Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8187/21.2T8LSB-A.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
AMORTIZAÇÃO DE QUOTA
DANO APRECIÁVEL
ÓNUS DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–São requisitos do decretamento da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais: a) estar em causa uma deliberação societária que deliberação sido já executada; e, d) resultar da execução dessa deliberação a produção de um dano apreciável.

II.–Quando exista um representante comum dos contitulares da quota social de sócio falecido, designado por lei, por testamento, por nomeação dos contitulares ou por nomeação judicial, cabe a ele e não ao conjunto dos contitulares requerer a suspensão da execução de uma deliberação, como impugnar a sua validade, existência ou eficácia.

III.–Esse representante comum pode ser o cabeça-de-casal, a quem, nessa qualidade, nos termos dos artigos 2079º e 2087º, nº 1 do Código Civil, cabe a administração da herança, sendo, por designação da própria lei, representante comum dos herdeiros.

IV.–Considera-se que não foi executada a deliberação de amortização de quota de sócio falecido, quando a respectiva contrapartida ainda não foi entregue aos respectivos herdeiros, pese embora já tenha sido efectuado o registo da deliberação.

V.–Mostra-se preenchido o requisito “dano apreciável”, uma vez que a total execução da deliberação de amortização da quota do sócio falecido irá privar os herdeiros do sócio falecido de exercerem os seus direitos sociais como contitulares dessa quota, com os inerentes prejuízos dificilmente reparáveis sem a suspensão.

VI.–Por se tratar de um facto impeditivo do direito do requerente de uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, incumbe à sociedade requerida o ónus de alegar e provar a superioridade do prejuízo resultante da suspensão relativamente ao que pode derivar da execução da deliberação.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


1.–RELATÓRIO:


REQUERENTE, intentou o presente procedimento cautelar contra REQUERIDA, pedindo a suspensão da execução das deliberações sociais de amortização da quota do falecido sócio F....., tomadas na reunião de 22 de Fevereiro de 2021 da assembleia geral de sócios da requerida.

Para tanto, alegou, em síntese, que a referida deliberação de amortização da quota é nula, nos termos do disposto no art. 56º, n.º 1, alínea d) do Código das Sociedades Comerciais e anulável, nos termos do art. 58º, n.º1, alíneas a) e b) do Código das Sociedades Comerciais, porquanto a situação líquida da sociedade, depois de satisfeita a contrapartida da amortização, não ficará inferior à soma do capital e da reserva legal, já que os suprimentos, no montante de €200.000, convertidos em prestações suplementares, são fictícios; alega ainda que serão abusivas, em virtude de o sócio F..... ter obstado à apreciação das contas de 2017 e não ter apresentado as contas dos exercícios de 2018 e 2019.

Citada, a requerida deduziu oposição, invocando, por um lado, a ilegitimidade activa da requerente, com base no entendimento de que no leque dos direitos exercíveis pelo representante comum dos contitulares da quota não se integra o direito de acção, pois o pedido de anulação de deliberações sociais não cabe no âmbito de administração ordinária, e, por outro, a não verificação dos pressupostos de que depende o decretamento da providência.

Produzida a prova e discutida a causa, veio a ser proferida decisão que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade activa invocada e procedente a providência requerida, suspendendo, consequentemente, a execução das deliberações aprovadas na assembleia-geral da sociedade Requerida, que se realizou a 22 de Fevereiro de 2021.

É desta decisão que vem interposto recurso, pela Requerida, que o termina alinhando as seguintes conclusões:
1.–O presente recurso é interposto e tem por objeto a sentença de 01/07/2021 proferida no presente procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, nos termos da qual o tribunal a quo, relativamente à exceção de ilegitimidade ativa da Requerente, ora Recorrida, decidiu “julg[ar] improcedente a excepção da ilegitimidade invocada” e, relativamente ao mérito, decidiu julgar o “procedimento procedente por provado e, consequentemente, suspende[r] a execução das deliberações aprovadas na assembleia-geral da sociedade (…)” (destaques nossos), decisões essas com as quais não se pode concordar.

Assim sendo, o presente recurso tem por fundamento erro de julgamento relativamente à decisão de improcedência da exceção de ilegitimidade ativa da Recorrida, por enfermar de erro na interpretação dos factos e na interpretação e aplicação do Direito.
Sem prejuízo, relativamente à decisão de mérito proferida, tem os seguintes fundamentos:
a.-Alteração da matéria de facto com base na reapreciação da prova documental e da prova gravada, fundamento esse que tem em vista a alteração do facto provado de ponto 29 (alteração, de sentido. O facto deve estar na afirmativa), e dos factos não provados de letras k) e y) (alteração de qualificação, de não provado para provado);
b.-Erro de julgamento, por não conformidade da decisão com o direito aplicável à espécie, por erro na interpretação e apreciação da matéria de facto e, além disso, por erro na interpretação e na aplicação do Direito, tendo sido violadas as seguintes disposições: 46º, 413.º e 574º nº 2 do CPC, nos artigos 238.º, n.º 1, 352.º, 356.º, n.º 1, 358.º, n.º 1, 362.º, 363.º, 364.º, 369.º, n.º 1, 371.º, n.º 1, 372.º, 373.º, n.º 1, 376.º, 405.º, n.º 1 e 406.º, n.º 1 do Código Civil (CC) e, nos artigos 32.º, n.º 1, 33.º, 222.º, n.º 1, 223.º, 224.º, n.º 1, 227.º, n.º 2, 232.º, n.º 2, 235.º, e 303.º do CSC, bem como o Estatuto do TOC ( Lei n.º 139/2015 de 7 de setembro, em particular os artigos 69, 70 e 72).

2.–Quanto à decisão de improcedência da exceção de ilegitimidade ativa da Recorrida, enferma de erro. Com efeito, com a abertura da sucessão do sócio falecido no dia 02/12/2020 (art.º 2031º do CC) passou a verificar-se uma situação de pluralidade de herdeiros da quota que era então detida por F..... na sociedade Recorrente, sendo eles, a viúva, Sra. F..... (meeira/casamento em comunhão de bens), a Recorrida e o seu irmão, G....., os dois únicos filhos do casal. No momento do óbito o de cujusdetinha uma quota no valor de € 140.000,00 e aquele último uma quota no mesmo valor, cada uma representativa de 50% do capital social da Recorrente, no valor total €280.000,00. Antes do óbito o sócio falecido outorgou testamento em que nomeou a Recorrida como testamenteira e representante comum dos herdeiros contitulares da quota (Doc nº 5 junto ao requerimento inicial – RI).
Sucede que, nos termos dos n.º 5 e 6 do artigo 223.º do CSC conjugados com o disposto no artigo 225.º do CSC, uma vez decorrido o prazo de 90 dias sem que a quota tenha sido amortizada nos termos legais ou estatutários, o representante comum de quota do sócio falecido pode exercer todos os direitos inerentes às participações sociais, exceto os que importem extinção, alienação ou oneração das mesmas, aumento de obrigações e renúncia ou redução de direitos, salvo de estiver de outro modo estipulado num testamento (o que é o caso) ou na lei. Neste particular, atente-se, no entanto, que, independentemente do que conste do testamento, no leque dos direitos exercíveis pelo representante comum dos contitulares da quota do socio falecido não se integra o direito de ação.

