguido MSL..., à data Director do Departamento Operacional do SIED, determinou, directamente, sem conhecimento da chefia intermédia, a HG..., à data em funções no SIED, no Departamento Operacional, que, por recurso à base de dados, “D...”, recolhesse informação sobre as sociedades participadas pelo referido empresário, fornecendo-lhe as respectivas denominações.
89. O arguido MSL... em 21.12.2010 transmitiu ao arguido MJS..., através de email, para o endereço imischotmail.com e depois reenviada por este para o endereço davidmcornwellgmail.com, toda a informação disponível na base de dados “D...” sobre as empresas referidas.
90. E, no mesmo dia, a mesma informação foi enviada a FS..., do endereço (...)gmaiI.com para o endereço de (e-...)@(...).com.
91. Esta informação foi recolhida na base de dados da “D...”, a que o SIRP acede em razão de contrato e mediante o pagamento de quantias monetárias, incluindo um preço por consulta.
92. E destinou-se a fim alheio às atribuições e competências do SIED.
93. Tendo apenas como propósito a satisfação do interesse pessoal do arguido MJS....
94. Agindo o arguido MSL..., enquanto agente do Estado, em violação dos seus deveres funcionais, de legalidade e isenção, sendo determinado pelo arguido MJS..., em virtude da sua anterior relação hierárquica, a agir em violação dos seus deveres funcionais.
95. E, ao decidirem actuar do modo supra descrito, agiram em conjugação de esforços e de intentos.
96. Todos os arguidos agiram sempre de forma livre e deliberada, sabendo que as condutas acima descritas eram contrárias à Lei.
Informações sobre aviões Líbios em manutenção em Alverca
97. Por razões não concretamente apuradas, em 31.05.2011, o arguido MSL..., a pedido do arguido MJS..., informou este arguido sobre a situação de quatro aviões líbios que haviam estado em manutenção em Alverca, dizendo que tinham sido entregues antes do inicio das sanções, tendo um deles regressado por deficiências relacionadas com as operações de manutenção, que era esse o único avião que permanecia em Alverca (C-130), e que, mesmo em caso de desbloqueio da situação líbia, não poderia ser entregue porque estava com os painéis desmontados, aguardando peças e configuração.
98. O arguido MSL... informou ainda que, quanto aos “indivíduos”, não tinham mesmo nenhuma informação, referindo-se a informação na posse do SIED.
99. No mesmo dia, o arguido MJS..., por razões igualmente não apuradas, informou uma jornalista do exacto teor da informação que lhe havia sido transmitida pelo arguido MSL..., pedindo desculpa pelo atraso alegando que: “não tínhamos informação”, referindo-se a informação na posse do SIED.
100. Igualmente a pedido da mesma jornalista, o arguido MJS..., em data não determinada, mas compreendida entre 31 de Maio e 3 de Junho de 2011, solicitou ao arguido MSL... que lhe desse informação sobre contacto na Embaixada da Líbia, em Lisboa.
101. Em 3 de Junho de 2011, o arguido MSL... informou-o sobre a morada do embaixador da Líbia, o posicionamento face ao conflito na Líbia do responsável pelas Finanças da Embaixada e o nome e número de telefone de quem deveria ser contactado na referida representação diplomática, sempre referindo-se a informação na posse do SIED.
102. No mesmo dia, o arguido MJS... transmitiu à jornalista o exacto teor da informação que lhe havia sido transmitida pelo arguido MSL....
103. Esta informação foi recolhida no SIED, em virtude das suas competências e atribuições e destinava-se à execução dos fins nestes compreendidos.
“Relatório” sobre PPB...
104. Em Fevereiro de 2011, o arguido MJS..., em resultado da assinatura da carta convite mencionada no ponto 49, era assessor do Conselho de Administração e Responsável do Centro Corporativo da OSI; Vice-Presidente da GO... África; Vice-Presidente da GO... Shared Services (OSS); Administrador da GO... Brasil; Administrador da GO... Tecnologies; CEO da A...; e Administrador da I....
105. O arguido MJS... usava os seguintes endereços de e-mail “(j...)@(...).com e (d...)@gmail.com, entre outros.
106. Neste contexto, competia ao arguido MJS... reunir informações de diversa natureza que pudessem ser de utilidade para os interesses estratégicos da GO....
107. Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 9.05.2011, PF..., assumiu o cargo de Director de Auditoria de Sistemas e Tecnologias de Informação do GO..., usando, entre outros, os e-mails “(p...)@gmail.com e (p...)@(...).com.
108. No âmbito dessa relação profissional competia a PF..., sob ordens de MJS..., apurar, designadamente, informações relativamente a empresas e pessoas singulares.
109. Desde 2009/2010, que o GO... pretendia obter uma maior participação no capital social do GI..., proposta que terá sido rejeitada por PPB....
110. De então em diante, foram intentadas diversas acções judiciais contra o GI... pelo GO..., designadamente pondo em causa a gestão do GI..., liderado por PPB....
111. Entre Maio e Julho de 2011, surgiu na Internet uma campanha de tweets que punham em causa essa mesma capacidade de gestão de PPB..., usando expressões (entre outras) como “Nepotismo de PPB... ajuda GI... a tropeçar no desempenho financeiro”; “Gestão duvidosa de PPB... leva a adopção de medidas extremas entre corte de salários e despedimentos mascarados de rescisão (…)”; “O controlo absoluto que PPB... e família passaram a ter sobre todas as decisões transformou a GI... numa oligarquia”.
112. No dia 4.09.2011, às 17h. 35m., o arguido MJS..., dirigiu e-mail a PF... do seguinte teor “Amigos para além do pedido para vocês fazerem um relatório conjunto sobre a Finertec, pedia-vos que vissem também o que existe em fontes abertas sobre o balsinhas, em particular sobre os empréstimos que tem, que bancos, quando vencem, etc. Interessa a estrutura financeira e económica da empresa. Gostava de, idealmente, ter resultados no final desta semana. Abraço”.
113. Nesse dia, às 21h.17m., PF... respondeu a MJS... da seguinte forma: “Vou ver o que consigo. Abr.”.
114. No dia 17.10.2011, às 10h. 9m., MJS... (usando o endereço (d...)@gmail.com, em seu nome) enviou para PF..., com nota de “Importância: Alta “Anexos: Attachment”, um documento que detinha, elaborado em ficheiro no formato Word, atribuindo-lhe a designação de “relatório”.
115. Tal documento/relatório começa com uma folha de introdução contendo, no centro da página, os únicos dizeres “Até na cama o PPB... é preguiçoso”.
116. Desenrolando-se, nas páginas que compõem tal relatório, a descrição de factos relativos à vida pessoal, familiar, social, sexual, partidária/política de PPB....
117. Contendo: “Factos relevantes – tabela cronológica de 1961 a 2011”; uma tabela discriminando quem era seu amigo e de onde, quem era seu aliado porquê e de onde; quem era seu inimigo e porquê; “cronologia Biográfica (Casos e Factos Marcantes) da vida de PPB..., com excertos de jornais, depoimentos, excertos de escutas da PIDE sobre a sua vida pública, partidária, social e familiar, com comentários acoplados.
118. Designadamente (excertos do documento):
“A primeira mulher, IL... (IL...) inicia uma relação com o apresentador CC... (não é claro se a mesma tinha começado antes ou depois de IL... se separar de PPB...). De assinalar que, durante o depoimento no processo “Casa Pia” sobre esse período, CC... tem o cuidado de nunca referir nem o nome de IL..., nem de PPB... nem dos filhos de ambos. A relação entre PPB... e CC... não era a melhor, dada a vontade deste em levar MR... e Henrique para Nova Iorque, (…) Coincidências… Nota: Reproduzimos esta informação não pelo seu valor objectivo, mas pelo potencial de exploração da mesma.
- “28 de Outubro de 1970 – Nasce filho ilegítimo só reconhecido por ordem do Tribunal de um relacionamento com ISP..., nasceu FMS... PPB.... A criança só foi reconhecida pelo pai após ordem do Tribunal. ISP..., filha de CP... (casado com (…)”.
- 6 de Janeiro de 1973 – Criado Expresso, ligação Media-Política (…) Escutas revelam promiscuidade entre política e media. Noutra conversa, PPB... e SC... falam dos próximos assuntos a tratar no Expresso (…) Ou seja, este excerto revela que PPB... usou o Expresso para defender as suas ideias políticas, usando uma perspectiva puramente instrumental e utilitária de um órgão de comunicação social. Além da censura também outras vontades, pelo que se lê, condicionavam a agenda do Expresso (…).
- Abril de 1974 – Francisquinho, o medíocre mensageiro (…); Maio de 1974 – Fundação do PSD; Junho de 1979 - PPB... prometeu a RM... RTP2 (…); 1980 – Expresso não mais “atacou” comunistas (…) Fidedignas fontes da época referem um “Mistério na Estrada do Guincho”, com intervenção de uma “amestrada” patrulha da GNR e de dois senhores de gabardine e sotaque estrangeiro que fotografaram com flash e ostensivamente a mercadoria que PPB... transportaria no seu carro, terminando o episódio com a chegada de um membro do gabinete do primeiro-ministro SC..., cujo governo PPB..., integrava como ministro (…).
- 22 de Dezembro de 1980 – Nomeado Primeiro-Ministro (…) Incapaz de liderar, PPB... não conseguiu congregar a unanimidade no seio da AD e deixou-se envolver em sucessivos problemas de guerrilha política. AS... sintetizava: “A liderança de PPB... é cinzenta e frouxa”(…); 1981 – RS... confirma interferência de PPB... em questões editoriais no Expresso. Obtivemos junto de RS... uma resposta por e-mail a uma questão relativa à relação entre ele e PPB... enquanto o primeiro foi director do Expresso, a propósito da entrevista dada por PPB... na edição 2000 do semanário. Transcrevemos em seguida o e-mail na integra: (…); Outubro de 1982 – Desavença com RS... (…) “PPB..., não. Faça o favor de me tratar por senhor primeiro-ministro”, corrige um PPB..., possesso com mais uma patifaria do seu protegido, (…) Talvez para afastar RS... do “Expresso”, talvez por querer aproveitar o seu talento nas negociações parlamentares, talvez pelas duas coisas, PPB... chamou-o ao Governo. (…); 1986 – Deixa Parlamento Europeu por falta de protagonismo; 1988 – PPB... o “porteiro” de Bilderberg; 2001 – Saída de Rl... da SIC (…).
– 2003 - PPB... e o consumo da cocaína Associado ao caso Casa Pia surgem nesta altura na internet rumores do consumo por PPB... de cocaína (…) Fontes seguras revelam-nos que a dependência de cocaína de PPB... é factual. PPB... teve mesmo, há largos anos, de fazer uma operação nos Estados Unidos, para colocar implantes de platina nas fossas nasais, para substituir as membranas destruídas pelo “ácido” corrosivo da droga ilegal.
- 6 de Setembro de 2007 – “Admiro muito Rupert Murdoch (…) é modelo a seguir”(…).
Abril de 2008 – PN..., no 2 da GI... (…).
Fevereiro de 2008 – PPB... cria empresa para filha fazer eventos (…).
- 2008 – Acusado de censura por RC..., autor de “voos Secretos da CIA”(…).
- 2008 – PPB... fala à Maçonaria (…).
- Março de 2009 – GI... perde 5.8 milhões de euros com alienação da Iplay por um euro. Este é um negócio que configura, no mínimo, uma situação de gestão danosa por parte de PPB... (…).
- Fevereiro de 2011 – Acto polémico de gestão põe a ferro e fogo redacção da SIC: 24 Fevereiro de 2011 – PPB... na Inter Oceânico para “assalto”ao BCP (…) PPB... surge como um peão útil no xadrez Angolano de controlo do maior banco privado português, o BCP. Esta utilidade permitiu-lhe fazer as “pazes” com o regime angolano e ganhar uns cobres com isso. PPB... ajuda os Angolanos a ganhar o controlo no BCP e passa a ter acesso ao mercado dos media do país, como mostra a anunciada criação de um grupo de media angolano (…).
- Junho de 2011 – Censura ou interesse nacional no novo Estatuto Editorial do Expresso (…).
- Julho de 2011 – PPB... negoceia com Globo venda da GI... (…).
- Junho de 2011 – Créditos de PPB... no BPP impugnados pelo Estado. O Estado impugnou os créditos que a família PPB... tinha no BPP (…) A família PPB... – PPB..., a mulher e filhos – tinha mais de quatro milhões de euros a receber do BPP, mas estranhamente ninguém reclamou qualquer crédito. O valor estava dividido em sete partes iguais de 677.684,08 euros: - HC... L PPB... - 677.684,08 euros (…) Fortuna na Suiça a salvo de tentações de PPB.... A relação familiar de PPB... com AT... degradou-se. Fontes fidedignas disseram-nos que algumas reuniões na Suiça não tinham corrido de forma agradável para PPB..., com o gestor de fortunas a dizer-lhe que não o deixava mexer na fortuna ria família para tapar buracos na sua empresa. A acrescentar a isto e, resultado fatal de uma aventura extra-conjugal. PPB... foi forçado pela actual mulher a alterar o testamento com tratamento preferencial dos filhos mais novos, em prejuízo dos filhos da anterior mulher e da relação com ISP....
Anexo (breve Perfil), cargos ocupados (…), dados pessoais (…)
119. O arguido MJS... manteve no seu computador (na caixa do correio electrónico) um ficheiro informático, em formato Word, que lhe foi apreendido, contendo o documento supra mencionado, intitulado “Relatório”, com dados relativos à vida de PPB..., designadamente à sua vida e convicções pessoais, familiares, políticas, partidárias e profissionais, com nomes de amigos e inimigos, filhos e bens.
120. O arguido agiu de modo livre, consciente e deliberado, bem sabendo que este seu comportamento era proibido e punido por lei.
121. Os arguidos MJS..., MSL..., RAV..., FLD... e GF... não têm condenações averbadas nos seus CRC.
122. Sobre as condições pessoais dos arguidos apurou-se que:
123. Do arguido MJS...:
Viveu em Moçambique até aos nove anos de idade, de onde saiu na sequência do processo de descolonização;
A dinâmica familiar do arguido com os pais e duas irmãs é descrita como coesa e harmoniosa;
Ingressou na Faculdade de Direito de Lisboa aos 19 anos de idade;
Ingressou no SIS, ao qual se candidatou em 1991, apresentando como motivação para o trabalho nesta área a necessidade de “proteger a Justiça e o País”;
Aos vinte e oito anos fez uma pós-graduação em estudos europeus e aos trinta e sete anos, diplomou-se como auditor de defesa nacional pelo Instituto de Defesa Nacional;
Nos tempos livros para além da prática de várias modalidades desportivas nas quais se destacam o judo, remo e basquetebol, era membro de uma loja maçónica;
Casou aos trinta e três anos, mantendo com a mulher um relacionamento gratificante e descrito como sólido e coeso;
Tem três filhos menores;
Em Janeiro de 2012, na sequência do presente processo judicial, pediu a sua demissão da GO...;
De acordo com o contratualizado com a holding e nomeadamente de uma cláusula de sigilo e de “non compete”, ficou a receber 6.000€ mensais durante três anos;
Em Maio de 2014, na sequência de um processo administrativo que interpôs contra o Estado, recebeu uma indemnização no valor de 57.000€ por não lhe ter sido criado lugar para reintegrar funções na Secretaria Geral da Presidência de Conselho de Ministros, aquando da sua saída do SIED;
Neste processo abdicou da remuneração equivalente ao período de tempo em que trabalhou na GO... (Janeiro de 2011 a Janeiro de 2012);
Mantém vínculo à Secretaria Geral da Presidência de Conselho de Ministros, como assessor principal, encontrando-se, desde Janeiro de 2015, em situação de licença sem vencimento de longa duração;
Em 2014 obteve o mestrado em Gestão de Empresas pelo ISCTE-IUL-Instituto Universitário de Lisboa- Business School;
Em Setembro de 2014 fundou, com a mulher, a sua própria empresa de consultoria e formação SC&A- MJS... e Associados, através da qual passou a prestar consultoria empresarial e a elaborar estudos estratégicos de mercado, dispondo alegadamente de um vencimento mensal de 470€;
Neste âmbito passou a colaborar com o Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC), como professor convidado e Director de MBA Executivo em Gestão de Conhecimento e Inteligência Competitiva, auferindo 3.000€, por cada curso ministrado;
Em 2014 foi convidado pelos accionistas do Grupo “...5 S.A.” para integrar o Grupo para desempenhar o cargo de Director Executivo das empresas, auferindo actualmente uma remuneração mensal de 3.000€;
O agregado familiar dispõe de um rendimento mensal correspondente a 5.800 a 6500€ e tem despesas no valor de 5700€;
No plano das relações pessoais é descrito como um amigo fiel, preocupado, humano e sensível aos problemas dos outros, apoiando-os quando necessário;
No plano das relações profissionais é descrito como um profissional competente, dedicado, organizado, eficaz, estratega e com capacidade de liderança;
Em tempos livres o arguido continua a praticar judo e kickboxing e o ginásio;
Na sequência deste processo deixou de participar na loja maçónica;
124. Do arguido MSL...:
Entrou para os serviços de informações - SIS - em Março de 1987;
Frequentou um curso de contra espionagem, fora do País;
No SIS deu formação nos serviços e nos Palops e trabalhou na área da contra-espionagem até 2008, altura em que ingressou no SIED;
No início do seu ingresso no SIED, licenciou-se em ciências aeronáuticas;
Após os factos acima descritos pediu licença sem vencimento no SIS, para onde regressou;
Tal licença foi-lhe recusada, tendo, na sequência dessa recusa, pedido a exoneração do SIS e a integração na Presidência de Conselho de Ministros;
Tal pedido foi igualmente recusado e o arguido acabou por se reformar, recebendo uma pensão mensal no valor de 1400€;
Tem dois filhos, o mais velho com 25 anos de idade, engenheiro aeroespacial e a mais nova aluna do 3º ano do curso de veterinária;
Na sequência destes factos, sentindo-se isolado e ostracizado nos serviços de informações, designadamente pelos seus superiores hierárquicos, sofreu perturbações – insónias e desinteresse designadamente por actividades desportivas-, e teve problemas familiares que o levaram a divorciar-se da mulher;
Vive com os dois filhos;
É descrito pelos colegas de trabalho e superiores hierárquicos como um operacional muito competente, oficial de informações pró-activo, bom profissional, dedicado;
125. Do arguido FLD...:
Devido à morte precoce da mãe – o arguido tinha seis anos de idade – passou grande parte da sua infância e adolescência com os avós paternos que constituíram a sua principal referência afectiva e que assumiram uma atitude educativa orientada pelos valores tradicionais, com características de maior rigidez por parte do avô, militar de carreira.
O percurso escolar do arguido teve alguns períodos de insucesso e concluiu o 9º ano de escolaridade aos dezoito anos de idade.
Durante o serviço militar completou o 12º ano.
Aos 18 anos voluntariou-se para o Exército, tendo ingressado nas tropas paraquedistas, onde permaneceu entre 1993 e 2003;
Durante este período participou em acções de paz, nomeadamente nas Balcãs e integrou um grupo especial, limitado a oficiais, dadas as suas características pessoais e a habilidade/disponibilidade para efectuar saltos em queda livre;
Em 2000, na sequência de um acidente que o incapacitou para a actividade de saltos em queda livre, abandonou o exército;
Na sequência da sua participação no grupo especial foi convidado para o SIS, para onde entrou em 2004, exercendo funções no Departamento Comum de Segurança;
Após frequência de formação interna, em 2008 mudou para uma carreira técnica com a categoria de técnico-adjunto para o desempenho de funções de pesquisa no SIED;
Aos 21 anos de idade iniciou relacionamento afectivo com a arguida GF...;
Durante o período em que exerceu funções no SIS residiu em Lisboa (de segunda a sexta-feira, passando apenas os fins de semana em Vila Nova de Gaia com a companheira e filho);
Em princípios de 2011 pediu para ser transferido para o Porto, voltando a integrar o “Departamento Comum de Segurança” da Delegação Regional do Porto do SIS;
Aufere, por mês cerca de 1200€ e o agregado familiar tem despesas fixas mensais de 900€ (empréstimo para habitação, mensalidade do infantário).
É tido pelos colegas de trabalho e superiores hierárquicos como um profissional dedicado, muito competente, disciplinado, com elevadas aptidões técnicas, muito educado, com conduta irrepreensível, responsável e solidário, sempre disponível para o trabalho, não raras vezes com prejuízo pessoal;
126. Da arguida GF...
A arguida dispôs, durante a infância e adolescência, de dinâmica familiar pautada pela transmissão de valores sociais, morais, normativos e religiosos;
Iniciou a escolarização em idade regular, concluindo o 12º ano num curso profissional de secretariado sem registo de retenções;
Ingressou na Universidade do Porto na Faculdade de Letras, onde frequentou o curso de línguas e literaturas modernas, variante de Português/Inglês, que interrompeu, quando frequentava o 4º ano, para trabalhar e se autonomizar financeiramente;
Em 1999 ingressou na “O..., Telecomunicações, S.A.”, contratada por uma empresa de trabalho temporário, com a categoria de assistente telefónica em linha de apoio a clientes;
Findo um período de quatro meses passou a exercer as funções de chefe de equipa de “call center” na área do telemarketing;
Após vários anos de sucessivos contratos de trabalho, por tempo indeterminado, na O..., em Fevereiro de 2004, ascendeu à categoria de supervisora de operação em centro de apoio ao cliente, funções que manteve até Janeiro de 2010, quando passou a exercer a actividade de gestora de projectos, mantida até à cessação do contrato de trabalho em Setembro de 2011;
Descreve o Trabalho na O... como profissionalmente gratificante;
Iniciou relação afectiva com o arguido FLD... aos 17 anos de idade e passaram a viver em união de facto quando tinha 25 anos de idade;
Têm dois filhos com 1 ano e 7 anos de idade;
À data dos factos o agregado familiar vivia num apartamento adquirido com recurso a empréstimo bancário;
É praticante de “Kung-Fu” desde os 25 anos de idade e está ligada a um grupo de automobilismo;
Após os factos supra descritos, solicitou à O.../NOS a imediata cessação do contrato de trabalho, pedido que foi aceite pela entidade patronal sem que lhe tenha sido instaurado qualquer processo disciplinar;
É tida pela entidade patronal como uma trabalhadora com qualidades no cumprimento de tarefas e muito dedicada ao cumprimento dos objectivos da empresa, tendo esta ficado surpreendida com os factos.
Depois destes factos procurou apoio clínico no âmbito da psiquiatria, isolou-se dos amigos e interrompeu as actividades lúdicas/desportivas em que participava;
Com o apoio da família, do companheiro e do mestre de “Kung-Fu”, conseguiu encontrar estabilidade emocional e concluiu o curso de línguas, literaturas e culturas em 2011/2012;
Durante esse período trabalhou num gabinete de estudos de mercado, como trabalhadora independente, até ao nascimento do segundo filho em 26.04.2014.
Em Fevereiro de 2015 iniciou um estágio profissional, na área do secretariado administrativo, auferindo uma média mensal de 690€;
É tida pelos amigos, pelo Presidente da Federação Portuguesa de Artes Marciais e pelo mestre de Kung Fu como pessoa responsável, com muitas competências pessoais e familiares, empenhada, dedicada e com total disponibilidade para a actividade profissional;
Com relevância para o pedido de indemnização civil apresentado pelo assistente S... apurou-se ainda que:
127. O assistente S... exerce a profissão de jornalista desde 1989 e desde 1993 na área da política;
128. É director- adjunto da Lusa desde Junho de 2011;
129. Logo após a divulgação dos factos supra descritos, algumas das suas “fontes” deixaram de atender os seus telefonemas, recusando-se a falar com o assistente;
130. Os factos acima descritos provocaram-lhe um grande mal-estar e um profundo constrangimento, muitas noites sem dormir, profunda tristeza, um grande stress, nervosismo e arritmias cardíacas;
Com relevância para o pedido de indemnização civil apresentado pelo assistente PPB... apurou-se ainda que:
131. O assistente ficou chocado e perturbado com o teor do “Relatório”, em especial com a parte relativa aos seus filhos e à sua vida intima;
132. Nas semanas subsequentes à divulgação dos factos viveu dias de particular angústia, ansiedade, desconforto e abalo emocional;
133. Foi contactado por amigos e colegas, melindrados com as notícias divulgadas na comunicação social;
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se incluíram no elenco dos factos provados os factos conclusivos, e com interesse para a decisão da causa não se provaram os factos alegados, contrários ou diversos dos que foram dados como provados, nomeadamente, não se provou que:
Da acusação/pronúncia
ü A remodelação a que o arguido MJS... esteve associado, tivesse compreendido, designadamente do ponto de vista dos Recursos Humanos, a promoção de funcionários da sua confiança pessoal, e em especial, a do arguido MSL..., a Director do Departamento Operacional e de JB..., também a Director de Departamento.
ü Por determinação ou actividade própria do arguido MSL..., tivesse sido analisada a facturação detalhada de dirigentes de departamentos do SIED e do SIS que eram objecto de suspeita de MJS....
ü O arguido MSL... pretendesse saber quais os funcionários dos serviços que poderiam ter sido “fonte” do jornalista;
ü Em cumprimento da solicitação que lhe fora feita pelo arguido FLD..., a arguida GF... tivesse solicitado a criação do user “GFTEIXEIRA”, em substituição do user “CCPSUPO1”.
ü O arguido MJS..., no cumprimento de tal propósito - avaliar as hipóteses de ingressar no GO... – tivesse iniciado o estudo da criação de uma estrutura de informação e contra-informação (OSS - GO... Strategic Studies) no seio do grupo e a preparação de uma matéria que sabia beneficiar do interesse negocial da GO... - tipos e localização geográfica de metais estratégicos e caracterização dos respectivos mercados.
ü Tivesse ficado acordado, entre o arguido MJS... e o arguido RAV..., que a contratação do arguido MJS..., nas condições em que foi feita, implicaria a utilização de concretos funcionários do SIED para a obtenção de informação pertencente, ou acessível, a este serviço público que interessasse aos fins próprios da GO....
ü Considerando a expansão internacional do Grupo, que esboçava, então, a criação da GO... Africa e tinha já negócios no Brasil, o arguido MJS... tivesse querido mostrar ao arguido RAV... o valor da sua experiência no SIED, dos seus contactos nos serviços e dos que obtivera por via das suas anteriores funções, bem como da capacidade de obter informações por via dos serviços.
ü Tudo de modo a ser contratado pelo Grupo, para lugares de membro executivo ou de presidente executivo de Conselhos de Administração de sociedades do Grupo e nas melhores condições remuneratórias e de capacidade de decisão.
ü Por determinação do arguido RAV..., a GO... tivesse negociado com dois empresários russos, alegadamente com influência na respectiva esfera de poder nacional, AlB... e AlV..., a celebração de um MOU (Memorandum of Understanding), com vista ao estabelecimento de uma parceria para tomar posição no referido empreendimento do Porto de Astakos.
ü Em execução do acordado entre os arguidos MJS... e RAV..., em finais de Outubro de 2010, o arguido RAV... tivesse solicitado ao arguido MJS... que obtivesse, junto do SIED, que este ainda dirigia, informação sobre os referidos empresários de nacionalidade russa.
ü O arguido MJS... tivesse agido como descrito, em execução do acordado com o arguido RAV... e de modo a provar, ao presidente do GO..., que podia obter, através do Serviço de Informações, informação relevante para os respectivos interesses particulares.
ü O arguido MJS..., não fosse a abusiva utilização da actividade pública do SIED, não teria alcançado o contrato com a GO... nas condições que pretendia - mormente remuneratórias e de capacidade de decisão e afirmação de supremacia -, tendo agido com esse propósito.
ü O arguido RAV... tivesse solicitado ao arguido MJS... que procedesse do modo descrito, no quadro da negociação da contratação deste para o Grupo, porque entre ambos foi acordado que um dos recursos que o arguido MJS... poria ao serviço da GO... seria a informação de que dispunha pelo facto de ser ainda Director do SIED e, em fase posterior à sua exoneração, pelo facto de ter influência em dirigentes de Departamento naquele Serviço público.
ü O arguido MJS... passou a exercer funções no Grupo de acordo com o esperado e em execução do acordado conforme descrito supra.
ü A informação referida no ponto 68, pelo seu conteúdo, detalhe e natureza, apenas pudesse ser obtida por recurso a “fontes humanas”.
ü Na sequência do pedido feito pelo arguido MJS... a um oficial do SIED, para que efectuasse uma pesquisa sobre o porto de Astakos, tivesse sido elaborada uma informação por um seu inferior hierárquico e que essa informação lhe tivesse sido transmitida no dia seguinte.
HJ...
ü Este tivesse sido marido da, à data, companheira de FS....
ü FS... tivesse feito o pedido por saber que o arguido continuava a dispor, dentro do SIED, de funcionários da sua confiança pessoal que desenvolveriam a actividade de pesquisa indispensável à obtenção da informação que pretendia.
Aviões da Líbia
ü A informação transmitida pelo arguido MSL... ao arguido MJS... e por este à jornalista, tivesse sido transmitida e utilizada para fim alheio às atribuições e competências do SIED, tendo apenas como propósito a satisfação do interesse pessoal do arguido MJS....
ü Tivesse o arguido MSL... agido, enquanto agente do Estado, em violação dos seus deveres funcionais, de legalidade e isenção; e determinando-o, o arguido MJS..., em virtude da sua anterior relação hierárquica a agir em violação dos seus deveres funcionais.
Apenso (“Relatório”)
ü O arguido MJS..., ao guardar o denominado “Relatório”, na sua caixa de correio electrónico, tivesse tido em vista uma posterior exploração do seu conteúdo.
Das contestações (factos alegados pelos arguidos MJS... e MSL...)
ü O arguido MJS..., quanto ao acesso à facturação detalhada, tivesse agido de acordo com orientações superiores, segundo o modus operandi dos serviços secretos portugueses, numa situação que assim o exigia;
ü Quanto à alegada transmissão de informação confidencial em prol dos interesses do GO..., o alegado acto de serviço corrupto, por si levado a cabo mediante suposta violação do segredo de Estado, se tivesse traduzido num escrupuloso cumprimento de deveres que sobre si impendiam, sempre dentro dos poderes que lhe eram conferidos;
ü Quanto à utilização dos serviços para obtenção e transmissão de informação a terceiros, que no primeiro caso - base de dados da D... - as condutas dos arguidos MJS... e MSL... tivessem sido circunstancialmente exigidas por interesses do próprio SIED e tivessem agido como lhes competia;
ü O arguido MSL... tivesse cumprido procedimentos operacionais instituídos, sempre no exclusivo interesse do SIRP;
Com relevância para os pedidos de indemnização civil apresentado por S... não se provou que:
ü O nome do demandante tivesse ficado queimado e que o seu valor no mercado tivesse ficado desvalorizado;
Factos irrelevantes
ü E cujos quadros se integravam, já, JA..., ex-funcionário do SIS e FS... que, com outros administradores e funcionários do Grupo e o arguido, partilhavam sessões, encontros e jantares da mesma organização da Grande Loja Legal de Portuga (ponto 41 da pronúncia, segunda parte).
ü A negociação entre a GO... e os supra identificados empresários russos prolongou-se durante o primeiro trimestre de 2011, período que corresponde ao reconhecimento da inviabilidade do negócio, por colapso do empreendimento de Astakos, na Grécia.
ü Desde que internamente, nos Serviços, foi conhecida a sua decisão de sair, MJS... sempre procurou transmitir a ideia de que voltaria, insinuando-se como futuro dirigente do SIRP.
ü Manteve contactos regulares com os dirigentes intermédios do SIED que promovera ou apoiara (ponto 90).
ü Mantinha em seu poder, em finais de Outubro de 2011, na sua residência, três listas, em suporte de papel, contendo: uma, elementos de identificação de quadros da estrutura interna do SIED; outra, referências identificativas da respectiva estrutura interna; e, uma terceira a lista telefónica das estações, no estrangeiro, do mesmo Serviço, tudo contrariando as normas de segurança física impostas para matérias classificadas (ponto 97)
ü E, na aproximação das eleições para a Assembleia da República de 2011, seis meses depois da sua saída do SIED, auscultou dirigentes do SIED e do SIRP de si mais próximos e que promovera ou apoiara enquanto Director do SIED, sobre o seu eventual regresso aos Serviços de Informações (ponto 98).
ü E moveu influência junto de dirigentes partidários para ser designado Secretário-Geral do SIRP e para que fossem nomeados, como directores-gerais do SIS e do SIED e dos departamentos julgados mais relevantes, personalidades que de si eram mais próximas e ainda para que outros não fossem nomeados para os mesmos cargos (ponto 99).
ü Mantendo, mesmo durante a pendência do inquérito interno no SIRP e da acção do Conselho de Fiscalização do SIRP, em Agosto/Setembro de 2011, canais activos com dirigentes internos daquele Serviço, com vista a acompanhar e controlar o desenvolvimento dos procedimentos referidos (ponto 100).
ü Esta proximidade permanente com os Serviços, num quadro de ausência de linha evidente de demarcação, gerava, nos dirigentes e técnicos de si próximos que neles trabalhavam, permeabilidade às pretensões e pedidos do arguido (ponto 101).
ü A confusão entre os Serviços de Informações e o Grupo assentava, igualmente, na criação pelo arguido MJS... de um grupo proveniente do SIS (JA...) e da PJ (PF... e AN...) que, no centro do GO..., se dedicava à informação e contra-informação, empresarial e privada, designadamente:
pela utilização massiva do twitter, de espaços públicos de opinião e de sites para desacreditar concorrentes e defender a figura do arguido MJS..., em finais de 2010/início de 2011, na sequência do seu ingresso no Grupo, e das notícias divulgadas pelo Expresso e desenvolvimentos institucionais e mediáticos que se lhes seguiram, a partir de Julho de 2011;
pela solicitação de informações confidenciais nos serviços de origem, designadamente, sobre o estado de inquéritos criminais, a identificação de titulares de IP addresses ou de proprietários de veículos através da matrícula;
pelo menos numa situação, pela invocação do estatuto de inspector da PJ para obter o pagamento de dívida, em benefício de uma das accionistas do Grupo (arquivado)
Com a seguinte fundamentação e análise crítica da prova:
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base no conjunto das diligências de prova realizadas em audiência de julgamento, analisadas, conjugada e criticamente, e de acordo com as regras da experiência comum.
Destacam-se os seguintes elementos probatórios:
I - Declarações dos arguidos
Prestaram declarações todos os arguidos.
II – Prova testemunhal
Testemunhas indicadas pela acusação:
FN... (engenheiro informático, na bolsa de peritos do DIAP); HG... (coordenador do gabinete de apoio geral da Faculdade de Ciências e Tecnologia do Monte da Caparica, ex-funcionário do SIED); AG... (engenheiro electrotécnico na NOS – Comunicações, S.A., a exercer funções na gestão do sistema de email/correio electrónico); H... (professor catedrático de estratégia e Ciência Política no ISCSP, à data dos factos exercia funções no SIED, desempenhando o cargo de oficial de ligação entre Portugal e a Rússia); AF... (funcionário do SIRP, a frequentar o doutoramento em Estudos Estratégicos, tendo, entre 9.09.2001 e 31.12.2011, exercido funções de Director de Análise Transversal); RPC... (engenheiro de sistemas e computadores na NOS entre 1999/2000 e Agosto de 2012); MV... (técnico coordenador do SIED desde 2010 e Director do Departamento de Relações Externas até essa data); JP... (Procurador-Geral Adjunto e Secretário-Geral de Informações desde 6.05.2005); JB... (oficial de informações no SIED desde 2000); CV... (técnico superior da Polícia Judiciária desde Setembro de 2012 e, entre 16.02.2004 e 31.12.2012, técnico adjunto e técnico superior de informações e entre abril de 2009 e 31.12.2012, director de área técnica do departamento operacional); LO... (jurista, consultor de segurança no Governo de Macau, tendo exercido funções no SIS no período compreendido entre 15.03.2011 e 31.12.2012); PP... (Presidente do Conselho de Fiscalização dos serviços de informações); PB... (fez parte do Conselho de Fiscalização entre Dezembro de 2008 e Março de 2013); FS... (economista);
Testemunhas indicadas pelo assistente S...:
AC... (jornalista); CtC... (jornalista na agência Lusa); SS... (casada com o assistente);
Testemunhas do Apenso
MB... (mulher do assistente PPB...); FPP... (filho do assistente); PN... (gestor); LM... (jornalista, administrador no GI...); JD... (advogado, exerceu funções na SIC); AP... (administrador do grupo de empresas “Matter SGPS”); JF..., (professor universitário); JC... (empresário de comunicação); FC... (jornalista);
Depoimentos escritos (prerrogativa conferida pelo artº 503 do C.P.C ex vi artº 4 do C.P.P.
Assistente PPB... (fls. 4643); testemunha JB... (fls. 5267) MS... (fls. 5276); testemunha AnF... (fls. 5300);
Testemunhas indicadas pela defesa:
Dos arguidos MJS..., MSL... e FLD...
JM... (director do SIED desde 1.12.2010);
Dos arguidos MJS... e MSL...
FT... (Directora de departamento no SIED desde 2001); MR... (oficial da PSP, exerceu funções no SIS entre 2001 e 2004); AC... (director do SIS desde Dezembro de 2014);
Do arguido MJS...
LN... (coordenador superior de investigação criminal e em comissão de serviço como Director da Unidade Nacional contra o Terrorismo); RP... (professor universitário); MaM... (juíz conselheiro jubilado); FaP... (Director Nacional da PSP desde 2011); AB... (inspector chefe da Polícia Judiciária); BrG... (inspector da PJ); HP... (embaixadora de Portugal na Namíbia e ex-directora adjunta no SIED);
Por escrito: da testemunha Alípio Ribeiro (cfr. fls. 5476 com fls.5982)
Do arguido MSL...
MPM… (chefe de gabinete do SIRP);
Por escrito: da testemunha AnL... (cfr. fls. 5495 com fls. 5949)
Do arguido RAV...