3.–Ora, no caso concreto a Recorrida atua como herdeira, como representante comum dos herdeiros do sócio falecido e como cabeça de casal. Deste modo, se o pedido de anulação de deliberações sociais não cabe no âmbito de administração ordinária do cabeça de casal nos termos dos artigos 2079.º/ss. do Código Civil, consequentemente, não cabe na competência à representante comum dos herdeiros que atua como cabeça de casal. Assim sendo, pese embora se possa invocar a qualidade de representante comum nomeada em testamento, o facto é que por se estar sempre perante herança indivisa, não tem um herdeiro sozinho, mesmo que seja ele representante comum dos herdeiros, legitimidade para propor ação/procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, sendo válidas as mesmas limitações legais que se impõem ao cabeça de casal, na medida em que sempre está em causa herança indivisa. Esta posição e alias secundada pelo Prof. Ferrer Correia, que defende que, se se trata o pedido de anulação de deliberações sociais de direitos do sócio em face da sociedade, e não de direitos sobre os bens socias, este direito de ação só pode ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros.
É, por isso, patente a falta de legitimidade ativa da ora Recorrida, na medida em que não vem acompanhada dos restantes herdeiros da quota deixada pelo sócio falecido, com valor nominal de € 140.000,00, o que corresponde a uma exceção dilatória que deveria ter sido reconhecida pelo Tribunal a quo, nos termos do art. 578.º do CPC e a ora Recorrente ter sido absolvida da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1 alínea d), 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º alínea e) e 578.º, o que não se verificou no presente caso, impondo-se ao tribunal ad quem repor a justiça nos termos das referidas disposições legais violadas pelo tribunal a quo.

4.–Pese embora no ordenamento jurídico nacional vigore o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz, plasmado no artigo 607.º, n.º 5, 1ª parte, do CPC, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar os limites da lei, as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas.
Não obstante, o tribunal a quo não observou os referidos limites a que está condicionado. E, por isso, na Sentença recorrida incorreu em erro quanto a decisão da matéria de facto (ponto 3), pois deu como provado o facto constante do ponto 29 dos factos provados, “Não havia suprimentos do sócio F....., no montante de €200.000,00, para converter em prestações suplementares, conforme foi decidido pelo mesmo na assembleia geral de 22 de Fevereiro de 2021.” (fls13), contrariando o Doc. n.º 16 do RI (e alegação da Requerente constante do artigo 24.º do RI, na parte em que a mesma afirma que o empréstimo foi liquidado pelo sócio gerente G.....), o Doc n.º 11 do RI e os DOCs 15 a 18 e 20 a 22 juntos à Opos.. Acresce que esta decisão quanto a referida matéria de facto está em contradição com os pontos 27 (parte final), 46, 49, 50 e 51 dos factos provados e com os pontos c) e d) dos factos não provados. Assim sendo, o referido facto que foi considerado na negativa, deve ser alterado para o seu sentido positivo.
Até porque, não só da prova documental, mas também da prova gravada resulta inequívoco que: a) sempre que a sociedade necessitava de empréstimo para manter/fomentar a sua atividade e/ou era necessário pagar responsabilidades da sociedade, os sócios aportavam suprimentos (vd. gravação do depoimento da testemunha F..... com o número 20210616144158_20179665_2871091 no sistema Habilus, minutos 00:09:46 a minutos 00:10:15); b) que existiam suprimentos do sócio G..... em valor superior a €200.000,00 (vd. gravação do depoimento da testemunha F..... com o número 20210616151531_20179665_2871091 no sistema Habilus, minutos 00:30:24 a minutos 00:31:31 e Docs. n.º 11 do RI e DOCs 15 a 18 e 20 a 22 juntos com a Opos).

5.–A Sentença recorrida incorreu, ainda, em erro na decisão quanto à matéria de facto, pois deu como não provado o facto constante do ponto k) dos factos não provados (fls. 18), “O TOC verificou e informou à gerência da sociedade, que os valores dos suprimentos aportados pelo sócio gerente G..... até à data de 22.2.2021 excediam €200.000,00.”, contrariando diretamente o Doc n.º 11 do RI e o DOC 20 junto com a Opos. e, ainda, mesmo que reflexamente, o teor dos DOCs 15 a 18 e 21 e 22 juntos à Opos.. Acresce que a referida decisão está ainda em contradição direta com o ponto 51 dos factos provados e indireta com os pontos 27, 46, 49 e 50, também dos factos provados, e com o ponto de letra d) dos factos não provados. Deste modo, e pelos fundamentos expostos o facto deve ser alterado para provado.

6.–Não bastasse isto, incorreu também em erro quanto a decisão da matéria de facto, uma vez que deu como não provado o facto constante do ponto y) dos factos não provados (fls. 19), “Em Dezembro de 2020, após o falecimento do sócio gerente F..... o gerente G..... deu indicação à imobiliária para retirar o imóvel do mercado”, realçando às fls. 29, relativamente ao referido facto dado como não provado, que é “Provado apenas o que resulta do facto 61..”, contrariando o DOC 31 junto à Opos., e que está em contradição com os pontos 57 a 61 dos factos provados. Assim sendo, o referido facto que foi considerado não provado, deve ser alterado para ser considerado como facto provado.

7.–Acrescente-se que há uma evidente relação entre o facto de ponto 29 dado como provado e o facto indicado na letra k) dado como não provado. Tanto assim, que para fundamentar a decisão quanto às referidas matérias de facto, o tribunal a quo aduziu essencialmente os mesmos argumentos (vd. fls. 20 e 21 para o ponto 29 e as fls. 25 e 26 para a letra k). Ora, a prova produzida nos autos impõe decisão distinta daquela que foi proferida pelo tribunal a quo quanto aos dois factos, que têm por base, essencialmente, a mesma prova documental e testemunhal.

8.–Ora, e em particular, não pode o Tribunal considerar o facto de ponto 29 assente, nem também dar como não provado o facto da letra k). Até porque o facto de ponto 29 foi expressamente impugnado pela Requerida, ora Recorrente, como se extrai das alegações constantes, nomeadamente, dos artigos 62.º, 65.º, 66.º, 67.º, 68.º, 69.º, 96.º da Opos. e, ainda, 137.º do mesmo articulado, que reforça a impugnação vertida nos artigos anteriores. Este facto corresponde e/ou reflete a alegação da Recorrida constante dos artigos 26.º, 63.º e 64.º do RI, pelo que caberia à mesma (e não à Recorrente) fazer prova da sua alegação, ou seja, de que não existiam suprimentos do sócio G....., sendo os mesmos fictícios, prova esta que não logrou fazer.
Acresce que a própria assumiu textualmente que o sócio G..... aportou € 90.747,55 à sociedade (em julho de 2020), como se pode extrair do artigo 24.º do RI (“[…] um outro empréstimo de, aproximadamente, €90.747,55 que foi, ao que se sabe, amortizado pelo sócio gerente RN....., à revelia de seu falecido Pai (cf. doc. n.º 16))” e juntou um documento sob n.º 16 (não impugnado) para prova da alegação, que corresponde a um extrato de movimentos na conta bancária da Recorrente (DDA 15......9) que faz prova de que em julho de 2020 o sócio aportou € 90.747,55 à sociedade, à título de suprimentos. Isto está, aliás, em conformidade com a segunda parte do facto provado de ponto 27 (fls. 13), onde se pode ler que o “empréstimo de, aproximadamente, €90.747,55 [que] foi amortizado pelo sócio gerente G..... .”
Veja-se que no artigo 69.º da Opos. a Recorrente alegou expressamente, além do mais, que de forma a assegurar à sociedade que poderia amortizar a quota do de cujus nos termos em que a amortizou (aferindo o capital social considerando a conversão de suprimentos em prestações suplementares), previamente à realização da AGS de 22/02/2021 o contabilista certificado/TOC verificou e informou à gerência da sociedade que os valores dos suprimentos aportados pelo sócio gerente RN..... até aquela data excediam a € 200.000,00 (duzentos mil euros), do que fez prova com a declaração emitida pelo mesmo, junta como DOC 20 à Opos.
Trata-se de um documento particular assinado pelo contabilista certificado da sociedade com aposição de vinheta nos termos legais, que cumpre os requisitos do artigo 373.º n.º 1 do Código Civil - “CC” (“1. Os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor (…)”). Assim sendo, a declaração ali contida tem força probatória plena nos termos do artigo 376.º, n.º 1 do CC, documento este para o qual não foi arguida falsidade. Dai que o facto de o contabilista certificado não ter sido ouvido não afasta a veracidade da declaração e sua inteligibilidade. Ora, o TOC só poderia fazer a declaração que fez estando certo e seguro de que os valores estão inscritos na contabilidade da sociedade, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e até criminal, por violação de obrigações que lhe competem nos termos do respetivo Estatuto (Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 05 de Novembro, republicado pela Lei n.º 139/2015, de 07/09 – “Estatuto dos TOC”), não se podendo compreender a posição do tribunal a quo no sentido não dar valor à referida declaração datada de 29/03/2021.

9.–Acresce que o ROC opinou no sentido de que, salvo quanto às reservas, incluindo a de ponto 4, o balanço, em todos os aspetos materiais, foi preparado em conformidade com a Norma Contabilística para Microempresas. Daí que não se pode considerar que o balanço não é fidedigno em razão da reserva feita no documento.
Deste modo, o facto dado como provado no ponto 29, deve ser alterado para: “Havia suprimentos do sócio G....., no montante de €200.000,00, para converter em prestações suplementares, conforme foi decidido pelo mesmo na assembleia geral de 22 de Fevereiro de 2021.”

10.–Relativamente ao facto de letra k) dado como não provado, da prova documental produzida (mormente, Doc n.º 11 do RI e DOCs 15 a 18 e 20 a 22 juntos com a Opos) e dos factos dados como provados (pontos 27, parte final, 46, 49, 50 e 51) e como não provados (ponto de letra d)), que estão em contradição com o k) dos factos não provados, resulta que não se pode dar como não provado que ”O TOC verificou e informou à gerência da sociedade, que os valores dos suprimentos aportados pelo sócio gerente G..... até à data de 22.2.2021 excediam €200.000,00.” (ponto de letra k) dos factos não provados). Deste modo, a qualificação do facto constante da letra k) dos factos não provados, deve ser alterada para refletir o que efetivamente resulta dos autos, devendo passar a ser dado como provado que: “O TOC verificou e informou à gerência da sociedade, que os valores dos suprimentos aportados pelo sócio gerente G..... até à data de 22.2.2021 excediam € 200.000,00”.

11.–Ao contrário da qualificação dada pelo douto tribunal a quo ao facto enunciado na letra y) dos factos não provados, a ora Recorrente entende que em razão da prova produzida nos presentes autos e do que foi dado como provado nos pontos 58 a 61 dos factos provados, o referido facto não pode ser dado como não provado; antes deve ser alterado para ser dado como provado. Com efeito, conforme se lê na letra y), pois da prova produzida só pode ser dado como provado que: “Em Dezembro de 2020, após o falecimento do sócio gerente F..... o gerente G..... deu indicação à imobiliária para retirar o imóvel do mercado”.

12.–Quanto ao erro de julgamento por má aplicação do direito, a questão central que aqui se coloca consiste na interpretação e má aplicação do disposto nos artigos 46º, 413.º e 574º nº 2 do CPC, nos artigos 238.º, n.º 1, 352.º, 356.º, n.º 1, 358.º, n.º 1, 362.º, 363.º, 364.º, 369.º, n.º 1, 371.º, n.º 1, 372.º, 373.º, n.º 1, 376.º, 405.º, n.º 1 e 406.º, n.º 1 do Código Civil (CC) e, nos artigos 32.º, n.º 1, 222.º, n.º 1, 223.º, 224.º, n.º 1, 227.º, n.º 2, 232.º, n.º 2, 233.º, 235.º, 236.º e 303.º do CSC, bem como os artigos 69.º, 70.º e 72.º do Estatuto dos TOC, com a devida subsunção dos factos ao direito. Este erro é consequente da desconsideração de preceitos legais adjetivos e substantivos e da má interpretação do direito, bem como da desconsideração das normas de interpretação aplicáveis ao caso concreto.

13.–A sentença recorrida conclui que: “Entende-se, pois, que a deliberação em causa não se encontra completamente executada, no sentido em que os seus efeitos são ainda passíveis de suspensão.” (destaque nosso). Não se pode concordar com este entendimento do tribunal a quo, pois a deliberação em causa, de amortização, já está completamente executada. Tanto assim o é que, tendo a quota sido efetivamente amortizada, a sociedade é, agora, uma sociedade unipessoal, detida por um único sócio (vd., em especial Menção Dep. 154/2021-02-22 e Insc. 8 AP 26/20210305 certidão comercial junta como DOC 01 á Opos).

14.–Atendendo à letra da lei, o único efeito a ser extraído de deliberação de amortização de quota é o de extinção da quota, que é coisa bem distinta de, da deliberação de amortização, resultar obrigação de pagamento pela sociedade, correspondente ao valor da quota amortizada no prazo legal ou contratualmente definido. Esta obrigação de pagamento não altera o efeito próprio e legal da amortização. Tanto assim que a única hipótese de a amortização ficar sem efeito é se, “ao tempo do vencimento da obrigação de pagar a contrapartida da amortização se verificar que, depois de feito este pagamento, a situação líquida da sociedade passaria a ser inferior à soma do capital e da reserva legal” (n.º 2 do artigo 236.º do CSC). No mais, o que resulta para o quotista que teve quota amortizada é um direito de crédito sobre a sociedade (como se extrai da exegese do disposto nos artigos 232.º, n.º 2, 235.º, e 236.º do CSC).

15.–No caso de amortização de quota, a deliberação social consuma-se com a deliberação propriamente dita, que fica apenas dependente do ato de registo, que uma vez feito impede que a deliberação de amortização fique suspensa. Ora, no caso em apreço a amortização da quota foi registada em momento anterior a ser requerido o presente procedimento cautelar (vd. Insc.8 AP. 26/20210305 19:06:29 UTC - alteração do contrato de sociedade para sociedade unipessoal por quotas e Menção Dep. 154/2021-02-22 - amortização de quota(s) na certidão comercial da Requerida junta como DOC 01 a Opos.). Deste modo o presente procedimento cautelar não tem objeto desde que foi requerido.

16.–Não estão verificados todos os requisitos de que depende a decretação do procedimento cautelar em causa nestes autos, sendo patente a violação do disposto no artigo 232.º, n.º 2, 235.º e 236.º do CSC. E, sendo assim, não podem as deliberações ser suspensas.