AA... (professor universitário, tendo exercido funções como administrador numa empresa do Grupo “GO...”, entre 2009 e 2011/12); FM... (administradora da GO... Share Service entre 2011 a 2015); MA... (ex-mulher do arguido RAV...); JR... (Administrador não executivo na GO... e padrasto do arguido ); AE... (economista e amigo do arguido); RF... Funes (economista e vice-Presidente da GO... desde a sua constituição até Janeiro de 2015); Maria RG... (advogada exerceu funções de chefe de gabinete do arguido RAV... e de RF...); VR... (professor universitário, trabalhou para a GO... entre Maio de 2009 e Fevereiro /Março de 2013);
Dos arguidos FLD... e GF...
JS... (sargento nas tropas pára-quedistas); MJ... (tenente-coronel das tropas pára-quedistas); MN... (tio do arguido FLD...);
CB... (ex-colega da arguida GF... na O...); CI... (gestora de projectos, ex-colega da arguida);
III – Prova pericial
Autos de exame directo e relatórios periciais (apensos 16 e 17);
No julgamento - Auto de transcrição de mensagens de dia 15.08.2010 entre o arguido MSL... e CV... (fls. 5321);
IV – Prova documental
Facturação detalhada (fls. 113 a 118);
Anexo a informação da O... (fls. 155 a 160);
Processo de inquérito do SIRP nº 2-Div/2011 SIRP (fls. 420 a 431);
Relatório do Gabinete do Secretário-Geral do SIRP (apenso 12);
Apenso 1, fls. 150 a 156; 157 a 159; 160 a 172; 173 a 190 (impressão dos ficheiros “Book/.xls) e facturação detalhada dos oficiais do SIED).
Apensos 1 a 10, 13 e 14
Resposta à solicitação de documentos/elementos sobre se existem ficheiros informáticos referentes ao “documento lista de compras” (fls. 723 a 727);
Legislação Segurança (apenso 11);
e-mails impressos entregues no CFSIRP (apenso 15);
Notícia de 7.08.2010, Público (anexo 1);
SMS relativos à negociação entre os arguidos MJS... e RAV... sobre contratação do primeiro pela GO... (por ordem cronológica, temos o sms 35 de MJS... para RAV..., pelas 19h.05m; sms 42, com resposta de RAV..., pelas 19h. 31m; sms 34 de J.S.C pelas 19h.35m; sms 40 de RAV..., pelas 20h.17n; sms 33, de J.S.C., pelas 20h. 21m (pede a RAV... para propor um valor concreto); sms 39 de RAV..., pelas 20h. 34m fala na confiança e amizade que não têm preço); sms32, de MJS..., pelas 20h.48m (fala sobre o seu desencantoo com os serviços e com o país e sobre o desejo de experimentar uma coisa nova e ainda do facto de o seu interlocutor ter à sua volta um grupo de pessoas que admira por terem ambição); sms 31 de MJS..., pelas 21h.07m (insiste com RAV... para lhe indicar um valor); sms 38 de RAV..., pelas 21h.20m (insiste com MJS... de que terá ele de indicar o valor, indicando-o por escrito ou falando pessoalmente no fim de semana seguinte); sms 30 de MJS..., pelas 21h.47m (fala sobre as suas condições remuneratórias nos serviços); por fim, no dia seguinte, 22.10.2010, pelas 11h.40m arguido MJS... informa RAV... que decidiu ir trabalhar para a GO... a partir de 1 de Dezembro (sms 29) e nos dias 24.10.2010 envia sms RF... e a RAV... agradecendo, mostrando-se confiante e expectante na mudança e dizendo a RAV... que tudo fará para o recompensar. (sms 26 e 25).; 19h.05m.; sms 41, do mesmo dia, pelas 19h.31m.; sms 34 pelas 19h.35m; sms 40 pelas 20h.17m; sms 33, pelas 20h.21m).
Do apenso 10181/12 – Apenso B, CD junto e documentos de fls. 35 a 44, 132 a 134, 210, 214, 215, 285 a 297, 360 e 364.
Prova documental, mais relevante, apresentada no julgamento:
Extracto de um denominado “Manual de Procedimentos”, do Serviço de Informações de Segurança, de 2006, divulgado num órgão de comunicação social (fls. 4095 a 4104).
Livro do jornalista António José Vilela “Os Códigos e as Operações dos Espiões Portugueses” (fls. 5208).
Originais dos despachos do Primeiro-Ministro sobre levantamento do segredo de Estado na fase de inquérito por força da instauração do procedimento criminal (fls. 5110 a 5119 e 5151 a 5152).
Comunicações ao Primeiro – Ministro sobre matérias classificadas (fls. 5610 a 5616; fls. 5814/5; fls. 5977/8).
Respostas do Primeiro-Ministro, deferindo parcialmente o pedido de levantamento do segredo de Estado (fls. 5784 a 5805 e 5930, esta contendo resposta a pedido de esclarecimento do Tribunal sobre a falta de envio de outros elementos e ainda fls. 6028 sobre questão dos aviões da Líbia, em manutenção em Portugal).
_____________________
Análise crítica da prova
Questão prévia (segredo de Estado e direito de defesa dos arguidos MJS..., MSL... e FLD...)
Questão que gerou ampla controvérsia.
Três arguidos eram à data dos factos funcionários dos serviços de informações e, nessa qualidade, estavam, à partida, obrigados a, durante o exercício de funções e para além do seu termo, guardar sigilo sobre matérias classificadas na disponibilidade dos serviços de informações, sobre a actividade de pesquisa e análise, classificação e conservação das informações de que tivessem tido conhecimento no exercício das suas funções e sobre a estrutura e o funcionamento de todo o sistema (artº 28 da Lei nº 30/84, de 5.09, com as alterações introduzidas por força do disposto no artº 33-A da Lei nº 30/84, de 5 de Setembro, Orgânica).
Face aos deveres de sigilo a que os arguidos estavam obrigados colocou-se, logo de início, a questão de saber como se iam compatibilizar os direitos de defesa dos arguidos, em caso de colisão com o segredo de Estado.
Esta questão suscitou-se, sem prejuízo de o segredo de Estado já ter cedido nalgumas matérias, ainda na fase de inquérito, para salvaguardar designadamente interesses relevantes decorrentes das necessidades de investigação e julgamento criminais e, claro está, dos direitos de defesa dos arguidos.
Quando o processo foi distribuído para julgamento, os arguidos MJS... e MSL..., alegando que a quebra do sigilo a que se encontravam vinculados, por força das funções que tinham exercido nos serviços de informações, era essencial para o exercício dos seus direitos de defesa no âmbito destes autos, requereram o levantamento do segredo de Estado, sobre um vasto conjunto de matérias e documentos, afirmando que até esse momento tinham visto coarctados os seus direitos de defesa por lhes ter sido reiteradamente negada, pelo titular do segredo de Estado - Primeiro-Ministro -, a possibilidade de revelar os factos essenciais à mesma, bem como o acesso a documentos que contribuíam incontornavelmente para a descoberta da verdade material.
Requereram que o tribunal declarasse a inconstitucionalidade da lei.
Sobre as questões suscitadas pelos arguidos remete-se para as suas contestações, o despacho de fls. 4264 e seg, e os recursos interpostos pelos arguidos.
Não obstante as divergências apontadas sobre o regime legal a seguir – se o anterior ou o actual que obrigava a uma individualização de matérias - foi, ainda assim, possível estabelecer, com todos os intervenientes processuais, uma metodologia que não prejudicasse o prosseguimento do processo e o início do julgamento.
Foi então acordado que o julgamento prosseguiria com inquirição de testemunhas e audição dos arguidos que pretendessem prestar declarações e, no final, o Tribunal, perante a invocação do segredo de Estado, comunicaria ao Primeiro-Ministro as matérias e documentos, sob segredo de Estado, que, em concreto, e face à prova produzida, se afigurassem poder vir a ser relevantes para o exercício do direito de defesa dos arguidos (artº 12 do anexo à lei orgânica nº 2/2014 de 6 de Agosto).
O que veio efectivamente a acontecer.
Em fase de conclusão do julgamento, perante a invocação pelos arguidos de que determinadas matérias e documentos classificados como segredo de Estado, afectavam o exercício do seu direito de defesa e tendo o Tribunal concluído, após produção de prova, que algumas das questões invocadas podiam, com efeito, revestir-se de relevância fundamental para o exercício do seu direito de defesa, e que não eram susceptíveis de ser cabalmente esclarecidos sem o levantamento do segredo de Estado, o tribunal comunicou ao Primeiro-Ministro várias matérias (fls.5610 a 5616).
Como se dizia nessa comunicação, para a qual remetemos, tinham sido devidamente ponderados os interesses em causa e os direitos conflituantes, harmonizando-os, ponderando, por um lado, o prejuízo que a revelação de determinadas matérias classificadas podia causar ao Estado e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação podia causar à defesa dos arguidos.
Concretamente foi comunicada a necessidade do levantamento do segredo de Estado sobre o “Manual de Procedimentos” ou, na hipótese de esta pretensão poder contender gravemente com os interesses protegidos pelo segredo de Estado, Índice desse Manual, conteúdos referentes a “monitorização de comunicações”, glossário e a conteúdos relacionados com o recrutamento e gestão de fontes humanas nas operadoras de telecomunicações; Módulos de Formação utilizados nas acções de formação, cartas/pedidos de exoneração do DGSIED, datadas de Novembro de 2010, dirigidas respectivamente ao então Primeiro-Ministro e ao Secretário-Geral do SIRP; informações internas e relatórios, existentes, à data, nos serviços do SIED, sobre o Porto de Astakos; confirmação da existência de uma operação relacionada com a Líbia e com os factos descritos nos arts. 115 a 118 do despacho de pronúncia e, por, último, informação sobre a FoP....
Em resposta a esta comunicação o Primeiro – Ministro desclassificou as seguintes matérias (fls. 5782):
- excertos do Manual de Procedimentos de 2006 (índice e capítulo sobre “Procedimentos de Pesquisa Humana – O Recrutamento e a Gestão de Fontes Humanas, e o Capítulo I, referente a “Deveres Profissionais”;
- carta de exoneração do arguido MJS... dirigida ao Secretário-Geral do SIRP;
Quanto às demais comunicações o Primeiro- Ministro informou que:
- o levantamento do segredo de Estado sobre a totalidade do “Manual de Procedimentos” exporia o modus operandi das diversas unidades do serviço, fragilizando-o em termos de segurança perante terceiros;
- o acesso aos módulos de formação utilizados nas acções de formação do pessoal do corpo especial do SIRP, embora não suscite questões de reserva absoluta, seria demasiado intrusivo e revelador da preparação e formação ministrada aos oficiais de informações;
- não foram encontradas no SIED quaisquer informações internas ou relatórios sobre o Porto de Astakos;
- não foram encontradas, em 2011 referências ao embaixador Líbio e a aviões Líbios, quer em documentos produzidos, quer em relatórios de cariz operacional (ordens de pesquisa, RINOT ou informação interna);
- face ao disposto no artº 33/1 da Lei nº 30/84, de 5.09, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica 4/2014, de 13 de Agosto, não deve ser levantado o segredo de Estado relativo à confirmação ou informação da existência da “FoP...”.
Posteriormente, após pedidos de esclarecimento do Tribunal - fls. 5814 – e comunicação para levantamento do segredo de Estado sobre uma alegada operação do SIED relacionada com os aviões e a embaixada da Líbia - fls. 5977 - o Primeiro – Ministro informou que (fls. 5930 e 6028):
- a carta de exoneração apresentada pelo arguido MJS... ao então Primeiro–Ministro (J...) não foi encontrada nos arquivos do Gabinete bem como na Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, não existindo qualquer registo da sua entrada e saída;
- tendo em conta que os documentos referenciados em carta fechada pelo arguido MSL... nada têm a ver directamente com qualquer dos elementos da Embaixada Líbia em Portugal e não fazem qualquer referência a aviões da Líbia em Portugal, considerando os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação, e que resulta da lei que qualquer documento, elemento ou informação qualificado ope legis como segredo de Estado só pode ser desclassificado se existir motivo que o justifique, o que não acontece se esses elementos não tiverem relação com a matéria controvertida no processo e que baseou o pedido de levantamento, não se considera haver, no caso concreto, alteração dos pressupostos legais que justificam a classificação dos documentos em causa.
Chegados aqui importa saber se os direitos de defesa dos arguidos ficaram prejudicados e se o dever de sigilo a que se encontravam vinculados coarctou, como afirmaram, os seus direitos de defesa.
Salvo melhor opinião, afigura-se-nos que globalmente os direitos de defesa dos arguidos não foram prejudicados com a metodologia seguida e que, no julgamento, todos puderam defender-se sem grandes constrangimentos, tanto mais que, como se veio a constatar, uma parte considerável das matérias já não estava protegida pelo segredo de Estado, por força de desclassificações feitas na fase de inquérito, e outra não tinha qualquer relação, directa ou indirecta, com o objecto do processo.
Por isso foi fácil, no final, individualizar e identificar as matérias que podiam ser relevantes para a defesa dos arguidos.
Essa individualização teve em conta, não só as declarações prestadas pelos arguidos como toda a prova produzida em julgamento, resultando já da conjugação de vários elementos probatórios, a desnecessidade de comunicar matérias que, em face da prova produzida, se tinham mostrado irrelevantes para a descoberta da verdade e para o objecto do processo.
As respostas do Primeiro-Ministro ainda que insuficientes - essa insuficiência terá obviamente consequências como se verá na motivação da matéria de facto que se segue - por não terem abrangido todas as matérias comunicadas, permitiram ainda assim, revelar, para além da carta de exoneração apresentada pelo arguido MJS... ao Secretário-Geral do SIRP, um extracto do Manual de Procedimentos que tinha suscitado grande controvérsia ao longo do julgamento e ao qual nos referiremos mais à frente.
Por clareza de exposição, faremos uma apreciação crítica e conjugada dos vários meios de prova, seguindo a metodologia da acusação/pronúncia.
I - Questões introdutórias (pontos 1 a 6)
O tribunal baseou-se na Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa, aprovada pela Lei nº 30/84, de 5.09; e na Lei Orgânica do SIRP, aprovada pela Lei nº 9/2007, de 19.02 (artº 26) com as alterações introduzidas pela Lei nº 4/2014 de 13.08.
Jornal Público – ponto11 (anexo 1);
II - Facturação detalhada (pontos 9 a 39)
O que resulta com toda a evidência da prova documental
Ficou suficientemente demonstrado o acesso à facturação detalhada do jornalista S... conforme descrito no despacho de pronúncia.
De facto, a prova documental mostrou, com total evidência, que dois users - CCSUP01 e GFTEIXEI - da O.../NOS, atribuídos à arguida GF... que, à data, exercia as funções de gestora de projectos, naquela operadora de telecomunicações, realizaram pesquisas e exportaram para Excel, dados de tráfego do telemóvel associado ao jornalista S..., nas condições descritas na matéria de facto.
A prova documental mostrou também que o ficheiro Excel foi tratado no computador de FLD..., na chamada rede externa do SIED, ao contrário do que era habitual nos serviços (depoimento da testemunha LO...).
Por fim, também resultou claro, da prova documental, que esse ficheiro, ao qual o arguido FLD... atribuiu a designação de “lista de compras”, foi enviado pelo arguido MSL... para o arguido MJS..., com a designação de “book7.xls”, e que essa lista continha anotações com a identificação de alguns dos destinatários das comunicações efectuadas pelo jornalista S... (apenso 15, fls. 4 a 8).
O perito informático do DIAP e o engenheiro da O.../NOS, testemunha RPC..., que foi responsável pela auditoria interna levada a cabo por esta empresa, corroboraram os factos que já resultavam da documentação.
O que disseram os arguidos
Os arguidos MJS..., MSL..., FLD... e GF..., admitiram o seu envolvimento nos factos, nos termos descritos nos pontos 15 a 27 da matéria de facto, apresentando, porém, explicações e justificações diversas para a sua actuação, que serão adiante analisadas.
A arguida GF... de forma sincera, e não escondendo o seu desapontamento pelo que fez e pelas consequências dos seus actos para a sua vida e carreira profissional, confirmou que fez os acessos referidos, à revelia da empresa, e esclareceu apenas que a alteração do user - ponto 26 - foi feita no âmbito de uma alteração que estava em curso na empresa sem outros propósitos.
Esta afirmação da arguida GF... coincidiu com o que tinha sido dito pela testemunha RPC....
Acrescentou que sabia que, no âmbito das suas funções, não podia fazer esses acessos porque o pedido não era feito pelos canais oficiais mas confiava no companheiro (arguido FLD...) e que nunca lhe tinha sido feito um pedido desta natureza.
Disse, por fim, que dada a urgência com que o pedido lhe foi feito não ponderou muito, “ponderou que seria uma necessidade maior”.
O arguido FLD... disse que o pedido lhe foi feito pelo arguido MSL..., não sabia que se tratava da facturação de um jornalista, que nunca lhe tinham feito um pedido destes, sempre confiou nas ordens que lhe eram dadas, foi instruído para cumprir ordens, tinha grande admiração pelos arguidos MJS... e MSL....
Já os arguidos MJS... e MSL... assumiram, com pequenas divergências, a responsabilidade pelo pedido feito ao arguido FLD... tendo resultado das suas declarações que o arguido MJS..., depois de ter consultado a lista da facturação detalhada dos funcionários a que tinha acesso, no âmbito do exercício das suas funções, e de, logo aí, ter identificado um suspeito, deu ordens ao arguido MSL... para que obtivesse os dados de tráfego do telefone usado pelo jornalista S... e o arguido MSL... actuou em conformidade com o que se dizia na pronúncia.
Destas declarações resultou uma actuação em cadeia, por via hierárquica, impulsionada pelo arguido MJS... e não tanto, como se dizia no despacho de pronúncia, uma actuação impulsionada pelos arguidos MJS... e MSL....
Quanto às razões da sua actuação, os arguidos MJS... e MSL... defenderam-se acusando os serviços de informações de usarem habitualmente, ou “quase diariamente”, essas práticas “ensinadas nos manuais e nos módulos de formação dos serviços”.
O arguido MJS... disse que tomou esta decisão com o acordo do secretário-geral e fez várias afirmações gravemente comprometedoras para os serviços de informações – pareceu, a certa altura que se estava a demarcar de alegadas práticas levadas a cabo por uma organização na qual ocupou um lugar de topo - dizendo que “era normal todas as semanas recorrerem às operadoras”; “a facturação detalhada era uma praxis comum”; “existiam outras práticas mais graves do que isso; “ tudo o que sai da normalidade cria dúvidas sobre a legalidade, não era o caso da facturação detalhada que era habitual”; “até à decisão do tribunal constitucional havia dúvidas sobre a utilização da facturação detalhada”; “a facturação detalhada era um meio de recurso habitual na actividade dos serviços”; “o arguido MSL... cumpriu, no caso, a ordem dada pelo arguido e este deu várias ordens sobre facturação detalhada”.
O arguido MSL..., admitindo que tinha consciência de que estas práticas eram ilegais corroborou muitas das afirmações do arguido MJS... e disse nomeadamente que os serviços têm fontes em todas as operadoras e que este procedimento era habitual.
Sobre o facto de o acesso à facturação detalhada do jornalista S... e às suas fontes, ter sido despoletado por um artigo desse jornalista sobre assuntos internos dos serviços, (remodelações, tensões internas, escolhas de funcionários) – acesso que, como veremos, em qualquer circunstância lhe estaria vedado mas que, neste caso, além do mais, parecia não só desproporcionado, desnecessário e arbitrário como totalmente estranho ao funcionamento e objectivos do SIEDo arguido MJS... enfatizou a gravidade de haver “toupeiras” nos serviços, que passavam informações para a comunicação social, não se sabendo até onde podiam ir, para concluir que o acesso à facturação detalhada do jornalista naquelas circunstâncias era adequado e necessário.
As afirmações dos arguidos MJS... e MSL..., que se foram repetindo ao longo do julgamento, causaram alguma preocupação e perplexidade.
As razões destas reacções são óbvias e compreensíveis. Afinal os arguidos, há largos anos funcionários dos serviços de informações e à data dos factos quadros superiores dos mesmos serviços - arguido MJS... era director do SIED e o arguido MSL... era director de departamento operacional do SIED -, estavam a afirmar que, nos serviços a que pertenciam ocupando lugares de topo, desenvolviam-se reiteradamente práticas que lhes estavam expressamente vedadas pela Constituição e pela lei. Vejamos.
O que diz a lei e a Constituição, recente acórdão do Tribunal Constitucional
Resulta da Lei Quadro do SIRP – Lei nº 30/84, de 5 de Set. – e da Lei Orgânica do Secretário-Geral do SIRP, do SIED e do SIS que os serviços de informações estão vinculados à Constituição e à Lei e que o Secretário-Geral, os membros do seu gabinete e os funcionários e agentes do SIED e do SIS não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais (respectivamente arts. 2º e 4º e artº 6/2/3 da Lei Orgânica).
Daqui decorre que a actividade dos serviços de informações está sujeita ao escrupuloso respeito pela Constituição e pela lei, designadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias (ainda artº 3º/1 da Lei Quadro e artº 6º/1 da Lei Orgânica).
Nestes autos está em causa o acesso, por funcionários dos serviços de informações, à facturação detalhada de um jornalista.
A facturação detalhada integra os chamados dados de tráfego relativamente a comunicações efectuadas e dá a conhecer as “condições factuais da comunicação” (Código de Processo Penal, comentado, António Henriques Gaspar e outros, 2004, pág. 843).
“Efectivamente, na definição de factura detalhada incluem-se, pelo menos, informações relativas a todas as chamadas efectuadas num determinado período, aos números de telefone chamados, à data da chamada, à hora de início e à duração de cada chamada” (ob. citada).
Estes elementos identificam, ou permitem identificar, a comunicação, constituem elementos inerentes à própria comunicação - como resulta com total evidência da análise da facturação do jornalista S..., constante do apenso 15 - podendo pôr em causa a privacidade dos utilizadores do serviço e os direitos fundamentais das pessoas envolvidas no acto comunicacional. Por esta via pode ser totalmente devassada a privacidade dessas pessoas.
Como refere Manuel Costa Andrade “ (…) no seu conjunto, os dados segregados pela comunicação e pelo sistema de telecomunicações revelam-se, muitas vezes, mais significativos que o próprio conteúdo da comunicação em si. O que, de resto, bem espelha o interesse com que, reconhecidamente, a investigação criminal procura maximizar a recolha de dados ou circunstâncias da comunicação, também referenciados como dados de tráfego “(Bruscamente no verão passado- A Reforma do Código de Processo Penal” RLJ, ano 137, Julho/Agosto 2008, pág. 338).
Os dados de tráfego têm, por isso, merecido protecção semelhante aos conteúdos da comunicação, entendendo-se que a área de protecção do sigilo das comunicações, consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, compreende tanto o conteúdo da comunicação como os dados de tráfego atinentes ao processo de comunicação.
Na verdade, dispõe-se no artº 34/4 da CRP que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei, em matéria de processo criminal”.
Como se refere em recente acórdão do Tribunal Constitucional, a que adiante nos referiremos com maior detalhe, (…) há um largo consenso, na doutrina e na jurisprudência, de resto não se conhece posição contrária, no sentido de se incluir os dados de tráfego no conceito de comunicações constitucionalmente relevantes para a proibição de ingerência.
Quer dizer: o âmbito de protecção do artigo 34.º, n.º 4 da CRP abrange não apenas o conteúdo das telecomunicações, mas também os dados de tráfego.
Nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em nota ao artigo 34.º da CRP, salientam que «a garantia do sigilo abrange não apenas o conteúdo da correspondência, mas o “tráfego” como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização)» (ob. cit., pág. 544).
Consequentemente a obtenção de dados de tráfego ou facturações detalhadas só pode ser autorizada por despacho do juiz e quanto aos crimes p. no artº 187/1 e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo (artº 189 do C.P.P.) (ex. suspeitos de crimes puníveis com penas superiores a três anos, de crimes de tráfico de estupefacientes, detenção de arma proibida e tráfico de armas…).
Muito sucintamente é este o quadro constitucional, legal e doutrinário relativo às condições de acesso à facturação detalhada ou aos dados de tráfego, de todos conhecido.
Como se tanto não bastasse, pouco antes deste julgamento se ter iniciado, o Tribunal Constitucional - acórdão nº 403/2015 – no âmbito de um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade de um segmento do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII - que aprovou o “Regime Jurídico do Sistema de Informações da República Portuguesa” - tinha declarado a inconstitucionalidade de uma norma - artº 78, nº 2 - que autorizava os oficiais de informações do SIS e do SIED, para efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artº 4, e no seu exclusivo âmbito – actividades de recolha, processamento, exploração e difusão de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português –, a acederem, mediante autorização de uma “comissão prévia de controlo”, a informação bancária, fiscal, dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação.
O Tribunal Constitucional entendeu que:
- é consensual que a proibição de ingerência nas comunicações, constante do artigo 34.º da CRP, abrange os dados de tráfego e que estes, estão na área da tutela do sigilo das comunicações;
- a “Comissão Prévia de Controlo” é um órgão administrativo, que não tem poderes equivalentes a uma intervenção em processo criminal, tem a natureza de órgão administrativo não inserido jurídico normativamente na organização judicial, pese embora a qualidade dos seus membros. A intervenção da “Comissão de Controlo Prévio” não tem a virtualidade de judicializar o acesso aos dados de tráfego e a titularidade do processo penal é atribuída às autoridades judiciárias competentes (ministério público, juiz de instrução criminal e juiz de julgamento) (acórdão. do TC, pág. 43 e 50, que temos vindo a acompanhar de perto).
Refere-se ainda neste acórdão que uma actividade de acesso aos dados de tráfego, levada a cabo sem conhecimento dos visados, exige regras claras e determinadas que permitam saber até onde pode ir a ingerência, para que haja a necessária segurança jurídica no que toca às restrições possíveis aos seus direitos.
Dito isto, convém sublinhar que, aquela norma, declarada inconstitucional, não ia tão longe quanto foram os arguidos neste processo, por duas razões essenciais:
- só admitia o acesso a tais dados - dados conservados pelas operadoras de telecomunicações - quando, e apenas quando, estivessem em causa actividades de recolha, processamento, exploração e difusão de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português (no exclusivo âmbito do disposto no nº 2, do artº 78 do Decreto nº 426/XII);
- fazia depender o acesso a esses dados de uma autorização prévia e obrigatória, de uma “Comissão de Controlo Prévio”, constituída por três magistrados judiciais, designados pelo Conselho Superior de Magistratura, de entre Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com, pelo menos, três anos de serviço nessa qualidade;
Invocavam-se, aliás, na exposição de motivos, que acompanhava a proposta de lei que deu origem ao Decreto supramencionado, estratégias nacionais de combate ao terrorismo e novos desafios colocados pelas novas ameaças à segurança nacional que impunham o acesso a meios operacionais consagrados pela primeira vez, de modo transparente e expresso, na lei positiva.
Neste contexto os deputados aprovaram uma lei que, não fosse a declaração de inconstitucionalidade, permitiria aos serviços de informações que, no futuro, nas condições referidas, pudessem aceder à facturação detalhada.
Ora, não se vê qualquer semelhança, ou aproximação, entre o que foi aprovado na Assembleia da República e, como vimos, rejeitado pelo Tribunal Constitucional, e o que fizeram os arguidos, por ordem do arguido MJS....
Desde logo porque, diga-se o que se disser, não estavam manifestamente em causa assuntos de independência nacional, necessidades de salvaguarda dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português.
Várias testemunhas pronunciaram-se sobre a gravidade das fugas de informações nos serviços, da preocupação, mal-estar, ou grande mal-estar que causavam internamente estas notícias, como sublinhou o Secretário-Geral do SIRP e a testemunha JB..., da fragilização dos serviços e do efeito “do pica-pau na arca de Noé”, como referiu a testemunha AF..., mas, na verdade, com maior ou menor ênfase, ninguém foi capaz de dizer que estavam em causa assuntos daquela natureza e gravidade.
O próprio arguido MJS... admitiu que as fugas de informação dos serviços não são materialmente relevantes para a segurança nacional, embora tenha considerado que abriam uma brecha, que “quem viola por uma coisa viola por todas”, afirmação que, nos poderia conduzir a perigosas e indesejadas “derivas securitárias”.
Acresce que a decisão não passou, nem podia passar, pelo crivo de uma comissão de controlo. Foi tomada pelo Director e resultou de uma ponderação individual, arbitrária, desnecessária – o arguido por via das suas funções teve acesso à facturação detalhada dos serviços que lhe indicou um suspeito -e totalmente desproporcionada, face aos interesses em causa, escusando-nos de maiores considerações face a tudo o que foi dito sobre os interesses protegidos pelo sigilo das comunicações.
Dito isto e estando suficientemente claro que, face aos dispositivos constitucionais e legais aplicáveis, jamais os arguidos (todos) – também a arguida GF... estava obrigada a garantir a confidencialidade dos dados do utilizador da operadora para a qual trabalhava - podiam aceder à facturação detalhada do jornalista S..., devassando designadamente as suas fontes, importa agora que nos pronunciemos sobre as restantes questões suscitadas pelos arguidos MJS... e MSL....
Como é óbvio não cabe ao tribunal fiscalizar a actividade dos serviços de informações – há órgãos próprios, dependentes da Assembleia da República, para o fazer e cujos representantes foram ouvidos pelo tribunal – nem os serviços secretos portugueses “estiveram em juízo” como referiu a defesa do arguido MJS..., mas cabe-lhe, perante tudo o que foi dito pelos arguidos, apreciar a sua responsabilidade e o seu grau de culpa - o facto de, porventura, terem sido exercidas práticas semelhantes, nestes ou noutros contextos, não exclui a responsabilidade dos arguidos pelos actos que praticaram nem os torna lícitos, como também reconheceu a defesa do arguido MJS... - não esquecendo, contudo, que os arguidos MJS... e MSL... – os arguidos que invocaram, em sua defesa, o uso reiterado destas práticas, já que o arguido FLD... disse que nunca lhe tinham feito um pedido destes e que não tinha conhecimento destas práticas - ocupavam lugares de chefia e um deles tinha atingido o topo da estrutura, era o seu Director com competência para, nos termos da lei, garantir o regular funcionamento do serviço, representá-lo, emitir ordens e instruções.
E um parêntesis para referir que nesta apreciação conta, não só o curriculum dos arguidos, as suas habilitações literárias e formação académica e as funções que exerceram, mas também o seu perfil, sendo, neste particular, indiscutível que o arguido MJS... era um líder.
Todas as testemunhas que o conheceram, nos serviços de informações, ou na GO..., destacaram esta característica da personalidade do arguido.
 A sua capacidade de liderança esteve aliás bem evidenciada na decisão que tomou de abandonar os serviços por estar em desacordo com as medidas tomadas pelo Secretário-Geral do SIRP.
Vejamos então o que foi possível apurar nesta matéria.
Começando pela decisão de aceder à facturação detalhada e saber se o Secretário-Geral do SIRP concordou com a proposta que lhe foi feita pelo arguido MJS..., a prova produzida foi contraditória e totalmente inconclusiva, deixando-nos uma enorme dúvida sobre a veracidade das afirmações do arguido, que nesta, como noutras situações foram, em muitos casos, incongruentes, contraditórias e pouco credíveis.
O exemplo flagrante e chocante deste tipo de afirmações, surgiu quando disse que não chegou a ver a listagem (facturação detalhada) que o arguido MSL... lhe enviou porque tinha muitas operações ao mesmo tempo, esquecendo que, pouco antes, tinha considerado muito grave a fuga de informação - tão grave que poderia ser causa de justificação da sua conduta ilícita - e que, para descobrir as fontes do jornalista, tinha envolvido vários funcionários dos serviços em actos ilícitos, para confirmar suspeitas que já tinha e que, no final, nem sequer tinha interesse em saber o resultado. Totalmente inverosímil.
O arguido MJS... afirmou que a decisão de aceder à facturação detalhada foi tomada numa reunião com o Secretário-Geral do SIRP, na sequência de sugestão que lhe fez e em que o mesmo lhe terá dito para “avançar na medida do necessário”.
Acrescentou que tinha uma relação de confiança com o Dr. JP..., embora, três meses depois, em princípios de Novembro, tivesse apresentado o pedido de exoneração por “se sentir sem condições para exercer o cargo de Director do SIED devido a despachos do secretário – geral de finais de Julho e Setembro de 2010 que o desautorizavam e descredibilizavam os Directores dos serviços” (carta de exoneração).
O Secretário-Geral do SIRP, testemunha JP..., negou, disse que em Agosto estava de férias e que só soube da notícia do “Público” quando regressou. Acrescentou que a notícia, em si, não continha nada de grave. Admitiu que alguém de dentro passou informações, que, quem passa essas passa outras, mas que, se havia suspeitas de que essa informação tinha partido de alguém do serviço, então bastava procurar a facturação detalhada dos serviços. “O universo de pessoas que poderiam ter passado a informação não era muito alargado”.
Referiu, por último, que jamais o desagrado dos serviços poderia justificar o acesso à facturação detalhada do jornalista.
Também a testemunha MV... se referiu à possibilidade de os Directores terem acesso à facturação detalhada dos serviços e considerou esse acesso, nas circunstâncias em causa, normal e natural, embora não fosse bem aceite internamente porque as pessoas tinham a sensação de que estavam a ser devassadas. (sublinhado nosso).
O arguido MSL..., cujas declarações também se revelaram, nalguns aspectos, pouco credíveis - disse, por exemplo, que não sabia de quem era a facturação detalhada, afirmação contraditória com o que disse sobre o impacto da noticia nos serviços - disse que o arguido MJS... não lhe falou no secretário-geral mas que este, no aniversário do SIED, terá falado no assunto e dito que era motivo de preocupação e que se iria fazer tudo para resolver o problema.
Considerando que o aniversário do SIED em 2010 foi comemorado em finais de Setembro ficam-nos sérias dúvidas sobre estas afirmações do secretário-geral, que teriam ocorrido muito depois de o arguido MJS... ter recebido a facturação detalhada do jornalista e muito perto do período em que o arguido decidiu sair do SIED. Mas mesmo que o secretário-geral porventura tivesse feito essas afirmações as nossas dúvidas mantinham-se pelas razões já expostas.
Sobre as alegadas práticas sistemáticas e o Manual de Procedimentos
Recorde-se que os arguidos afirmaram que a decisão de aceder à facturação detalhada do jornalista se inseriu numa prática sistemática e reiterada dos serviços de aceder às facturações detalhadas, tendo o arguido MSL..., para corroborar as suas afirmações, pedido o levantamento do segredo de Estado de uma operação, em concreto, ocorrida anos antes.
O Tribunal não atendeu a pretensão do arguido por considerar que uma “operação dos serviços”, só por si, a ter efectivamente existido, teria pouca relevância para os direitos de defesa dos arguidos e, em contrapartida, a sua revelação podia implicar um perigo ou lesão desnecessários para os bens jurídicos tutelados pelo segredo de Estado, na hipótese, que também não era segura, de haver levantamento do segredo de Estado.
No entanto, perante as graves afirmações feitas pelos dois arguidos, preocupou-se o Tribunal sobretudo em obter informações, de carácter genérico, sobre o funcionamento dos serviços e eventuais desvios ou alegadas disfunções do sistema.
Neste contexto considerou-se pertinente ouvir os membros do Conselho de Fiscalização do SIRP, o actual presidente e um anterior representante do Conselho, quando este era presidido pelo Coronel J..., que acompanhou a investigação que deu origem a estes autos, e comunicar ao Primeiro-Ministro a importância de se ter acesso ao Manual de Procedimentos, ou a partes desse manual, e aos módulos de formação.
O que disseram os membros do Conselho de Fiscalização
Os membros do Conselho de Fiscalização, reportando-se embora a períodos diferentes – a testemunha PP... é membro e presidente do Conselho de Fiscalização desde 2013 e a testemunha PB... foi membro do Conselho entre Dezembro de 2008 e Março de 2013 –, disseram que, para além da situação que deu origem a este processo, e que desencadeou inquirições a todos os elementos do SIED, não tiveram conhecimento de outros casos e não encontraram qualquer fonte que se baseasse em actividade ilegal, nem nos relatórios encontraram quaisquer menções a informações obtidas durante intercepções telefónicas, revelando que nas inspecções que realizaram deram uma especial atenção a esta problemática das facturações detalhadas e intercepções telefónicas.
A testemunha PB..., que pertencia ao Conselho de Fiscalização, quando este era presidido pelo Coronel J..., considerado por várias testemunhas como um presidente pró-activo – ex. testemunha CV... – disse que não viu nenhum relatório sobre a facturação detalhada e que, a ter havido, teria de ser feito fora do sistema, como aconteceu neste caso.
Esta testemunha disse ainda que, na altura em que inquiriram individualmente os elementos do SIED, alguns deles disseram que havia precedentes mas não lhe apresentarem provas, soando-lhe, por isso, a falso.
Estas afirmações da testemunha encontram-se amplamente explanadas no parecer do Conselho de Fiscalização do SIRP, relativo ao ano de 2011 (publicado no DAR, II Série-E, de 2.07.2012).
Nesse parecer diz-se nomeadamente que “ no que se refere à chamada “Lista de Compras” que envolveu o Jornalista S..., não obstante ter sido ordenado pelo Senhor Primeiro-Ministro um novo inquérito, o CFSIRP, atento à gravidade da matéria, assumiu desde logo no quadro das suas competências e referências legais, as iniciativas urgentes e ajustadas ao caso. (Comunicado n.º 2, em Anexo, de 29/8/2011). Assim, o CFSIRP desenvolveu intensa actividade investigatória em momento imediato ao conhecimento da hipótese da existência da referida “Lista de Compras”, e apresentou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias uma análise detalhada das suas diligências e das conclusões a que chegou”.
As testemunhas de acusação e defesa, funcionários e responsáveis do SIED, também negaram a existência destas práticas nos serviços.
Apesar de os arguidos MJS... e MSL... terem desvalorizado o papel do Conselho de Fiscalização, dizendo que raras vezes viram os seus representantes nos serviços, afirmações que, como vimos, não são consensuais, e de terem subestimado os depoimentos que prestaram em julgamento, o certo é que do que foi dito pelos membros do Conselho de Fiscalização e pelos funcionários dos serviços, podemos concluir que o acesso à facturação detalhada teria de ser feito fora do sistema, como aconteceu no caso destes autos e que não era, nem é, uma prática rotineira e habitual dos serviços que, a existir, seria facilmente detectável.
Conclusão que é corroborada pela mensagem enviada pelo arguido MSL... para a testemunha CV... no dia 15.08.2010.
Esta mensagem – MSL... pergunta a CV... “temos o 93” – podendo indiciar ou, pelo menos, não excluir, práticas anteriores semelhantes - e a testemunha CV... admitiu que houve tentativas de organizações congéneres nesse sentido - leva-nos, por outro lado, a concluir que esse procedimento não era tão generalizado, rotineiro, instituído, frequente, como os arguidos afirmaram, pois se assim fosse a pergunta “temos 93” não faria sentido e o recurso à mulher de um funcionário dos serviços a uma “fonte inopinada” também não seria necessário se os serviços tivessem fontes em todas as operadoras.
Por fim, contrariamente ao que foi dito pela defesa dos arguidos MJS... e MSL..., não encontrámos na parte do Manual de Procedimentos, que foi revelada e que corresponde integralmente à parte divulgada pela comunicação social - fls. 4095 a 4104 -, uma indicação segura de que essas práticas ilegais eram ensinadas no Manual de Procedimentos.
De facto, o que se diz na pág. 64, sobre os elementos que podem ser obtidos nas operadoras de telecomunicações móveis pode reportar-se aos chamados dados de base, para efeitos de identificação, sem tratamento, não sujeitos ao princípio da confidencialidade e que não atentam contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos visados nessas pesquisas (ou informações).
O site do SIRP, no capítulo dos princípios e meios de actuação, prevê, aliás, a existência de protocolos com entidades públicas para efeitos de acessos a informações e dados constantes das suas bases, quando relevantes para o exercício das suas competências.
E, assim, após conjugação de todos os elementos probatórios acabados de analisar, ficámos convencidos que os arguidos MJS... e MSL... apesar de terem consciência de que praticaram actos ilegais e de que levaram outros - arguidos FLD... e GF... - a agir da mesma forma, procuraram banalizar estas práticas dentro dos serviços, e, por essa via, desresponsabilizar-se dos seus actos, como se fossem produto ou vítimas de um sistema quando, na verdade, estes arguidos, e em especial o arguido MJS... podiam e deviam não se conformar com elas, na hipótese de efectivamente existirem.
Ora, não só não se provou a reiteração dessas práticas como, conforme já foi dito, os arguidos, face às responsabilidades que tinham no SIED, não podiam deixar de responder por actos ilegais que praticaram e fomentaram, não se encontrando, por todo o exposto, qualquer circunstância justificativa dessa actuação.
Quanto aos arguidos FLD... e GF....
A arguida GF... confessou, com grande humildade, que tinha consciência de que não podia praticar aqueles actos e que cedeu ao pedido do companheiro. Não revelou, nem sequer alegou, falta de consciência da ilicitude da sua conduta.
O arguido FLD... também admitiu os factos mas escudou-se nas ordens recebidas dos superiores, que respeitava e admirava, e na sua educação “militar”, pautada pela disciplina e o respeito pelas ordens dos superiores hierárquicos.
O arguido FLD... ingressou nos serviços de informações em 2004, isto é, à data dos factos era funcionário dos serviços há seis anos, é descrito como um profissional muito competente e dedicado e, nessa qualidade, não devia ignorar o modo de actuação dos serviços e os seus limites – estão referidos nos sites próprios, no manual, parte dos deveres profissionais - sendo certo que estas problemáticas, do acesso a dados de tráfego e escutas, dada a sua sensibilidade, sempre dominaram as atenções da comunicação social ainda antes da ocorrência destes factos.
Por outro lado, o modo informal como o procedimento foi levado a cabo, fora dos canais dos serviços de informações e com recurso à sua companheira que não tinha qualquer ligação aos serviços – não é por acaso que as normas de recrutamento de fontes humanas para os serviços de informações são muito exigentes e obedecem a critérios de selecção rigorosos, havendo que acautelar a segurança do serviço e a confidencialidade dos seus actos e procedimentos – e fora do sistema do SIED, reforçam a convicção de que o arguido tinha consciência que estava a actuar fora dos limites e que estava a praticar uma conduta ilícita.
Por tais razões ficámos igualmente convencidas que o arguido FLD... tinha consciência da ilicitude da sua conduta.
Claro que, nesta actuação em cadeia, as responsabilidades e a culpa deste arguido são muito inferiores às responsabilidades do arguido MSL... e mais ainda do arguido MJS..., questão que será devidamente ponderada na determinação da pena concreta.
III. GO... (pontos 40 a 55)
O que diz o despacho de pronúncia e o Ministério Público
Basicamente, de acordo com o despacho de pronúncia os arguidos MJS... e RAV... teriam acordado que o arguido MJS... seria contratado pelo GO... em troca de informações obtidas nos serviços de informações sobre empresários russos, no âmbito de um negócio da GO... relativo ao porto grego de Astakos, na Grécia, que estava então em curso.
Isto porque, no mesmo período de tempo em que o arguido MJS... discutia com o arguido RAV... a sua contratação para o GO..., o grupo estava a negociar com dois cidadãos russos a exploração de um porto grego - porto de Astakos - e o arguido, cerca de uma semana depois de ter dito ao arguido RAV... que decidira integrar o grupo - msg. de 23.10.2010 -, enviou para a GO... informação obtida nos serviços por sua determinação - através do arguido MSL... e da testemunha H... -, sobre o passado político, a capacidade negocial e as influências – na Rússia e junto do seu presidente VP... - dos dois empresários russos, com quem a GO... estava a negociar e determinou ainda no SIED que fosse feita uma pesquisa, em fonte aberta, sobre o porto de Astakos.
Para além da simultaneidade temporal entre a contratação do arguido MJS... para a GO... e o ilícito praticado por este arguido, através da utilização dos recursos do SIED para propósitos alheios aos seus fins legais e, em concreto, para satisfazer os interesses da GO..., dizia-se que a informação prestada pelo arguido era relevante para o GO... que tinha dois dos seus quadros nesta negociação.
E que inexistia outra razão para a prática deste acto ilícito por parte de J. MJS... – informação sobre cidadãos russos – que só podia ser determinada pela concreta informação, solicitada pelos responsáveis da GO..., e determinada no exclusivo interesse de uma negociação em curso que importava à GO....
O que dizem os arguidos
O arguido MJS... disse que:
- não disponibilizou informação relevante e a que porventura deu nunca chegou ao conhecimento do arguido RAV...;
- a sua saída do SIED fundou-se em razões muito específicas que se acham expressas na sua carta de demissão, sendo autónoma e cronologicamente distinta do seu ingresso na GO...;
- a contratação foi transparente, legal, não desproporcional, justificada e real;
- não ficou provado que o arguido RAV... tivesse condicionado uma futura contratação do arguido à comprovação por este último da sua valia através da prestação de informações (o suborno);
Disse o arguido RAV... que:
- ao contrário da acusação, a pronúncia expurgou o facto e a alegada prova (falsificada, diga-se) que consistia numa alegada transmissão de informação sobre os cidadãos russos de MJS... para o ora arguido;
- se a acusação já não tinha prova de qualquer ilícito criminal, pois mesmo que aquele e-mail existisse, não poderia provar a prática do crime em causa, a pronúncia não contém qualquer facto ou prova que consubstancie uma solicitação do ora arguido para que MJS... violasse os seus deveres, tal como não contém qualquer facto ou documento que verta a alegada transmissão da informação sobre os russos para o arguido RAV...;
- a contratação do arguido MJS... foi discutida e ponderadas por todos os administradores da empresa, tendo estes entendido que, face a algumas estruturas de organização e funcionamento interno, o perfil e as características pessoais e profissionais de MJS... poderiam enquadrar-se nesses projectos;
- foi neste contexto que se desenrolaram os sms;
__________________________
No final da produção de prova, afigura-se ao Tribunal Colectivo que a prova produzida foi inconclusiva e não confirmou a tese da pronúncia e do Ministério Público. Vejamos.
Começando pelas condições e circunstâncias em que o arguido MJS... foi contratado para a GO....
Apurou-se que:
Os arguidos MJS... e RAV... eram amigos e partilhavam a mesma loja da Maçonaria.
- resulta designadamente das declarações dos arguidos – arguido RAV... disse que sendo um amigo e sabendo das suas capacidades, ficou logo interessado em contratá-lo e que anos antes lhe tinha perguntado se não gostaria de trabalhar no grupo pois sempre viu o arguido MJS... como um gestor, um operacional - de vários depoimentos de testemunhas que pertenceram ao GO..., - Alexandra Vasconcellos, JR... - dos próprios sms, mencionados no despacho de pronúncia, num dos quais o arguido RAV... alude à “amizade que os une”.
O arguido MJS..., logo após as férias de Verão de 2010, decidiu sair dos serviços de informações por estar em desacordo com os cortes orçamentais nos serviços e com as medidas adoptadas pelo Secretário-Geral do SIRP.
- este descontentamento do arguido não só se tornou público e foi, na altura, divulgado em vários órgãos de comunicação social - vários emails que constam no apenso 1, pág. 15 e que reproduzem noticias publicadas designadamente no “Diário de Noticias” e no “Diário Económico” - como resulta das declarações do arguido, do depoimento do secretário-geral do SIRP, da carta de exoneração enviada pelo arguido para o secretário - geral, do depoimento da testemunha LN... que disse que se encontrou com o arguido MJS... na cimeira da NATO e que este lhe referiu que estava magoado e aborrecido com o secretário-geral, explicando que tinha assumido uma série de compromissos externos e internos e que, perante os cortes orçamentais, “os projectos iriam por água abaixo” e que lhe disse que ia procurar emprego na privada, tendo-lhe dito mais tarde que ia para a GO....
Nessas circunstâncias o arguido MJS..., contactou com o arguido RAV..., tendo ambos trocado sms, entre os dias 22 e 23 de Outubro, sobre as possibilidades de o primeiro arguido vir a integrar o grupo, e sobre as condições remuneratórias que lhe eram oferecidas.
- da análise dos sms de dia 22.10.2010, entre as 19h.05m e as 21h. 47m, retira-se, em primeiro lugar, que o arguido RAV..., logo no primeiro contacto feito pelo arguido MJS... mostra-se entusiasmado com a hipótese que lhe é colocada pelo arguido MJS... dizendo-lhe “É já amanhã” e ao mesmo tempo diz-lhe que a sua proposta se mantém sine die, ou seja, admite a possibilidade de a contratação não se concretizar naquele momento, por vontade do seu interlocutor, e adianta que a disponibilidade para o contratar se mantém para o futuro (sem data certa).
- retira-se dos mesmos sms que o arguido RAV..., já ciente de que o arguido MJS... está na disposição de abandonar os serviços diz-lhe que se tiver uma oferta dá o mesmo, explicando que “Mais do que tudo há um valor que não tem preço é a confiança … já para não falar da amizade que nos une”.
- por fim, o arguido MJS..., depois de “desabafar” sobre os serviços de informações, manifestou a sua admiração e interesse pelo grupo e, no dia seguinte, informou o arguido RAV... que decidiu integrar a sua equipa referindo, num outro sms, que tudo faria para o recompensar.
E, assim, na primeira semana de Novembro (entre os dias 6 e 8) o arguido MJS... comunicou ao secretário-geral que ia sair e, no dia 8, apresentou a carta de exoneração junta a fls. 5803, parcialmente reproduzida no ponto 79 da matéria de facto.
- o secretário-geral, testemunha JP..., confirmou que o arguido lhe comunicou que ia sair e que lhe disse que tinha recebido um convite da GO....
- na carta de exoneração, o arguido refere não ter mais condições para exercer o cargo de Director do SIED e que tal se deveu a despachos do secretário-geral, um de Julho e três de Outubro de 2010, que, conjugados, levam a que seja feita uma interpretação do funcionamento dos serviços com a qual não concorda; considera que os dois primeiros despachos, constituem uma desautorização e contribuem para a descredibilização dos cargos dos Directores dos serviços e em particular do cargo desempenhado por si esvaziando-o quase por completo das capacidades de exercer as poucas competências relevantes que lhe eram conferidas por lei. Conclui que atingiu o impasse.
A GO... em 2010 identificou a necessidade de fortalecer a sua estrutura de suporte às actividades empresariais optando por um modelo de serviços partilhados e, em 6 de Janeiro de 2011, criou a GO... Shared Services, SA. (OSS) uma empresa de serviços partilhados, tendo em vista a centralização de vários serviços, designadamente contabilidade, tesouraria, recursos humanos, marketing, compras, auditoria, comunicação e segurança
- este objectivo da GO..., está espelhado no documento de fls. 2240 a 2251, fls. 2159 a 2160, na carta-convite apresentada ao arguido MJS... na qual consta que o arguido irá exercer a função de vice-presidente da OSS (formalmente criada no dia 6.11.2011), e resulta das declarações do arguido RAV..., das testemunhas MA..., RF..., RG.... Esta testemunha disse que a GO... Share Services colmatou uma necessidade da empresa que estava a crescer muito, havia um estudo da Delloite apontando para a necessidade de criação de uma estrutura de serviços partilhados para optimizar recursos.
O arguido MJS..., quando exerceu as funções de chefe de gabinete do secretário-geral do SIRP, entre 2005 e 2008, esteve envolvido na implementação de serviços partilhados dentro dos serviços de informações.
- foi dito pelas testemunhas JP... e AF... que o arguido, enquanto chefe de gabinete do Secretário-Geral do SIRP, esteve envolvido na implementação de serviços partilhados dentro dos serviços de informações, tendo, por isso, experiência e conhecimentos nessa área. O arguido também referiu que restruturou organicamente os serviços e que foram os primeiros serviços partilhados na área da administração pública.
Resulta da carta-convite, assinada pelo arguido MJS... em 28.12.2010, que o arguido, no GO..., ia exercer funções de vice-presidente da OSS, que foi formalmente criada no dia 6.01.2011.
- a testemunha JR... disse que o arguido RAV... e o RF... decidiram criar uma empresa de serviços partilhados e andavam à procura de alguém para dirigir essa empresa. Um dia o arguido RAV..., disse-lhe que tinham encontrado a pessoa indicada para esse lugar. Quando soube que o candidato ao lugar tinha pertencido aos serviços de informações discordou pois a GO... já tinha frequentemente notícias, nem sempre agradáveis, nos jornais. Exigiu que, pelo menos, o arguido se comprometesse a não voltar aos serviços. Também a testemunha RF... disse que pediu ao arguido MJS... garantias de que aquela ida para a empresa privada não era um trampolim para subir na vida pública, e que o arguido lhe disse que se tratava de uma mudança da sua vida, não tendo qualquer intenção de voltar à vida pública.
O arguido MJS... auferia, anualmente, o montante 213.931, 89 €, pago em catorze prestações (remuneração mensal líquida de 10.000€, devida por todas as funções desempenhadas no grupo, com carro e telemóvel).
- estas condições remuneratórias foram consideradas pelas várias testemunhas como normais para o cargo que o arguido exercia. A testemunha RF..., responsável pela apresentação da carta-convite, disse que o arguido recebia, “nem mais nem menos, do que as outras pessoas em posições equivalentes”.
Por fim, o arguido RAV... e as testemunhas AA..., FM..., JR..., RG..., destacaram o trabalho que o arguido realizou durante o período em que integrou o GO..., nomeadamente na área dos serviços partilhados. O arguido RAV..., corroborado pelas testemunhas supra identificadas, disse que o arguido MJS... fez a fusão dos serviços com enorme sucesso.
Dos factos apurados, e abstraindo-nos, por enquanto, das outras questões mencionadas no despacho de pronúncia e em particular da informação sobre os empresários russos e sobre a relevância desta informação para a GO..., parece resultar, de forma evidente, do que foi apurado, que a contratação do arguido MJS... para a GO..., se inseriu num processo normal de contratação de um quadro da administração pública, que queria sair dos serviços onde exercia funções e entrar para uma empresa privada, para ocupar um lugar destacado numa área que estava a ser implementada, auferindo uma remuneração compatível com o cargo que ia ocupar no grupo, com a particularidade de os contraentes serem amigos e do segundo pertencer aos serviços de informações.
Resta saber se, como diz a pronúncia, por detrás desta contratação e como condição para a sua efectivação, houve, entre os dois arguidos, algum acordo ou compromisso que obrigasse o arguido MJS... a, enquanto permanecesse nos serviços, utilizar meios dos serviços para beneficiar a GO... e se esse acordo passava, em concreto, pela disponibilização de informações sobre os empresários russos.
É inequívoco que o arguido MJS..., uma semana depois de ter acordado com o arguido RAV... que iria trabalhar para a GO..., na sequência de um pedido que lhe foi feito por FS..., um dos representantes da GO... no “negócio de Astakos”, determinou funcionários do SIED a pesquisarem informações sobre dois empresários russos e a elaborarem um rinot (relatório interno de informação), e a um dos funcionários determinou ainda que a informação fosse obtida, com recurso a fontes humanas, na Rússia, e que, na posse das informações que lhe foram dadas, as remeteu para FS... e este para VR..., que também representava a GO... no negócio que estava em curso sobre o porto de Astakos (apenso 4, vol.1, fls. 9 a 11).
Essas informações, como veremos mais à frente, eram reservadas e confidenciais e o arguido jamais as podia ter usado para fins alheios aos serviços e obviamente não as podia ter enviado para fora dos serviços de informações.
O arguido justificou-se, sustentando que FS..., para quem enviou a informação, era fonte dos serviços de informações e que lhe deu essa informação para receber outras em troca, desconhecendo que se destinava à GO... e que FS..., sua “fonte” “devidamente registada nos serviços” – seria a FoP... -, trabalhava para a GO... e representava o Grupo em qualquer negociação relacionada com os empresários russos.
Esta afirmação do arguido, não nos mereceu crédito, por várias razões:
- não só porque FS... e o arguido se conheciam há muito tempo, pertenciam à mesma loja da maçonaria, eram ambos amigos do arguido RAV..., que também pertencia à maçonaria e que disse que o FS... era funcionário da GO... há cerca de dois anos, reportando-se à data do negócio de Astakos;
- sendo FS... “sua fonte” não era credível, que o arguido MJS..., que foi descrito por todos como organizado, bem informado, muito competente, bom estratega, atributos que são, aliás, inerentes às funções que exercia e aos quais podemos acrescentar a curiosidade e o interesse que estão igualmente associados àquelas funções, não soubesse que FS... trabalhava na GO....
- aliás, de acordo com o “Manual de Procedimentos” – extracto desclassificado na sequência do pedido de levantamento do segredo de Estado apresentado pelo Tribunal – o recrutamento do alvo (potencial fonte humana) passa pelo conhecimento de um vasto conjunto de informações sobre esse alvo, de cariz pessoal, psicológico e profissional, mencionando-se expressamente, aquilo que nos parecia já uma evidência, os “dados profissionais”, o “local de trabalho”, “horários e suas actividades (fls. 64 do Manual de Procedimentos).
Esta afirmação foi ainda desmentida pela testemunha FS... que, não só negou que fosse fonte dos serviços como disse que o arguido sabia que ele trabalhava na GO... e nas lojas em que se encontrava, conhecia-o a ele e ao RAV... e “sabia que ele trabalhava para o RAV...”.
Fique, porém, claro que a falta de credibilidade das afirmações do arguido MJS... resulta essencialmente do facto de tais afirmações chocarem flagrantemente com as regras da experiência, pelas razões já expostas, e não tanto do desmentido da testemunha FS... cujo depoimento, em matéria de credibilidade, nos mereceu algumas reservas e dúvidas.
Certo é que, quanto ao facto de FS... ser alegadamente “fonte” dos serviços de informações, não se fez qualquer prova – o arguido MSL... disse que não conhecia o FS... e que tinha informação de que a FoP... era o arguido MJS..., que a terá criado, e para a qual enviava documentos - e, a fazer-se, seria irrelevante, face ao contexto em que o arguido recebeu o pedido de informações e as enviou, sabendo, é inquestionável, que se destinavam à GO....
Parece-nos, em suma, que o arguido MJS... usou este subterfúgio para não ter que admitir que enviou para a GO... informações dos serviços no mesmo período temporal em que acabava de ser contratado para ir trabalhar para o Grupo.
Mas, pergunta-se, tê-lo-á feito por pudor, não falando de outras questões mais graves adiante analisadas que se prendem com a violação do segredo de Estado, por ter consciência de que o que fez é eticamente censurável e reprovável, ou porque, efectivamente, existia o acordo a que se refere a pronúncia.
Como referiu a testemunha JP..., aludindo a esta questão concreta, o facto, em si, de uma pessoa estar a procurar emprego enquanto mantém a relação laboral antiga não levanta qualquer problema. É normal.
Um parêntesis para referir que essa mudança de emprego de um membro dos serviços de informações, com as responsabilidades do arguido MJS..., para o sector privado, não só não foi considerada normal, desde logo pelas testemunhas JR... e RF..., como, quando essa contratação foi despoletada na comunicação social, o Conselho de Fiscalização do SIRP e outras entidades consideraram, de imediato, premente a criação de um “período de nojo”, o que levou a que em Agosto de 2014 tivessem sido aprovadas alterações legislativas.
Concretizando
Diz-se, no já mencionado parecer do Conselho de Fiscalização do SIRP de 2011, que “o caso que continuou a merecer maior destaque foi a saída do ex-Director Geral do SIED e a sua ida para a GO.... Já no Parecer relativo ao ano de 2010 o CFSIRP manifestou a sua preocupação e “se interrogou se não seria de ponderar, numa futura alteração da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa, a introdução de medidas que impeçam certos quadros, com especial responsabilidade nos Serviços de Informações, de saírem directamente para o sector empresarial, designadamente, através da criação de um impedimento temporário”.
A Assembleia da República introduziu na Lei Quadro do SIRP uma norma - artº 33D introduzido pela lei nº 4/2014 de 13 de Agosto - que determina que os funcionários e dirigentes dos serviços fiquem impedidos de desempenhar funções em organismo ou entidade do sector privado, pelo período até três anos após cessação de funções, por despacho fundamentado do Secretário-Geral, em caso de manifesta incompatibilidade com as finalidades ou o funcionamento do SIRP ou com a segurança e interesses nacionais.
Dito isto e voltando ao depoimento do Secretário-Geral do SIRP, por este foi ainda referido, continuando a reportar-se à entrada do arguido MJS... para a GO..., que não lhe parecia eticamente correcto estar a negociar com uma empresa a sua entrada ou contratação e, ao mesmo tempo, utilizar os serviços, onde ainda trabalhava, para dar informações a essa empresa.
E adiantou ainda que se uma qualquer empresa que pretendia investir trezentos milhões de euros - seria o valor do negócio do negócio de Astakos - num determinado projecto no estrangeiro, não conhecesse os parceiros caberia dentro das funções dos serviços dar-lhes as informações que pretendiam.
Mas se soubesse que o arguido MJS... estava nessa altura a negociar a sua ida para a GO... nesse caso opor-se-ia. Nem pensar! Havia essa incompatibilidade.
E acrescentou que, além disso, o processo foi inverso ao normal, não seguiu os procedimentos normais. Os serviços trabalham no âmbito das suas prioridades. Não foram as prioridades que marcaram este processo, foi um pedido particular dirigido ao arguido MJS.... Não foi definida prioridade pela entidade competente que é o Conselho Superior de Informações.
Parece-nos claro e evidente que este processo desde logo, causa, a todos, enorme perplexidade e não se estranhe que, neste contexto, face à proximidade temporal entre a contratação do arguido MJS... e as informações sobre os empresários russos – informação interna, classificada, como se verá obtida através de elementos dos serviços por recurso a fontes abertas e fontes humanas que, sublinhe-se, nunca devia ter saído dos serviços - se possam ter levantado dúvidas sobre as condições em que decorreu a negociação entre os arguidos RAV... e MJS....
Não obstante toda a censura que se possa fazer à actuação do arguido MJS..., a prova produzida não foi contudo suficiente para que se desse o passo maior e considerar que tudo isto se devia a um compromisso, uma condição negociada com o arguido RAV..., para integrar os quadros do GO....
Perfilam-se várias razões de ordem quase arbitrária:
- Em nenhum dos emails - pedidos e envios de informação está envolvido o arguido RAV..., não há qualquer evidência de que esse assunto tenha estado na “mesa das negociações” e as expressões escritas nos sms“ (…) Dá-me um número líquido que para ti seja justo e que eu possa compensar com o que levo comigo e com o meu trabalho” e “(…) tudo farei para te recompensar” devidamente contextualizadas, podem ter vários sentidos e são totalmente inconclusivas.
Na verdade, numa negociação desta natureza, estando em causa um quadro qualificado, com curriculum, que, como vimos, vai ser contratado para exercer funções de topo na empresa e para as quais estava particularmente habilitado - área dos serviços partilhados - invoque os seus conhecimentos e a sua experiência nessa negociação. E, note-se que a primeira expressão reporta-se exactamente à remuneração que ia receber e, apesar de o arguido dizer no sms que essa questão não era determinante para a sua decisão, não deixa de lhe dar importância, como é natural e compreensível.
A segunda mensagem surge na sequência das anteriores, das quais se depreende que o arguido MJS... está desiludido e decepcionado com os serviços de informações e quer sair, e fica grato pelo facto de o amigo lhe ter proporcionado a entrada no GO... e ao agradecer essa oportunidade diz ao arguido RAV... que tudo fará para o recompensar, muito provavelmente com o seu trabalho e, mais uma vez, com os seus conhecimentos.
Esta troca de mensagens, suscita ainda uma outra questão, que tem aliás sido sublinhada pela defesa e que diz respeito ao facto de, logo na primeira abordagem, a seguir ao primeiro sms o arguido RAV... ter dito ao arguido MJS... que estava na disposição de o contratar de imediato, ou sine die, expressão que, face à incerteza temporal em que tal contratação teria lugar, retira alguma força à tese da pronúncia.
- Quanto ao interesse e importância das informações sobre os empresários russos para o GO... e para o arguido RAV..., com quem o arguido MJS... negociou a sua entrada no Grupo, a prova foi contraditória e também inconclusiva.
O arguido RAV... disse que o VR... e o FS..., funcionários da GO..., lhe falaram no negócio do porto como uma oportunidade para levar matérias-primas da Rússia para o Brasil e do Brasil para a Rússia. Não travou os contactos mas não se entusiasmou com o projecto porque era demasiado grandioso e não tinha trezentos milhões de euros para investir. No entanto, recebeu um dos empresários porque podiam surgir outros negócios.
Disse ainda que, não só desconhecia que FS... tinha pedido a informação sobre os empresários russos ao arguido MJS... como nunca lhe foi enviada essa informação, não obstante terem tentado, através de documento forjado, associá-lo a um email onde constava essa informação.
O arguido referia-se a um e-mail, entregue, através de fonte anónima, a um deputado na AR, endereçada ao então Presidente do Conselho de Fiscalização, Coronel J... supostamente enviado pelo arguido MJS... para o arguido RAV... no dia 2.11.2010 com as informações sobre os empresários russos, email este que foi excluído como meio de prova do envio e recepção do dito email, por, segundo se refere no despacho de pronúncia, se tratar de uma cópia que consequentemente, não permite obter a confirmação que o texto da mensagem foi efectivamente enviado do remetente e para o endereço referidos (cfr. anexo 15 e fls. 3047). Acresce o facto, alegado pela defesa, de este email, não ter sido encontrado no sistema informático da GO... que foi alvo de buscas e apreensões.
As declarações do arguido RAV... foram, no essencial, corroboradas pelos representantes da GO... neste negócio e por JR... e RF....
A testemunha VR... disse que o negócio não era estruturante para a GO..., desvalorizou a correspondência constante do apenso IV, fls. 9 a 11, e disse desconhecer o pedido do FS... a MJS....
FS..., de forma pouco credível, negou que tivesse pedido essa informação ao arguido MJS... e afirmou, de forma vaga e pouco consistente, que o arguido RAV..., numa conversa sobre Astakos e os russos, lhe teria dito para “falar com o Jorge” mas que não o chegou a fazer. O depoimento desta testemunha a que já nos referimos atrás, foi pouco isento e não escondeu a sua animosidade para com o arguido MJS..., tendo reconhecido, em julgamento, que estava aborrecido com o arguido desde que saíram “certas notícias nos jornais”. Percebeu-se ainda que FS... terá sido afastado das responsabilidades que tinha na GO... África e que atribuía a MJS... a responsabilidade por esse afastamento.
Ainda sobre a falta de credibilidade desta testemunha, remete-se para a explicação que deu sobre as razões do “TOP, TOP Secret”, escrito no email que enviou para VR... com a informação sobre os empresários russos. A testemunha FS... desvalorizou esta referência e disse que a usava com frequência em emails privados e que, neste, em particular, tinha um tom jocoso, afirmação que nos mereceu pouca credibilidade por resultar das regras da experiência que esta expressão é normalmente utilizada para enfatizar o carácter sigiloso, ou secreto, de determinada informação como aliás foi referido por VR...
RF... disse que o arguido RAV... falava com toda a gente e que nunca lhe foi mostrado qualquer projecto relativo ao porto apesar de o ter pedido a VR... numa conversa informal e que lhe cabia a ele levar propostas de negócio ao Conselho de Administração do GO.... Explicou que o próprio VR... lhe disse que o investimento não tinha interesse.
Não obstante se reconheça que o arguido RAV... e as testemunhas ligadas ao GO... desvalorizaram de forma excessiva, o “negócio” de Astakos e o interesse do Grupo por esse porto, fazendo afirmações que contrastam com vários emails que revelam algum empenho de vários responsáveis do Grupo nesse negócio, tendo havido até um MOU (memorando de entendimento) que expressa uma convergência de vontades entre as partes (alternativa mais formal ao acordo de cavalheiros) embora não implique compromisso jurídico, que, na verdade, não chegou a ser assinado, o certo é que a prova produzida, no seu conjunto, não foi suficiente para que, nesta parte, se dessem como provados os factos constantes da pronúncia (cfr. apenso 4, vol, 2, emails de fls 2; fls. 157 a 165, 247 e seg, fls. 268, 276 e 282).
Não podemos, por fim, deixar de ser sensíveis à argumentação da defesa dos arguidos MJS... e RAV..., que não choca em nada com as regras da experiência comum, de que se o arguido RAV... estivesse efectivamente interessado em obter informações através dos serviços de informações, se os arguidos eram amigos e se se davam na clandestinidade da Maçonaria, beneficiaria muito mais com a permanência do arguido MJS... nos serviços do que com a sua saída.
IV. Informação sobre empresários russos e porto de Astakos (pontos 56 a 77)
Porto de Astakos
Quanto à informação sobre o porto grego de Astakos apenas se provou, por via dos dois sms – ns. 68 e 69 do apenso 1 – enviados pelo arguido MJS... para a testemunha AF..., à data director do departamento de análise transversal no SIED, que foi pedido a AF... que fosse efectuada uma pesquisa, em fonte aberta, sobre o porto grego.
No mais, não foi possível confirmar se no SIED foi elaborada alguma informação sobre o porto de Astakos e se essa informação foi enviada para o arguido MJS... no dia seguinte (ponto 78 do despacho de pronúncia).
A testemunha AF... depois de ter sido confrontada com os referidos sms, confirmou que os recebeu, embora não se recordasse das mensagens e do seu teor, e disse que o arguido MJS..., na qualidade de Director, tinha toda a legitimidade para dar essas instruções, que o pedido se circunscrevia à sua actividade – explicou que o departamento que chefiava era um chamado “departamento de banda larga” que abrangia várias áreas - mas concluiu, de forma categórica, que não viu qualquer relatório sobre essa temática.
O Primeiro-Ministro, em resposta à solicitação do Tribunal sobre informações internas ou relatórios existentes nos serviços do SIED, sobre o porto de Astakos, como vimos, informou que, sobre essa matéria, não foram encontradas, nos serviços, quaisquer informações internas ou relatórios, no período de tempo referido.
E como tal, perante prova tão inconclusiva, demos como não provado o já mencionado ponto 78 do despacho de pronúncia.
Cidadãos russos – RINOT
Quanto ao relatório sobre os dois cidadãos russos provou-se, igualmente, por via dos sms enviados pelo arguido MJS... para o arguido MSL... e para H..., à data oficial de ligação na Rússia - sms 70 e 323 do apenso 1 -, conjugados com as declarações dos arguidos e da testemunha H..., que o arguido MJS... pediu a ambos que fosse produzida informação sobre os referidos cidadãos.
No sms, dirigido ao arguido MSL..., o arguido MJS... dizia que precisava que o arguido mandasse perguntar às “fontes humanas (“fh”), com acesso à Rússia, sobre antecedentes de dois supostos amigos de VP...”.
Nos dois sms dava a indicação de que era “para fazer rinot”.
Resulta igualmente de prova documental, corroborada pelo arguido MJS... e pela testemunha FS..., que o arguido, no dia 2.11.2010, enviou para FS... e este enviou, no dia 6.11.2010, para VR..., nas circunstâncias descritas no despacho de pronúncia – pontos 71 e 72 da matéria de facto – um documento sobre os empresários russos (fls. 9 a 11 do Apenso 4, vol.1).
Quanto à elaboração de RINOT, relevam ainda as declarações do arguido MSL... conjugadas com o depoimento da testemunha H....
O primeiro disse que, na sequência do pedido feito pelo arguido MJS..., fez um email interno, solicitando a uma directora, sua operacional, que fossem accionadas as fontes humanas na Rússia, o que foi feito, e explicou que esse RINOT que não lhe foi dado a conhecer foi elaborado através de fontes humanas e disse, por fim, que a testemunha H... não era fonte humana e não tinha qualquer ligação ao seu departamento.
Esclareceu, ainda, que não viu o RINOT, nem a “área” o notificou do seu teor, como foi constatado pelo instrutor do processo (testemunha LO...) e como foi confirmado pela testemunha JP....
A testemunha H..., por sua vez, disse que, na data em causa, estava em Portugal por razões pessoais, recebeu a mensagem do arguido MJS... – os contactos eram em regra feitos por este arguido – e fez a informação com recurso a fontes abertas, sendo, aliás, no seu caso, impensável o recurso a fontes humanas.
Em concordância com o que foi dito pelo arguido MSL... a testemunha H... esclareceu que, ao contrário do que sucedia consigo, aquele arguido podia, e devia, ter fontes humanas pois era director do serviço operacional e que o arguido MJS... estava certamente a procurar informações por várias vias, queria “fazer double- check”.
Por fim, confrontado com o RINOT de fls. 51 do Apenso 12 disse que, nem todo ele correspondia à informação que tinha enviado para o arguido MJS..., tinha partes fundidas, alguns dos elementos que constavam do relatório resultavam de pesquisas que efectuou, outros tinham diferente origem, a narrativa não correspondia à sua informação, tinha má qualidade e suscitavam-se-lhe dúvidas sobre a sua utilidade.
Sobre este RINOT, diz-se no relatório produzido no âmbito do inquérito, com vista à averiguação de eventuais quebras de segurança nos serviços, que foi registada a entrada de um RINOT de 2.11.2010, intitulado “perfil de AlB... e AlV...”, classificado de confidencial (consigna-se no documento “Este documento contém matéria classificada. É proibida a sua transmissão ou revelação a pessoas não autorizadas. A distribuição, a transferência, a reprodução, o Arquivo e a Destruição base deste documento estão regulamentados na Resolução de Conselho de Ministros nº 50/88, de 8 de Setembro (SEGNAC1).
E que, relativamente à matéria vertida no RINOT e visando avaliar do grau de reserva, foi realizada uma pesquisa em fonte aberta e, nesse contexto, foi possível identificar, em diversos sítios, em português e em russo, uma parte substancial da informação vertida no referido RINOT do SIED.
Mais se refere que a abordagem e revelação de interesse, bem como a pesquisa realizada pelo Serviço de Informações, com recurso a fonte, assume especial sensibilidade, devendo por tal ser considerada classificada.
Cotejando este relatório com a informação enviada pelo arguido MJS... para FS... e deste para VR..., com a já mencionada referência “TOP, TOP, SECRET”, verifica-se que o RINOT está integralmente reproduzido nessa informação, enviada por email, intercalado com duas informações adicionais sobre cada um dos empresários russos, obtidas por “outra fonte” ou com “outra origem” conforme mencionado na informação (fls. 9 do apenso 4, vol.1, parágrafos 2 a 5, correspondente às alíneas 1 a 5 e fls. 10, parágrafo 9 e seg.).
Na informação adicional, reportada a “outra fonte” e referindo-se a AlB..., diz-se que “os nossos contactos caracterizam-no como um jovem inteligente, muito ambicioso, populista e com um discurso fortemente nacionalista”.
Quanto a AlV... diz-se na informação reportada a “outra origem”, que este cidadão é tido como um indivíduo “errático”, não muito fiável e, mais à frente acrescenta-se que “ mantém fortes laços pessoais com Lu... e com a mulher deste. No presente, parte da sua actividade empresarial estará ligada aos negócios que a mulher de Lushkov desenvolve. Nosso contacto referiu-nos o caso de uma cimenteira, propriedade de Vladislavlev, que trabalha para as empresas de construção civil da mulher de Lu.... Apesar de conhecer bem VP..., não faz parte do seu innercircle”, nem tem ligações estreitas com os homens-de-mão de VP.... A sua ligação de amizade a Lu... poderá afectar o seu relacionamento com VP... e com o K.... Contudo, segundo nossas fontes, dado o seu património político, não deverá ser subestimado”.
E sucedem-se, ao longo do texto, expressões que não nos deixam dúvidas de que grande parte dessa informação foi obtida através de contactos, conversas - ex. “segundo nos foi referido”-, por fontes humanas, na sequência do pedido feito por MJS... ao arguido MSL..., a quem, recorde-se, o primeiro arguido havia pedido que perguntasse às “nossas fh com acesso russia sobre antecedentes de dois supostos amigos de VP... (…)”. E, na verdade, o texto analisa as relações dos cidadãos russos com VP... tal como pretendia o arguido.
E, assim, conjugando todos estes elementos probatórios, podemos considerar que a informação acima analisada é uma junção de informações obtidas por várias vias, umas deram origem ao RINOT de fls. 51, classificado como confidencial, fruto de pesquisas feitas por H... e de pesquisas feitas por fontes humanas, outras, como ressalta do próprio texto e resulta com total clareza do seu conteúdo, baseadas essencialmente em informações obtidas por fontes humanas do SIED que foram integradas num outro relatório que não chegou a ser notificado ao chefe do departamento (declarações do arguido MSL... e relatório do SIRP).