17.–A Requerente, ora Recorrida, não tem legitimidade substantiva para propor procedimento cautelar de anulação ou de nulidade de deliberações sociais de amortização de quota, pois só a tem quem é sócio, situação que não se verifica no caso concreto. Assim sendo, é forçoso concluir que andou mal o tribunal a quo ao considerar que a Recorrida tem legitimidade substantiva, pois o direito a exercer é um direito indiviso que assiste não só a ela, enquanto herdeira, mas a todos os herdeiros. Com a decisão proferida quanto a esta matéria, o tribunal a quo violou, em especial, o disposto nos artigos 222.º, n.º 1, 223.º, 224.º, n.º 1, 227.º, n.º 2 e 303.º do CSC.

18.–Relativamente ao fumus boni iuris, não está verificado no caso concreto. De facto, é legal e estatutariamente possível à sociedade amortizar a quota, conforme resulta dos artigos n.º 232.º, n.º 1 e 235.º, n.º do CSC., porquanto o Pacto social da Recorrente, na sua Cláusula 11, não só autoriza como prevê o regime de amortização de sócio falecido. Acresce que, o facto de as contas dos 3 exercícios anteriores não estarem aprovadas pelos sócios, não invalida o balanço, pois ao ser elaborado teve o contabilista certificado que verificar toda a contabilidade e a situação financeira da sociedade.
É importante aqui ter presente que a fixação da contrapartida pela amortização da quota está fixada no art. 235.º do CSC, mas tal critério é supletivo, permitindo a lei “estipulação em contrário do contrato de sociedade”. Esta ressalva é feita sem estabelecer qualquer restrição. Assim, onde o legislador não estabelece restrição, não pode o interprete criá-las.
Atente-se, ainda, que o facto de a Requerente ter tido acesso a dois balanços referentes à mesma sociedade e ao mesmo período temporal, um anexo à convocatória junto como Doc. n.º 10 ao RI e o outro junto como DOC 28 à oposição, não invalida o balanço apresentado e discutido na Assembleia Geral de Sócios de 22 de Fevereiro de 2021, pois só este ultimo serviu de base à contrapartida da amortização. Alias, a diferença entre os dois documentos decorre de mera correção no balanço, que se verificou necessária após o envio da convocatória, sendo certo que a diferença entre os dois documentos não só não e significativa, como o documento corrigido que foi apresentado na Assembleia Geral de Sócios de 22/02/2021 e mais exigente no que diz respeito ao capital próprio.
Não se olvide que o balanço é um documento hábil a atestar o que atesta. Acresce que a reserva feita no documento emitido pelo ROC decorre da cautela que se impõem a um ROC, para afastar eventual responsabilidade, o que é muito diferente de o ROC ter afirmado que o balanço não está suportado em movimentos e documentos contabilísticos fiáveis.

19.–O princípio da intangibilidade do capital social não foi afetado, porquanto, por forma a garantir que, após satisfeito o pagamento da contrapartida da amortização, a situação líquida da Sociedade não ficasse inferior à soma do capital e da reserva legal, converteram-se parte dos suprimentos realizados pelo sócio G....., registados contabilisticamente, no montante de duzentos mil euros, em prestações suplementares.
Veja-se que, quanto aos documentos que suportam os suprimentos, não pode o tribunal a quo ignorar que o balanço é um documento particular, que tem força probatória plena nos termos do artigo 376.º, n.º 1 do CC. Daí que o facto de o contabilista certificado não ter sido ouvido não afasta a veracidade da declaração que emitiu e consta do DOC 20 à Opos. e sua inteligibilidade. Acresce que a ata da AGS de 22/02/2021 consta de um documento autêntico de modo que se está perante um negócio formal (artigos 217.º e 219.º c/c 220.º e 238.º do CC). Assim sendo, por maior razão o tribunal a quo não poderia ter interpretado os factos e o que consta da ata da AGS, senão com aderência ao que consta do texto do documento. Analisada a declaração propriamente dita e todo o teor da ata (Doc n.º 11 ao RI), não se pode retirar que não existam suprimentos, e que com o pagamento do valor da contrapartida da amortização ocorra perda do capital; antes pelo contrário, o que se retira deste documento é que a formação do valor da contrapartida da amortização tomou em consideração.
Por tudo o quanto exposto, a conclusão e que o requisito do fumus boni iuris não está verificado.

20.–Quanto ao requisito do dano apreciável, mais uma vez andou mal o tribunal a quo ao considerar que “ficou demonstrado que da execução da deliberação resulta um dano apreciável para os herdeiros do de cujos, que a requerente representa.”.
Quanto a esta matéria, a jurisprudência sublinha que: “3. A qualidade de sócio e a ilegalidade da deliberação bastam-se com um mero juízo de verosimilhança, mas, quanto ao “dano apreciável”, exige-se, pelo menos, uma probabilidade muito forte da sua verificação.
Ora, da factualidade em causa não resulta a prova que a execução das deliberações impugnadas possa causar o dano apreciável, quer para sociedade, quer para a Requerente, antes pelo contrário. Acresce que o alegado risco/dano apreciável que a Requerente pretendia evitar já não pode ser evitado, porquanto, como se pode ver na certidão comercial da Requerida, a amortização da quota já foi implementada e levada a registo comercial e, bem assim, o seu Contrato Social já foi alterado em momento anterior a ser requerido o presente procedimento cautelar, o que, por si só afeta o hipotético dano apreciável/periculum in mora e aponta para a inutilidade da medida cautelar pretendida, do que se conclui com muita facilidade que também falta a verificação deste pressuposto cautelar.

21.–E nem se diga que há dano apreciável com o afastamento dos sócios da vida societária. O mero afastamento do sócio da vida da sociedade não é fundamentador do periculum in mora. Se assim fosse, qualquer deliberação de amortização de quota e de exclusão de sócio seria, a priori, sujeita a suspensão independente da situação concreta.
Além disso, da prova não resulta que o facto de a sociedade deter o imóvel onde funciona o Hostel comporte risco a Requerente. Como, aliás, resulta da própria sentença recorrida, visto ter sido dado como provado que: “59. Nos anos em que esteve à venda nunca existiu um interessado sério em fazer realmente negócio.”.
Pelo antes exposto, in casu, cremos que se imporia decisão diversa no sentido de que não está verificado qualquer dano apreciável, pois a verdade é que para considerar este requisito como verificado, o tribunal a quo assumiu, erradamente, que o dano decorre do mero afastamento da vida societária e da hipótese de venda do Hostel, situações que, como se viu, não fundamentam um dano apreciável.
Assim sendo, não esta verificado o requisito.

22.–Quanto ao requisito da proporcionalidade, há evidente prejuízo para a sociedade com a decretação da suspensão das deliberações, conforme disposto no artigo 381.º, n.º 2 do CPC. Desde logo porque atualmente consta um único sócio do registo comercial e a sociedade é unipessoal. Este facto está demonstrado nos autos e estando o artigo 381.º, n.º 2 do CSC direcionado ao juiz, caberia ao mesmo, face aos elementos dos autos, fazer a sua aferição, o que não fez. Mais. Com a situação de desentendimento entre a Requerente e o sócio gerente da sociedade, fácil é de perceber que a sociedade ficará ingerível, se aquela (o que é muto provável) começar a, sob o manto da qualidade de representante comum dos herdeiros da quota indivisa, criar dificuldades ao funcionamento da sociedade. Esta situação não é um cenário meramente hipotécio, antes é mais real, estando a Requerente e o sócio gerente desavindos há já alguns anos.
Vê-se, mais uma vez, que o tribunal a quo remete a necessidade de prova para a Requerida. Ora, esta não é, certamente, a regra processual relativa ao ónus da prova. Acresce que, de nenhum artigo do requerimento inicial se retira que a Requerente tenha demonstrado, ou sequer alegado, que a decretação da medida cautelar não causa prejuízo à Requerida, e fundamentado o requisito da proporcionalidade.
Facto é que, a teor do disposto no n.º 2 do artigo 381.º do CPC resulta evidente que o interesse principal a proteger é o da sociedade e não o dos sócios, que não se confundem.
Ademais, para que o juiz possa aferir tal pressuposto e aplicação, ou não, do disposto na mencionada disposição legal, é essencial que o requerente do procedimento cautelar demonstre que a suspensão da deliberação não é prejudicial à sociedade, o que não ocorreu nestes autos.
In casu, de igual modo, cremos que se imporia decisão diversa no sentido de que não está verificado o requisito da proporcionalidade, pois a verdade é que para considerar este requisito como verificado, o tribunal a quo assumiu, erradamente, que o ónus da prova se imporia a Recorrente, quando de facto se impõem à Recorrida, que nada alegou quanto a este requisito.