Sobre os efeitos e repercussões da divulgação, para fora dos serviços, de documentos e informações desta natureza a prova produzida foi praticamente consensual permitindo-nos concluir que este tipo de informação, contendo apreciações sobre o carácter, a personalidade, as qualidades e defeitos das pessoas visadas – ex. populista, errático, não muito fiável, ligações de amizade a (…) pode afectar o seu relacionamento com VP... e com o K... –, pessoas influentes e com relações próximas de dirigentes russos, designadamente do Presidente da Rússia (VP...) é demasiado delicado e melindroso, podendo advir, da sua divulgação, graves riscos para a diplomacia, as relações internacionais e a segurança nacional, divulgação que tem de ser imputada, em primeira linha, a quem quebra as regras de segurança que estes documentos reclamam e que foi, inquestionavelmente, o arguido MJS... quando, não obstante a sua classificação e confidencialidade, os enviou para terceiros fora dos serviços (neste mesmo sentido vejam-se as conclusões do inquérito que constam do apenso 12).
Como referiu o secretário-geral do SIRP, a parte mais sensível é saber-se, e ter sido tornado público, que se andava a pesquisar sobre cidadãos russos. Poderia colocar problemas ao nosso oficial de ligação. Seria desagradável para o oficial de ligação que o tivessem confrontado com o facto de andar a fazer pesquisas e não lhes ter perguntado directamente.
A testemunha H... disse que a publicitação do processo criou riscos.
O arguido MSL... corroborou estas afirmações.
Sobre as justificações apresentadas pelo arguido MJS... para o envio da informação sobre os empresários russos para FS..., valem aqui as considerações já feitas sobre a total falta de credibilidade da versão do arguido, escusando-nos, por isso de as repetir.
V. Base de dados “D...” (pontos 86 a 96)
Os arguidos MJS... e MSL... confirmaram os factos descritos no despacho de pronúncia, ou seja que o arguido MJS... já depois de ter saído do SIED, pediu ao arguido MSL... para, através da base de dados “D...”, obter as informações sobre as empresas com participação do empresário madeirense.
O arguido MJS..., insistindo na tese de que FS... era sua “fonte”, disse que a informação lhe foi solicitada pelo FS... nessa qualidade – este facto resulta do email que consta de fls. 280, do apenso 4, vol.II - que se destinava a um general moçambicano e que pediu essa informação no interesse do SIED, não adiantando mais pormenores por estar vinculado ao segredo de Estado
FS... negou. Contudo, como tem vindo a ser dito, o depoimento desta testemunha não nos mereceu total credibilidade.
Porém, sobre FS... - ser fonte dos serviços de informações - valem aqui as considerações já feitas sobre a total falta de credibilidade da versão do arguido MJS..., escusando-nos, novamente de as repetir.
Acresce que, à data, o arguido MJS... já não era funcionário dos serviços de informações, por via do pedido de exoneração, tendo afirmado, por várias vezes, durante o julgamento, que quando saiu desligou-se dos serviços – recorde-se que tinha assumido esse compromisso com os responsáveis do GO... que o contrataram – e o arguido MSL... disse que não conhecia o FS... e que a FoP... tinha sido criada pelo arguido MJS....
O Secretário-Geral do SIRP e o actual Director do SIED, testemunha JM..., que sucedeu ao arguido MJS... no cargo que este exerceu até 1.12.2010, disseram que o arguido MJS... ficou totalmente desligado dos serviços, nem se concebendo o contrário face às circunstâncias em que saiu do SIED e à sua entrada na GO....
Conjugando estas afirmações e analisando-as à luz das regras da experiência comum, parece-nos completamente afastada a tese do arguido MJS....
O arguido MSL..., por seu turno, invocou em sua defesa o facto de a informação que estava a ser pedida não prejudicar os serviços por se tratar de matéria aberta, não confidencial.
A testemunha CV... confirmou que a base de dados “D...” continha matéria aberta e que era uma base de dados comercial, paga pelos serviços, através de avença anual que abrangia um número determinado de pesquisas.
Sobre as pesquisas feitas na base de dados disse que quando saiu a notícia do “Expresso” estava no estrangeiro e, de imediato, confrontou o técnico HG... que lhe disse que tinha recebido ordens do arguido MSL....
Disse que era um procedimento estranho porque o pedido devia ser feito por escrito e devia passar por ele, à data, chefe dessa área.
Disse que os departamentos de análise faziam uma ordem de pesquisa por escrito. Este procedimento ficava registado, com data e hora, no “Smart doc.”. era remetida para a área respectiva e faziam a pesquisa sob forma de relatório escrito.
Restam, por fim, as conclusões do relatório do SIRP, constantes do apenso 12, que corroboram inteiramente aquilo que resulta da prova produzida em julgamento.
Diz-se neste relatório, elaborado na sequência do processo de averiguações interno, que:
Tendo por base os factos mencionados no jornal “Expresso” de 23.07.2011, foram internamente desenvolvidas, de forma exaustiva, diligências no sentido de apurar acerca da possível fuga de informações, com destino ao ex-Director Dr. MJS... e à empresa GO..., num período após a sua demissão.
(…) Consultados os registos obtidos, que juntam em anexo ao relatório – correspondem aos pedidos de pesquisa feitos pelo arguido MJS... a MSL... e enviados por este para aquele arguido – a partir de consulta às bases de dados da empresa D&B, foi possível confirmar que um dos elementos dessas empresas é um empresário de nome HJ...
(…) cumpre referir a coincidência de referência a este nome, indiciando o alegado acesso, por terceiros a comunicação reservada, na medida em que a informação constou apenas de uma comunicação de e-mail efectuada entre o Dr. MSL... e o Dr. MJS....
Conclusão
(..) muito embora a matéria decorrente da consulta da empresa D&B não se configure como sendo classificada e, por tal, de per se abrangida pelo normativo relativo ao segredo de Estado, a sua pesquisa para fins diversos da estrita utilização pelo SIED, constitui desvio funcional e utilização indevida de meio do serviço, passível eventualmente de procedimento interno (LO... e FT...) (fls. 59 do apenso).
Tanto basta para que o Tribunal tenha dado como provados os factos constantes do despacho de pronúncia, convicto de que o arguido MJS..., aproveitando-se das relações de grande proximidade com o arguido MSL... – o Secretário-Geral do SIRP referiu que havia uma relação de grande proximidade entre os dois arguidos e que nestas situações surgem por vezes “aquelas facilidades” – e da antiga relação hierárquica que existia entre os dois, pediu ao arguido MSL... uma informação que, para ser obtida, tinha obrigatoriamente de obedecer a procedimentos internos, que o arguido MSL... conhecia e que ignorou, ultrapassando ainda chefias intermédias para satisfazer interesses pessoais do arguido MJS....
Convém ainda sublinhar que estes procedimentos internos, que são comuns a outros serviços públicos, têm plena justificação nos serviços de informações, serviços com uma natureza específica, que lidam com matérias sensíveis sendo que, como se refere na parte final do relatório do SIRP, a mera abordagem de informação não classificada pode configurar, em abstracto, situações de reserva de informação.
Claro está que na apreciação da culpa do arguido MSL... o tribunal terá necessariamente em conta, a relação hierárquica que existia entre os dois um mês antes deste pedido - quando o arguido MJS... ainda estava no SIED - e a relação de proximidade que tinham, circunstâncias que certamente influenciaram a decisão do arguido de facultar as informações que lhe foram pedidas nos moldes descritos na matéria de facto.
VI. Aviões da Líbia em A... (pontos 97 a 103)
Valem para este caso as considerações já feitas - na “questão prévia” - sobre as consequências do não levantamento do segredo de Estado sobre algumas das matérias consideradas relevantes para o exercício do direito de defesa dos arguidos.
Face ao teor das declarações dos arguidos MJS... e MSL..., e em particular dos esclarecimentos prestados por este último arguido, com detalhe e de forma circunstanciada, sobre uma operação levada a cabo no SIED, que terá estado na origem dos contactos entre os dois arguidos e das informações dadas pelo arguido MSL... ao arguido MJS..., e ainda ao teor das conversas mantidas entre os dois arguidos - mencionadas nos pontos 115 e 116 - o tribunal, não só questionou várias testemunhas sobre esta operação – ex. testemunha JM..., actual director do SIED, e JP... -, como, mediante indicações dadas, em carta fechada, pelo arguido MSL..., comunicou ao Primeiro-Ministro a relevância, para a defesa dos arguidos, da confirmação da existência desta operação e do levantamento do segredo de Estado sobre documentos produzidos nos serviços que estivessem relacionados com a matéria descrita no despacho de pronúncia.
Quer as respostas das testemunhas inquiridas, evasivas e invocando o segredo de Estado, quer a resposta, inconclusiva, do Primeiro-Ministro à comunicação que lhe foi feita - fls. 5977/8 e 6028 - quer o contexto internacional em que os factos ocorreram e o teor do parecer do Conselho de Fiscalização do SIRP, relativo ao ano de 2011, no qual são indicadas algumas das principais linhas estratégicas nesse ano, deixaram-nos uma dúvida razoável sobre a existência dessa operação e, consequentemente, sobre o circunstancialismo que esteve subjacente aos contactos entre os arguidos.
Perante a dúvida instalada, face à prova produzida e enunciada, restou apenas, à luz do princípio in dubio pro reo fundado constitucionalmente no princípio da presunção da inocência – artº 32/2 da CRP – dar como não provados os factos incriminadores dos arguidos.
VII - “Relatório” sobre PPB... (pontos104 a 120)
Os factos da pronúncia, no essencial, não mereceram controvérsia.
A prova documental - apenso B - revelou que o arguido MJS... guardava, ou mantinha, na sua caixa de correio electrónico o denominado “Relatório” e que no dia 17.10.2011, usando o endereço, em seu nome, enviou este “Relatório” para PF..., factos que o arguido admitiu, mas desvalorizou.
Com efeito, demarcando-se do texto, que classificou como “lixo”, e referindo que não havia qualquer relação entre este texto e o pedido que tinha feito a PF... no dia 4.09.2011 - ponto 114 - disse que o recebeu na caixa do correio e aí o deixou e não quis que fosse usado, que o viu na diagonal, estava mal escrito, muitos dos factos que constavam desse texto circulavam na internet, desconhecendo ainda hoje se são verdadeiros ou falsos.
Quanto à circunstância de o ter reencaminhado para PF..., com nota de importância alta, explicou que a importância conferida ao email tinha a ver com a pré definição do autlook e que queria apenas que o PF... o informasse da fidedignidade de alguns factos relatados que o surpreenderam.
Referiu ainda que não tem por hábito apagar os emails da empresa e que, de resto, nunca viu o PPB... e que não tem nada contra o assistente, excepto terem feito dele, arguido MJS..., o alvo na guerra empresarial entre os dois grupos.
De resto, suscitou questões jurídicas sobre a natureza deste documento, que serão adiante analisadas.
Como vemos as declarações do arguido, não puseram em causa os factos da pronúncia baseados na prova documental.
Ficámos ainda convencidos que o arguido MJS..., apesar de ter desvalorizado o texto, de o ter considerado “lixo”, mostrando algum incómodo pelo facto de o relatório ter sido encontrado no seu correio electrónico – admite-se que sentisse esse incómodo agora, no momento em que prestou declarações e já distanciado do contexto que deu origem a este e outro tipo de informações que circularam na internet como resulta do ponto 111, não infirmado pelo arguido e como foi referido pela testemunha JoD..., amigo do assistente-, à data dos factos quis efectivamente guardar o relatório, estando perfeitamente ciente do seu conteúdo.
A nossa convicção advém das próprias declarações do arguido que, embora dizendo que era um mau texto e que se limitou a deixá-lo na caixa do correio, apenas porque não tinha por hábito apagar os emails da empresa, confirmou que o enviou a PF... para certificar a fidedignidade de alguns factos, mostrando que, afinal, o texto lhe suscitou interesse e curiosidade.
Por outro lado também referiu que não tinha nada contra o assistente, nem o conhecia mas, por várias vezes, lamentou o facto de ter sido o alvo principal da guerra entre os dois grupos, o que significa que PPB... não lhe era indiferente.
A esta “guerra empresarial” e às circunstâncias e contexto em que surgiu o relatório referiram-se nomeadamente o assistente PPB..., no depoimento prestado por escrito e o seu amigo JD..., conhecedor profundo das razões dos desentendimentos entre o arguido RAV... e o assistente PPB... e entre GO... e a GI....
Resultou destes depoimentos que a “guerra empresarial” entre os Grupos GI... e GO... deu origem a várias acções em tribunal – sete – postas pela GO... ou por sociedades integrantes desse Grupo contra o GI... e que o ponto alto dessa guerra terá ocorrido em Abril de 2010 ou 2011, no seguimento de uma assembleia geral do GI..., na qual o arguido RAV... tentou afastar PPB... da liderança do grupo.
VIII – Condições pessoais dos arguidos e características da sua personalidade (pontos 123 a 126)
Os factos sobre as condições pessoais dos arguidos, basearam-se nos relatórios sociais - só o arguido MSL... não quis que fosse elaborado relatório social - e nas declarações dos arguidos.
Sobre as características da personalidade dos arguidos, qualidades profissionais e pessoais, inserção social, tiveram particular relevância os depoimentos das testemunhas abonatórias que foram corroborados pelos relatórios sociais.
IX – Pedidos cíveis apresentados pelos assistentes S... e PPB... (pontos 127 a 135)
Quanto aos danos causados ao assistente S... o tribunal baseou-se nos depoimentos das testemunhas indicadas pelo assistente/demandante, conjugadas com as regras da experiência comum.
Destacam-se os depoimentos das testemunhas CtC..., colega do assistente na agência Lusa e de SS..., mulher do assistente. A primeira, presenciou alguns dos factos alegados pelo assistente, nomeadamente as recusas de algumas “fontes” em comunicarem com o assistente depois de terem sido divulgados os factos aqui em causa e de terem tido conhecimento que as fontes, ou algumas fontes do jornalista eram conhecidas.
A segunda assistiu ao estado de perturbação em que o assistente ficou depois de ter tomado conhecimento dos factos, corroborando o que era alegado no pedido de indemnização civil e explicando que depois destes factos o marido voltou a ter arritmias cardíacas, face ao estado de ansiedade e nervosismo em que se encontrava, e necessitou de acompanhamento médico.
Quanto aos danos causados pelo arguido ao assistente PPB... o tribunal baseou-se nas testemunhas acima indicadas. Realçam-se os depoimentos de JD... que explicou que o assistente ficou muito desagradado com o “relatório” e especialmente chocado com as partes sobre os aspectos pessoais (relativa à cocaína, à sua vida intima e aos filhos). Referiu ainda que houve falatório na imprensa e que o efeito negativo deste relatório perdurou.
Também as testemunhas MB..., PPB... e AP..., referiram que o assistente ficou muito perturbado com o relatório, tendo-se desinteressado, durante alguns meses, pela actividade profissional.
Por último, em depoimentos escritos as testemunhas JB..., MS..., AnF... destacaram a figura do assistente, os altos cargos que ocupou, o seu importante papel na comunicação social em geral, no grupo “GI...” e no Semanário “Expresso”. A primeira testemunha destacou igualmente o empenho do assistente pela instauração da democracia em Portugal quando exerceu as funções de deputado independente à Assembleia Nacional, representando a ala liberal, as condecorações que recebeu. A segunda testemunha manifestou a sua amizade e admiração pelo assistente, nos planos pessoal, profissional e cívico e a terceira testemunha o seu carácter recto e justo a sua frontalidade, generosidade e lealdade.
Além de realçarem as qualidades e a figura do assistente referiram que tiveram conhecimento do “Relatório” através da imprensa e que consideraram esse documento uma grave devassa da vida do assistente e um sério ataque à sua reputação que teve um impacto negativo na vida pública e privada do assistente (JB...). A testemunha AnF... refere ainda que em contacto com o assistente percebeu que estava amargurado e revoltado com o que se dizia a seu respeito no “Relatório”.
X – Factos não provados e irrelevantes
Quanto aos factos não provados, como já foi referido ou não foi feita qualquer prova que os confirmasse ou, perante o conjunto da prova produzida e respectiva apreciação crítica, não conseguiu o Tribunal formar, com a segurança que se impõe e com o grau de certeza que, em julgamento, a prova exige, a convicção da respectiva veracidade.
Embora correndo o risco de parecer uma redundância, uma vez que logo no início se diz que não se incluíram, no elenco dos factos provados os factos conclusivos e irrelevantes, ainda assim, para tornar mais clara a selecção feita pelo tribunal elencam-se, no final, os factos considerados irrelevantes.
E a seguinte subsunção jurídico-penal:
O arguido MJS... encontra-se acusado por um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime), em concurso aparente com um crime de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelo artº 44, n.°s 1 e 2, al. b) da Lei n.° 67/98, de 26.10 (Lei da Protecção de Dados Pessoais); três crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal, dois dos quais imputáveis, nos termos do artº 28 do mesmo diploma; um crime de violação de segredo de Estado, na forma consumada, p. e p. pelos n.° 1 e 3, do artº 316 do Código Penal; um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artº 373, n° 1 do Código Penal e um crime de devassa, por meio de informática, p. e p. pelo artº 193, nº1 do C. Penal.
O arguido MSL... encontra-se acusado por um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime), em concurso aparente com um crime de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelo artº 44, n.°s 1 e 2, al. b) da Lei n.° 67/98, de 26.10 (Lei da Protecção de Dados Pessoais) e três crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382 do Código Penal.
O arguido RAV..., por um crime de corrupção activa para acto ilícito, p. e p. pelo artº 374, n.° 1 do Código Penal, na forma consumada;
O arguido RAV... Lopes Dias, um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, nº1 e 4, al a) da Lei nº 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime);
A arguida GF..., por um crime de acesso indevido a dados pessoais, p. e p. pelos artº 44, nº1 e 2, al. b) da Lei nº 67/98, de 26.10 (Lei de protecção de dados pessoais) e um crime de violação de segredo profissional, p. e p. pelo artº 195 do C. Penal.
Do crime de acesso ilegítimo agravado (artº 6, ns 1 e 4, al. a) da Lei nº 109/2009, de 15.09, Lei do Cibercrime)
Comete este crime quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático (este crime está numa relação de concurso aparente com o crime p. no artº 44, nº1 e 2, al.) b da Lei nº 67/98, de 26.10)
A pena é agravada, nos termos do nº 4, al. a) daquele diploma legal, quando, através do acesso, o agente tiver tomado conhecimento de segredo comercial ou industrial ou de dados confidenciais, protegidos pela CRP e pela lei.
O tipo subjectivo deste ilícito não exige qualquer intenção específica (como seja o prejuízo ou a obtenção de benefício ilegítimo) ficando preenchido com o dolo genérico de intenção de aceder a sistema.
O bem jurídico protegido pelo crime de acesso ilegítimo é a segurança dos sistemas informáticos (neste sentido, entre outros, acórdãos do TRP de 8.01.2014, acórdão do TRC de 17.02.2016).
Sobre a natureza dos dados e a sua confidencialidade, para efeitos da agravação prevista no nº4, al. a) remete-se, no essencial, para tudo o que foi dito na motivação da matéria de facto (parte II).
Sublinha-se, contudo que a facturação detalhada integra os chamados dados de tráfego e dá a conhecer as “condições factuais da comunicação” (Código de Processo Penal, comentado, António Henriques Gaspar e outros, pág. 843).
Estes elementos permitem identificar a comunicação e podem revelar-se mais intrusivos do que o próprio conteúdo da comunicação.
Por isso, é consensual que estes dados são confidenciais e merecem protecção semelhante aos conteúdos da comunicação e que a área de protecção do sigilo das comunicações, consagrada no nº 4 do artº 34 da CRP, compreende tanto o conteúdo da comunicação como os dados de tráfego atinentes ao processo de comunicação.
Dito isto, face ao que se deu como provado nos pontos 15 a 27 da matéria de facto teremos de concluir que os arguidos MJS..., MSL... e FLD... não só acederam, sem permissão legal ou sem qualquer autorização, através da arguida GF..., à base de dados da O.../NOS, operadora de telecomunicações onde o número utilizado pelo jornalista S... estava activado, como, por essa via, tomaram conhecimento de dados pessoais confidenciais constitucionalmente protegidos.
O acesso é ilegítimo por extravasar as competências funcionais, quando ocorre num quadro não justificado, quando através dele o agente procura obter informações confidenciais por motivos exclusivamente pessoais ou particulares, como ficou provado.
Provou-se igualmente, nos pontos 31 a 33, que os arguidos MJS..., MSL... e FLD... sabiam que o referido acesso constituía um desvio, não permitido pela Lei, ao fim a que a base de dados se destinava, que inexiste base legal que atribua aos Serviços de Informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas. que lhes era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio e que os dados relativos às comunicações telefónicas constituem dados pessoais, relativos à vida privada e, no caso, também, às fontes de um jornalista, estando, todos eles, protegidos por Lei.
Os arguidos MJS..., MSL... e FLD... agiram em conjugação de esforços e de intentos.
Mostram-se plenamente preenchidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de acesso ilegítimo pelos quais os três arguidos se encontram pronunciados.
E inexistem causas de exclusão da ilicitude ou erro sobre as circunstâncias de facto (arts. 16, 31/2 e34, al. b) do C. Penal).
O arguido MJS... sustentou que não podia ser criminalmente responsável pelos actos que efectivamente praticou pois o ordenamento jurídico português não reconhece o desvalor para o qual a acusação pretende apontar “dada a função e o dever impostos aos serviços de informações de valia inquestionavelmente superior que justificam estas acções”
Tal afirmação não podia ser menos exacta. A prova do reconhecimento do desvalor da conduta dos arguidos está bem patente em tudo o que já foi dito na motivação da matéria de facto, no recente acórdão do Tribunal Constitucional, a que se alude na mesma motivação, e no próprio decreto, aprovado na Assembleia da República. Também sobre a relevância (muito relativa face aos valores em causa) das fugas de informação nos serviços de informações remete-se para a parte II da motivação.
Na verdade, face ao que se provou e pelas razões sobejamente expostas inexistem as invocadas causas de exclusão da ilicitude - artº 31/2 do C. Penal - e estado (direito) de necessidade como causa de justificação p. no artº 34 do C. Penal.
Sustentou ainda o arguido MJS... que o Tribunal deveria subsumir a sua conduta a erro sobre os pressupostos destas causas de justificação. Subjectivamente o arguido supôs erradamente a verificação desses pressupostos.
Pelos mesmos motivos já expostos na motivação da matéria de facto e ainda pelas responsabilidades que o arguido tinha nos serviços de informações – era um quadro de topo, ocupando desde 2008 a posição de Director do SIED – pelos anos de serviço - dezanove - pelas habilitações académicas – licenciado em Direito – pelas características da sua personalidade, a que já nos referimos, jamais o arguido MJS... podia incorrer em erro sobre o âmbito da proibição e dos limites a que estava sujeito, nas circunstâncias descritas (artº 17/1/2 do C. Penal).
Do crime de acesso indevido de dados pessoais agravado (artº 44, ns. 1 e 2, al. b) da Lei nº 67/98 de 26.10)
Comete este crime quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado.
Este crime é agravado – a pena é agravada para o dobro dos seus limites – designadamente quando o acesso (…) ; b) tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais.
Entende-se por dados pessoais qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável; é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um outros elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social (artº 3).
Neste crime está em causa o acesso a dados pessoais, sem qualquer relação com as funções, independentemente de ter havido violação de sigilo ou de esses dados terem sido transmitidos a terceiros.
Basta que o agente aceda indevidamente aos dados pessoais para os conhecer.
A pena é agravada se o agente tiver possibilitado a terceiros o conhecimento desses dados.
Ora, no caso vertente a arguida GF..., em virtude das suas funções na operadora de telecomunicações podia aceder ao sistema e à facturação detalhada desde que o fizesse no âmbito de qualquer necessidade funcional, resultante da sua actividade, o que não aconteceu.
A facturação detalhada do jornalista contém dados que se integram na definição de dados pessoais p. no artº 3 da Lei 67/98, de 26 de Outubro e que neste caso, além do mais, são confidenciais constitucionalmente protegidos.
Provou-se que a arguida GF... sabia não poder legalmente aceder a tais dados, da forma descrita nos pontos 17 a 21 e 26 e 27 da matéria de facto.
Mais sabia que não podia revelar a terceiros os dados que tinha obtido.
E que sabia que não estava obrigada a cumprir quaisquer ordens ou instruções e que agiu livre e conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida.
Mostram-se igualmente preenchidos os elementos típicos do crime de acesso indevido agravado pelo qual, de resto, a arguida se encontrava pronunciada.
Do crime de abuso de poder (artº 382 do C.P.)
Comete este crime o funcionário que abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
Como refere Henriques Gaspar “No crime de abuso de poder, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.
(…) A estrutura do crime, no primeiro momento de configuração da acção típica, fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função.
Mas, para além do tipo objectivo, exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, mas que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo – a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa (acórdão do STJ de 23/1/2008, relator, conselheiro Henriques Gaspar, processo – 07P4279, www.dgsi.pt)
Está em causa, neste tipo de crime, a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.
O preenchimento do tipo legal poderá ter lugar através do abuso de poderes ou da violação de deveres inerentes às funções do funcionário (Comentários Conimbricenses do C. Penal, vol. III, anotação de Paula Ribeiro de Faria, pág. 774 e seg.).
O abuso de poderes consiste numa instrumentalização de poderes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo.
O funcionário, e tem necessariamente que ser funcionário no sentido utilizado no art. 386 do C. Penal, tem que actuar com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
O benefício é toda a vantagem que o sujeito pretende retirar da sua actuação. Pode não ser patrimonial. Basta a sua ilegitimidade.
Quanto ao dolo - e trata-se de crime doloso - exige-se, como vimos, uma especial intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. Tem de haver uma especial intenção de obter um benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou de causar um prejuízo a terceiro independentemente desse beneficio vir a ser alcançado. A conduta é orientada em ordem a atingir esse mesmo resultado.
No caso em apreço estão em causa três situações distintas, descritas nos pontos 15 a 27 (facturação detalhada do jornalista S...); 86 a 96 (Informação obtida na base de dados do SIED, D...) e 97 a 103 (Informações sobre aviões Líbios em manutenção em Alverca).
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Desde já quanto a esta última situação – informações sobre os aviões líbios - pelos motivos já expostos na motivação da matéria de facto não se deu como provado que:
A informação transmitida pelo arguido MSL... ao arguido MJS... sobre os aviões líbios, e por este à jornalista, tivesse sido transmitida e utilizada para fim alheio às atribuições e competências do SIED, tendo apenas como propósito a satisfação do interesse pessoal do arguido MJS....
Também não se provou que o arguido MSL... tivesse agido, enquanto agente do Estado, em violação dos seus deveres funcionais, de legalidade e isenção; e determinando-o, o arguido MJS..., em virtude da sua anterior relação hierárquica a agir em violação dos seus deveres funcionais.
Razão pela qual, quanto a esses factos, em concreto, os arguidos MJS... e MSL... serão absolvidos do crime que lhes era imputado.
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No tocante à primeira situação, deu-se como provado, em primeiro lugar, que à data dos factos, os arguidos MJS... e MSL..., eram funcionários dos serviços de informações da República Portuguesa, ou seja, eram funcionários no sentido utilizado pelo artº 386 do C. Penal.
Nos termos deste preceito legal considera-se funcionário todo aquele que é chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe, mesmo que tenha sido chamado provisória ou temporariamente, e ainda que não seja remunerado (cfr. Comentário Conimbricenses do C. Penal, tomo III, pág. 779).
Os funcionários e agentes dos serviços de informações, enquanto funcionários públicos, estão sujeitos aos deveres e incompatibilidades comuns à generalidade dos funcionários do Estado, consagrados na Constituição e na lei.
Assim recaíam sobre os arguidos designadamente os deveres de lealdade, de prossecução do interesse público, de isenção, de sigilo e reserva.
Impendiam ainda sobre os arguidos vários deveres funcionais, comuns à generalidade dos funcionários públicos, consagrados na Constituição e na lei.
Mais se provou que os arguidos, de forma concertada e conjugada, determinaram um seu inferior hierárquico, o arguido FLD..., também funcionário, a, através da sua companheira, funcionária numa operadora de telecomunicações, aceder à facturação detalhada de um jornalista (dados confidenciais protegidos pela CRP).
Provou-se igualmente que actuaram ambos nas condições acima apreciadas – crime de acesso ilegítimo agravado – sabendo que não tinham esse poder (de aceder à facturação detalhada do jornalista).
Provou-se, por último, que os dois arguidos, com tal conduta, queriam reforçar a esfera pessoal de poder interno do arguido MJS... e este, por sua vez, queria identificar e isolar funcionários de que suspeitava como fontes de informação de jornalistas.
Nesta situação face a tudo o que acima foi dito, estão totalmente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de poder.
Na segunda situação provou-se que, em 10.12.2010, depois de ter cessado as suas funções no SIED, na sequência de pedido de exoneração que foi aceite com efeitos a partir de 1.12.2010, o arguido MJS..., na sequência de pedido que lhe foi feito por FS..., pediu ao arguido MSL..., em data não apurada, mas compreendida entre 10 e 21 de Dezembro, que recolhesse e lhe transmitisse informação sobre as sociedades H...,S.A., M... Consultadoria, Lda., M... Gestão de empresas, Lda., I... Construções, S.A., C..., Lda. e B..., Lda., todas com participação de HJ..., residente na Região Autónoma da Madeira.
Provou-se ainda que o arguido MSL... determinou, directamente, sem conhecimento da chefia intermédia, a HG..., à data em funções no SIED, no Departamento Operacional, que, por recurso à base de dados “D...”, recolhesse informação sobre as sociedades participadas pelo referido empresário, fornecendo-lhe as respectivas denominações e, na posse dessa informação, no dia 21.12.2010, transmitiu-a a MJS... e este, por sua vez, transmitiu-a no mesmo dia a FS....
Esta informação foi recolhida na base de dados da D..., a que o SIRP acede em razão de contrato e mediante o pagamento de quantias monetárias, incluindo um preço por consulta.
E destinou-se a fim alheio às atribuições e competências do SIED e para satisfazer o interesse pessoal do arguido MJS....
Resulta claro que, nas circunstâncias descritas, o arguido MSL..., enquanto agente do Estado, agiu em violação dos seus deveres funcionais, de legalidade e isenção.
Mostram-se mais uma vez totalmente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de poder devendo o arguido MJS... ser punido por força do disposto no artº 28/1 do C. Penal.
Dispõe-se neste preceito legal que se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora.
Sendo incontestável, à luz da alínea c) do artº 386 do C. Penal, a qualidade de funcionário em que o arguido MSL... interveio e decorrendo da prova produzida que o arguido MSL... actuou em co-autoria com o arguido MJS..., pessoa a quem a informação da base de dados se destinava, beneficiário, portanto, da acção, por força do disposto no artº 28, nº1 do C. Penal, impõe-se a extensão ao co-arguido MJS..., não funcionário, da qualidade detida pelo arguido MSL... (neste sentido, entre outros, acórdão do TRC, de 28.05.2014, publicado em www.dgsi.pt).
Do crime de violação do segredo de Estado
Dispunha-se no artº 316/1/3 do C. Penal (antes das alterações introduzidas pela Lei Orgânica nº 4/2014, de 13 de Agosto) :
1. Quem, pondo em perigo interesses do Estado Português relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna e externa, transmitir, tornar acessível a pessoa não autorizada, ou tornar público facto ou documento, plano ou objecto que devem, em nome daqueles interesses, manter-se secretos é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. (…)
3. Se o agente praticar os factos descritos nos números anteriores violando dever especificamente imposto pelo estatuto da sua função ou serviço, ou da missão que lhe foi conferida por autoridade competente, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
Dispõe-se actualmente no artº 316/1/3 do C.Penal
1. Quem, pondo em perigo interesses fundamentais do Estado Português, transmitir, tornar acessível a pessoa não autorizada ou tornar público, no todo ou em parte, e independentemente da forma de acesso, informação, facto ou documento, plano ou objecto classificados como segredo de Estado que devem, em nome daqueles interesses, manter-se secretos.
2. (…)
3. Este crime é agravado se o agente violar dever especificamente imposto pelo estatuto da sua função ou serviço, ou da missão que lhe foi conferida por autoridade competente (artº 316/3)
Dispunha-se no artº 32 da Lei Quadro do SIRP, aprovada pela Lei nº 30/84, de 5 de Setembro
1. São abrangidos pelo segredo de Estado os dados e as informações cuja difusão seja susceptível de causar dano à unidade e integridade do Estado, à defesa das instituições democráticas estabelecidas na Constituição ao livre exercício das respectivas funções pelos órgãos de soberania, à segurança interna, à independência nacional e à preparação da defesa militar
2. Consideram-se abrangidos pelo segredo de Estado os registos, documentos, dossiers e arquivos dos serviços de informações relativos às matérias mencionadas no número anterior, não podendo ser requisitados ou examinados por qualquer entidade estranha aos serviços, sem prejuízo do disposto nos arts. 26 e 27.
3. (…)
4. (…)
Dispõe-se actualmente que:
1.São abrangidos pelo segredo de Estado os dados e as informações cuja difusão seja susceptível de causar dano aos interesses fundamentais do Estado tal como definidos na lei que estabelece o regime do segredo de Estado.
2. (…)
3. (…)
4. (…)
Em qualquer uma das redacções do artº 316 do C. Penal não se oferecem dúvidas que o crime de violação do segredo de Estado visa proteger os bens jurídicos do Estado Português, e que esses bens serão a segurança externa (na sua vertente de independência e integridade nacionais) e a segurança interna.
É um crime de perigo concreto, ou seja, não se exige um dano efectivo nos bens tutelados, consumando-se com a mera colocação em perigo dos interesses protegidos pela norma.
Com efeito, “A indiscutível relevância dos bens jurídicos referidos justifica que o espectro da tutela penal não se cinja às condutas que efectivamente lesem o seu núcleo essencial (…) antes se situem num momento anterior à lesão, quer pela criação de delitos de atentado quer, como é o caso vertente, pela construção de crimes de perigo” (Comentário Conimbricense do C. Penal, tomo III, pág. 118).
O tipo objectivo consistia, e consiste na actual redacção, na transmissão, colocação na disponibilidade de pessoa não autorizada, ou na revelação pública, de documento, plano ou objecto que deva manter-se secreto ou seja sujeito a segredo de Estado, ou classificado como segredo de Estado.
Com relevância para a questão a decidir importa ter presentes os vários critérios de apreciação de matérias e documentos, para efeitos de classificação ou vinculação a segredo de Estado.
Neste particular, refere Medina de Seiça que “ (…) De acordo com um conceito formal de segredo de Estado, o conceito de matéria secreta depende de um acto de vontade subjectivo emanado da autoridade competente pelo qual determinados factos, documentos são colocados sob reserva (a chamada classificação). Em último termo, o segredo de Estado, surgindo com o acto de classificação formal, poderia nem sequer estar dependente da relevância objectiva da matéria sujeita a reserva, pelo que existiria violação de segredo sempre que fosse revelado algo classificado, ainda que dessa divulgação não decorresse qualquer dano ou perigo de lesão para os interesses do Estado.
(…) Diversamente, para o conceito material de segredo não é relevante a existência de uma classificação como reservada em relação a determinada matéria. Essa classificação, quando exista, traduz um mero indício de que se trata de conteúdo com dignidade pra estar coberto pelo segredo.
E, assim, apesar de a divulgação incidir sobre matéria formalmente reservada, isto é, à qual foi aposta a classificação, pode não haver, em termos materiais, verdadeira revelação de segredo de Estado.
A determinação do segredo depende, pois, de acordo com esta autor, que temos vindo a acompanhar de perto, da natureza da matéria em causa, designadamente da circunstância de a sua divulgação para além do círculo dos legitimados a conhecê-la poder implicar um perigo ou lesão para os bens jurídicos tutelados com o instituto da reserva e consequentemente com a incriminação penal.
(…) Na linha das considerações acabadas de fazer, parece-nos claro que a lei penal portuguesa segue uma definição material de segredo, assente, pois no conteúdo intrínseco da matéria em causa, da sua perigosidade, caso divulgada fora do círculo de autorizados, para os interesses nacionais.
(…) A existência de classificação, constituindo, sem dúvida, fundamental indício de necessidade de reserva, não exime o julgador de aferir, no caso, quer a relevância objectiva da matéria em causa, a perigosidade concreta da sua divulgação (Comentário Conimbricense do C. Penal, tomo II, pág. 119 e 120).
O tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo
Transpondo o que se disse para os presentes autos, afigura-se nos inquestionável que, no caso vertente, as informações remetidas pelo arguido MJS... para representantes da GO... no negócio que estava em curso, nas condições descritas, consubstanciam formal e materialmente matérias e conteúdos sujeitos a segredo de Estado e cujo divulgação, fora dos círculo de autorizados, era susceptível de criar um perigo concreto para o Estado Português, para a sua diplomacia e relações internacionais com outros países, neste caso com a Rússia.
Vejamos o que se deu como provado.
Provou-se que o arguido MJS... determinou o arguido MSL... a que fosse produzida informação, por recurso às “fontes humanas”, com acesso à Rússia, sobre “antecedentes” dos referidos empresários, cujos nomes lhe forneceu. Mais lhe indicou que a informação deveria constituir um Relatório Interno de Informação.
O arguido MSL..., por sua vez, determinou internamente que fosse obtida a referida informação junto do oficial de informação que, no local e à data, tinha a responsabilidade pela área geográfica em causa. Para o efeito, foram activados os necessários meios humanos do SIED e consequentemente produzida informação escrita sobre as origens, actividades negociais e circunstâncias relativas à capacidade de decisão dos referidos empresários.
O arguido MJS... contactou também o então oficial de ligação na Rússia, transmitindo-lhe a mesma solicitação. Este transmitiu ao arguido a informação por si elaborada, por recurso a fontes abertas.
No SIED, com informações obtidas, sobre os dois empresários de nacionalidade russa - uma parte substancial por recurso a fontes abertas e uma outra parte por recurso a fontes humanas foi registado o Relatório Interno de Informação (RINOT).
Este RINOT, constituído por três folhas e contendo informações sobre os dois empresários russos, está classificado como confidencial, por conter matéria classificada, mostrando-se consignado, no próprio documento, que é proibida a sua transmissão ou revelação a pessoas não autorizadas e que a distribuição, transferência, reprodução, o arquivo e a destruição desse documento estão regulamentados na Resolução de Conselho de Ministros nº 50/88, de 8 de Setembro (SEGNAC 1).
Temos aqui, é certo, uma classificação formal do documento, que, como referiu Medina Seiça, pode, em termos materiais, não corresponder a uma verdadeira revelação de segredo de Estado.
Diz-se, aliás, no relatório produzido no âmbito do processo de averiguações de eventuais quebras de segurança nos serviços, que, relativamente à matéria vertida no RINOT e visando avaliar do grau de reserva, foi realizada uma pesquisa em fonte aberta e, nesse contexto, foi possível identificar, em diversos sítios, em português e em russo, uma parte substancial da informação vertida no referido RINOT do SIED.
Conclui-se, todavia, que a abordagem e revelação de interesse, bem como a pesquisa realizada pelo Serviço de Informações, com recurso a fonte, assume especial sensibilidade, devendo por tal ser considerada classificada.
Acresce que, cotejando este relatório com a informação remetida pelo arguido MJS... para FS... e deste para VR..., com a já mencionada referência “TOP, TOP, SECRET”, verifica-se que o RINOT está integralmente reproduzido nessa informação, intercalado com duas informações adicionais sobre cada um dos empresários russos, obtidas por “outra fonte” ou com “outra origem” conforme mencionado na informação.
As informações adicionais, pelo seu teor, tal como se refere na motivação da matéria de facto, foram obtidas essencialmente por recurso a fontes humanas.
Sucedem-se, ao longo do texto, expressões que não nos deixam dúvidas de que grande parte dessa informação foi obtida através de contactos, conversas - ex. “segundo nos foi referido”-, ou seja, através de fontes humanas.
Sobre os efeitos e repercussões da divulgação, para fora dos serviços, de documentos e informações desta natureza a prova produzida foi praticamente consensual permitindo-nos concluir que este tipo de informação, que, note-se continha informação materialmente confidencial, contendo apreciações sobre o carácter, a personalidade, as qualidades e defeitos das pessoas visadas – ex. populista, errático, não muito fiável, ligações de amizade a (…) pode afectar o seu relacionamento com VP... e com o K... –, pessoas influentes e com relações próximas de dirigentes russos, designadamente do Presidente da Rússia (VP...) é demasiado delicado e melindroso, podendo advir, da sua divulgação, graves riscos para a diplomacia, as relações internacionais e a segurança nacional.
Divulgação que tem de ser imputada, em primeira linha, a quem quebra as regras de segurança que estes documentos reclamam e que foi, inquestionavelmente, o arguido MJS... quando, não obstante a sua classificação e confidencialidade, os enviou para terceiros fora dos serviços (neste mesmo sentido vejam-se as conclusões do inquérito que constam do apenso 12).
Como já foi dito, o conhecimento, por particulares, desvinculados das normas próprias de segurança dos Serviços de Informações, por outros Estados ou cidadãos de países em que as fontes actuam, de dados obtidos por recurso a fontes humanas é susceptível de afectar, de modo relevante, a segurança do Estado.
Designadamente, por ser susceptível de gerar conflito diplomático entre o Estado Português e outro a que a informação se refere e de pôr em causa a segurança de missões e de recursos humanos, no exterior.
A transmissão desses dados a terceiros potencia,de modo não controlável, o risco de propagação da informação.
O arguido MJS... à data era funcionário dos serviços de informações. E Director do SIED.
Recaía sobre o arguido, em razão das suas funções, o dever de proteger os documentos classificados e sujeitos a segredo de Estado.
Sabia o arguido MJS... que, exercendo funções de Director de uma das componentes do Serviço de Informações da República, lhe competia colocar os recursos e operações, exclusivamente, ao serviço do interesse público e garantir a protecção dos seus agentes e estrutura e do segredo de Estado.
E que lhe incumbia, em razão de ser membro e director do SIED, especial e legalmente consignado, dever de proteger os documentos classificados, sujeitos a segredo de Estado.
Mostram-se, por todo o exposto, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violação de segredo de Estado que temos vindo a analisar.
Do crime de corrupção
A corrupção traduz-se numa manipulação do aparelho de Estado pelo funcionário - na acepção do artº 386 do C.P. - que, assim, viola ou infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de Direito, sempre têm de presidir ao desempenho de funções públicas (Almeida Costa, Comentários Conimbricenses do C. Penal, tomo 3, p. 661).
Como toda a actividade pública a administração está subordinada à CRP.
Os funcionários da administração pública devem actuar com respeito pelo princípio da igualdade na medida em que estão vinculados nas relações com as pessoas a adoptar igual tratamento.
Proíbem-se tratamentos preferenciais e obriga-se a administração a tratar de modo igual situações iguais.
O crime de corrupção consuma-se com a adopção de uma conduta (a solicitação/aceitação da vantagem ou a promessa/oferta da mesma) a que acresce a produção de um evento (a chegada ao destinatário desta manifestação de vontade) que importa um dano para a autonomia intencional do Estado.
A corrupção pode ser activa ou passiva consoante se trate de agente corruptor ou de funcionário corrupto.
Cada uma delas consubstancia um crime independente e cada um dos crimes visa proteger o mesmo bem jurídico, o interesse administrativo do Estado em que aqueles que desempenham funções públicas sejam imparciais e honestos, punindo os que se deixam corromper (Comentários Conimbricenses, tomo III, pág. 655).
Pune-se tanto o corrompido como o agente corruptor.
A) Do crime de corrupção passiva para acto ilícito (e actualmente artº 373/1 do mesmo Código com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 32/2010, de 2.09)
Comete este crime o funcionário que, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação.
O sujeito activo deste ilícito tem de ser necessariamente um funcionário tal como se encontra definido no artº 386 do C. Penal.
A corrupção passiva é um crime material ou de resultado cuja consumação terá de coincidir com o momento em que a solicitação ou a aceitação do suborno (ou da sua promessa) por parte do funcionário, cheguem ao conhecimento do destinatário.
Consistindo o bem jurídico na autonomia intencional do Estado, a correspondente violação ocorre logo que se depare com uma declaração de vontade do empregado público que evidencia a inequívoca intenção de vender o exercício de uma actividade compreendida nas suas atribuições ou, pelo menos, nos seus “poderes de facto”.
Para que a corrupção passiva se consuma, torna-se necessário que a assinalada manifestação de vontade do funcionário - que pode ser expressa ou tácita - chegue ao conhecimento do destinatário.
Para a consumação do delito, não se requer o recebimento efectivo do suborno.
Resta referir que a corrupção passiva própria integra um crime doloso (artº 372 e 13 do C. Penal).
B) Do crime de corrupção activa para acto ilícito
Comete este crime quem por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim indicado no nº1 do artº 373 do C. Penal (artº 374/1 do C. Penal na redacção que lhe foi dada pela Lei 30/2015, de 22 de Abril).
O bem jurídico tutelado continua a ser a autonomia intencional do Estado.
Verifica-se corrupção activa quando alguém oferece ou promete (ou satisfaz a solicitação de) uma vantagem patrimonial indevida como contrapartida de um acto (lícito ou ilícito, passado ou futuro) de um “funcionário” no exercício do seu cargo ou dos poderes de facto dele decorrentes.
Para se estar perante um tal crime, é necessário que a conduta do funcionário visado pelo suborno preencha os mesmos requisitos exigidos na órbita da corrupção passiva e, portanto, corresponda a uma das situações enunciadas.
A lesão do bem jurídico coincide com o momento em que a solicitação ou a aceitação do suborno por parte do funcionário chegam ao conhecimento do destinatário.
A corrupção activa consuma-se com o simples oferecimento ou promessa de suborno por parte do agente, independentemente de a reacção do funcionário se traduzir numa atitude de aceitação ou de repúdio.
O simples pedido de suborno mesmo que não satisfeito implica, como vimos, a consumação do crime de corrupção passiva pelo que, não obstante as dificuldades de, nalguns casos, estabelecer a ligação directa entre determinado acto ilícito e a concreta contrapartida que terá sido recebida, não deixa de estar preenchido o tipo legal do crime em causa, desde que se indicie o pedido de comissão ou a sua promessa.
Assim, para efeito da consumação do crime de corrupção activa é indiferente a posição adoptada pelo funcionário perante a proposta de suborno (aceitação, repúdio ou simples silêncio).
É também um crime doloso.
No caso concreto, não obstante a proximidade temporal entre a contratação do arguido MJS... para o GO... GO... e as informações que o arguido remeteu sobre os empresários russos - informação interna, classificada, que nunca devia ter saído dos serviços –, nas condições descritas nos pontos 40 a 55 da matéria de facto, ainda assim não se provou que existisse qualquer relação entre o envio dessa informação e a negociação para a sua entrada no Grupo, ou que
O arguido RAV... tivesse solicitado ao arguido MJS... e acordado com este que, no quadro da negociação da sua contratação para o GO..., o arguido MJS... daria ao arguido RAV... e à GO... informações de que dispunha ou que obtivesse, junto do SIED, que ainda dirigia, sobre os empresários de nacionalidade russa.
Também não se provou que entre ambos tivesse ficado acordado que um dos recursos que o arguido MJS... poria ao serviço da GO... seria a informação de que dispunha pelo facto de ser ainda Director do SIED e, em fase posterior à sua exoneração, por ter influência em dirigentes de Departamento naquele serviço público.
Por fim não, se provou que arguido MJS..., não fosse a abusiva utilização da actividade pública do SIED, não teria alcançado o contrato com a GO... nas condições que pretendia - mormente remuneratórias e de capacidade de decisão e afirmação de supremacia -, tendo agido com esse propósito.
Não estão, pois, em circunstância alguma, verificados os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de corrupção activa e passiva acima analisados.
Impõe-se, pois, sem mais, a absolvição dos dois arguidos dos crimes de corrupção por que se encontravam pronunciados afigurando-se-nos neste contexto, ultrapassadas as questões suscitadas no parecer elaborado pelos Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade.
Do crime de devassa por meio de informática (artº 193 do C. Penal)
Comete este crime quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica (sublinhado nosso).
Os conceitos de “dados pessoais” e de “ficheiro de dados” estão definidos no artº 3 da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei de protecção de dados pessoais).
Assim, de acordo com esta lei entende-se por “dados pessoais”, qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (al. a).
Nos termos da mesma lei considera-se “ficheiro de dados pessoais” (“ficheiro”), qualquer conjunto estruturado de dados pessoais acessível segundo critérios determinados, quer seja centralizado, descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico (al. c).
Como refere Damião da Cunha, embora tais conceitos definitórios sejam previstos como aplicáveis à lei de protecção de dados pessoais, nada obsta a que se apliquem também ao C. Penal, até porque, foi intenção do legislador garantir uma coerência no tratamento das matérias.
Trata-se de garantir a interdição absoluta, constitucionalmente imposta, do tratamento informático de um conjunto de dados pessoais que a CRP afirma como insindicáveis e da total e plena disponibilidade da pessoa a que se reportam (Comentários Conimbricenses, Tomo I, pág. 744).
Na verdade, dispõe-se no artº 35/2 da CRP
 “A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através da entidade administrativa independente”.
E no nº 3 diz-se que:
“A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis”.
O artº 35 da CRP protege uma amplitude de direitos fundamentais para lá do direito à privacidade.
A imposição de interdição absoluta de registo informático daqueles conteúdos é justificada pelo perigo que está inerente para as pessoas cujos dados pessoais tenham sido processados.
Sobretudo o que está em causa é o facto de o registo informatizado de dados pessoais permitir o processamento e submissão a controlo “cruzado” e, consequentemente, permitir, no fundo, um controlo sobre a própria pessoa humana, quer quanto aos seus valores, quer quanto ao seu comportamento. Isto é, seria pelo menos pensável que este registo pudesse permitir o controlo sobre a coerência do comportamento da pessoa face às suas convicções ou a outro informático tipo de relações (o mesmo autor, que temos vindo a acompanhar de perto, ob. citada, pág. 745).
E, por isso, basta o simples registo informático, independentemente de quem criou o ficheiro, e a manutenção desse registo para o preenchimento do tipo legal de crime.
(…) tanto comete o crime aquele que, por si, cria um daqueles ficheiros automatizados como aquele que mantém um ficheiro automatizado daquele tipo, mesmo que não seja por ele criado, ou ainda o que utiliza um qualquer ficheiro informático, tendo acedido a ele por qualquer forma.
Além de que, pouco importa que os factos constantes do ficheiro sejam verdadeiros ou falsos contanto que sejam susceptíveis de, ponderadas as circunstâncias do caso, diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade.).
No caso vertente provou-se que o arguido MJS... mantinha, guardado na sua caixa do correio electrónico o chamado “Relatório”.
Este documento integra-se plenamente na descrição de ficheiro automatizado para os efeitos do disposto no já citado artº 3, al. a) da Lei nº 67/98, porquanto contém um vasto conjunto de dados, devidamente estruturados, identificados e identificáveis, alguns verdadeiros e outros falsos, obtidos através da internet (fontes abertas) e outros por outras fontes, designadamente por fontes humanas como resulta do teor do próprio texto, sobre a vida do assistente em vários domínios: pessoal, sexual, familiar, social, político/partidário, profissional.
Sem dúvida que este documento, da forma como está organizado e elaborado, permite o processamento e submissão a controlo “cruzado” e, consequentemente, permite um controlo sobre a pessoa visada, neste caso, sobre o assistente, quanto aos seus valores e ao seu comportamento.
Provou.se ainda que o arguido quis guardar esse texto no seu correio electrónico.
Tanto basta para que se conclua que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de devassa informática pelo qual o arguido MJS... ser mostra pronunciado.
Resta referir que as questões suscitadas pelo arguido – já tinham sido suscitadas na fase da instrução e apreciadas no despacho instrutório - e corroboradas no parecer que apresentou da autoria do Professor José de Oliveira Ascensão afiguram-se-nos prejudicadas pela análise, que acabou de ser feita, sobre os elementos constitutivos do tipo e os fundamentos (constitucionais) da proibição, de criação ou manutenção, de ficheiros com estes conteúdos.
Do crime de violação do segredo (em razão da profissão)
Comete este crime quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte.
O bem jurídico típico deste preceito legal é a privacidade em sentido material (…) a privacidade no seu círculo mais extenso. Também aqui é ainda a divulgação indevida de factos pertinentes à área individual a ser elevada ao universo das condutas merecedoras e carecidas de pena.
A violação do segredo é punida, independentemente de qualquer perigo ou dano patrimonial, figurando como um crime de dano cuja danosidade social se concretiza e esgota na acção de devassa (Comentários Conimbricenses, Tomo 1, pág. 771 e seg).
Três momentos que definem a acção típica: revelar, segredo, alheio.
Segredo é um facto relativamente desconhecido e que, segundo a vontade expressa ou presumida da pessoa a quem respeita – e, com mais ou menos propriedade, denominada o portador do segredo – deve, em nome de um interesse legítimo ou razoável, permanecer sob reserva.
Para haver segredo, o facto terá de ser conhecido de um número reduzido de pessoas, terá de se tratar de informações exclusivas. O segredo mantém-se enquanto for apenas conhecido das pessoas para tal legitimadas.
O conhecimento terá de ser necessariamente obtido – e exclusivamente obtido – no exercício da actividade profissional. Trata-se, fundamentalmente, de limitar o sigilo penalmente protegido aos factos de que o agente tem conhecimento no exercício – por causa dele ou por ocasião dele, mas em estreita conexão com ele – da sua profissão ou ofício.
A lista de profissões e agentes sujeitos a sigilo, para além de extensa, está sujeita a permanentes modificações e actualizações legislativas.
Provou-se que a arguida GF..., à data dos factos, trabalhava na O.../NOS exercendo funções de gestora de projectos. Nessa qualidade tinha acesso à facturação detalhada dos clientes.
Provou-se pois que o conhecimento obtido pela arguida GF... decorria do exercício das suas funções na O.../NOS.
Mais se provou que a arguida estava obrigada a guardar sigilo sobre as informações a que tinha acesso e de que tinha conhecimento por causa da sua actividade profissional.
Ao revelar a terceiros a facturação detalhada do jornalista S..., nas condições descritas nos pontos 17 a 27, à revelia da empresa e do utilizador do telemóvel, a arguida violou um segredo profissional, sabendo que tal conduta era proibida.
Dos factos provados resulta ainda que os arguidos cometeram alguns dos crimes supra mencionados em co-autoria.
Com efeito, de acordo com o disposto no artº 26 do C. Penal é punido como autor quem executa o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem ou toma parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros e ainda quem dolosamente determina uma pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.
Exige-se a presença de um elemento objectivo que consiste na prática, por cada um dos agentes, pelo menos de uma parte dos actos típicos; e um elemento subjectivo, que exige que, à soma dos actos dos vários agentes, esteja a presidir um desígnio comum.
Como dizem Leal-Henriques e Simas Santos há co-autoria ou comparticipação quando o agente toma parte directa na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro ou outros, (…) sendo dois os seus requisitos:
- acordo com outro ou outros, que tanto pode ser expresso como tácito, mas que exige sempre, pelo menos, uma consciência da colaboração, de carácter bilateral;
- participação directa na execução do facto juntamente com outro ou outros, isto é, um exercício conjunto do domínio do facto, uma contribuição objectiva para a realização, que tem a ver com a causalidade, embora possa não fazer parte da «execução» (in “Código Penal Anotado”, 3ª edição, 1º vol., pág. 339).
E dizem ainda os mesmos autores, na obra e local citados, que (…) há ainda co-autoria quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras da experiência comum(…)”.
Face ao que antecede - e quanto à co-autoria dos ilícitos em causa nestes autos - temos que, na execução de um crime em co-autoria, não é indispensável que cada um dos agentes tenha intervenção em todos os actos de execução. A lei exige apenas que a actuação de cada um, mesmo que parcelar e/ou repartida em tarefas distintas, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado.
E se é certo que a actuação deverá ser o resultado de um acordo, em princípio, previamente estabelecido entre os executantes, na falta deste acordo prévio a Jurisprudência tem entendido ser suficiente “a consciência recíproca de colaboração”, concordando e aderindo cada um dos executantes aos actos que sucessiva e parcelarmente forem sendo praticados pelos demais, mas querendo cada um o resultado final como seu.
No caso em apreço assim sucedeu em várias situações, conforme se deu como provada, tendo havido, num caso co-autoria entre os arguidos MJS..., MSL... e FLD... – acesso ilegítimo à facturação detalhada do jornalista S... - noutros co-autoria entre os arguidos MJS... e MSL... (nos dois crimes de abuso de poder).
Provou-se que os arguidos, com intervenções diferentes contribuíram, com a sua actuação, para o resultado final.
Nessas situações, todos tinham consciência de que estavam a colaborar, de formas diferentes, para o mesmo fim, o acesso à facturação detalhada e o acesso pelo arguido MJS... a informações obtidas na base de dados do SIED.
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Inexistindo causas de exclusão da ilicitude e da culpa dos arguidos resta determinar a pena concreta em que cada um deve ser condenado pelos seguintes crimes:
Pena abstracta
ao crime de acesso ilegítimo na forma agravada corresponde, em abstracto, pena de 1 a 5 anos de prisão (artº 6/1/4/a da Lei 109/2009, de 15.09 – lei do cibercrime).
ao crime de abuso de poder corresponde, em abstracto, pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias.
ao crime de violação de segredo de Estado corresponde, em abstracto, pena de prisão de 3 a 10 anos.
ao crime de acesso indevido a dados pessoais, corresponde, em abstracto, pena de 2 meses a 2 anos de prisão ou 20 a 240 dias de multa;
ao crime de violação de segredo corresponde, em abstracto, pena de prisão de 1 mês a 1 ano ou multa de 10 a 240 dias.
ao crime de devassa por meio de informática, corresponde, em abstracto, pena de prisão de 1 mês a 2 anos ou multa de 10 a 240 dias
Na determinação da medida da pena quanto ao arguido MJS... salienta o acórdão recorrido:
Da medida concreta da pena
A determinação concreta da pena far-se-á tendo presente o critério previsto no artº 71 do C. Penal “… em função da culpa do agente (limite máximo) e das exigências de prevenção geral e especial” atendendo “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a favor do agente ou contra ele”.
As ideias base que devemos ter presentes são as de que as finalidades da aplicação de uma pena residem, primordialmente, na tutela dos bens jurídicos, na reinserção do arguido na comunidade e a de que a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.
Como explica Figueiredo Dias “a verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável” (Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 79),.
Ou seja, rejeitando o paradigma retributivo do fim das penas, em que estas simplesmente se assumem como um “castigo” aplicável ao prevaricador da norma, o ordenamento jurídico-penal português elege a culpa como pressuposto do seu funcionamento (“Não há pena sem culpa”) e, simultaneamente, como limite ao seu próprio funcionamento (“A medida da pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa”).
Em situações de co-autoria, conforme sucede nalguns dos crimes apreciados no presente processo, impõe-se obter a individualização da culpa de cada um dos comparticipantes, conforme preceitua o art. 29º do Código Penal.
Simultaneamente, e também como limite do sistema, surge a necessidade do Estado subtrair à disponibilidade e autonomia de cada individuo o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias, na estrita medida em que tais limitações se revelem indispensáveis ao funcionamento da sociedade e à preservação dos seus bens jurídicos essenciais, assumindo assim a pena uma primeira função finalista: enquanto ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução, visa a prevenção da prática de futuros crimes.
Assim, a pena, sempre balizada pelo limite máximo da medida da culpa individual de cada um dos agentes, há-de encontrar-se numa moldura de prevenção geral, que terá como limite máximo a medida óptima de tutela dos bens jurídicos, e como limite mínimo as exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico visando manter a crença da comunidade na validade e vigência da norma incriminadora.
Por fim, e prosseguindo uma segunda função finalista, a pena terá de encontrar a medida que melhor sirva as exigências de socialização e advertência individual do agente, isto é, segundo as exigências de prevenção especial.
Conforme bem se compreende, os factos que o Tribunal der como provados sobre a personalidade do agente do crime, os seus antecedentes criminais, o seu percurso de vida e inserção social, assumem-se como relevantíssimos para a operação de determinação das penas concretas, pois será a partir deles que se formulam os juízos de necessidade de prevenção especial, bem como, convém referir, a determinação da própria medida da culpa (entendida como o grau de exigibilidade da conduta conforme ao Direito).
Resta referir que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade, o tribunal deverá dar preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artº 70 do C. Penal).
No caso vertente, a alternativa prisão ou multa coloca-se para os crimes de abuso de poder, acesso indevido a dados pessoais e violação de segredo, estes dois imputáveis apenas à arguida GF..., e de devassa por meio de informática, apenas imputável ao arguido MJS....
No que concerne ao arguido MJS... a opção pela pena de prisão é óbvia, atento o enorme protagonismo que este arguido assumiu nos factos, a considerável gravidade de alguns deles – crimes de acesso ilegítimo e de violação do segredo de Estado que são puníveis apenas com pena de prisão – o alarme que causaram e o enorme impacto que tiveram na comunidade.
Quanto ao arguido MSL... a opção deve ser idêntica relativamente aos crimes de abuso de poder, únicos em que se verifica a alternativa, prisão ou multa, atentas as circunstâncias em que estes crimes foram praticados, em especial o primeiro - as ordens que deu ao arguido FLD... para aceder à facturação detalhada -, e as fortes exigências de prevenção geral que estes crimes reclamam.
Com efeito, o crime de abuso de poder está associado a um tipo de criminalidade que põe seriamente em causa as relações entre o cidadão e os agentes da administração pública e a confiança dos cidadãos nos órgãos da administração pública.
Acresce que, numa sociedade democrática o acesso à facturação detalhada de um jornalista e a devassa das suas fontes causa grande alarme nos profissionais da comunicação social e na comunidade em geral.
Considera-se, além do mais, que era altamente exigível aos arguidos, pessoas intelectual e profissionalmente esclarecidas, um comportamento completamente distinto daquele que protagonizaram justificando-se, por isso, que sejam advertidos, por via das penas que lhes vão ser aplicadas, que um tal comportamento não é admissível, nem compreensível
Diferente é a situação da arguida GF.... Como veremos, no caso desta arguida e do arguido FLD..., este último por via da substituição das penas detentivas da liberdade uma vez que o crime em que vai condenado não prevê a alternativa de multa, as exigências da punição satisfazem-se com a condenação dos dois arguidos em penas de multa.
Ponderaremos agora, em concreto:
I – Apreciação Geral
Em termos de ilícitos, valorou-se:
Quanto aos crimes, em geral:
- o dolo, directo de grau mediano na generalidade das situações;
- o grau de ilicitude elevado no crime de acesso ilegítimo e de segredo de Estado e no primeiro crime de abuso de poder;
- as circunstâncias em que foram praticados os crimes, destacando-se, neste particular, o crime de acesso ilegítimo e o crime de violação de segredo de Estado, cometido pelo arguido MJS... quando tinha acabado de negociar a sua entrada para a GO...;
- o alarme que causaram, com destaque para os crimes de acesso ilegítimo, de violação do segredo de Estado e de devassa por meio de informática;
- o grande impacto que tiveram na comunidade e, em particular, no tocante ao crime de acesso ilegítimo, o impacto junto dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social, para os quais não era expectável que, funcionários dos serviços de informações, acedessem às suas fontes, devassando-as e, ao mesmo tempo, violando a sua privacidade.
Quanto aos arguidos, em comum, valorou-se:
- a boa inserção social, familiar e profissional de todos os arguidos;
- a ausência de antecedentes criminais, comum a todos os arguidos;
- o tempo decorrido sobre a prática dos factos, não imputável a nenhum dos arguidos;
II - Individualizando situações:
Começamos pelo arguido MJS..., sem dúvida o arguido que merece maior destaque pelo protagonismo que assumiu nos factos aqui em causa, pelo cargo que desempenhava nos serviços de informações, pelo facto de ter estado sempre no “centro das operações”.
Este arguido revelou uma personalidade forte.
Teve um papel fulcral em todas as situações acima descritas, envolvendo outros funcionários dos serviços de informações, em particular o arguido MSL... e, no caso da facturação detalhada, o arguido FLD....
Mostrou uma excessiva despreocupação com os serviços e com a sua imagem, parecendo pouco consciente das responsabilidades das funções que exerceu, que exigiriam maior reserva discrição e objectividade, sem necessidade de pôr em causa os seus direitos de defesa.
Surpreendeu-nos ainda a forma distanciada como se referiu a uns serviços onde, até Novembro de 2010, exerceu funções de enorme relevância.
No caso da facturação detalhada foi movido claramente por intuitos persecutórios dirigidos contra elementos dos serviços de informações que punham em causa a sua capacidade de organização e liderança. A sua actuação, além de ilegítima, era desnecessária e desproporcionada. Teve, nesta situação, uma conduta altamente censurável.
Fez uma abusiva utilização do SIED, mantendo, durante algum tempo, alguma promiscuidade entre os serviços e a GO... para onde ia trabalhar, situação a que já nos referimos na motivação da matéria de facto – parte II – e que também merece uma forte censura.
A culpa do arguido, por tudo o que se disse, situa-se a um nível muito superior à dos demais arguidos.
Mostrou fraca interiorização das consequências da sua conduta, lamentando apenas a situação em que colocou os co-arguidos MSL... e FLD... e a arguida GF... e esquecendo-se que a sua actuação causou danos consideráveis aos assistentes, provocou alarme na comunidade e afectou a imagem e credibilidade dos serviços de informações.
A favor do arguido há a realçar, para além das circunstâncias já referidas, comuns a todos os arguidos, e do que está descrito no ponto 123 da matéria de facto, as suas qualidades profissionais, destacadas por todas as testemunhas que trabalharam com o arguido nos serviços de informações e na GO..., a sua dedicação, competência, dinamismo, capacidade de organização e de liderança.
Ponderando todos estes factores devem aplicar-se a este arguido penas mais elevadas que as que vierem a ser encontradas para os restantes, mas não muito afastadas dos seus limites mínimos (afasta-se um pouco mais desses limites, a pena pelo crime de acesso ilegítimo).
(…)
Ponderando tudo o que foi dito e os valores jurídicos ofendidos, considera-se adequada e proporcionada a condenação dos arguidos nas seguintes penas, graduadas de acordo com o grau de culpa de cada um e com o protagonismo que assumiram nos factos:
Arguido MJS...:
- pelo crime de acesso indevido - 2 anos e 3 meses de prisão;
- pelo crime de abuso de poder - 10 meses de prisão;
- pelo segundo crime de abuso de poder - 6 meses de prisão;
- pelo crime de violação do segredo de Estado - 3 anos e 6 meses de prisão;
- pelo crime de devassa por meio de informática - 8 meses de prisão;
(…)
Cúmulo jurídico das penas aplicadas aos arguidos MJS...…
Uma vez determinadas as penas concretamente aplicáveis a cada um dos crimes praticados pelos arguidos, importará, nos casos em que estes tenham cometido uma pluralidade de ilícitos, proceder à formulação de cúmulo jurídico de penas (artº 77 do C. Penal).
Numa tal situação, entende-se que, face às penas parcelares, não deverá o Tribunal lançar mão de medidas alternativas ou substitutivas das penas fixadas, só devendo fazê-lo, se for caso disso, face à pena única que venha a ser encontrada (Figueiredo Dias, em Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 285).
Assim sendo, nos casos em que se imponha o cúmulo jurídico, passa o Tribunal a dispor de uma moldura penal única, sendo o seu limite mínimo determinado pela mais alta das penas parcelares fixadas, e o limite máximo composto pela soma de todas as penas que integrem o cúmulo (art. 77º, nº 2 do Código Penal).
Na determinação da pena única, irá então o Tribunal, dentro da moldura assim determinada, ponderar, em conjunto, os factos, o grau de ilicitude dos mesmos, o grau de culpa, as exigências de prevenção especial, e as necessidades de prevenção geral já apontadas.
“(…) tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é, reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira ) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade dos crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente…” (“Consequências jurídicas do crime” F. Dias, pág. 291 e 292).
Para determinar a pena única, o Supremo Tribunal de Justiça, como se refere em acórdão do STJ de 8/1/2009, “vem seguindo o método de encontrar, entre aqueles dois limites, um ponto que se obtém pela adição, ao limite mínimo, duma fracção da soma das restantes penas, ponto a partir do qual, para cima ou para baixo, há-de ser calculada a pena, sem esquecer que, para garantir a proporcionalidade das penas, tem de se fazer intervir um factor de compressão, que deverá ser tanto maior quanto a pena mais se aproxime do limite máximo de 25 anos” (proc. nº 3925/08, www.dgsi.pt).
Refere-se ainda em acórdão do STJ de 1/6/2006 que “Na generalidade dos casos (conciliando a tendência da jurisprudência mais “permissiva” em somar, à “maior”, ¼ - ou menos - das demais, com a jurisprudência mais “repressiva” que àquela usa adicionar metade - ou mais - das outras), esse ponto de convergência poderá achar-se, genericamente, adicionando à pena “maior” 1/3 das restantes” (proc. nº 1037/06, www. dgsi. pt).
No caso vertente, é inquestionável aquela relação de concurso, já que qualquer um dos crimes foi cometido antes de algum deles ter sido objecto de decisão judicial transitada em julgado.
No que diz respeito ao arguido MJS... a pena única será balizada entre um mínimo de 3 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais alta) e um máximo de 7 anos e 9 meses de prisão (soma de todas as penas parcelares).
(…)
Ponderando a globalidade dos factos apurados, a natureza dos crimes aqui em causa, a personalidade dos arguidos, as suas motivações para a prática dos crimes, a sua idade, a sua conduta, antes e após os factos, e tudo o mais que se referiu sobre as suas condições pessoais, e os critérios acima enunciados, parecem-nos ajustadas as seguintes penas únicas:
Arguido MJS... - 4 anos e 6 meses de prisão;
(…)
Razões da suspensão das penas de prisão aplicadas aos arguidos MJS...…
Nos termos do artº 50 do C. Penal, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, o tribunal suspende a execução da pena de prisão, não superior a 5 anos, se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para além do pressuposto formal (pena não superior a cinco anos de prisão) a lei exige, para a suspensão, pressupostos subjectivos ditados por finalidades politico-criminais ou seja, a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro.
Estão basicamente em causa prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
É jurisprudência pacífica que a suspensão da execução da pena só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição circunscrevendo-se estas, de acordo com o artº 40 do C. Penal, à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade.
É, pois, em função de considerações de natureza exclusivamente preventiva - prevenção geral e especial - que o julgador tem de se orientar na opção em causa.
Como refere Figueiredo Dias, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta - bastarão para afastar o delinquente da criminalidade” (Consequências Jurídicas do crime, 1993, § 518).
Esta opção deve partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do condenado para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo a suspensão ser admitida e aplicada sempre que se configure esse juízo favorável.
No caso vertente, as penas aplicadas aos arguidos podem ser suspensas na sua execução, pois são inferiores a cinco anos de prisão.
De resto, a ausência de antecedentes criminais e boa integração social, profissional e familiar dos arguidos, os anos decorridos sobre a prática dos factos, levam-nos a considerar que existem sérias e fortes razões para acreditar que a simples ameaça da pena satisfaz plenamente as exigências da punição.
A suspensão da execução das penas não ficará subordinada a regime de prova por inexistirem factores de risco que recomendem uma intervenção ou um acompanhamento por parte dos serviços de reinserção social.
Assim, o Tribunal irá suspender a execução das penas de prisão, aplicadas aos arguidos MJS... … por igual período à pena de prisão, que é o período consentido por lei (art.º 50/5 do C. Penal).
Condições de suspensão - pagamento ao lesado
Resulta do disposto no artº 51 do C. Penal que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar, dentro de certo prazo, no todo ou em parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea.
No caso vertente parece-nos inteiramente justo e adequado que a suspensão das penas aplicadas aos arguidos fique sujeita à obrigação de pagamento ao demandante S... – demandante que pode eventualmente carecer de um ressarcimento de danos e prejuízos, mais rápido – de uma parte da indemnização que será arbitrada, fixando-se um valor que seja razoável atentas as condições económicas de cada um dos arguidos.
De acordo com este critério, o valor arbitrado ao arguido MJS... será superior ao que for arbitrado ao arguido MSL....
Assim, o arguido MJS... deverá pagar ao demandante S..., no prazo de seis meses, a quantia correspondente a 3.500€, a imputar, nos termos do artº 785 do Cód. Civil, no valor global da indemnização em que vai solidariamente condenado, aquando do seu integral pagamento.
O arguido MSL... deverá pagar, no mesmo prazo, a quantia correspondente a 1.000€, igualmente a imputar, nos termos do artº 785 do Cód. Civil, no valor global da indemnização em que vai solidariamente condenado, aquando do seu integral pagamento.
Sobre os pedidos de indemnização civil o acórdão recorrido fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
Pedido de indemnização civil
Questão prévia
Os arguidos MSL... e FLD... vêm arguir a sua ilegitimidade passiva e requerer a intervenção acessória do Ministério Público em representação do Estado Português.
Alegam que parece ser evidente que os factos da acusação, que alegadamente lesaram o demandante e fundamentam o seu pedido de indemnização, a terem sido cometidos, são factos praticados por agentes ao serviço do Estado que não responsabilizam quem os praticou; assim é parte ilegítima nesta demanda civil; é contra o Estado Português que deverá ser dirigida a demanda civil cumprindo invocar a Lei 67/2007, de 31.12 que estabelece o regime legal da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das Pessoas Colectivas de Direito Público; requer a intervenção acessória do Ministério Público.
Desde já e sem necessidade de maiores considerações afigura-se-nos que não se aplica ao caso presente o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro.
Isto porque a aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado pressupõe que os danos causados resultem do exercício da função político-legislativa, jurisdicional e administrativa, ou seja, que estejam apenas em causa as acções ou omissões praticadas no exercício das funções e por causa delas.
Não foi o que aconteceu neste caso. Provou-se que inexistia base legal que atribuísse aos serviços de informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas, que os arguidos sabiam que lhes estava vedado esse acesso e praticaram actos que nada têm a ver com o exercício das suas funções e que visaram apenas satisfazer interesses pessoais de um dos arguidos.
Razão pela qual se indefere a arguida ilegitimidade passiva dos demandados.
_______________
O assistente/demandante S..., apresentou pedido de indemnização civil contra os arguidos MJS..., MSL..., FLD... e GF..., a título de danos não patrimoniais, no valor de 60.000€.
O assistente/demandante PPB... apresentou pedido de indemnização civil contra o arguido MJS..., a título de danos não patrimoniais, no valor de 50.000€, acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde a notificação do pedido civil até integral pagamento.
Dispõe o artº 129 do Código Penal que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Dispõe-se, por seu turno, no artº 483/1 do C. Civil - define os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos – que aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
São pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos:
a) o facto voluntário do agente (facto humano controlável ou dominável pela vontade);
b) a ilicitude do facto (nas modalidades de violação de direitos subjectivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios);
c) o nexo de imputação do facto ao lesante (que abarca a imputabilidade e a culpa);
d) o dano;
e) o nexo causal entre o facto e o dano;
O primeiro pressuposto está inquestionavelmente verificado, face à matéria de facto fixada nos pontos 17 a 39 e 104 a 120, estes últimos com relevância para o pedido de indemnização apresentado por PPB....
Podemos concluir que os actos praticados pelos arguidos constituem factos voluntários dos quais resultaram para os demandantes vários danos de carácter pessoal e profissional.
É inequívoca a existência de nexo de causalidade entre os factos praticados pelos arguidos e os danos causados aos demandantes.
Ambos os demandantes reclamam danos de natureza não patrimonial que serão de atender, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (cfr. artº 496, nº1 do Cód. Civil).
A indemnização por danos não patrimoniais é (...) tão só uma satisfação ou compensação do dano sofrido, que não é verdadeiramente avaliável em dinheiro (Vaz Serra, in BMJ, nº 83, pág. 83).
Esta indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista: Por um lado, visa reparar, de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela parte lesada; por outro, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado a conduta do agente” (A. Varela. “Das Obrigações em Geral”).