23.–Pelo que, face ao exposto, não pode o procedimento cautelar ser julgado procedente.

A Requerente também apresentou as suas contra-alegações, que conclui do seguinte modo:
1.–O artigo 223.º, n.º 6, do C.S.C. é norma especial relativamente ao artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil.
2.–A requerente tem legitimidade (ou legitimação) substantiva para, na relação com a sociedade requerida (“perante a sociedade”), dispor da quota deixada pelo seu falecido Pai, nos termos dos artigos 222.º, n.º 1, e 223.º, n.ºs 5 e 6, do C.S.C. O facto legitimador é, no caso vertente, a sua nomeação, por via testamentária, como representante comum dos herdeiros contitulares da quota, com poderes de disposição.
3.–Nos termos gerais, aqui aplicáveis, a nulidade de uma deliberação social é invocável a todo o tempo por qualquer interessado (cf. artigo 286.º do Código Civil), pelo que bastaria à requerente a sua qualidade de herdeira do falecido sócio F....., para, com base nessa invalidade, impugnar as deliberações de amortização da quota por ele deixada, bem como para requerer cautelarmente a sua suspensão.
4.Já no que toca à anulabilidade, a legitimidade para impugnar e, logo, para requerer a suspensão das deliberações em apreço, cabe apenas à requerente, enquanto representante comum dos herdeiros contitulares da quota com poderes de disposição, pois quem tem legitimidade substantiva para dispor do direito tem, em regra, legitimidade processual para a ação.
5.–O documento n.º 20 da oposição (declaração do contabilista certificado da requerida datada de 29 de março de 2021) corresponde a um depoimento testemunhal apresentado por escrito, sem obedecer aos pressupostos e requisitos previstos nos art.ºs 518.º e 519.º do C.P.C., pelo que é inadmissível, devendo, por isso, ser eliminado o facto provado n.º 51 da fundamentação de facto da sentença recorrida.
6.–Tendo em conta o disposto no art. 236.º, n.º 1, do C.S.C. e no art. 342.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil, cabia à requerida, e não à requerente, o ónus da prova de que, aquando da tomada da deliberação de amortização da quota, a sua situação líquida, depois de satisfeita a contrapartida da amortização, não ficaria inferior à soma do capital e da reserva legal, porquanto esse requisito constitui um facto constitutivo do direito potestativo de amortização da quota.
7.–Assim sendo, cabia à requerida a prova de que o sócio G..... detinha um crédito por suprimentos no montante de 200.000 euros, prova essa que a requerida não fez. Deu-se como provado, por isso, exatamente o contrário.
8.–Os requisitos de procedência do presente procedimento cautelar estão todos verificados.
9.–Da interpretação do parágrafo 1.º do Artigo Décimo Primeiro do pacto social da requerida de 31/03/2017 resulta que os sócios da mesma pretenderam que, em caso de amortização compulsiva de uma quota, a respetiva contrapartida correspondesse não a um mero valor contabilístico, mas sim ao valor real dessa quota, apurado em função de balanço especialmente dado para o efeito.
10.–A estipulação do Parágrafo 1.º do Artigo Décimo Primeiro do contrato de sociedade não é contrária ao artigo 235.º, n.º 1, alínea a), do C.S.C.
11.–O balanço com base no qual foi fixado o valor da contrapartida da amortização da quota foi elaborado com referência à data do óbito do sócio (02/12/2020) e não com referência à data da deliberação (22/02/2021).
12.–A contrapartida da amortização não foi calculada, na falta de acordo, por um revisor oficial de contas independente designado pela respetiva Ordem, como impunha a lei.
13.–Sem conceder, e para o caso de, por mera hipótese de raciocínio, assim não se entender, o balanço com base no qual foi fixado o valor da contrapartida da amortização da quota deveria ter sido aprovado pelos sócios, aqui se incluindo também os herdeiros do sócio falecido.
14.–O balanço com base no qual foi fixado o valor da contrapartida da amortização da quota, elaborado pelo contabilista certificado da requerida (facto provado n.º 30), não tem, de per si, qualquer validade, porquanto, à data em que foi elaborado, ainda não tinham sido aprovadas pelos sócios as contas da requerida respeitantes aos exercícios de 2017, 2018 e 2019.
15.–Se, por mera hipótese de raciocínio, também assim não se entendesse, é manifesto que as deliberações de amortização da quota em apreço sempre seriam abusivas, porquanto não é conforme à boa fé que, tendo o sócio G..... obstado à apreciação das contas de 2017 e não tendo sido sequer apresentadas as contas dos exercícios de 2018 e 2019 (as quais se apressou a depositar logo após a assembleia geral de 22/02/2021), fosse agora a amortização deliberada, apenas com os votos dele, com base num balanço especial cuja exatidão as herdeiras do falecido sócio não tiveram qualquer possibilidade de controlar e verificar.
16.–As deliberações sociais de amortização da quota do sócio F..... tomadas na assembleia de 22 de fevereiro de 2021, se não forem nulas, são anuláveis, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) e b), do C.S.C.
Termina as contra-alegações, pedindo que se elimine o facto provado sob o nº 51, confirmando-se, no mais, a sentença recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.–ÂMBITO DO RECURSO

Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Cumpre, em primeiro lugar, apreciar a excepção de ilegitimidade activa e, caso, esta se mantenha improcedente, decidir da impugnação da matéria de facto, e em caso afirmativo, se se devem manter como provados os factos descritos no ponto 29 e se os factos dados como não provados nas alíneas k) e y) se devem considerar como provados.
Após a fixação definitiva da matéria de facto, resta verificar os demais pressupostos para o decretamento da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, nomeadamente, requisitos do fumus boni iuris, dano apreciável e proporcionalidade.

2.1.-Ilegitimidade activa.
A Recorrente inicia as suas alegações, sustentando que a sentença erra ao julgar improcedente a excepção de ilegitimidade activa da Requerente (ora Recorrida). No seu entendimento, esta não goza de legitimidade, por um lado, por não estar acompanhada dos restantes herdeiros da quota deixada pelo sócio falecido, e, por outro, por não ser sócia, não gozando, portanto de legitimidade (substantiva) para propor procedimento cautelar de anulação ou de nulidade de deliberações sociais de quota.