Não sendo os danos não patrimoniais materialmente mensuráveis e visando a quantia a atribuir a esse título ao lesado, não propriamente indemnizá-lo mas, antes, compensá-lo com uma quantia em dinheiro, cuja aplicação em bens materiais ou morais possa de algum modo contribuir para minorar o seu sofrimento, a quantificação de dano dessa natureza tem de ser feita pelo recurso aos critérios de equidade, em que terão em devida conta o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias atendíveis como, por exemplo, a gravidade da lesão, a desvalorização da moeda, os padrões normalmente utilizados nos casos análogos, etc. (in acórdão do STJ de 19/2/2002, in CJ Acs do Supremo, ano XXVIII, Tomo 1, pág. 269).
No caso vertente provou-se que, em resultado da actuação dos demandados, o assistente S..., jornalista há 27 anos, viu as suas fontes devassadas – é sabido que as “fontes” e os contactos de um jornalista demoram muitos anos a construir - e que após a divulgação dos factos supra descritos, algumas das suas “fontes” deixaram de atender os seus telefonemas.
Também se provou que o demandante S..., em resultado da actuação dos arguidos, sofreu um grande mal-estar e um profundo constrangimento, passou muitas noites sem dormir, teve profunda tristeza, um grande stress e nervosismo e arritmias cardíacas.
Com relevância para o pedido de indemnização civil, apresentado pelo assistente PPB..., apurou-se ainda que:
O assistente ficou chocado e perturbado com o teor do “Relatório”, em especial com a parte relativa aos seus filhos e à sua vida intima;
 Nas semanas subsequentes à divulgação dos factos viveu dias de particular angústia, ansiedade, desconforto e abalo emocional;
Foi contactado por amigos e colegas, melindrados com as notícias divulgadas na comunicação social;
Os danos acima enunciados, causados pelos arguidos aos assistentes merecem, sem dúvida, a tutela do direito;
De acordo com os critérios estabelecidos nos arts. 564 e 566 do C.C. e tendo em conta, nomeadamente:
-a equidade, critério a que o Tribunal deve recorrer para a fixação deste tipo de indemnização;
- o sofrimento, os medos;
- a situação económica dos demandados e demandantes;
Tudo ponderado, afigura-se-nos justa, adequada e equitativa, a atribuição de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, de quinze mil euros para o assistente S... que, para além dos danos pessoais, sofreu danos profissionais relevantes e consideráveis, e dez mil euros para o assistente PPB..., cujos danos se repercutiram essencialmente na sua vida pessoal e no seu equilíbrio emocional.
A este valor acrescem juros de mora, contados desde a data da notificação dos pedidos de indemnização civil até integral pagamento.
1. Nulidade do acórdão por insuficiência da fundamentação
Ao invocar que se mostra violado o artigo 389º-A nº 1 al. b) do Código de Processo Penal (conclusões AS a BA e BT) o Recorrente MSL... está a suscitar a questão da insuficiência – por falta de clareza – da fundamentação. É certo que a referência normativa se mostra errada, porquanto a disposição invocada integra o regime específico do processo sumário mas, tendo em atenção o disposto no art. 374º nº 2 aplicável em processo comum, afigura-se clara a arguição da nulidade da al. a) do nº 1 do art. 379º do Código de Processo Penal.
Efectivamente, a sentença tem uma dupla função (i) endoprocessual, já que se “...constitui um instrumento de racionalização técnica da actividade decisória do tribunal, com um triplo objectivo: fornecer ao juiz um meio de auto-controlo crítico; «convencer» as partes; e garantir ao tribunal superior, em caso de recurso, um melhor juízo sobre a decisão da primeira instância”; e, (ii) extraprocessual, pois se assume como um “...instrumento para o controlo extraprocessual e geral sobre a justiça, controlo exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada”, “...indispensável para o controlo democrático da administração da justiça”[8].
Nessa medida, “o dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação (…) visa justamente tornar possível o controlo (…) da decisão…”[9].
Também a fundamentação insuficiente, gera nulidade da sentença, posto que uma decisão parcialmente fundamentada tem de ser entendida como não fundamentada, consabido que inexiste meia fundamentação, tal como inexiste meia comunicação[10]. O mesmo se deve afirmar em relação à fundamentação obscura ou susceptível de leituras dúbias como o Recorrente alega.
Seguindo de perto os ensinamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.1.2014[11], dir-se-á que o dever de fundamentar as decisões judiciais mostra-se plenamente observado quando a decisão recorrida assenta num amplo leque de provas, desde a documental, testemunhal, à pericial e por reconhecimento, a que se associam e conjugam, interagindo, meios de obtenção de prova (enquanto instrumentos técnico-processuais, que em situações específicas, quanto ás escutas, em caso de crimes de catálogo, e segundo critérios de estrita necessidade, proporcionalidade e adequação podem permitir ás autoridades de investigação a informação sobre circunstâncias, factos ou elementos que lhes possibilitem a procura ou a mais fácil descoberta da verdade material, como fontes de prova) deles se servindo para, depois de lhes atribuir o valor que merecem e repudiando, em valoração subsequente, o que não comportam, fixar em definitivo, os factos relevantes á decisão da causa, sem deixar de pôr, portanto a descoberto o processo lógico-racional que norteou o tribunal. O juiz examina a prova e depois manifesta uma opção de sentido e valor, e essa tarefa não dispensa que ao fixar os seus elementos de convicção o faça de forma clara. Por isso a fundamentação decisória deve reconduzir-se a uma exposição tanto quanto possível completa, porém concisa das razões de facto e de direito -art.º 374.º n.º 2, do CPP - evitando uma alongada reprodução da matéria de facto, exigindo-se só um trabalho de síntese, de selecção, conexo e explicativo do processo decisório, dispensando a enumeração pontual, à exaustão das fontes em que o julgador se ancorou. Nos termos do art.º 374.º n.º 2, do CPP, a exigência de um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção probatória, de valoração livre, porém racional, à margem do capricho do julgador, mas objectivada e apoiada num processo lógico que inteligencia o material recolhido, atentando nas regras da lógica, da experiência comum, ou seja daquilo que comummente sucede, e que, como ser socialmente integrado, aquele deve ter presente, sopesando a valia das provas e opondo-lhe o seu desvalor, face ao que fará a opção final. Esta opção final deverá proporcionar fácil compreensão aos destinatários directos e á comunidade de cidadãos, que espera dos tribunais decisões credíveis e justas.
No momento em que se aprecia a nulidade da fundamentação da sentença por omissão ou insuficiência do exame crítico da prova não se cuida de emitir uma posição de concordância ou discordância com o raciocínio expendido e com a opção final tomada mas, apenas, com a verificação de que a exposição apresentada se mostra completa e permite compreender o processo lógico-racional seguido, com suficiência e clareza.
*
In casu, a invocação de falta de clareza restringe-se a um pequeno segmento da fundamentação fáctica.
Alega o recorrente que do texto da sms do arguido MSL... para a testemunha CV..., “Temos acesso 93?”, resulta a comprovação de que existiam fontes humanas dos Serviços Secretos portugueses em operadoras de telecomunicações e resulta ainda a comprovação da normalidade de obtenção de informações, que deveriam ser protegidas e sigilosas, como a facturação detalhada. Entende, todavia, que o tribunal a quo destaca aquela mensagem de forma evasiva, contraditória e ao arrepio da lógica, porque refere que “esta mensagem … podendo indiciar ou, pelo menos, não excluir, práticas anteriores semelhantes…”, deixa no ar a séria dúvida sobre a veracidade da tese do arguido, de que agiu de acordo com o modus operandi e praxis existentes nos serviços secretos, sendo sintomático da subjectividade da decisão e que esteve na base do erro de julgamento da matéria de facto, onde parece querer esconder-se ou dizer por meias palavras aquilo que é uma evidência. Sustenta que a utilização da expressão “podendo indiciar” revela erro do tribunal na apreciação da prova, por não ser clara e consistir num compromisso, meio caminho ou inconcludência, uma divagação inconclusiva: “ou há indício ou não há indício, de que a mensagem em apreço aponta para práticas anteriores semelhantes, em que é que ficamos?”. Esta forma evasiva e inconclusiva significa subjectividade na apreciação da prova. Conclui que o tribunal deveria ter plasmado na fundamentação quanto à referida mensagem aquilo que é óbvio, ou seja: “esta mensagem … indicia ou, pelo menos, não excluiu, práticas anteriores semelhantes…”. Ora, se a mensagem indicia práticas anteriores semelhantes, uma vez mais estamos perante uma dúvida, que tal como as anteriores aponta para uma certeza, que é a de que terá que se julgar pela aplicação do princípio basilar do in dubio pro reo.
O Recorrente extrai a expressão contra a qual se insurge do contexto para sustentar a tese que expressa exaustivamente ao longo da sua motivação de violação do princípio in dubio pro reo.
Contextualizemos a expressão, relembramos que a expressão se insere na parte da fundamentação (supra transcrita) relativa às “alegadas práticas sistemáticas e o Manual de Procedimentos” e ao “que disseram os membros do Conselho de Fiscalização”.
A frase completa é a seguinte:
“Esta mensagem – MSL... pergunta a CV... “temos o 93” – podendo indiciar ou, pelo menos, não excluir, práticas anteriores semelhantes - e a testemunha CV... admitiu que houve tentativas de organizações congéneres nesse sentido - leva-nos, por outro lado, a concluir que esse procedimento não era tão generalizado, rotineiro, instituído, frequente, como os arguidos afirmaram, pois se assim fosse a pergunta “temos 93” não faria sentido e o recurso à mulher de um funcionário dos serviços a uma “fonte inopinada” também não seria necessário se os serviços tivessem fontes em todas as operadoras”.
Insere-se num contexto em que:
- Se analisa a afirmação dos arguidos de que a decisão de aceder à facturação detalhada do jornalista se inseriu numa prática sistemática e reiterada dos serviços de aceder às facturações detalhadas;
- Se explica porque não se pediu o levantamento do segredo de Estado relativamente a todo o “Manual de Procedimentos”;
- Se aprecia o que disseram os membros do Conselho de Fiscalização do SIRP e as testemunhas de acusação e defesa, funcionários e responsáveis do SIED, sobre essas práticas nos serviços
- E se conclui: “podemos concluir que o acesso à facturação detalhada teria de ser feito fora do sistema e que não era, nem é, uma prática rotineira e habitual dos serviços que, a existir, seria facilmente detectável e é nessa sequência que se considera que a mensagem enviada pelo arguido MSL... para a testemunha CV... no dia 15.08.2010 corrobora essa conclusão.
Segue-se a frase onde se insere a expressão criticada e o acórdão recorrido finaliza a apreciação desta questão dizendo:
“E, assim, após conjugação de todos os elementos probatórios acabados de analisar, ficámos convencidos que os arguidos MJS... e MSL... apesar de terem consciência de que praticaram actos ilegais e de que levaram outros - arguidos FLD... e GF... - a agir da mesma forma, procuraram banalizar estas práticas dentro dos serviços, e, por essa via, desresponsabilizar-se dos seus actos, como se fossem produto ou vítimas de um sistema quando, na verdade, estes arguidos, e em especial o arguido MJS... podiam e deviam não se conformar com elas, na hipótese de efectivamente existirem.
Ora, não só não se provou a reiteração dessas práticas como, conforme já foi dito, os arguidos, face às responsabilidades que tinham no SIED, não podiam deixar de responder por actos ilegais que praticaram e fomentaram, não se encontrando, por todo o exposto, qualquer circunstância justificativa dessa actuação”.
Salvo o devido respeito, apenas uma interpretação descontextualizada da expressão permite sustentar a existência de qualquer falta de clareza, dúvida ou subjectividade na apreciação efectuada. O Recorrente pretende extrair uma conclusão de um elemento descontextualizada, enquanto o tribunal a quo procede a uma apreciação inclusiva dos vários meios de prova para sustentar de forma objectivada a sua convicção, deixando claro o que considerou resultar provado e o que entendeu não ter meios probatórios bastantes para ser considerado assente.
Conclui-se pela clareza e completude da fundamentação, sem as invocadas ambiguidades.

2. Impugnação da matéria de facto
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: na “revista alargada” de âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal; através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º nº3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[12].
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa[13].
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder à tríplice especificação estabelecida no artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal:
Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) (…)
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida.
Relativamente à especificação da al. b) recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nº 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411º nº4 desse diploma.
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Relativamente ao recurso interposto pelo arguido MSL... suscita a Ex.ma Srª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação a questão do incumprimento da obrigação de especificação das concretas passagens do depoimento da testemunha JP... em que funda a impugnação.
Porém, o Recorrente funda a sua impugnação, para além desse depoimento, nas declarações dos arguidos MJS... e MSL..., no teor do Manual de Procedimentos, no texto do arguido MSL... para a testemunha CV... e no segmento do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII “que instituía a permissão legal de aceder a dados de tráfego ou outros dados conexos das comunicações”.
Por outro lado, também explica porque não procede à indicação do minuto do início e fim da parte das declarações consideradas pertinentes “…pois, V. Exas. deverão ouvi-lo na íntegra, o que expressamente se requer, preferencialmente em conjunto com o depoimento inicialmente prestado pela referida testemunha (gravado na 5ª sessão de julgamento, do dia 15 de Outubro de 2015, com gravação junta aos autos no ficheiro referente àquela sessão), quanto mais não seja para que fiquem também V. Exas, senhores Desembargadores, tal como ficaram todos quantos assistiram ao julgamento, com a certeza de que ficou estabelecida em definitivo uma grande dúvida acerca da legalidade dos procedimentos dos serviços operacionais do SIRP e acerca da normalidade da obtenção de informações, por ofício ou por fonte humana, praticamente em toda a parte e, sobretudo, junto das operadoras de telecomunicações”. Trata-se assim, na perspectiva do Recorrente, de um depoimento que tem de ser apreciado na sua globalidade, assim justificando o procedimento adoptado na motivação que respeita o espírito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência 3/2012[14] que se aplica apenas às situações em que não esteja consignado em acta o início e o termo das declarações e do qual entendemos que resulta, a contrario, a desnecessidade de transcrição quando esteja consignada em acta o início e o termo das declarações, podendo nesses casos a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ser feita por referência aos momentos da em que se inicia e em que termina o segmento de prova em que se funda a impugnação.
Relativamente aos recursos interpostos pelos arguidos FLD... e GF... também se considera – tendo em atenção que toda a estrutura recursiva se baseia na apreciação do que as testemunhas afirmam e que os Recorrentes transcrevem - que é manifesto o propósito de impugnar a matéria de facto. A não ser assim, seria manifestamente improcedente a invocação de existência de uma obediência indevida desculpante (arguido FLD...) e de ausência de dolo por erro sobre as circunstâncias (arguida GF...) que os factos provados tal quale não permitem conjecturar. Porém os Recorrentes não indicam expressamente os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados embora, na lógica da motivação, seja manifesto que põem em causa a prova dos factos atinentes aos elementos subjectivos da infracção (factos 31, 33 e 37 no recurso do arguido FLD... e 38 e 39 no recurso da arguida GF...).
Considera-se, todavia, que o tribunal de recurso não pode levar as exigências legais que têm uma justificação material de “delimitação da inteligibilidade e concludência da própria impugnação” a um ponto tal em que pormenores de “natureza puramente secundária ou formal”[15] se tornem em obstáculos intransponíveis a qualquer pedido de reapreciação da matéria de facto.
Trata-se, salvo o devido respeito, da interpretação que melhor salvaguarda o efectivo direito ao recurso (art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e art. 2º n° 1 do Protocolo 7 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), especificamente ao recurso de impugnação da matéria de facto[16].
Assim, admite-se o recurso de impugnação da matéria de facto dos arguidos MSL..., FLD... e GF....
Não se notam nenhuma deficiência formal no recurso de impugnação da matéria de facto do arguido MJS....
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Traçando os contornos gerais do regime de apreciação da impugnação ampla da matéria de facto dir-se-á que “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”[17]. No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme dos Tribunais da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”[18].
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se estiver alicerçada apenas na diferente convicção do Recorrente sobre a prova produzida.
Efectivamente, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”[19], embora a livre convicção não possa confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso.
Porém, tendo em atenção que o art. 127° do Código de Processo Penal, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova[20]. Ao tribunal de recurso cumpre verificar se o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum[21], todavia sem esquecer que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1ª instância que está em condições melhores para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.
Assim, ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só é possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem[22] decisão diversa da proferida[23].
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Relembrados estes princípios na análise do recurso sobre a matéria de facto, vejamos, então, a prova produzida.
Estão impugnados os factos provados nos seguintes termos:
O Recorrente MJS... impugna os factos provados 31, 32, 33, 36, 58, 69, 71, 73, 74, 75, 92, 93, 94, 95, 96, 120 e 131.
Considera que, ao invés, devem considerar-se assentes os seguintes factos:
A. O Arguido MJS... agiu com o intuito de proteger os Serviços Secretos Portugueses contra eventuais “toupeiras” e, por conseguinte, para proteger o Estado português.
B. «O arguido MJS..., quanto ao acesso à faturação detalhada, (…) [agiu] segundo o modus operandi dos serviços secretos portugueses, para o qual foi formatado durante toda a sua vida profissional» (facto constante do elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS, p. 38, com adaptações).
C. FS... era fonte dos Serviços Secretos portugueses, tendo facultado informação sobre o Porto de Astakos e sobre dois empresários russos (AlB... e AlV...), via email, ao Arguido MJS... precisamente nesse papel.
D. A informação facultada tinha interesse para o SIED.
E. Na sequência da informação facultada por FS... ao Arguido MJS..., foram desencadeadas as ações descritas nos pontos 59, 61 e 65 dos FACTOS PROVADOS, tendo sido produzido, com recurso a “fontes abertas”, um RINOT sobre os empresários russos.
F. A informação facultada a FS..., apenas sobre empresários russos, pese embora tivesse sido retirada do referido RINOT, não correspondeu ao próprio RINOT e continha “informação aberta”.
G. «Quanto à alegada transmissão de informação confidencial (…) [a conduta do Arguido MJS... traduziu-se] num escrupuloso cumprimento de deveres que sobre si impendiam, sempre dentro dos poderes que lhe eram conferidos» (facto constante do elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS, p. 38, com adaptações).
H. Os interesses nacionais da independência, segurança e integridade do Estado português não foram colocados em perigo.
I. A informação retirada da base de dados D... foi transmitida a uma fonte dos Serviços (FS...).
J. A atuação do Arguido MJS... inseriu-se numa lógica legítima, porque a favor dos Serviços Secretos portugueses.
K. O “Relatório” continha informação “histórica” e informação de cariz mais “pessoal”, tendo sido este último tipo de informação aquele que afrontou o Assistente/Demandante, dada a sua falsidade.
L. Todos os factos vertidos no “Relatório” são factos públicos, no sentido de o seu acesso não ser reservado.
M. O “Relatório” foi conhecido pelo Assistente/Demandante PPB... e pelo público em geral (sua família e amigos aí incluídos), porque, sendo parte integrante do processo n.º 5481/11.4TDLSB, a sua existência e partes do mesmo foram difundidas pela comunicação social.
O Recorrente MSL... impugna os factos provados 31, 32, 33, 35, 36, 91, 92 e 93.
Entende que se deveria assentar em que:
A. O Arguido MSL... recebeu ordens do arguido MJS... seu superior hierárquico no sentido de que o departamento de operações do SIED obtivesse os dados de tráfego do telefone 9... tendo por fim proteger os Serviços Secretos Portugueses contra fugas de informação para o exterior e, consequentemente, com o fim último de proteger a independência, integridade e segurança do Estado português.
B. O arguido MSL..., endossou a FLD... a ordem recebida de MJS... para que se obtivesse a facturação detalhada do telefone 905016063, pois, estavam em causa interesses do SIRP e essa era uma actividade normal que cabia no modus operandi dos serviços secretos portugueses, que bem conhecia e que, aliás, constava do Manual de Procedimentos do SIS em uso, quer na formação quer na prática diária do departamento operacional dos serviços, que tinham fontes humanas nas operadoras de telecomunicações.
O Recorrente FLD... questiona a existência de prova dos factos 31, 33 e 37, na medida em que considera ter actuado em obediência indevida desculpante.
A Recorrente GF... considera não ter actuado com dolo ao contrário do que resulta dos factos 38 e 39, por ter agido em erro sobre as circunstâncias.
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Relembrados estes princípios na análise do recurso sobre a matéria de facto, vejamos, então, a prova produzida[24].
I.
Relativamente ao acesso à facturação detalhada do jornalista S... são impugnados os factos provados 31 a 33 e 35 a 39.
O Recorrente MJS... invoca, em abono da sua tese, as suas declarações, os depoimentos das testemunhas H..., JM..., FT..., JB..., AF... e LO..., a análise da parte do Manual de Procedimentos junta aos presentes autos (a fls. 4095 e ss.) – e, mais precisamente, aquilo que se alude na respectiva página 64 – o livro Os Códigos e as Operações dos Espiões Portugueses, junto aos presentes autos a fls. 5208 e ss. – e, mais precisamente, o referido nas respectivas pp. 34 e s., 40, 73, 151 e ss., 231 e ss., 297 e ss., 328 e 335 e ss. – a mensagem escrita enviada pelo Arguido MSL... para a testemunha CV... com o conteúdo «Temos acesso 93…?» em conjugação com o depoimento da testemunha CV... e o 2º depoimento da testemunha JP... conjugado com a existência de clara contradição com o seu depoimento anterior, justamente em momento em que ainda não havia sido revelada qualquer parte do Manual de Procedimentos e os depoimentos das testemunhas PB..., PP... e HP... que demonstraram a inexistência de uma efectiva actividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP.
Para o Recorrente MSL..., a impugnação assenta nas suas próprias declarações e do co-arguido MJS..., na análise do Manual de Procedimentos, no segundo depoimento do senhor Secretário Geral do SIRP, a testemunha JP..., no texto da sms do arguido MSL... para a testemunha CV..., “Temos acesso 93?” e na interpretação que faz do segmento do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII (que aprovou o “Regime Jurídico do SIRP”), no qual constava a norma do artº 78º, nº 2, que instituía a permissão legal para aceder a dados de tráfego ou outros dados conexos das comunicações o que abona a favor da tese da defesa de que o arguido recorrente actuou dentro da normalidade, de acordo com o modus operandi, dos serviços secretos.
Para sustentar a sua impugnação, o Recorrente FLD... invoca excertos das suas próprias declarações, do co-arguido MSL... e dos depoimentos das testemunhas JM... e LO... enquanto a Recorrente GF... impugna a matéria de facto com base em partes das suas próprias declarações.
Ao contrário do alegado pelo Recorrente MJS..., não se afigura que tenha ficado demonstrado que, com a sua conduta, quisesse proteger os Serviços Secretos portugueses e, por aí, o Estado Português. Nesse sentido afigura-se paradigmático o depoimento da testemunha JP..., Secretário-geral do SIRP, considerando que o incidente não era tão significativo, no sentido de que não punha em causa a Segurança Nacional nem os serviços de informação, que justificasse tão frontal violação da Constituição e da Lei. No mesmo sentido apontam os depoimentos das testemunhas JB..., AF... e o próprio arguido MJS... que reconheceu que as fugas de informação dos serviços não são materialmente relevantes para a segurança nacional. Não deixa de ser estranho que “tendo resultado das suas declarações que o arguido MJS..., depois de ter consultado a lista da facturação detalhada dos funcionários a que tinha acesso, no âmbito do exercício das suas funções, e de, logo aí, ter identificado um suspeito, deu ordens ao arguido MSL... para que obtivesse os dados de tráfego do telefone usado pelo jornalista S...”, como se afirma na acórdão recorrido, ainda assim, tenha decidido usar mais este meio, que é inadmissível e era, em concreto excessivo ou desnecessário[25]. Da análise das suas declarações e do depoimento das testemunhas LO..., FT..., JB..., AF... e JM..., nos termos alegados, não resulta qualquer elemento decisivo que imponha decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo, a qual se mostra devidamente assente na análise crítica da prova produzida e nas regras da experiência.
Os Recorrente MJS... e MSL... sustentam que actuaram segundo o modus operandi dos Serviços que sempre lhe foi incutido. Não pode deixar de se registar que o arguido FLD..., apesar de estar colocado no departamento A de pesquisa (operacional) estranhou o pedido – “foi a primeira e única vez” – e, bem assim, não tinha conhecimento nem acesso ao “Manual de Procedimentos” que, na sua perspectiva, se destinava apenas a formadores.
Sobre o “Manual de Procedimentos” junto aos autos na parte em que foi levantado o segredo de Estado não resulta directamente que os serviços de informação – que podem ter “fontes humanas” em operadoras de comunicações – obtivessem por essa via e com frequência elementos a que lhes está legalmente vedado o acesso. Concordamos com o acórdão recorrido quando afirma “não encontrámos na parte do Manual de Procedimentos, que foi revelada e que corresponde integralmente à parte divulgada pela comunicação social - fls. 4095 a 4104 -, uma indicação segura de que essas práticas ilegais eram ensinadas no Manual de Procedimentos.
De facto, o que se diz na pág. 64, sobre os elementos que podem ser obtidos nas operadoras de telecomunicações móveis pode reportar-se aos chamados dados de base, para efeitos de identificação, sem tratamento, não sujeitos ao princípio da confidencialidade e que não atentam contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos visados nessas pesquisas (ou informações)”. Foi essa, aliás, a posição da testemunha JP... que deixou claro que estes procedimentos não são os do serviço, não estão autorizados e há consciência nos serviços a nível do pessoal que trabalha na pesquisa. É claro, porém, como também disse essa testemunha, que pode haver um conflito de interesses mas em situações excepcionais … e esta não era”[26]. Ao contrário do que afirmam os Recorrentes MJS... e, especialmente, MSL..., não se encontram flagrantes contradições entre o depoimento prestado no dia 15.10.2015 e no dia 19.5.2016 pela testemunha JP.... Observa-se um discurso mais limitado pelos deveres impostos pelo segredo de Estado e um depoimento mais liberto desses confinamentos quando o segredo de Estado foi levantado em relação a algumas matérias do “Manual de Procedimentos”.
É certo que a questão do acesso (também) dos Serviços de Informação Portugueses, nomeadamente a dados de tráfego, é uma questão fracturante que separa aqueles que têm maiores preocupações securitárias dos que dão prioridade à reserva da vida privada e à proibição de ingerência nas comunicações. A questão foi devidamente tratada no acórdão recorrido e a sua actualidade decorre do pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do segmento do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII - que aprovou o “Regime Jurídico do Sistema de Informações da República Portuguesa” - que autorizava os oficiais de informações do SIS e do SIED, para efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artº 4, e no seu exclusivo âmbito – actividades de recolha, processamento, exploração e difusão de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português –, a acederem, mediante autorização de uma “comissão prévia de controlo”, a informação bancária, fiscal, dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação (art. 78º nº 2) e da decisão do acórdão do Tribunal Constitucional nº 403/2015 que se decidiu pela inconstitucionalidade dessa norma. É claro que, como acentua o acórdão recorrido, o acesso a tais dados só seria admitido quando, e apenas quando, estivessem em causa informações necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna e externa do Estado Português, o que não é, manifestamente, o caso. Centrando-nos na prova produzida, decorre das declarações dos arguidos e dos depoimentos das testemunhas que quadros superiores dos Serviços de Informação perfilham, naturalmente dir-se-ia, de posição que se preocupa com questões de segurança e pugnam por um acesso mais fácil a elementos de informação que lhes estão constitucionalmente vedados. Porém, essa circunstância não significa que, mesmo sem quadro legal habilitante, os Serviços de Informação violassem corriqueiramente a lei. Seria um absoluto desacreditar do Estado de Direito democrático e dos serviços que o protegem. Ofenderia as regras da experiência concluir que esse estado de coisas existia no caso concreto com base numa leitura superficial da prova produzida. Ora, como decorre da prova produzida e bem salienta o acórdão recorrido, “as testemunhas de acusação e defesa, funcionários e responsáveis do SIED, também negaram a existência destas práticas nos serviços”. A circunstância da testemunha MV... ter admitido essa hipótese como normal, sem concretizar, não invalida a conclusão extraída pelo tribunal. Ao contrário do que o Recorrente MJS... afirma, o que se extrai do depoimento da testemunha PB..., do Conselho de Fiscalização, sobre ser (ou não ser) normal a obtenção de facturação detalhada, é que tendo feito inquirições/entrevistas a todos os elementos do SIED individualmente, por causa de algumas declarações contraditórias não pode afirmar peremptoriamente a inexistência de irregularidades. Porém, face à inexistência de provas, “se essas ilegalidades eram tão frequentes assim, nós tê-las-íamos encontrado”.
Também quanto à existência de uma efectiva atividade fiscalizadora por parte do Conselho de Fiscalização do SIRP, ao contrário do invocado, basta ter em atenção o teor dos depoimentos das testemunhas PB... e PP... para constatar que a fiscalização era efectivamente exercida e que, como refere o acórdão recorrido, o Coronel J..., enquanto Presidente dessa Comissão foi um presidente pró-activo. Salvo o devido respeito as declarações de HP... não demonstram a inexistência de uma efectiva e eficiente actividade fiscalizadora.
Ao contrário do alegado pelo Recorrente MJS..., a sua “formatação” a um quadro mental muito específico, tendo em atenção a carreira profissional ter sido toda desenvolvida nos Serviços Secretos portugueses, desde a altura da sua formação até ter ocupado o cargo máximo de chefia do SIED foi devidamente ponderada pelo tribunal a quo como resulta claro do que consta da fundamentação: “E um parêntesis para referir que nesta apreciação conta, não só o curriculum dos arguidos, as suas habilitações literárias e formação académica e as funções que exerceram, mas também o seu perfil, sendo, neste particular, indiscutível que o arguido MJS... era um líder”.
Os Recorrentes MJS... e MSL... dão um especial relevo à mensagem enviada pelo Recorrente MSL... para a testemunha CV..., com o conteúdo “temos acesso 93…?” como forma de corroborar que o acesso a dados de tráfego correspondia ao modus operandi dos serviços. É patente que a testemunha (exonerado sem saber porquê, de acordo com o que disse) teve um depoimento emotivo sobre os factos, patente até na crispação com que decorreram as instâncias da defesa dos Recorrentes MJS... e MSL.... Porém, ainda assim, não se nota qualquer desvio à percepção dos factos de que teve conhecimento e que pôde relatar sem violar o Segredo de Estado. O que se extrai do seu depoimento, aliás em sintonia com o depoimento da testemunha JP... é que se tratou de uma questão inusitada formulada pelo seu superior hierárquico directo, o arguido MSL..., a que respondeu negativamente. Considera que pedidos de acesso a facturação detalhada são esporádicos que só ocorrem em situações de extrema gravidade para a Segurança Nacional e só tem conhecimento de um único pedido de acesso a facturação detalhada mas que foi efectuado por um serviço de informações estrangeiro[27] e numa situação extrema para a Segurança Nacional. Ainda assim, mesmo nesse caso, o acesso não foi concretizado “porque os serviços agem no âmbito da legalidade”. Assim, não decorre deste depoimento nem do sms referido, qualquer argumento que credibilize a tese de que este era uma forma normal de actuação do SIED.
O conhecimento da ilegalidade do procedimento adoptado foi reconhecido pelos Recorrentes MJS... e MSL..., nos termos plasmados e explicados no acórdão recorrido.
O Recorrente FLD... sustenta que se limitou a cumprir ordens que entendeu não poder/dever questionar, com base nas suas declarações e nos depoimentos supra referidos cujas partes pertinentes transcreve, sendo certo que a referência ao respeito pelas ordens recebidas e o princípio do conhecimento mínimo indispensável (excertos citados) apontam no sentido de dever ser devidamente ponderada a possibilidade do Recorrente, atendendo à sua posição hierárquica, ter actuado da forma descrita por estar convencido que devia obediência à ordem que lhe foi dada. A questão foi devidamente ponderada na fundamentação da matéria de facto pelo tribunal a quo.
É certo que o Recorrente vai sustentando nas suas declarações que está habituado a respeitar as hierarquias do serviço, tendo em atenção todo o seu percurso (militar) e desconhecia que o cumprimento daquela ordem conduzia à prática de um crime. Porém, não deixa de afirmar que estranhou o pedido, que foi a primeira e única vez que lhe fizeram tal pedido e que não tem conhecimento de que os pedidos de facturação detalhada fossem prática do serviço, dizendo também que não tinha conhecimento do manual de procedimentos referido nos autos, o qual seria do conhecimento apenas dos formadores mas não dos alunos. Por outro lado também afirmou que os serviços de informação “trabalham na zona cinzenta”, ou seja, por vezes à margem da legalidade e disse que apesar de ter estranhado a ordem optou por fazer o que lhe era ordenado por uma questão de carreira (“quanto mais produzíamos, melhor”). Do exposto conclui-se que o Recorrente sabia que não era um modus operandi comum a obtenção de facturação detalhada daquela forma, ou seja, não existia um quadro de circunstâncias que perturbasse a evidência de que a ordem era ilegal. Recorde-se que, como afirmou a testemunha JP..., o pessoal que trabalha na pesquisa tem consciência que estes procedimentos não são os do serviço, nem estão autorizados. Por outro lado, das declarações da co-arguida GF... decorre que que a ilegalidade do pedido era conhecida por ambos e apenas o apelo à gravidade da situação que lhe foi referida explicava a necessidade daquele procedimento. Acresce que, como salienta a Ex.ma Srª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, dos factos 22 e 23 resulta que o arguido FLD... trabalhou esse ficheiro no domínio que lhe estava destinado como UTIL25O, atribuindo-lhe a designação de “Book7.xls”, completando-o, por determinação do arguido MSL..., com referências identificadoras dos destinatários das chamadas realizadas por S... e posteriormente, no seu domínio de trabalho na Rede Externa do SIED, ao contrário do que era habitual nos serviços, conforme depoimento da testemunha LO..., trabalhou os respectivos dados, em ficheiro no formato Word, atribuindo-lhe a designação de “Lista de compras.doc”, conforme apenso 15, fls. 4 a 8.
Face a estes elementos probatórios conclui-se que a opção do julgador deve ser acolhida porquanto se trata de uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum e as provas indicadas pelo Recorrente não impõem decisão diversa da proferida.
A Recorrente GF..., em alegações apresenta excertos das suas declarações dos quais, na sua perspectiva, resultaria que actuou convicta de que o pedido era legítimo, em virtude de ter sido efetuado pelos Serviços de Informação e ter-lhe sido conferida a importância de uma questão de Estado. Porém, das suas declarações ouvidas na íntegra, resulta que reconheceu que sabia da ilegalidade do pedido e da sua actuação na empresa em que trabalhava e que ponderou essa ilegalidade e, apesar de a reconhecer entendeu que devia dar seguimento ao pedido efectuado pelo co-arguido FLD..., seu companheiro, atendendo às ideias de necessidade, gravidade e urgência que lhe foram incutidas por este. Refira-se que a testemunha RPC... confirmou que havia acções de formação e sensibilização sobre os trabalhadores da O... e que o telemóvel pertencia ao jornal “Público”.
Como decorre da fundamentação, e sustenta a Ex.ma Srª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, os segmentos transcritos das declarações que proferiu em julgamento, ponderada a globalidade do mesmo, não têm a virtualidade de impor decisão diversa da proferida pelo tribunal coletivo, havendo a salientar que em julgamento “a arguida GF... confessou, com grande humildade, que tinha consciência de que não podia praticar aqueles actos e que cedeu ao pedido do companheiro. Não revelou, nem sequer alegou, falta de consciência da ilicitude da sua conduta”.
Face a estes elementos probatórios conclui-se que também em relação à Recorrente GF... a opção do julgador deve ser acolhida porquanto se trata de uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum e as provas indicadas pela Recorrente não impõem decisão diversa da proferida.
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Em síntese não há fundamento para alterar os factos provados 31 a 33 e 35 a 39 nem para considerar assentes os factos A e B propostos pelos Recorrentes MJS... e MSL....
II.
Relativamente à informação sobre empresários russos e RINOT o Recorrente MJS... impugna os factos provados 58, 69, 71, 73, 74 e 75, considerando deverem considerar-se assentes os factos C a H supra referidos.
Invoca que a prova produzida impunha a consideração que FS... era fonte dos Serviços Secretos portugueses e que as comunicações existentes entre este e o Recorrente foram estabelecidas nesse contexto, por se tratar de informação com interesse para o SIED, com base nas suas próprias declarações e declarações que prestou à testemunha LO... e que constam de fls. 5 do Apenso G12, no âmbito do processo de inquérito interno do SIRP, das testemunhas MR..., JB..., AF..., H..., documentos constantes de fls. 4, 6, 12 e 114 do Apenso 4 [vol. I], de fls. 280, Apenso 4 [vol. II] e de fls. 38, Apenso 5 (e, em especial, o email de fls. 6, Apenso 4 [vol. I]), em si mesmos e em conjugação com o depoimento da testemunha FS....
Sustenta também que o acórdão recorrido errou ao não considerar que a informação facultada pelo Recorrente a FS... foi retirada do único RINOT realizado neste contexto, tendo sido a mesma recolhida de “fonte aberta” (a propósito dos pontos 69 e 71 do elenco dos FACTOS PROVADOS e dos factos indicados sob as letras E. e F.), como se impunha dos seguintes elementos probatórios, conjugados com as regras da experiência comum: SMS 68, 69, 70 e 323, Apenso 1, do email de fls. 9, do Apenso 4 [vol. I], do email de p. 54, do Apenso 12, do documento de pp. 55 e ss., do Apenso 12, da Comunicação do Coronel J... (à data, Presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP) sobre o Comunicado do Conselho de Fiscalização do SIRP emitido a propósito do Relatório de LO... e FT... constante do Apenso 12 e o próprio Comunicado do Conselho, a fls. 474 e ss, do depoimento das testemunhas H..., MR..., JP... e FS... bem como das declarações do Arguido MSL....
Entende que também errou ao não reconhecer que o Arguido MJS... agiu, neste preciso contexto, em prol dos Serviços Secretos portugueses (e não em prol da GO.../Arguido RAV...) e no âmbito da sua atividade de Diretor-Geral do SIED (a propósito do facto indicado supra sob a alínea G.) quando, para além das declarações do Recorrente e dos depoimentos das testemunhas HP... e FT..., tendo em atenção que não existe qualquer elemento capaz de estabelecer uma ligação entre o Recorrente e a GO.../RAV... no que toca ao tema do Porto de Astakos/empresários russos e, bem assim, entende que o tribunal a quo tinha dados suficientes e cabais para decidir no sentido de que a conduta do Recorrente não pôs em perigo o Estado português e os respetivos interesses e relações internacionais o que decorre de uma correcta interpretação dos depoimentos das testemunhas H... e JP..., das declarações do arguido MSL... e do Comunicado do Conselho de Fiscalização do SIRP emitido a este propósito, a fls. 476.
A análise do depoimento de FS... e dos documentos com os quais foi confrontado não permite as dúvidas que o Recorrente pretende suscitar sobre ser “fonte humana” dos Serviços de Informação, decorrendo não só da forma veemente como disse que “nunca” prestou informações para os serviços mas de todo o contexto do seu percurso profissional, as áreas em que é especialista (negócios em África) e das explicações que forneceu. Para além de transparecer uma personalidade exuberante e conflituosa, não descortinámos a afectação, atrapalhação ou exaltação que a defesa encontrou na explicação dos motivos e contexto da correspondência trocada com o Recorrente. Aliás, o que se retira desse depoimento – independentemente do que o tribunal a quo veio a considerar assente por considerar a declaração da testemunha nessa parte “vaga e pouco consistente” – é que o Recorrente, enquanto ainda estava no SIED já prestava informações para a “GO...”, designadamente no que respeita aos russos e ao porto de Astakos.
Sobre a relevância das declarações noutro processo da testemunha (fls. 1582) foi proferido despacho a considerar inadmissível o confronto com essas declarações e não foi interposto recurso sobre tal despacho. Aliás, a posição tomada encontra-se devidamente fundamentada, conforme resulta da audição do depoimento e despacho proferido.
Da invocação de segredo de Estado pela testemunha MR... ou da circunstância da testemunha JB... dizer que conhecia a testemunha por intermédio do Recorrente também nada se indicia, tendo em atenção a relação pessoal existente.
O facto do Recorrente o ter afirmado e de o ter dito no inquérito interno aos Serviços continua a ser apenas a posição do Recorrente que o tribunal a quo considerou não credível em termos devidamente fundamentados.
Dos depoimentos das testemunhas AF... e H... também não resulta de forma directa o interesse concreto daquelas informações para os Serviços nem que, in casu, a informação que o Recorrente passava para FS... fosse uma forma de gestão e orientação de fontes.
Sobre o facto da informação facultada pelo Recorrente a FS... ter ou não ter sido retirada do único RINOT realizado neste contexto, recolhida de “fonte aberta”, remetemos na íntegra para o raciocínio fundamentador da decisão recorrida que procede a uma análise das provas pertinentes e se baseia nelas para concluir de acordo com as regras da experiência que a informação foi obtida por recurso a fontes abertas e uma outra parte por recurso a fontes humanas e que é susceptível de afectar, de modo relevante, a segurança do Estado, de gerar conflito diplomático entre o Estado Português e outro a que a informação se refere, potenciando, de modo não controlável, o risco de propagação da informação (fls. 76 a 80 do acórdão, reproduzida supra a fls. 119 a 121).
O tribunal a quo procedeu à análise dos sms 70 e 323 do apenso 1, e-mails de fls. 9 a 11 do Apenso 4, vol.1, relatório do SIRP e RINOT de fls. 51 do Apenso 12 concomitantemente com os depoimentos das testemunhas H..., FS..., LO... e JP... e também com as declarações do arguido MSL....
Não se extrai da prova invocada pelo Recorrente nenhum argumento que imponha opção diversa daquela que o julgador tomou, com base na análise crítica da prova que elencou e apreciou. Designadamente, dos segmentos dos depoimentos das testemunhas FT... e MR... nada de concreto resulta para além dos procedimentos habituais e, apesar da posição da testemunha JP... de que estaria em causa informação aberta (no mesmo sentido, aliás, se pronunciou a testemunha FS...), o que decorre da própria análise da informação, do depoimento de H..., das declarações do arguido MSL..., como salienta o acórdão recorrido, é “que a informação acima analisada é uma junção de informações obtidas por várias vias, umas deram origem ao RINOT de fls. 51, classificado como confidencial, fruto de pesquisas feitas por H... e de pesquisas feitas por fontes humanas, outras, como ressalta do próprio texto e resulta com total clareza do seu conteúdo, baseadas essencialmente em informações obtidas por fontes humanas do SIED que foram integradas num outro relatório que não chegou a ser notificado ao chefe do departamento (declarações do arguido MSL... e relatório do SIRP)”.
Compreendemos que numa área tão delicada como aquela em que se inseria a actividade do Recorrente se explorem as possibilidades de conspiração e que se aprecie com reserva o que os intervenientes dizem, a forma como o dizem e o que não dizem. Porém, analisada a prova produzida e aquela que o Recorrente refere, não se encontram razões para discordar do tribunal a quo quanto à matéria em causa, quer quanto aos factos julgados provados, quer quanto àqueles que o Recorrente pretende que sejam considerados assentes.
III.
Sobre a informação obtida na base de dados do SIED, “D...”, o Recorrente MJS... impugna os factos provados 92, 93, 94, 95, 96, considerando deverem considerar-se assentes os factos I e J supra referidos e o Recorrente MSL... impugna os factos provados 91, 92 e 93.
O Recorrente MJS... invoca (novamente) que a informação facultada se destinava a FS..., que era fonte dos Serviços Secretos portugueses e que não visava a satisfação do seu próprio interesse pessoal mas o benefício dos Serviços Secretos portugueses. Fundamenta a sua posição nas suas próprias declarações, no email de fls. 280, do Apenso 4 [vol. II], nas declarações do co-arguido MSL... e depoimentos das testemunhas JB..., JM... H... e até, em certa medida, do depoimento da testemunha JP....
O Recorrente MSL... sustenta que os factos 91, 92 e 93, foram erradamente julgados, pois, limitaram-se a acolher as alegações e conjecturas da acusação, sem que as mesmas tenham sido cabalmente provadas, através de meio próprio, que seria a prova documental e não as especulações testemunhais (testemunha CV...), invocando ainda que o co-arguido MJS... ainda estava ligado aos serviços e era a “FoP...”.
Relativamente ao facto 91, o depoimento da testemunha CV... não deixou ao tribunal margem para dúvidas o que se compreende tendo em atenção que declarou ter sido o responsável pela negociação dos termos contratuais que expôs com clareza, que não houve qualquer prova em contrário e à relevância acessória dos concretos termos contratuais. No mesmo sentido também a testemunha JP... confirmou que se tratava de um serviço pago Considera o Recorrente MSL... que se exige a prova exclusivamente através de meio próprio que seria a prova documental. Porém, valendo em processo penal o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal, in casu nada obsta a que a prova do facto em causa tenha por base o depoimento de uma testemunha[28].
Quanto aos demais factos, importa recordar que, como o tribunal a quo acentua, na data em que o Recorrente MJS... faz o pedido de acesso à base de dados ao Recorrente MSL... já este estava afastado do serviço, exonerado das suas funções, conforme resulta dos factos provados 78 a 81, 86 e 87 que os Recorrentes não impugnam.
Apenas o Recorrente MSL... invoca que o co-arguido MJS... era a “FoP...” dos serviços na GO.... Porém, o Secretário-Geral do SIRP JP... e o actual Director do SIED, testemunha JM..., que sucedeu ao arguido MJS... no cargo que este exerceu até 1.12.2010, disseram que o arguido MJS... ficou totalmente desligado dos serviços, como ficou assente, nem se concebendo o contrário face às circunstâncias em que saiu do SIED e à sua entrada na GO... (cfr. facto provado 79).
Como decorre do exposto sobre a ausência de prova de que FS... era fonte humana dos serviços de informação e tendo em atenção que ficou assente e não foi impugnado que “em 10.12.2010, FS... solicitou ao arguido MJS... informação sobre as sociedades H...,S.A., M... Consultadoria, Lda., M... Gestão de empresas, Lda., I... Construções, S.A., C..., Lda. e B..., Lda., todas com participação de HJ... (facto 86) ao que o Recorrente MJS... acedeu, e “pediu a MSL..., em data não apurada, mas compreendida entre 10 e 21 de Dezembro, que recolhesse e lhe transmitisse informação sobre as sociedades com participação do referido empresário residente na Região Autónoma da Madeira” (facto 87) não merece qualquer contestação que o interesse nessa pesquisa não era dos serviços de informação nem se compreendia nas suas atribuições mas, tão só, do Recorrente MJS....
Não encontramos nos segmentos dos depoimentos – das testemunhas JB... (que falou “em doutrina”), JP... (que falou “em teoria”) JM... (que falou no envio posterior de e-mails de fonte aberta enviados para os serviços pelo Recorrente) e H... (que referiu jantares “abertos” sem nenhuma relação com os serviços) – que o Recorrente MJS... invoca razões que imponham decisão diversa da proferida, porquanto a opção do julgador corresponde a uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum.
IV.
Quanto ao “Relatório” sobre PPB..., o Recorrente MJS... impugna os factos provados 120 e 131, considerando deverem considerar-se assentes os factos K, L e M supra referidos.
O Recorrente considera que o acórdão recorrido não deveria ter considerado que o assistente ficou chocado e perturbado com o teor do “Relatório”, em especial com a parte relativa aos seus filhos e à sua vida intima e deveria ter considerado provado que o que afectou o Assistente PPB... foi o seu cariz pessoal pela falsidade do que a esse propósito era aí relatado, entendendo que tal decorre do depoimento escrito do Assistente e dos depoimentos das testemunhas JD..., MB... e PN...; que errou ao não considerar que os factos constantes do “Relatório” são públicos (a propósito do facto indicado, supra, sob a alínea L.), quando nesse sentido claramente apontou o depoimento da testemunha FC...; não avaliou de forma correta a realidade, pois não resultou das declarações do Recorrente nem dos seus actos que o mesmo tivesse agido com o dolo de “manter” o “Relatório” – primeiro, fazendo-o seu e, depois, manifestando essa vontade de o manter como seu, como decorre das suas próprias declarações; devia constar do acórdão recorrido que o “Relatório” foi conhecido pelo Assistente e pelo público em geral (sua família e amigos incluídos) através da sua difusão pela comunicação social por ser parte integrante dos autos (a propósito do facto indicado, supra, sob a alínea M.), na linha daquilo que se refere nos pontos 131 e 132 dos factos provados, invocando nesse sentido os depoimentos das testemunhas MB..., PN..., PPB... e LM...
O Recorrente questiona a existência de dolo e os motivos da perturbação do assistente, notando-se que não põe em causa a objectividade dos factos. Recordando as lições do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira[29], no que diz respeito à intenção do arguido, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão. Por isso, importa recorrer a regras de experiência para se aferir ou não da intenção criminosa e para extrair os elementos confirmativos da sua verificação da matéria fáctica dada como provada.
Estando em causa a intenção do Recorrente, constata-se que o dolo genérico do Recorrente – não sendo necessária qualquer intenção específica para o preenchimento do crime[30] - se mostra claramente fundamentado e decorre inequivocamente da sua conduta objectiva e das regras da experiência, tendo em atenção as actividades e os conhecimentos do Recorrente. Como se afirma na fundamentação de direito do acórdão recorrido, “o arguido quis guardar esse texto no seu correio electrónico”. Aliás como o próprio Recorrente reconhece nas declarações que prestou, não apagou o relatório, o que se afigura bastante independentemente de ter ou não guardado o relatório em qualquer outra nuvem informática (pública, privada ou híbrida) ou na memória física do computador.
Afigura-se consubstanciar uma certa contradição a circunstância de, por um lado, o Recorrente pretender que se considere não provado o facto 131,“o assistente ficou chocado e perturbado com o teor do “Relatório”, em especial com a parte relativa aos seus filhos e à sua vida íntima” e, ao invés, pretender que se considere assente o facto que assinala como K, “o “Relatório” continha informação “histórica” e informação de cariz mais “pessoal”, tendo sido este último tipo de informação aquele que afrontou o Assistente/Demandante, dada a sua falsidade”. Que o “Relatório” continha informação “histórica” (alguma) é uma conclusão que se extrai da leitura desse relatório e já decorre do facto provado 116. Porém, dizer que o assistente ficou chocado e perturbado em especial com a parte relativa aos seus filhos e à sua vida íntima como consta do facto provado 131 é, na leitura que fazemos e atendendo às questões que se suscitam, equivalente a dizer que foi a informação de cariz mais “pessoal”, que afrontou o Assistente.
Pretende ainda o Recorrente que fique a constar dos factos provados a falsidade da informação de cariz mais “pessoal”, o que se compreende pela circunstância de considerar que “só a verdade e não a mentira pode trazer a público o que cada um quer legitimamente manter sob reserva”[31]. O assistente no seu depoimento escrito optou por assumir a posição de que é irrelevante se tais factos ou pretensos factos são verdadeiros ou não sob pena de a sua vida privada ser também devassada nestes autos, que os factos ou pretensos factos a falsidade ou não do que aí se narra é irrelevante, ao contrário do que o Recorrente alega, o que também se justifica, tendo em atenção que a esfera da intimidade é reconhecida a todas as pessoas, independentemente do seu estatuto, configurando “uma barreira intransponível à exceptio veritatis ou à prova da verdade dos factos, em geral admissível quando estão em causa atentados à honra sob a forma de imputação de factos”[32]. Ainda assim, da análise objectiva do relatório e da prova produzida resulta que enquanto alguns factos não passam de rumores como o próprio relatório assinala, alguns foram considerados como mentira por testemunhas, quanto a outros nada se apurou, enquanto vários factos da esfera da intimidade foram considerados verdadeiros, embora eivados de insinuações, deturpações ou especulações como assinalaram designadamente as testemunhas PPB... e JD....
Também atendendo ao objecto do processo é irrelevante a forma e as razões pelas quais o “Relatório” chegou ao conhecimento do Assistente PPB..., família, amigos e ao público em geral, tratando-se, assim de facto irrelevante para a boa decisão da causa (facto M que o Recorrente pretendia que fosse considerado provado). Certamente que tais factos não teriam sido conhecidos do público se o Recorrente não tivesse obtido tais dados, mantendo no seu computador (na caixa do correio electrónico) um ficheiro informático, em formato Word, que lhe foi apreendido, contendo o documento supra mencionado (facto 119) e tendo-o inclusivamente enviado em 17.10.2011, para PF... (facto 114), assim o facultando a outrem e divulgando. Aliás, o facto que o Recorrente pretende que se considere assente de que foi por ser parte integrante do processo n.º 5481/11.4TDLSB, que a existência e partes do relatório foram difundidas pela comunicação social, para além de ser irrelevante para impedir o nexo de causalidade entre o facto e o dano, não resulta como absolutamente inequívoco do teor dos depoimentos invocados: apesar das notícias referirem tal relatório, não resulta da audição integral das declarações do assistente nem dos depoimentos invocados (testemunhas MB..., PN..., PPB... e LM...) a origem do relatório que foi divulgado na comunicação social. O acesso ao teor do relatório podia provir do relatório constante dos autos como de outra fonte que tenha facultado ou divulgado o acesso ao dito relatório.
Quanto à circunstância dos factos serem “públicos”, assinala-se, tal como o assistente na sua resposta, a incongruência do Recorrente considerar os factos constantes do relatório simultaneamente como públicos (notórios ou de conhecimento geral) e falsos. Da própria análise objectiva do tipo de factos constantes do relatório, como os aludidos rumores, decorre a impossibilidade de, pela sua natureza, se poderem considerar como elementos factuais e públicos. Outros factos, também pela sua natureza, pertencem à reserva da intimidade e da vida privada do assistente e de familiares. Nem do depoimento da testemunha invocada pelo Recorrente, o jornalista FC..., analisado na sua integralidade, resulta de forma consolidada que todos os factos são públicos, na medida em que alguns não são verdadeiros, são meramente opinativos ou especulativos e nem sequer se baseiam em fontes credíveis (o referido blog muito mentiroso, não tanto pelo seu próprio nome como pela reputação que foi ganhando entre os internautas não pode ser considerada fonte séria e credível), decorrendo do seu depoimento que ser público era já ter ouvido falar do assunto (sendo um conhecedor/investigador de temas que envolvem PPB... enquanto figura pública), designadamente ao ser confrontado com fls. 23, 28 e 31 do relatório. A opor-se à tese de que estavam em causa apenas factos públicos e verdadeiros está, como assinala o assistente na sua resposta, designadamente o depoimento da testemunha JD... que realça, com o conhecimento que tem do assistente, aquilo que qualifica como “mentiras puras” ou das testemunha MB... que aludiu a factos inventados e também FPP.... Também LM..., jornalista, referiu que havia alguns factos que não eram do seu conhecimento nem do conhecimento publico.
Mais uma vez, as provas indicadas pelo Recorrente não impõem decisão diversa da proferida, porquanto a opção do julgador corresponde a uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum.
*
Consequentemente, não se encontra fundamento para alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

3. Violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo
Argumentam os Recorrentes MJS... e MSL... que o tribunal a quo, por respeito aos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, deveria absolver os arguidos.
Quanto à apreciação da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do Código de Processo Penal.
Por isso, a invocação da violação desse princípio não pode servir para o recorrente sindicar a livre apreciação da prova produzida em audiência, realizada pelo tribunal recorrido. Neste sentido, a apreciação da prova deve ser fundamentada nas “regras da experiência” e na “livre convicção” do juiz, por decorrência directa do art. 127º do Código de Processo Penal. Por isso e porque o art. 374º nº 2 do Código de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio[33]. Para além das aludidas operações intelectuais o tribunal deve respeitar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação mas respeitando as proibições de prova (art.s 125º e 126º do Código de Processo Penal) as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (art.s 129º e 130º do Código de Processo Penal) pericial (art. 163º do Código de Processo Penal) e a documental (167º a 169º do Código de Processo Penal).
Relativamente ao funcionamento do princípio da inocência e do in dubio pro reo cumpre acentuar que o tribunal não se socorre do princípio in dubio pro reo que apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece os arguidos, quando não tem quaisquer dúvidas da valoração da prova e, fica seguro do juízo de censura dos arguidos.
Por regra, tal princípio só é violado “se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar os arguidos com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor dos arguidos”[34].
Se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objectiva, e de harmonia com a experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que impliquem dúvida razoável que afastem a valoração efectuada pelo tribunal para que deva alterar-se a decisão de facto recorrida, sendo por conseguinte, lícita e válida a decisão de facto importando recordar que se, fundamentadamente e sem ofensa das regras da experiência, na sua convicção, o juiz considerar que determinado depoimento é credível e outro não é, a decisão mantém-se. O valor da prova produzida tem a ver com a sua qualidade e credibilidade.
Com a devida vénia transcreve-se aqui parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.08[35], que continuamos a considerar que desenvolve em termos claros o funcionamento dos princípios em apreço:
“De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
A este propósito, convém de resto recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (Repete-se: «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador») ”.
*
No caso em apreço a questão tem contornos particulares porquanto está em causa a compatibilização desses princípios com as eventuais limitações decorrentes do segredo de Estado.
O Recorrente MJS... suscita “a inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, CRP), da norma que se retira do art. 127.º do CPP, interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal a quo, ou seja, no sentido em que a mesma permite ao Tribunal dar como provados factos que contribuem de modo inequívoco para fundamentar a condenação do Arguido, mesmo que o Tribunal reconheça ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos” a propósito da factualidade assente relativamente ao acesso à facturação detalhada do jornalista S... (porque o acesso à faturação detalhada fazia parte do modus operandi dos Serviços e que o Recorrente agiu como sempre havia sido ensinado), à informação sobre empresários russos e RINOT e sobre a informação obtida na base de dados do SIED, “D...” (nestas duas situações, face à relevância da obtenção de informação sobre a FoP... junto dos Serviços).
Também o Recorrente MSL... fundamenta a sua motivação essencialmente na violação do princípio in dubio pro reo, suscitando a questão da cedência das garantias constitucionais de defesa do arguido perante os direitos colectivos à independência e interesses nacionais e à unidade e integridade do Estado bem como à garantia da segurança interna e externa, também constitucionalmente consagrados cobertos pelo segredo de Estado, considerando que o tribunal a quo ignorou tal confronto de valores constitucionais e deu primazia aos aludidos direitos constitucionais colectivos protegidos pelo segredo de Estado.
Importa, em relação a esta matéria, deixar expressa a nossa concordância em relação às considerações jurídicas tecidas pela Digna Magistrada do Ministério Público em 1ª instância, na sua resposta, com base em pertinente análise legal e pesquisa de jurisprudência constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça que cita[36].
Efectivamente, como salienta, a equidade, a suficiência probatória para o esclarecimento máximo possível e a legalidade da prova são asseguradas e apreciadas, no âmbito do processo, pelo Tribunal e as pretensões relativas ao exercício do contraditório são decididas pelo juiz e vinculada ao tema da prova (e respectivo circunstancialismo), tem em conta a igualdade de armas, num contexto adversarial e é sindicável por via do recurso (art. 340º do Código de Processo Penal). É por isso certo que da insuficiência probatória sempre resulta a absolvição sem embargo de ser atribuído ao tribunal o poder de disciplinar a produção da prova, quer da acusação, quer do arguido, para evitar que aquela se eternize ou se perca o contacto com o thema decidendum, e essa função, de controlo, só pode caber ao juiz.
O contraditório não equivale a um direito absoluto e irrestrito à prova – reconduz-se, sempre, ao objecto definido pela acusação ou pronúncia, por via dos poderes de direcção do Tribunal, sendo-lhe essencial a equidade e a ponderação da relevância, pertinência e adequação da prova produzida e a produzir, bem como da equidade é da competência do juiz que dirige o processo.
Na sequência destes princípios, assim alinhados, no que respeita à quebra de segredos, a decisão refere-se com maior acuidade à sua essencialidade para o objecto do processo, numa demanda de concordância prática entre os interesses em conflito. É que, tratando-se de áreas de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, por via dos segredos que os protegem, pode esmorecer a plenitude da busca da verdade processual penal, ou, em razão do processo penal, pode ser fragilizado o interesse ou direito fundamental em causa.
A concreta composição dos bens jurídicos em conflito exige um labor mais próximo e intenso do juiz, em obediência ao princípio da proporcionalidade. Cabe-lhe, pois, decidir os termos concretos de limitação recíproca dos interesses ou de prevalência de um deles.
“A necessária composição dos bens jurídicos conflituantes, em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais …, impõe o dever de obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua optimização, traduzida numa mútua compreensão, por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível, sem pôr em causa o seu conteúdo essencial”[37].
Em conclusão, no que respeita ao regime de levantamento de segredo de Estado em processo penal, a quebra deve circunscrever-se ao tema da prova, o incidente deve desenvolver-se a partir do processo e no processo, cabendo ao juiz avaliar a relevância para o tema da prova das concretas matérias, documentos, âmbito de prova pessoal, ou qualquer outra diligência requerida e, em consequência, determinar (nos casos legalmente previstos) a quebra do segredo ou representar ao Primeiro-Ministro o respectivo levantamento ou desvinculação.
Posteriormente, após produção de toda a prova, é o momento próprio para o tribunal avaliar o conjunto da prova produzida e extrair consequências da suficiência ou insuficiência das respostas do Primeiro-Ministro para, depois, com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, decidir.
Salvo o devido respeito o tribunal a quo dá resposta cabal às questões colocadas nesta sede, sendo evidente que ponderou devidamente o princípio in dubio pro reo no confronto com as limitações de prova decorrentes do segredo de Estado e, quando considerou que a prova coberta pelo segredo de Estado era fundamental, aplicou o princípio in dubio pro reo e absolveu os arguidos. Ou seja, ao contrário do sustentado pelo Recorrente MJS..., não interpretou a norma que se retira do art. 127.º do Código de Processo Penal no sentido de que a mesma permite ao Tribunal dar como provados factos que contribuem de modo inequívoco para fundamentar a condenação do Arguido, quando reconhece ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos.
Senão, vejamos
Tendo sido suscitada novamente a questão da de inconstitucionalidade material do regime previsto nos arts. 12, do regime do segredo de Estado, e 33ªA da LQSIRP pelo arguido MJS... a fls. 5847 decidiu tal questão afirmando que já se havia pronunciado sobre tal questão em despacho de 23.02.2015, afigurando-se-lhe que o novo regime legal não padecia de inconstitucionalidade nem coarctava os direitos de defesa dos arguidos em processo penal em caso de colisão entre esses direitos e o segredo de Estado. Ao pronunciar-se, como ponto prévio sobre essa questão relembra o que já havia afirmado: “que os direitos de defesa do arguido podem não ser prejudicados se esta ponderação for feita com base em matérias concretas (e circunscritas) que o arguido considere relevantes para o exercício do seu direito de defesa”, pronunciando-se sobre as questões suscitadas pelas respostas do Sr. Primeiro–Ministro, como questão prévia à motivação da matéria de facto.
E assim procedeu, analisando a questão da compatibilização dos direitos de defesa dos arguidos em caso de colisão com o segredo de Estado, face aos deveres de sigilo a que os arguidos e testemunhas estavam obrigados. Após descrição do iter processual prosseguido e dos problemas suscitados (fls. 46 a 48 do acórdão transcrito supra a fls. 96 a 98) aborda a questão de saber se os direitos de defesa dos arguidos ficaram prejudicados e se o dever de sigilo a que se encontravam vinculados coarctou os seus direitos de defesa, pronunciando-se de forma genericamente negativa, tendo em atenção que “no julgamento, todos puderam defender-se sem grandes constrangimentos, tanto mais que, como se veio a constatar, uma parte considerável das matérias já não estava protegida pelo segredo de Estado, por força de desclassificações feitas na fase de inquérito, e outra não tinha qualquer relação, directa ou indirecta, com o objecto do processo”, tendo sido “fácil, no final, individualizar e identificar as matérias que podiam ser relevantes para a defesa dos arguidos” a qual “teve em conta, não só as declarações prestadas pelos arguidos como toda a prova produzida em julgamento, resultando já da conjugação de vários elementos probatórios, a desnecessidade de comunicar matérias que, em face da prova produzida, se tinham mostrado irrelevantes para a descoberta da verdade e para o objecto do processo”. O acórdão recorrido deixou expresso que as respostas do Primeiro-Ministro permitiram revelar, para além da carta de exoneração apresentada pelo arguido MJS... ao Secretário-Geral do SIRP, um extracto do Manual de Procedimentos que tinha suscitado grande controvérsia ao longo do julgamento e, significativamente, consigna que a insuficiência de algumas das respostas do Primeiro-Ministro, por não terem abrangido todas as matérias comunicadas “terá obviamente consequências como se verá na motivação da matéria de facto”.
Depois, em relação a cada um dos temas que foram objecto de prova, extraiu consequências da suficiência ou insuficiência das respostas do Primeiro-Ministro, fazendo prevalecer o princípio in dubio pro reo sempre que considerou que a insuficiência da resposta inquinava o direito de defesa dos arguidos. E que foi esse o procedimento decorre da posição assumida relativamente à questão dos aviões da Líbia em Alverca em que o tribunal a quo, de forma frontal decidiu que “quer as respostas das testemunhas inquiridas, evasivas e invocando o segredo de Estado, quer a resposta, inconclusiva, do Primeiro-Ministro à comunicação que lhe foi feita - fls. 5977/8 e 6028 - quer o contexto internacional em que os factos ocorreram e o teor do parecer do Conselho de Fiscalização do SIRP, relativo ao ano de 2011, no qual são indicadas algumas das principais linhas estratégicas nesse ano, deixaram-nos uma dúvida razoável sobre a existência dessa operação e, consequentemente, sobre o circunstancialismo que esteve subjacente aos contactos entre os arguidos.
Perante a dúvida instalada, face à prova produzida e enunciada, restou apenas, à luz do princípio in dubio pro reo fundado constitucionalmente no princípio da presunção da inocência – artº 32/2 da CRP – dar como não provados os factos incriminadores dos arguidos”.
Quanto à questão do acesso à faturação detalhada fazer parte do modus operandi dos Serviços e que os Recorrentes agiram como sempre haviam sido ensinados o tribunal a quo ponderou os diversas meios de prova, concluiu pela suficiência das partes do “Manual de Procedimentos” disponibilizado por ter sido levantado quanto a essas partes o segredo de Estado e concluiu:
“E, assim, após conjugação de todos os elementos probatórios acabados de analisar, ficámos convencidos que os arguidos MJS... e MSL... apesar de terem consciência de que praticaram actos ilegais e de que levaram outros - arguidos FLD... e GF... - a agir da mesma forma, procuraram banalizar estas práticas dentro dos serviços, e, por essa via, desresponsabilizar-se dos seus actos, como se fossem produto ou vítimas de um sistema quando, na verdade, estes arguidos, e em especial o arguido MJS... podiam e deviam não se conformar com elas, na hipótese de efectivamente existirem.
Ora, não só não se provou a reiteração dessas práticas como, conforme já foi dito, os arguidos, face às responsabilidades que tinham no SIED, não podiam deixar de responder por actos ilegais que praticaram e fomentaram, não se encontrando, por todo o exposto, qualquer circunstância justificativa dessa actuação”.
Assim, o tribunal a quo não manifestou a persistência de qualquer dúvida de que aquele não era o modus operandi dos serviços e que os arguidos agiram como haviam sido ensinados tal como, aliás, noutra perspectiva, já resulta do que ficou exposto sobre a inexistência de insuficiência da fundamentação por invocada falta de clareza.
O mesmo se tem que afirmar quanto à essencialidade ou relevância da identificação da FoP.... Também em relação a este tema a apreciação do tribunal a quo se baseou na apreciação concomitante da prova produzida para poder concluir, sem sombra de dúvida, pela desnecessidade de obter o levantamento do segredo de Estado relativamente à eventual existência e identificação dessa fonte humana como ponto de partida para a formação de convicção sobre os factos em apreço relativos à informação sobre empresários russos e RINOT e à informação obtida na base de dados do SIED, “D...”. Efectivamente o acórdão recorrido fundamenta devidamente as razões pelas quais não merecem crédito as afirmações do Recorrente MJS... (fls. 69 a 70 do acórdão reproduzido supra de que se destaca, num jogo de sombras próprio da matéria em apreço, a circunstância do Recorrente MSL... dizer que tinha informação de que a FoP... era o arguido MJS..., que a terá criado, e para a qual enviava documentos) para concluir pela ausência de qualquer prova e pela sua irrelevância “face ao contexto em que o arguido recebeu o pedido de informações e as enviou, sabendo, é inquestionável, que se destinavam à GO...”.
Em consequência, também em relação a esta matéria o tribunal, quando formou a sua convicção, não demonstrou ter quaisquer dúvidas.
*
Para além desta questão, o Recorrente MSL... também invoca a violação do princípio in dubio pro reo em relação a matérias que não se prendem directamente com o segredo de Estado: quanto ao significado da mensagem de CV... e quanto à interpretação do art. 78º nº 2 do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII (que aprovou o “Regime Jurídico do SIRP”) e que instituía a permissão legal para aceder a dados de tráfego ou outros dados conexos das comunicações em abono da tese da defesa de que o arguido recorrente actuou dentro da normalidade, de acordo com o modus operandi, dos serviços secretos.
Ao abordar a questão do significado da mensagem já deixámos expresso, em sintonia do que resulta da fundamentação do acórdão recorrido e tendo em atenção a apreciação concomitante de toda a prova produzida sobre tal matéria que “não decorre deste depoimento nem do sms referido, qualquer argumento que credibilize a tese de que este era uma forma normal de actuação do SIED”. Não se encontra, assim, qualquer violação do princípio do in dubio pro reo ou do princípio da livre valoração das provas nesta matéria.
Quanto à tese de que o art. 78º nº 2 do Decreto da Assembleia da República nº 426/XII (que aprovou o “Regime Jurídico do SIRP”) visava dar cobertura legal a uma situação de facto contra legem, também não encontrámos razões para que se possa sufragar essa tese tendo em atenção a prova profusa produzida no sentido contrário apreciada pelo tribunal a quo e já analisada.
*
Em conclusão, o art. 32° nº 2 da Constituição da República Portuguesa determina que todo o arguido se presume inocente até trânsito em julgado da sentença de condenação e deste princípio da presunção de inocência decorre que a sentença condenatória só pode condenar se da audiência de julgamento resultar a existência de prova que racionalmente possa considerar-se suficiente para desvirtuar o ponto de partida de que o acusado é, em princípio inocente. Porém, não se vê que tal princípio in casu tenha sido desvirtuado. O tribunal a quo respeitou o princípio in dubio pro reo e não interpretou a norma do art. 127º do Código de Processo Penal no sentido da mesma permitir ao Tribunal dar como provados factos que contribuem para fundamentar a condenação do Arguido, quando reconhece ter dúvidas sobre a prova desses mesmos factos.

4. Elementos do tipo
O arguido MJS... foi condenado pela prática de crimes de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Código Penal, de violação de segredo de Estado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 316º n.° 1 e 3, do Código Penal, de devassa por meio de informática, p. e p. pelo art. 193º nº 1 do Código Penal e de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo art. 6º, n.°s 1 e 4 al. a) da Lei 109/2009 de 15.9 (Lei do Cibercrime).
O arguido MSL... foi condenado pela prática de crimes de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Código Penal e de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo artº 6, n.°s 1 e 4, al. a) da Lei n.° 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime)
Colocam em causa a verificação dos elementos de tais ilícitos criminosos. Em parte fundamentavam-se na impugnação da matéria de facto efectuada e os argumentos aduzidos pressupunham a procedência dessa impugnação.
Vejamos em relação a cada um dos crimes se ocorrem razões para dissidir da decisão recorrida.
Crime de acesso ilegítimo agravado
Em relação a este crime os Recorrentes não questionam a verificação dos elementos do tipo nem divergem da subsunção jurídico-penal efectuada pelo tribunal a quo. A discordância centra-se na circunstância de considerarem existir erro sobre a ilicitude não censurável (Recorrente MJS...) ou uma causa de exclusão da ilicitude (Recorrente MSL...). Adiante nos pronunciaremos sobre essas questões.
Efectivamente, constata-se, tal como resulta da fundamentação do tribunal a quo que da matéria de facto resulta que os arguidos acederam, sem permissão legal ou sem qualquer autorização, à base de dados da operadora de telecomunicações onde o número utilizado pelo jornalista S... estava activado, e, por essa via, tomaram conhecimento de dados pessoais confidenciais constitucionalmente protegidos, bem sabendo que o acesso constituía um desvio, não permitido pela Lei, ao fim a que a base de dados se destinava, que inexiste base legal que atribua aos Serviços de Informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas, que lhes era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio e que os dados relativos às comunicações telefónicas constituem dados pessoais, relativos à vida privada e, no caso, também, às fontes de um jornalista, estando, todos eles, protegidos por Lei.
Tal acesso foi ilegítimo por extravasar as competências funcionais, num quadro não justificado, porque procuraram obter informações confidenciais por motivos exclusivamente pessoais ou particulares.
A facturação detalhada integra os chamados dados de tráfego e dá a conhecer as “condições factuais da comunicação” comportando elementos que permitem identificar a comunicação e podem revelar-se mais intrusivos do que o próprio conteúdo da comunicação e, por isso, é consensual que estes dados são confidenciais e merecem protecção semelhante aos conteúdos da comunicação e que a área de protecção do sigilo das comunicações, consagrada no nº 4 do art. 34º da Constituição da República Portuguesa, compreende tanto o conteúdo da comunicação como os dados de tráfego atinentes ao processo de comunicação.
Consequentemente, cometeram este crime já que sem permissão legal e sem para tanto estarem autorizados de qualquer modo, acederam a um sistema informático e através do acesso, tomaram conhecimento de dados confidenciais, protegidos pela Constituição e pela lei.
Crimes de abuso de poder
Em relação aos dois crimes de abuso de poder pelos quais foram condenados os Recorrentes MJS... e MSL... baseiam a tese da absolvição que sustentam numa diferente valoração da prova e na impugnação da matéria de facto a que procederam, para além da invocação de erro sobre a ilicitude não censurável e de causa de exclusão da ilicitude.
Considerando a improcedência dessa impugnação importa, ainda assim, abordar as seguintes questões expressamente invocadas no que respeita à informação obtida na base de dados do SIED, D...: a circunstância do arguido MSL... não ter violado qualquer dever funcional, a ausência de qualquer ganho ou proveito e a actuação em benefício do Estado português.
Como salienta a decisão recorrida, ao abuso de poderes corresponde a instrumentalização de poderes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo, tendo de estar em causa um mau uso dos poderes que não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal, a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa (vantagem ou dano que não têm de ser necessariamente patrimoniais).
Ficou assente que depois de ter cessado as suas funções no SIED, o arguido MJS..., para satisfazer pedido que lhe foi feito por terceiro (FS...), pediu ao arguido MSL..., que recolhesse e lhe transmitisse informação sobre sociedades com participação de determinado indivíduo, o que o arguido MSL... fez, através de funcionário do SIED e sem conhecimento da chefia intermédia, recolhendo a informação na base de dados da D..., a que o SIRP acede em razão de contrato e mediante o pagamento de quantias monetárias, incluindo um preço por consulta e, na posse dessa informação, transmitiu-a a MJS... que, por sua vez, a transmitiu a FS.... E destinou-se a fim alheio às atribuições e competências do SIED tendo ambos os arguidos como propósito satisfazer o interesse pessoal do arguido MJS....
Consequentemente, está demonstrado que o Recorrente MSL..., exorbitou os seus deveres funcionais, violando-os, com a sua actuação intencional, com o propósito de satisfazer os interesses (não patrimoniais) do Recorrente MJS..., sem qualquer benefício para o Estado porquanto a pesquisa foi feita para fins alheios às atribuições e competências do SIED e até com prejuízo do Estado, atendendo à existência de um preço por consulta.
Apesar do Recorrente MJS... já não ser funcionário na data em que solicitou a recolha de informação ao Recorrente MSL..., tal como sustenta o tribunal a quo, por não ser outra a intenção da norma, apesar de estar em causa um crime específico próprio, por ter actuado em co-autoria com o arguido MSL..., estende-se ao arguido MJS..., pessoa a quem a informação da base de dados se destinava e beneficiário da acção, a qualidade de funcionário, por força do disposto no artº 28, nº1 do Código Penal[38].
Crime de violação do segredo de Estado
Relativamente a este crime o Recorrente MJS... questiona a própria existência, in casu, de segredo de Estado passível de ser violado, concluindo ser de aplicar concretamente o regime que considera menos abrangente e, por isso, menos severo de segredo de Estado definido pela Lei 6/94, de 7.4 ([antiga] Lei do Segredo de Estado) e pela Lei 30/84, de 5.9 (Lei-Quadro do SIRP), com a redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica 4/2004 de 6.11.