Nas contra-alegações, a Recorrida, expressa o entendimento contrário de que goza de legitimidade (ou legitimação) para, na relação com a sociedade requerida, dispor da quota deixada pelo seu falecido pai, nos termos dos artigos 222º, nº 1, 223º, nºs 5 e 6 do Código das Sociedades Comerciais (doravante mencionado pela sigla CSC), facto que decorre da sua nomeação, por via testamentária, como representante comum dos herdeiros contitulares da quota, com poderes de disposição. Acrescenta ainda que, para invocar a nulidade da deliberação social, bastar-lhe-ia a sua qualidade de herdeira do sócio falecido, sendo certo que, no que toca à anulabilidade, a legitimidade para impugnar e consequentemente para requerer a suspensão das deliberações sociais em apreço, cabe-lhe apenas a si, por ser representante comum dos herdeiros contitulares da quota com poderes de disposição.

Cumpre, pois, apreciar esta primeira questão.

A falta de legitimidade das partes processuais é, no nosso direito processual civil, uma excepção dilatória que, verificada, obsta a que o juiz conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 30º, 576º, n.º 2, 577º, n.º 1, alínea e) e 278º, n.º 1, alínea d) do CPC).

Ora, quanto à legitimidade do requerente de providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, determina o artigo 380º, nº 1 do CPC, que “qualquer sócio [a] pode requerer…”.

Quer isto dizer que apenas o sócio poderá recorrer a esta medida cautelar?
De acordo com parte da doutrina, da qual a voz mais expressiva é a de COUTINHO DE ABREU, poderão requerer a suspensão outros sujeitos (e órgãos) para além dos sócios, e que, segundo este autor, permite a respectiva legitimidade, “por interpretação teleológica da norma ou por aplicação analógica dos preceitos relativos às acções de nulidade e de anulação”.[1]

Entre os que gozam de legitimidade para requerer a suspensão cautelar de deliberações inválidas encontram-se, sem dúvida, os herdeiros do sócio falecido.

Com efeito, no caso de os estatutos da sociedade lhe conferirem o direito de amortizar a quota de sócio falecido ou de adquiri-la aos herdeiros, o artigo 227º, nº 2 do CSC determina que “os direitos e obrigações inerentes à quota ficam suspensos enquanto não se efetivar a amortização ou a aquisição dela…”, sendo certo que “durante a suspensão, os sucessores poderão, contudo, exercer todos os direitos necessários à tutela da sua posição jurídica, nomeadamente votar em deliberações sobre alteração do contrato ou dissolução da sociedade” (artigo 227º, nº 3).

Assim, durante o período de suspensão, permite-se o exercício dos direitos sociais necessários “à conservação da identidade e da consistência, qualitativa e quantitativa, da quota do sócio falecido, maxime,o seu valor”[2] e,designadamente, o de impugnar as deliberações da sociedade, e, caso se cumpram os requisitos legais, o de requerer a suspensão cautelar da sua execução.

Quer a sociedade opte pela amortização da quota, quer pela sua aquisição, com o falecimento do sócio, os herdeiros passam a ser “titulares ad tempus, sujeitos à verificação da condição resolutiva pela qual a quota, ou bem que é amortizada, ou bem que é adquirida pela sociedade, por sócio supérstite ou, enfim, por terceiro.”[3]

No caso de serem vários os herdeiros, enquanto a herança permanecer indivisa, passa a existir uma situação de contitularidade da quota, cujo regime está regulamentado nos artigos 222º a 224º do CSC. Ora, “se existe contitularidade por morte de sócio que deixa vários herdeiros, o exercício dos direitos de sócio deve ter lugar através de representante comum. E, se houver cabeça-de-casal, será este o representante comum designado por lei.”[4] Por isso, tal como já foi decidido pelo STJ no Acórdão de 06/10/2009 (proc. 398/09.5YFLSB – 6ª Secção), poderá o cabeça-de casal intentar sozinho acção de anulação de deliberações sociais como representante comum dos contitulares. Como refere PINTO FURTADO, “a regra é, portanto, nas relações com a sociedade, o exercício dos direitos através do representante comum, e não em conjunto – e compreende-se bem que assim seja, porque a intervenção plural dos contitulares terá tendência a revelar-se embaraçosa para a actividade social”.[5]

Em suma, quando exista um representante comum dos contitulares da quota social de sócio falecido, designado por lei, por testamento, por nomeação dos contitulares ou por nomeação judicial, cabe a ele e não ao conjunto dos contitulares requerer a suspensão da execução de uma deliberação, como impugnar a sua validade, existência ou eficácia. Esse representante comum pode ser o cabeça-de-casal, a quem, nessa qualidade, nos termos dos artigos 2079º e 2087º, nº 1 do Código Civil, cabe a administração da herança, sendo, por designação da própria lei, representante comum dos herdeiros.[6]

No caso dos autos, resulta provado que, por testamento lavrado em 01/08/2019, a Requerente (ora Recorrida) foi nomeada por seu pai, F....., a sua testamenteira “… com as atribuições previstas na lei e, ainda, designando-a como representante comum dos herdeiros contitulares da quota do testador na sociedade Requerida (…) podendo essa exercer perante a sociedade todos os poderes inerentes à quota indivisa, incluindo poderes de disposição, podendo, assim, praticar atos que importem a extinção, alienação ou oneração da dita quota, aumento de obrigações e renúncia ou redução dos direitos dos sócios.”. Resulta ainda do contrato de sociedade da Requerida (ora Recorrente) que “a sociedade não se dissolverá por morte ou interdição de qualquer dos sócios, continuando com os sobrevivos ou capazes e, caso não seja amortizada a respetiva quota, com os herdeiros ou representantes dos falecidos ou interditos, devendo, nesse caso, este nomear um que a todos represente enquanto a respetiva quota estiver indivisa.” (artigo nono do contrato constitutivo da sociedade reproduzido no nº 12 dos factos provados).[7]

Assim, sendo a Requerente (ora Recorrida) cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do sócio falecido da Requerida e, simultaneamente, representante comum dos herdeiros contitulares da quota, por nomeação testamentária, está duplamente legitimada para exercer perante a sociedade todos os poderes inerentes à quota indivisa, podendo, designadamente, requerer a suspensão da execução de uma deliberação, como impugnar a sua validade, existência ou eficácia. Dito de outro modo goza de legitimidade substantiva e, consequentemente, de legitimidade processual. Aliás, para invocar a nulidade da deliberação social de amortização da quota do sócio falecido, bastaria à Recorrida a sua qualidade de herdeira do falecido sócio, uma vez que a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado (artigo 286º do Código Civil).

Improcedem, pois, as conclusões 2ª, 3ª e 17ª das alegações da Recorrente.

2.2.– Impugnação da matéria de facto.

Nas suas alegações (conclusões 4ª a 11ª) veio também a Recorrente insurgir-se contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando, por um lado, que a matéria julgada como não provada nas alíneas k) e y) deveria ser dada como provada e, por outro, que a matéria julgada como provada no nº 29 deveria ser dada como não provada.
Analisemos, então, nesta parte, as razões invocadas pela Recorrente, tendo em conta que o recurso cumpre o ónus estabelecido no artigo 640º do CPC. De todo o modo, a alteração da matéria de facto pretendida pela Recorrente só ocorrerá “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” (artigo 662º, nº 1 do CPC).

2.2.1.-No elenco da matéria não provada que integra a sentença consta como alínea k) o seguinte: “O TOC verificou e informou à gerência da sociedade, que os valores dos suprimentos aportados pelo sócio gerente G..... até à data de 22.2.2021 excediam € 200.000,00.”