O Recorrente tem razão sobre o quadro normativo aplicável mas já não quanto à menor abrangência e menor severidade do resse regime.
Vejamos.
Na perspectiva das normas penais aplicáveis, tendo em atenção o disposto no art. 2º do Código Penal, ocorreram várias alterações ao art. 316º do Código Penal. Na data da prática dos factos a redacção era a do Decreto-Lei 48/95 de 15.3. O art. 316º do Código Penal foi posteriormente alterado pela Lei Orgânica 2/2014 de 6.8 (que revogou a Lei 6/94 de 7.4 e estabeleceu novo regime do segredo de Estado) e pela Lei Orgânica 1/2015 de 8.1 (que procedeu a alterações no regime do Segredo de Estado).
Quanto ao segredo de Estado, o regime vigente na data da prática dos factos era o da Lei 6/94 de 7.4, revogado pela Lei Orgânica 2/2014 e posteriormente alterado pela Lei Orgânica 1/2015.
Concretamente em relação ao SIRP a Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa 30/84 de 5.9 sofreu diversas alterações (Lei 4/95 de 21.2, Lei 15/96 de 30.4, Lei 75-A/97 de 22.7, Lei Orgânica 4/2004 de 6.11 e Lei Orgânica 4/2014, de 13/08). A última, única posterior à data dos factos, adequa a Lei-Quadro ao novo regime de segredo de Estado instituído pela Lei Orgânica 2/2014. Importa, concretamente, apurar a diferença entre o regime específico do segredo de Estado vigente
Quanto à norma penal aplicável, o acórdão recorrido considera que “em qualquer uma das redacções do artº 316 do C. Penal não se oferecem dúvidas que o crime de violação do segredo de Estado visa proteger os bens jurídicos do Estado Português, e que esses bens serão a segurança externa (na sua vertente de independência e integridade nacionais) e a segurança interna”. Em sintonia com o Recorrente, por força do disposto no art. 2º nº 1 e 4 do Código Penal, deve ser aplicado o regime do Código Penal vigente na data da prática dos factos (redacção do Decreto-Lei 48/95 de 15.3), já que no caso concreto não se vislumbra que os regimes posteriores sejam mais favoráveis para os arguidos.
Existindo normas específicas para o segredo de Estado no âmbito do SIRP é a estas que nos devemos ater na comparação entre o regime vigente na data da prática dos factos e o regime posterior. A norma que trata dessa matéria é o art. 32º da Lei 30/84.
Na redacção vigente na data da prática dos factos, decorrente da Lei Orgânica 4/2004 de 6.11, o art 32º estipulava, na parte relevante:
1 - São abrangidos pelo segredo de Estado os dados e as informações cuja difusão seja susceptível de causar dano à unidade e integridade do Estado, à defesa das instituições democráticas estabelecidas na Constituição, ao livre exercício das respectivas funções pelos órgãos de soberania, à segurança interna, à independência nacional e à preparação da defesa militar.
2 - Consideram-se abrangidos pelo segredo de Estado os registos, documentos, dossiers e arquivos dos serviços de informações relativos às matérias mencionadas no número anterior, não podendo ser requisitados ou examinados por qualquer entidade estranha aos serviços, sem prejuízo do disposto nos artigos 26.º e 27.º
Na redacção actual, após as alterações introduzidas pela Lei Orgânica 4/2014 o art. 32º continua a estatuir:
1 - São abrangidos pelo segredo de Estado os dados e as informações cuja difusão seja suscetível de causar dano aos interesses fundamentais do Estado tal como definidos na lei que estabelece o regime do segredo de Estado.
2 - Consideram-se abrangidos pelo segredo de Estado os registos, documentos, dossiers e arquivos dos serviços de informações relativos às matérias mencionadas no número anterior, não podendo ser requisitados ou examinados por qualquer entidade estranha aos serviços, sem prejuízo do disposto nos artigos 26.º e 27.º
O art. 1º nº 2 do actual regime do segredo de Estado esclarece que se consideram “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional”.
Ou seja, da comparação dos regimes e tendo em atenção os contornos do caso concreto, conclui-se pela similitude do regime de segredo de Estado no âmbito do SIRP antes e depois das alterações ao regime de segredo de Estado. O novo regime (harmónico também com a referência a interesses fundamentais do Estado constante do art. 316º do Código Penal) apenas se apresenta como mais abrangente quanto à especificação das matérias que se podem compreender nos interesses fundamentais do Estado, embora em matérias absolutamente irrelevantes para o caso em apreço.
Salvo o devido respeito, interpretamos a expressão de iure condito[39] constante da exposição de motivos do Projecto-Lei 465/XII como querendo significar exactamente o contrário daquilo que o Recorrente pretende, ou seja, o reconhecimento de que o regime excepcional de segredo de Estado no SIRP já estava consagrado nas leis vigentes. Aliás, à mesma conclusão se teria de chegar com base na ausência de alterações substanciais ao regime do segredo de Estado no âmbito do SIRP. Por outro lado e consequentemente, também o art. 32º-A nº 1 da Lei 30/84 (aditada pela Lei Orgânica 4/2014) vem reconhecer, em letra da lei, aquilo que já antes da sua entrada em vigor era evidente: a consagração de uma classificação ope legis como segredo de Estado do segredo do segredo no âmbito do SIRP, acrescentando-se agora uma válvula de escape à absoluta automaticidade, através de uma avaliação quadrienal, para efeitos da manutenção da classificação ou para desclassificação.
Como salienta o Ministério Público na sua resposta[40] o regime então instituído criava uma classificação de carácter genérico, quase automático, da actividade dos Serviços. As alterações introduzidas enfatizam a interpretação da classificação ope legis, subordinada ao quadro de princípios da Lei do Segredo de Estado.
“Mesmo que se entenda, o que se admite, que uma classificação automática que não atenda à materialidade do tipo de documento (por categoria, tipo de ação, etc.) dificilmente se mostra conforme aos preceitos constitucionais, este era, natural e obviamente, um documento classificado, em razão da substância, enquadrando-se na previsão legal de classificação dos documentos do SIRP como Segredo de Estado.
Na sua elaboração, foram utilizadas fontes humanas, com ligação directa e indirecta a Moscovo.
Respeitava a informação sobre pessoas com ligação aos círculos de poder de um Estado.
O conteúdo indiciava, claramente, a utilização de fontes humanas e de modos de acção dos Serviços”.
É essa também a conclusão do acórdão recorrido, ao salientar que, independentemente da classificação do RINOT no âmbito das normas SEGNAC “a abordagem e revelação de interesse, bem como a pesquisa realizada pelo Serviço de Informações, com recurso a fonte, assume especial sensibilidade, devendo por tal ser considerada classificada” e estar em causa “informação materialmente confidencial”.
*
O Recorrente MJS... considera também que o tipo objetivo do crime de violação do segredo de Estado não se encontra preenchido porque o bem jurídico protegido pelo crime nunca foi sequer colocado em perigo.
Como salienta o acórdão recorrido[41], estamos perante um crime de perigo concreto, ou seja, não se exige um dano efectivo nos bens tutelados, consumando-se com a mera colocação em perigo dos interesses protegidos pela norma. Com efeito, “A indiscutível relevância dos bens jurídicos referidos justifica que o espectro da tutela penal não se cinja às condutas que efectivamente lesem o seu núcleo essencial (…) antes se situem num momento anterior à lesão, quer pela criação de delitos de atentado quer, como é o caso vertente, pela construção de crimes de perigo”.
Ora, da factualidade provada resulta claramente a criação desse perigo concreto. Efectivamente, ficou demonstrado que o conhecimento, por particulares, desvinculados das normas próprias de segurança dos Serviços de Informações, por outros Estados ou cidadãos de países em que as fontes actuam, de dados obtidos por recurso a fontes humanas é susceptível de afectar, de modo relevante, a segurança do Estado, susceptível de gerar conflito diplomático entre o Estado Português e outro a que a informação se refere e de pôr em causa a segurança de missões e de recursos humanos, no exterior e potencia, de modo não controlável, o risco de propagação da informação (factos 73, 74 e 75).
Consequentemente, a colocação em perigo dos interesses fundamentais do Estado português é clara, tal como é evidente, nos termos expostos a actuação dolosa do recorrente que abrange a matéria abrangida pelo segredo de Estado, o perigo para os interesses nacionais decorrentes da sua divulgação e o dever específico a que estava sujeito.
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Resulta da matéria de facto assente que as informações remetidas pelo arguido MJS... para representantes da GO... no negócio que estava em curso, nas condições descritas, consubstanciam formal e materialmente matérias e conteúdos sujeitos a segredo de Estado e cujo divulgação, fora dos círculos de autorizados, era susceptível de criar um perigo concreto para o Estado Português, para a sua diplomacia e relações internacionais com outros países, neste caso com a Rússia.
Desta forma, actuando com dolo genérico, os Recorrentes puseram em perigo interesses do Estado Português relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna e externa, violando dever especificamente imposto pelo estatuto da sua função ou serviço, pelo que se verificam os elementos objectivos e subjectivos do tipo de violação de segredo de Estado consumado e agravado, nos termos do art. 316º n° 1 e 3 do Código Penal.
Crime de devassa por meio de informática
O Recorrente MJS... sustenta a sua absolvição deste crime porque entende que só quando estiverem em causa factos verdadeiros é que se pode configurar a prática do crime (i); porque os factos em causa eram públicos e, sendo acessíveis à generalidade das pessoas, nenhuma reserva haverá a acautelar (ii); porque o “Relatório” nem sequer consegue ser considerado como um “ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis” (iii); a insuficiência da mera detenção para o preenchimento do tipo legal de crime (iv); porque actuou sem dolo (v).
(i)
A propósito da impugnação da matéria de facto avançámos com referências a uma contradição ente a pretensão jurídica do Recorrente de que “só a verdade e não a mentira pode trazer a público o que cada um quer legitimamente manter sob reserva” e a necessidade de reconhecer a inviolabilidade da esfera da intimidade e da “barreira intransponível à exceptio veritatis ou à prova da verdade dos factos, em geral admissível quando estão em causa atentados à honra sob a forma de imputação de factos” (fls. 177 supra). Ou seja e salvo o devido respeito, se só em relação a factos verdadeiros se admitisse a violação da reserva da vida privada, obrigar-se-ia a vítima a demonstrar que eram verdadeiros os factos que devassam a sua intimidade, assim resultando sempre violado esse seu direito constitucionalmente consagrado. Se bem atentarmos, Costa Andrade[42] erige a circunstância dos factos devassados não constituírem, a qualquer título, razão dirimente da responsabilidade penal como premissa maior desta equação. Por isso, temos de reconhecer que a aparência de verdade ou a verdade deturpada dos factos basta para atingir a esfera da intimidade e para que ocorra a danosidade social que os crimes contra a reserva da vida privada, mormente o crime de devassa, pretendem tutelar. Dir-se-ia mesmo que pode ser tão danoso para a reserva da vida privada referir com exactidão como erradamente a convicção política, religiosa, filosófica, filiação partidária, origem étnica, relações familiares, orientação e hábitos sexuais. Basta pensar nas repercussões que esses dados erradamente compilados podem ter para a vida privada de qualquer cidadão.
Por outro lado, é preciso tomar em consideração que na previsão do crime do art. 192º do Código Penal (acerca do qual é construída esta tese) se exige a intenção de devassar a vida privada das pessoas, enquanto no crime pelo qual o Recorrente foi condenado em 1ª instância não é necessária qualquer intenção específica para preenchimento do crime[43]. É que no crime de devassa por meio de informática pretende-se garantir “a interdição absoluta, constitucionalmente imposta, do tratamento informático de um conjunto de dados pessoais que a Constituição da República Portuguesa afirma como insindicáveis e da total e plena disponibilidade da pessoa a que se reporta”[44].
Como sustenta o acórdão recorrido: “pouco importa que os factos constantes do ficheiro sejam verdadeiros ou falsos contanto que sejam susceptíveis de, ponderadas as circunstâncias do caso, diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade.)”.
De qualquer forma, a aceitar-se a visão do Recorrente, só a falsidade integral dos factos poderia ter o efeito pretendido e, in casu, a falsidade dos factos no sentido proposto pelo Recorrente não ficou demonstrada, como decorre da factualidade provada e não provada e do exposto em sede de impugnação da matéria de facto.
(ii)
Ao contrário do pretendido pelo Recorrente não ficou assente que o que constava do relatório fosse público e com informação acessível à generalidade das pessoas. Ainda que todos os factos fossem do conhecimento geral ou só de algumas pessoas, ainda assim, essa circunstância para além de não ter cabimento como elemento do tipo, atendendo ao teor da norma em apreço, é absolutamente indiferente à realização do crime. O problema poder-se-ia colocar, eventualmente se tivesse sido o assistente a tornar públicos elementos constantes do relatório o que não é manifestamente o caso. Efectivamente, “do que se trata é de garantir um verdadeiro direito de autodeterminação à pessoa humana que, no que toca a este conjunto de dados, tem um direito de disposição sobre eles (direito a publicitá-los ou não, ou mesmo a omitir ou ocultar a sua existência)”[45]. Ao sustentar o contrário o Recorrente adopta uma visão restritiva da tutela constitucional do direito à reserva da intimidade em geral e da garantia de interdição absoluta, também constitucionalmente imposta, do tratamento informático de dados pessoais insindicáveis e da total e plena disponibilidade da pessoa a que se reportam[46].
(iii)
Sobre o que se deve entender por “ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis” para efeitos da incriminação quer o Recorrente, quer o acórdão recorrido, quer o Recorrente vão procurar os conceitos à Lei de Protecção de Dados Pessoais, nos termos sugeridos por Damião da Cunha no Comentário Conimbricense do Código Penal.
Na sua génese encontramos a Convenção Europeia Para a Protecção das Pessoas Relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal onde também se pode ver que «dados de carácter pessoal» significa qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou susceptível de identificação («titular dos dados»), «ficheiro automatizado» significa qualquer conjunto de informações objecto de tratamento automatizado e «tratamento automatizado» compreende as operações de registo de dados, aplicação a esses dados de operações lógicas e ou aritméticas, bem como a sua modificação, supressão, extracção ou difusão efectuadas, no todo ou em parte, com a ajuda de processos automatizados (art. 2º al.s a), b) e c) da referida Convenção).
Já acima nos referimos a desnecessidade de os dados estarem na memória física do computador, nada obstando a que esteja guardado em anexo de e-mail
Não se vislumbra razão para divergir do acórdão recorrido relativamente à constatação de que o documento integra-se plenamente na descrição de ficheiro automatizado, porquanto contém um vasto conjunto de dados, devidamente estruturados, identificados e identificáveis, alguns verdadeiros e outros falsos, obtidos através da internet (fontes abertas) e outros por outras fontes, designadamente por fontes humanas como resulta do teor do próprio texto, sobre a vida do assistente em vários domínios: pessoal, sexual, familiar, social, político/partidário, profissional e, pela forma como está organizado e elaborado, permite o processamento e submissão a controlo “cruzado” e, consequentemente, permite um controlo sobre a pessoa visada, neste caso, sobre o assistente, quanto aos seus valores e ao seu comportamento.
(iv)
A posição assumida pelo Recorrente esbarra imediatamente com a letra da lei. Sustenta que não basta a mera detenção para o preenchimento do tipo legal de crime. Porém, o nº 1 do art. 193º do Código Penal contempla a punição de “quem … mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis…” o que impede a chamada à colação de abordagens civilísticas de conceitos como a propriedade e a mera detenção. Nos autos ficou assente que o arguido “manteve no seu computador” ficheiro informático com o referido conteúdo (facto 119) e até o enviou (facultou/divulgou) a PF..., donde decorre, inexoravelmente também a sua utilização. Por isso, inegavelmente, cometeu actos objectivas típicas do crime em causa. Na realidade, “não é necessário que se prove qualquer intenção de violação daqueles valores: basta a simples “conduta” de registo informático para o preenchimento do tipo legal de crime”[47].
Afigura-se que o equívoco de base do Recorrente – patente também na posição que assumiu quanto à necessidade de que os factos sejam verdadeiros e não sejam públicos – é a consideração do tipo do art. 193º do Código Penal como um sub-tipo do crime de devassa da vida privada p. e p. pelo art. 192º do mesmo diploma, com os mesmos elementos do tipo base, quando não é. Embora o bem protegido por ambas as incriminações seja o mesmo – a reserva da vida privada – os elementos objectivos e subjectivos são absolutamente distintos, como distinta é a razão de ser de cada uma das incriminações. Esse equívoco afecta a interpretação substantiva e teleológica do artigo 193º nº 1 do Código Penal que pretende efectuar bem como uma valoração ético-jurídica desconforme com a norma[48]. “O crime de devassa por meio de informática, previsto no art.º 193º do C. Penal, decorre do art.º 35º, n.º 3, da CRP, visa proteger a reserva da vida privada contra possíveis actos de discriminação, que a utilização de meios informáticos torna exponencialmente perigosos”[49]
(v)
Sustenta o Recorrente que não teve vontade de manter o relatório nem sequer se conformou com essa possibilidade. Embora não o afirme expressamente, sustentará que manteve o relatório por descuido ou desleixo, apontando para uma conduta negligente. Ficou, porém, assente a matéria de facto provada atinente ao dolo do arguido em termos que, como decorre do exposto a propósito da impugnação da matéria de facto, está de acordo com a sua conduta objectiva, a pessoa e a actividade do arguido, de acordo com as regras da experiência.
*
Reconhecemos, como o Recorrente, que os exemplos do jornalista ou do estudioso são casos que merecem ponderação, na medida em que pode haver uma causa de exclusão da ilicitude.
Porém o Recorrente, pelas suas habilitações e inserção profissional em actividades de informação e desinformação não se pode incluir nos casos típicos que não são visados pela norma incriminadora. Contextualizando, relembra-se, este ficheiro surge no contexto de uma guerra empresarial e campanha de tweets visando o assistente pessoal e empresarialmente (factos 109 a 111).
Assinala-se, por fim que é “irrelevante o número de pessoas que constam do ficheiro (…) pois o tipo protege um bem jurídico supra-individual – a interdição absoluta do tratamento informático de determinados conteúdos”[50].
Em síntese, tal como concluiu fundamentadamente o tribunal a quo, a conduta do Recorrente MJS... ao manter, guardado na sua caixa do correio electrónico, o chamado “Relatório”, que é um ficheiro automatizado, querendo guardar esse texto no seu correio electrónico preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de devassa informática.

5. Causas de exclusão da ilicitude
O Recorrente MSL... invoca que agiu sempre no estrito cumprimento de ordens de superior, ou superiores, hierárquicos e, que cumpriu sempre essas ordens seguindo sempre a prática e procedimentos instituídos, naquilo que configura a invocação da causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 37º do Código Penal: obediência indevida desculpante.
Também o Recorrente RAV... considera que face às notícias que estavam a ser divulgadas sobre os serviços nos órgãos de comunicação e blogs, sempre pensou que se tratavam de ordens legítimas e que se destinavam a proteger um bem maior, a segurança do Estado pelo que se encontrava em erro sobre a ilicitude do facto, agindo sem consciência da ilicitude da sua conduta, sem culpa. Cita, a propósito, Figueiredo Dias: “é dever do Estado cuidar também da eficácia dos serviços que lhe incumbe prestar; e esta ficará severamente posta em causa se o subordinado hierárquico que recebe a ordem estiver sempre, ao cumpri-la, com um «um pé na prisão»”.
Como se disse a propósito da impugnação da matéria de facto, o conhecimento da ilegalidade do procedimento adoptado foi reconhecido pelo Recorrente MSL..., nos termos plasmados e explicados no acórdão recorrido. O “quadro das circunstâncias” referido no art. 37º do Código Penal que conferiria plausibilidade à obediência indevida também não ocorre: não ficou demonstrado que o Recorrente tivesse seguido os procedimentos instituídos. Pelo contrário, sabia que lhe era vedado o conhecimento dos dados de tráfego de um telefone alheio e que tal acesso constituía um desvio não permitido pela Lei ao fim a que os dados se destinavam.
Também em relação ao Recorrente FLD... se salienta que estranhou o pedido, que foi a primeira e única vez que lhe fizeram tal pedido e que não tem conhecimento de que os pedidos de facturação detalhada fossem prática do serviço, nem tinha conhecimento do manual de procedimentos. Considerou que os serviços de informação (e ele próprio) “trabalham na zona cinzenta”, por vezes à margem da legalidade e disse que apesar de ter estranhado a ordem optou por fazer o que lhe era ordenado por uma questão de carreira. Por isso, conclui-se que o Recorrente sabia que não era um modus operandi comum a obtenção de facturação detalhada daquela forma e, aliás, o pessoal que trabalha na pesquisa tem consciência que estes procedimentos não são os do serviço, ou seja, não existia um quadro de circunstâncias que perturbasse a evidência de que a ordem era ilegal. O conhecimento da ilegalidade da sua conduta ficou patente. A circunstância de ter optado por fazer o que lhe foi ordenado implica um juízo de ponderação sobre se devia ou não cumprir a ordem que sabia ilegal e uma decisão deliberada e consciente de cumprir ordem ilegal. Compreende-se – com reflexos na medida da pena – que o Recorrente tenha tomada essa decisão tendo em atenção o seu percurso vivencial ligado à vida militar e pautada pelo respeito devido às ordens dos superiores hierárquicos. Porém, in casu, o Recorrente conhecia que o cumprimento da ordem conduzia à prática de um crime e, consequentemente, está afastada a possibilidade de considerar que se verificou essa ou qualquer outra causa de exclusão da ilicitude.
A benevolência assumida pelo tribunal a quo na dosimetria da pena (pena mínima substituída por multa) demonstra que foi devidamente ponderada a situação, a relevância do percurso de vida do arguido e o seu grau na cadeia hierárquica para a decisão que tomou.

6. Existência de erro
O Recorrente MJS... invoca a existência de um erro não censurável sobre a ilicitude, nos termos do art. 17º do Código Penal, porquanto “agiu como agiu porque sempre foi ensinado a fazê-lo” relativamente aos crimes de abuso de poder e de acesso ilegítimo na forma agravada quanto à facturação detalhada do jornalista S....
Como resulta da factualidade assente e do exposto a propósito da impugnação da matéria de facto falha o pressuposto fáctico para que este tribunal possa cogitar a existência de tal erro censurável ou não.
Tem, assim, de se concluir, como o acórdão recorrido, que “pelos mesmos motivos já expostos na motivação da matéria de facto e ainda pelas responsabilidades que o arguido tinha nos serviços de informações – era um quadro de topo, ocupando desde 2008 a posição de Director do SIED – pelos anos de serviço - dezanove - pelas habilitações académicas – licenciado em Direito – pelas características da sua personalidade, a que já nos referimos, jamais o arguido MJS... podia incorrer em erro sobre o âmbito da proibição e dos limites a que estava sujeito, nas circunstâncias descritas (artº 17/1/2 do C. Penal)”.
*
A Recorrente GF... sustenta a existência de um erro sobre as circunstâncias de facto valorável nos termos do art. 16º do Código Penal, atuando sem consciência da ilicitude dos seus actos, pois acreditava ser legítima a sua actuação em virtude de ter sido solicitada pelos Serviços de Informação, acreditando que estava a ajudar na segurança do Estado!
A questão foi apreciada sob o prisma da análise da matéria de facto. Considerou-se que reconheceu que sabia da ilegalidade do pedido e da sua actuação na empresa em que trabalhava e que ponderou essa ilegalidade e, apesar de a reconhecer entendeu que devia dar seguimento ao pedido efectuado pelo co-arguido FLD..., seu companheiro, atendendo às ideias de necessidade, gravidade e urgência que lhe foram incutidas por este e teve-se em atenção que a Recorrente confessou que tinha consciência de que não podia praticar aqueles actos e que cedeu ao pedido do companheiro, não revelando, nem sequer alegando, falta de consciência da ilicitude da sua conduta, conforme consta da fundamentação do acórdão recorrido.
Poderá, ainda assim, ponderar-se um erro sobre as circunstâncias de facto excludente do dolo?
Pensamos que não. Na norma está em causa uma falta de conhecimento imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento. Ora, a Recorrente sabia que a conduta que adoptou era ilegal de tal forma que ponderou essa ilegalidade. Bastando-se a afirmação do dolo “com a consciência marginal, com a consciência liminar ou difusa” é suficiente, como no caso, que se possa dizer que a Recorrente dispunha da informação correspondente[51].
A solução encontrada pelo tribunal a quo, considerando verificados os elementos objectivos e subjectivos do tipo e aplicando uma pena próxima dos limites mínimos corresponde à solução adequada para a conduta da Recorrente.

7. Medida da pena
No pressuposto de que este tribunal reconheceria a existência de um erro censurável sobre a ilicitude, nos termos do art. 17º nº 2 do Código Penal, o Recorrente MJS... questiona o quantum da pena em que foi condenado pelos crimes de abuso de poder e de acesso ilegítimo na forma agravada quanto à facturação detalhada do jornalista S....
Salienta a assunção da sua participação nos factos, a colaboração verdadeira e imprescindivel para a descoberta da verdade e considera que essa confissão deve ser factor de atenuação especial da pena (art.s 72º nº 1 e 73º do Código Penal).
Como decorre do supra exposto falece o pressuposto para ponderação da atenuação especial da pena por força do disposto no art. 17º nº 2 do Código Penal que determina que “se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”. Na realidade não se demonstrou que o Recorrente actuasse em erro sobre a ilicitude.
Por outro lado, não ficou demonstrada a colaboração verdadeira e imprescindível para a descoberta da verdade que o Recorrente alega.
De qualquer forma, é excepcional a atenuação especial da pena que funciona como uma válvula de segurança para situações particulares, que tem sido justificada nos seguintes termos: Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena.
O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção; - A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”[52].
É o caso em apreço, não se descortinando qualquer circunstância que determine uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Não se justifica, assim, a pretendida atenuação especial da pena.

8. Responsabilidade civil
O Recorrente MSL... considera que foi violado o art. 325º do Código de Processo Civil por ter sido recusada a intervenção acessória do Ministério Público em representação do Estado Português tendo em atenção a responsabilidade solidária do Estado pelo ressarcimento pelos eventuais danos invocados pelo demandante.
O acórdão recorrido pronuncia-se sobre a questão da intervenção acessória do Ministério Público em termos que merecem a nossa concordância quanto à inexistência de responsabilidade solidária do Estado: Tendo ficado provado que inexistia base legal que atribuísse aos serviços de informações o acesso a dados de tráfego relativos a comunicações electrónicas ou telefónicas, que os arguidos sabiam que lhes estava vedado esse acesso e praticaram actos que nada têm a ver com o exercício das suas funções e que visaram apenas satisfazer interesses pessoais de um dos arguidos, actuando inclusivamente contra os interesses do Estado, está excluída a responsabilidade solidária do Estado.
*
O Recorrente MJS... sustenta que em relação a ambos os pedidos de indemnização civil, mesmo considerando a versão factual fixada pelo acórdão recorrido, nenhuma responsabilidade pelos danos dados como provados lhe pode ser imputada porquanto o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil não se verificam, designadamente ao nível da falta do nexo causal entre o facto e o dano. Considera que o acórdão recorrido coloca a tónica no acto de divulgação (que o Recorrente nunca quis), nenhum acto específico de divulgação lhe sendo imputado. Afasta a admissibilidade de uma “causalidade indirecta” ou “mediata” e entende que também nenhuma ilicitude ou culpa, especificamente conexionados com o acto de divulgação – que considera ser para a decisão recorrida a acção lesiva – lhe pode ser imputada. Concretamente em relação ao pedido de indemnização do assistente PPB... invoca que o facto danoso foi aquele que levou à existência e à divulgação do “Relatório” e o Recorrente apenas o “manteve” e não foi essa manutenção que levou à existência e à divulgação do “Relatório” e, por conseguinte, aos danos que daí emergiram.
Também o Recorrente MSL..., na mesma linha, põe em causa que possa ser responsabilizado pelos danos dados causados a S..., alegando que face ao que consta dos factos provados 129 e 130 a causa adequada à produção dos referidos danos terá sido, na óptica do próprio tribunal, o acto de divulgação do acesso à facturação detalhada do assistente, não resultando do acórdão proferido qualquer facto que permita assacar-lhe a responsabilidade pela referida divulgação, nenhuma ilicitude ou culpa, especificamente relacionados com tal divulgação pode ser ligada ao Recorrente ou permite concluir pela existência do necessário nexo de causalidade entre o facto ilícito e o resultado danoso provocado na esfera jurídica do assistente demandante.
Deve-se começar por salientar que a leitura que os Recorrentes fazem da factualidade provada, concluindo que o acórdão recorrido considera a divulgação como facto provocador dos danos não é correcta.
O que se extrai de toda a factualidade provada e designadamente dos factos provados 129 e 132 é que foram os factos descritos (factos ilícitos e culposos que foram julgados provados) a provocar os danos e não da forma reducionista pretendida, apenas a sua divulgação.
Também a questão do Recorrente MJS... não ter sido o criador do relatório se mostra irrelevante para efeitos de verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual. Efectivamente ao manter e, até utilizar, enviando/divulgando a PF... o dito relatório violou a lei, cometeu um crime que afectou o direito do assistente à reserva da vida privada e à interdição absoluta do tratamento informático de conteúdos dessa vida privada do qual decorre o direito a ser ressarcido dos prejuízos resultantes dessa violação.
A tese dos Recorrentes é a de que apenas a divulgação e já não os crimes praticados é que provocam o dano. Aceitar essa tese é aceitar que não são as violações de direitos fundamentais através de condutas criminosas que provocam danos mas, tão-somente, a sua divulgação. Tal tese levaria à conclusão de que os crimes que não são descobertos ou descobertos mas não divulgados não provocam danos, deixando sem protecção a violação de direitos fundamentais. Decorrência óbvia desta análise naturalística é a de que a divulgação é já uma consequência do facto criminoso para que os arguidos contribuíram inexoravelmente ao praticar os crimes.
Não tivessem os arguidos praticado os crimes – factos ilícitos e culposos (dolosos) – não teria havido dano. É esse o facto danoso imputável aos arguidos/demandados. A divulgação, em si, não é um facto ilícito: é já uma consequência do facto ilícito danoso e corresponde a um dano indemnizável, a ponderar no juízo equitativo sobre o quantum indemnizatório consoante a sua maior ou menor repercussão. É uma das consequências do facto ilícito e danoso e, logo, indemnizável, correspondendo ao momento em que os factos chegam ao conhecimento das vítimas e da generalidade das pessoas. Antes da divulgação, já existia o dano, porquanto o facto ilícito e danoso corresponde à violação da direito à reserva da intimidade, protecção do sigilo das comunicações, segurança e confidencialidade das comunicações (dados pessoais e fontes de jornalista). A divulgação, repete-se, é apenas uma consequência daquele facto ilícito e danoso indemnizável.
Ora existe um nexo de causalidade (adequada) entre o facto ilícito e a divulgação como dano e os demais prejuízos provocados, porquanto não se pode afirmar que para a produção dos danos tenham contribuído e intercedido decisivamente circunstâncias anormais, atípicas, excepcionais, extraordinárias ou anómalas[53]. Efectivamente, não se pode considerar que a a divulgação de investigação de crimes, da recolha de indícios e da tramitação processual penal constituam esse circunstancialismo anormal.
Em síntese, não foi a divulgação dos crimes cometidos pelos Recorrentes que prejudicou os assistentes: foi a prática dos crimes que provocou prejuízos indemnizáveis incluindo a sua divulgação e repercussões desta.
Por isso, tal como o acórdão recorrido, conclui-se que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, sendo os danos causados pelos arguidos aos assistentes merecedores da tutela do direito e mostrando-se justas, adequadas e equitativas, as indemnizações a título de danos não patrimoniais atribuídas.
 III DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento aos recursos interpostos por MJS..., MSL..., FLD... e GF..., mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo decaimento a cargo dos Recorrentes, fixando-se em quatro UC a taxa de justiça devida por cada um.
Lisboa, 7 de Março de 2018
(elaborado, revisto e rubricado pelo relator e
assinado por este e pela Ex.ma Adjunta)

Jorge Raposo
 
Margarida Ramos de Almeida


[1] Relativo ao segmento factual “Acesso à faturação detalhada do jornalista RAV... Simas”.
[2] Relativo ao segmento factual “Violação do segredo de estado por transmissão de informação secreta”.
[3] Relativo ao segmento factual “Do abuso de poder por se utilizar indevidamente base de dados subscrita pelos serviços”.
[4] Relativo ao segmento factual “da devassa da vida privada por meio de informática por se “manter” o “Relatório” sobre PPB... na caixa de correio eletrónico”.
[5] Relativo ao segmento factual “Acesso à faturação detalhada do jornalista S...”.
[6] Relativo ao segmento factual “Do abuso de poder por se utilizar indevidamente base de dados subscrita pelos serviços”.
[6] Relativo ao segmento factual “da devassa da vida privada por meio de informática por se “manter” o “Relatório” sobre PPB... na caixa de correio eletrónico”.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa desta 3ª secção no proc. 51/15.0YUSTR.L1 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, pg. 1118.
[8] Michele Taruffo, Revista do Ministério Público, nº 78, “Motivação da matéria de facto da sentença penal/Anotação”, págs. 147-157.
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.08, no proc. 08P1964, em www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.05, na CJ (STJ), XIII, III, pg. 210; cfr. Paulo Saragoça da Mata, A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais (2004), pg. 265.
[11] No proc. 7/10.0TELSB.L1.S1, disponível no site dgsi.pt
[12] Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.)
[13] Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.307, Proc. 07P21, e de 23.507, Proc. 07P1498, em www. dgsi.pt.
[14] Na Iª série do Diário da República de 18.4.2012, que fixou a seguinte jurisprudência: “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.
[15] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.10.08, no proc. 1121/03.3TACBR.C1, em www.dgsi.pt. 
[16] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.7.2012, no proc. 131/09.1GCMBR.P1, disponível no site dgsi.pt, onde se salienta que “em sede interpretativa do art. 412° n° 2 e n° 3 do CPP afigura-se-nos que está vedado um entendimento mediante o qual se fixem requisitos tão pesados e extensos que, na prática, suprimem esse direito de recurso”.
[17] Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24.03.2004, IIª Série do DR de 2.6.2004
[18] Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44; no mesmo sentido, os acórdãos do mesmo Tribunal de 19.6.2002 e de 4.2.2004, nos proc.s 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, no proc. 1580/02; 16.11.05, no proc. 1793/05, em www.dgsi.pt.    
[19] Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1° vol., pg. 211.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.2.08, no proc. 07P4729, em www.dgsi.pt.
[21] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 294
[22] Bold e sublinhado do relator.
[23] Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.07, no proc. 8428/2007-3, em www.dgsi.pt.
[24] Para o efeito procedeu-se à análise dos excertos das declarações e depoimentos transcritos e dos segmentos indicados por referência ao que consta em acta e à audição de partes do CD com a reprodução da prova, na medida em que se considerou imprescindível para uma global apreciação da prova posta em causa: mormente, a audição integral das declarações de todos os arguidos e do assistente PPB... (lida em audiência) e dos depoimentos das testemunhas JP..., H..., PB..., CV..., RPC..., FS..., FC..., MB..., PN..., PPB..., LM... e JD....
[25] Citando o acórdão recorrido: “uma ponderação individual, arbitrária, desnecessária … e totalmente desproporcionada”.
[26] Como adiante se verá, também a testemunha CV... salientou a excepcionalidade de pedidos nesse sentido.
[27] Pedido que considerou normal porque há muitos serviços de informação estrangeiros que têm acesso aos dados em causa.
[28] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.3.2009, CJ, 2009, T2, pág.149.
[29] Direito Penal Português - Parte Geral -I Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa
[30] Comentário Conimbricense do Código Penal, T. I, pg. 748.
[31] Na leitura que faz do que Manuel da Costa Andrade refere no Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 733.
[32] Como também afirma Manuel da Costa Andrade no Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 729.
[33] O exame crítico consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica exterior ao processo com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.3.05, proc. 05P662, em www.dgsi.pt).
[34]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.2.98, na CJ 1998, T. 1, pg. 199.
[35] No proc. 07P4198, em www.dgsi.pt.
[36] Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 171/2005, na IIª Série do DR, de 6.5.2005, 279/2001 e 367/2014 disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2007 e 21.10.2014, nos proc.s 07P3630 e 941/09.0TVLSB.L1.S1 disponíveis no site dgsi.pt
[37] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2014 referido na nota anterior.
[38] Neste sentido, para além do acórdão citado pelo acórdão recorrido (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.5.2014, no proc. 287/07.8TAGVA.C1, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17.3.2004, no proc. 0345083 e da Relação de Guimarães de 15.12.2009, no proc. 1279/06.0TABCL.G1, disponíveis no site dgsi.pt; com especial interesse, por explicar a especificidades que justificam que no crime de corrupção não seja intenção da norma a extensão da tipicidade, nos termos do art. 28º do Código Penal (pressupostos que não ocorrem no crime de abuso de poder), cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.9.2011, no proc. 76/10.2GTEVR-3, disponível no site da dgsi.
[39] Em contraposição à fórmula de iure condendo.
[40] Por referência a “O Segredo de Estado e a Jurisprudência do Tribunal Constitucional/ J.A. Teles Pereira In: Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa - Coimbra Editora, 2003.
[41] Com base nos ensinamentos de Medina de Seiça no Comentário Conimbricense do Código Penal, T. III, pg. 118.
[42] Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 733.
[43] Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg.s 734 e 748.
[44] Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 744.
[45] Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 745.
[46] Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 744.
[47] Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg. 745
[48] Na sua resposta o assistente assinala o tratamento e análise autónomos, também por referência ao que afirma Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal (1ª ed.), T. I, pg.s 744, 745.
[49] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8.1.2014, no proc. 1170/09.8JAPRT.P2, disponível no site dgsi.pt.
[50] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5.11.2013, no proc. 679/05.7TAEVR.E2, disponível no site dgsi.pt.
[51] Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1995, 1º vol, pg. 201, citando Jorge A. Veloso, Erro em Direito Penal.
[52] Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” (1993), pg. 192, 302, 306; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.1.2009, proferido no proc. 08P4029, em www.dgsi, entre muitos outros.
[53] Entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.7.2003, no proc. 03A1902, disponível em dgsi.pt.