Quanto a este facto – que, segundo a Recorrente, deve ser dado como provado – refere aquela que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação das provas juntas aos autos e produzidas em audiência, na medida em que contraria o doc. nº 11 do RI e o doc. 20 junto com a oposição e ainda, mesmo que reflexamente, o teor dos docs. 15 a 18, 21 e 22 juntos à oposição. Acrescenta ainda que a sentença está em contradição directa com o ponto 51 dos factos provados e indirecta com os pontos 27, 46, 49 e 50, também dos factos provados e com o ponto da alínea d) dos factos não provados.

No entanto, a 1ª instância, pese embora não deixe de referir os documentos mencionados, não lhes confere qualquer valor probatório, por o TOC não ter prestado depoimento, impedindo o Tribunal de aferir a existência de suprimentos daquele valor pelo sócio G..... .

Com efeito, na motivação da sentença, respeitante ao facto não provado da alínea k), ficou a constar o seguinte:
“Não provado porque não foi ouvido o TOC, pelo que não temos meio de aferir se o mesmo confirmou a existência de suprimentos no valor de €200.000,00 prestados por G..... e se deu tal informação à gerência.
Por outro lado, a declaração datada de 29.3.2021, junta a fls. 134 verso, não tem qualquer validade como meio de prova da veracidade dos factos que menciona.
Com efeito, desconhecemos qualquer atribuição de competência aos Contabilistas Certificados, mormente constante do seu Estatuto, para atestar factos.
Tanto quanto sabemos, os Contabilistas Certificados têm a função de planificar, elaborar e realizar a contabilidade de uma empresa, de acordo com as normas contabilísticas aplicáveis e em vigor, sendo ainda o ponto de ligação entre as empresas e a Autoridade Tributária.
Nas suas atribuições não se inclui a possibilidade de certificar, no sentido de atestar, qualquer facto, ainda que compreendido no âmbito das respectivas funções.
Assim, para que o tribunal pudesse considerar demonstrado que o sócio RN..... tinha prestado suprimentos à sociedade era necessário que fosse apresentado documento que demonstrasse o pagamento pelo sócio de responsabilidades da sociedade ou a transferência pelo sócio para a sociedade de um determinado valor de que a mesma necessitou para fazer face às suas obrigações. Tal prova não foi realizada.
Por outro lado, também não foi demonstrado que existissem quais[quer] créditos do sócio sobre a sociedade cujo vencimento tenha sido diferido, por acordo.
De resto, analisados os balanços apresentados, por requerente (fls. 38 verso) e requerida (fls. 203 verso), concretamente, na rubrica de passivo não corrente, não logramos identificar qualquer montante aí inscrito que possamos atribuir ao sócioRN...... .
Em qualquer caso, esses balanços não nos merecem credibilidade já que, relativamente ao mesmo período e para reflectir a mesma realidade temos dois documentos, ambos assinados pela gerência e pelo contabilista certificado, mas cujo teor não é coincidente, facto que não foi justificado e que nos suscita fundadas reservas.
Finalmente se diga que o ROC, no Relatório de Auditoria, no ponto 4. das “Bases para a opinião com reservas” (fls. 204 verso) expressamente refere que o facto de estar a auditar as contas da sociedade requerida pela primeira vez, não lhe permite asseverar que os saldos de abertura e os comparativos com o exercício anterior estão isentos de erros e distorções materialmente relevantes.”

Com efeito, dada a natureza particular dos documentos em causa, é legítimo e razoável concluir que o Tribunal exigisse mais do que uma simples declaração assinada por um contabilista que, só por si, não tem qualquer valor probatório. Aliás, todos os documentos mencionados pela Recorrente não passam de simples documentação particular cujo teor em nada contradiz o que foi dado por assente pela 1ª instância.

Assim, quanto ao documento nº 11 junto com o requerimento inicial (acta notarial da assembleia geral de 22 de Fevereiro de 2021), pese embora se trate de um documento autêntico, nos termos do artigo 371º, nº 1 do Código Civil, apenas “ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…), ou que nele são testados com base nas suas percepções (…)”; mas essa força probatória do documento “não tem qualquer repercussão na validade ou na veracidade da declaração documentada…”.[8] Por isso, não tendo a acta em causa qualquer força probatória relativamente à veracidade das declarações do sócio gerente da requerida que nela constam, ficam sujeitas à livre apreciação do tribunal, pelo que não subsiste qualquer contradição entre tal documento e o que conta da alínea k).

O mesmo se diga relativamente ao documento nº 20 junto com a oposição, que apenas prova que o contabilista que a assina teria feito aquela declaração, não tendo qualquer valor probatório quanto à veracidade das suas declarações. Trata-se de um simples documento escrito em que alguém, que poderia ter deposto como testemunha, afirma um facto não confirmado por qualquer prova testemunhal (designadamente pelo próprio) ou documental. Corresponde, sem dúvida, a um depoimento testemunhal escrito, que não cumpre os requisitos previstos no artigo 518º do CPC e que, como tal, não tem qualquer valor probatório. Acresce que a sentença justifica de forma correcta a irrelevância probatória que atribuiu àquela declaração.

Os demais documentos mencionados pela Recorrente na conclusão 5ª são simples documentos particulares (cartas trocadas entre os sócios) que em nada contrariam a factualidade dada como não provada na alínea k), sendo certo que as declarações de factos favoráveis ao declarante em documento assinado pelo próprio (designadamente a declaração do sócio gerente G..... de que pretenderia amortizar o empréstimo de € 90.747,55, a título de realização de suprimentos), não revestem qualquer valor probatório (artigo 376º, nº 2 do Código Civil).

Cumpre, por fim, referir que não se vislumbra qualquer contradição directa ou indirecta entre o que foi dado como não provado nessa alínea e o que foi considerado como provado nos pontos 51), 27), 46, 49) e 50) e não provado na alínea d).

Na verdade, há contradição quando existe uma relação de oposição entre a afirmação e a negação da mesma coisa.

Ora, em nenhum daqueles factos dados como provados se afirma o que se nega na alínea k) dos factos não provados. Na alínea 51) apenas se reproduz (desnecessariamente, diga-se) o teor da declaração do contabilista de 29/03/2021; não se afirma, note-se, que o teor dessa declaração é verdadeiro (ou, que está provado), o que é muito diferente. Nas alíneas 27), 46), 49) e 50), de relevante, apenas se afirma (na primeira) que a Requerida “tem um empréstimo de, aproximadamente, € 90.747,55 que foi amortizado pelo sócio gerente G.....”. Também aqui não há qualquer contradição: a alínea k) dos factos não provados refere-se a “suprimentos” de valor superior a €200.000,00, enquanto aquelas se referem a “empréstimo” de valor muito inferior àquele. Trata-se, pois da mesma coisa ou do mesmo facto, mas de afirmações qualitativa e quantitativamente diferentes, desde logo, por estarem em causa conceitos jurídicos distintos.[9] Na alínea k) dos factos não provados refere-se contratos de suprimento; da alínea 27) dos factos provados deduz-se apenas que um terceiro teria emprestado € 90.747,55 à sociedade, que o sócio gerente RN..... teria amortizado.

Por tudo isto, também não ocorre qualquer contradição com o facto dado como não provado na alínea d).

Assim, não vemos como pode ser afastada a motivação da sentença, que nos parece correcta, deste modo se indeferindo, nesta parte, a impugnação factual.

2.2.2.-Pretende ainda a Recorrente que a alínea y) da matéria de facto não provada passe a integrar os factos provados, por estar em contradição com os factos provados mencionados sob os nºs 57 a 61, contrariando ainda o doc. nº 31 junto com a oposição.
Ora, da referida alínea y) consta que “em Dezembro de 2020, após o falecimento do sócio gerente F....., o gerente G..... deu indicação à imobiliária para retirar o imóvel do mercado”. Segundo o vertido na motivação, apenas se provou o que consta do facto 61), isto é, que “em 30.3.2021 não estava disponível qualquer promoção do “N1Hostel Apartments and Suites” em Santarém.”

Como é evidente, não há qualquer contradição entre ambos os factos, desde logo, porque se referem a realidades diversas, e não se percebe qualquer relação de causa/efeito entre eles. Não se diz, nem se explica a causa da indisponibilidade de qualquer promoção. Além do mais, a factualidade provada mencionada nos nºs 57 a 61 não corrobora, sem mais, o facto (não provado) mencionado na alínea y). Aquele comportamento não provado do gerente G..... não é uma simples dedução daquela situação, porque, apesar dela, poderia nada fazer.

Pelos motivos supra referidos, não existe qualquer contradição entre o teor do doc. nº 31 junto com a oposição e a motivação da sentença, uma vez que esta dá como provado, precisamente, o que consta do documento, cujo teor de forma alguma abrange o facto não provado da alínea y).

Assim, também nesta situação, não vemos motivos para julgar procedente a impugnação, razão pela qual se mantém a matéria de facto dada como não provada nos seus precisos termos.

2.2.3.-Por fim, entende a Recorrente que o Tribunal voltou a errar ao dar como provado o facto constante do nº 29 que consta do seguinte: “Não havia suprimentos do sócio G....., no montante de €200.000,00, para converter em prestações suplementares, conforme foi decidido pelo mesmo na assembleia geral de 22 de Fevereiro de 2021.”

No entendimento da Recorrente esse facto (retirado do artigo 26º do requerimento inicial) contraria o doc. nº 16 da RI (e alegação da Requerente constante do artigo 24º do RI, na parte em que a mesma afirma que o empréstimo foi liquidado pelo sócio gerente G.....), o doc. nº 11 do RI e os docs. 15 a 18 e 20 a 22 juntos com a oposição, estando ainda em contradição com os pontos 27 (parte final), 46, 49, 50 e 51 dos factos provados e com os pontos c) e d) dos factos não provados. Refere, por fim, que da prova gravada (depoimentos das testemunhas C..... e M.....) resulta inequívoco que: a) sempre que a sociedade necessitava de empréstimo para manter/fomentar a sua actividade e/ou era necessário pagar responsabilidades da sociedade, os sócios aportavam suprimentos; b) existiam suprimentos do sócio G..... em valor superior a € 200.000,00.
Contrariamente ao sustentado pela Recorrida, o Tribunal considerou assente aquele facto negativo, precisamente, pela ausência de prova credível demonstrativa do pegamento pelo sócio de responsabilidades à sociedade ou da transferência pelo sócio para a sociedade de um determinado valor de que esta necessitasse para fazer face às suas obrigações.

Com efeito, consta da motivação que:
“(…)
Consideramos o facto 29 assente porquanto não foi apresentada prova que demonstrasse o pagamento pelo sócio de responsabilidades da sociedade ou a transferência pelo sócio para a sociedade de um determinado valor de que a mesma necessitou para fazer face às suas obrigações. Tal prova não foi realizada.
Por outro lado, também não foi demonstrado que existissem quais[quer] créditos do sócio sobre a sociedade cujo vencimento tenha sido diferido, por acordo.
De resto, analisados os balanços apresentados, por requerente (fls. 38 verso) e requerida (fls. 203 verso), concretamente, na rubrica de passivo não corrente, não logramos identificar qualquer montante aí inscrito que possamos atribuir ao sócio RN..... .
Em qualquer caso, esses balanços não nos merecem credibilidade já que, relativamente ao mesmo período e para reflectir a mesma realidade temos dois documentos, ambos assinados pela gerência e pelo contabilista certificado, mas cujo teor não é coincidente, facto que não foi justificado e que nos suscita fundadas reservas.
A apoiar as nossas reservas note-se que o ROC, no Relatório de Auditoria, no ponto 4. das “Bases para a opinião com reservas” (fls. 204 verso) expressamente refere que o facto de estar a auditar as contas da sociedade requerida pela primeira vez, não lhe permite asseverar que os saldos de abertura e os comparativos com o exercício anterior estão isentos de erros e distorções materialmente relevantes.
Por outro lado, não foi ouvido o TOC, que poderia ter explicado se esses valores estavam inscritos na contabilidade da sociedade e com que base documental, sendo que não demos valor à declaração datada de 29.3.2021, junta a fls. 134 verso, como meio de prova da veracidade dos factos que menciona.
Com efeito, desconhecemos qualquer atribuição de competência aos Contabilistas Certificados, mormente constante do seu Estatuto, para certificar factos.
Tanto quanto sabemos, o Contabilistas Certificados tem a função de planificar, elaborar e realizar a contabilidade de uma empresa, de acordo com as normas contabilísticas aplicáveis e em vigor, sendo ainda o ponto de ligação entre as empresas e a Autoridade Tributária.
Nas suas atribuições não se inclui a possibilidade de certificar qualquer facto, ainda que compreendido no âmbito das respectivas funções.”

Esta opção do Tribunal não poderá ser censurada, tendo em conta a regra da livre apreciação das provas constante do nº 5 do artigo 607º do CPC, a que está sujeita, desde logo, a prova testemunhal (artigo 396º do Código Civil). Por isso, é evidente que não tem o Tribunal de aceitar como verdadeiro, sem mais, o que é afirmado pelas testemunhas sobre um determinado facto.[10] De todo o modo, o Tribunal explicou devidamente as razões para não dar relevância aos depoimentos das testemunhas: a primeira, enquanto contabilista da requerida, desconhecia qual era o procedimento que antecedia a comunicação que lhe era feita da realização dos suprimentos; a segunda, sendo filho do sócio gerente da Requerida e por estar de relações cortadas com a Requerente, não mereceu qualquer crédito por parte do Tribunal. Esta também foi a nossa convicção após ouvirmos a gravação daqueles depoimentos.

Acresce ainda que relativamente à prova documental mencionada pela Recorrente temos a dizer que em nada altera a convicção do Tribunal, uma vez que do seu teor não se depreende qualquer facto que contradiga o que foi dado como provado no nº 29. Para além do que já havíamos dito relativamente às alíneas k) e y) dos factos não provados, cumpre relembrar que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo certo que nestas provas também se incluem os documentos particulares –  como são a maior parte dos referidos pela Recorrente –, a não ser que os factos só se possam provar por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes, o que não é o caso dos autos, uma vez que nem a declaração do contabilista constante do documento nº 20 junto com a aposição, nem a declaração do sócio gerente vertida na acta notarial da assembleia geral de 22 de Fevereiro de 2021, que constitui o documento nº 11 junto com o requerimento inicial, constitui prova plena da veracidade dessas declarações, porque não têm qualquer valor probatório as declarações de factos favoráveis ao declarante, como é o caso (artigo 376º, nº 2 do Código Civil).

Quanto aos  demais documentos (docs. nºs 15 a 18, 21 e 22 da oposição), concordámos com a Recorrida quando refere que deles apenas resulta que o sócio gerente pretendia amortizar o empréstimo de € 90.747,55, a título de realização de suprimentos, e que nada foi deliberado, nem acordado, nesse sentido, com o outro sócio, entretanto falecido.

Também não se vislumbra qualquer contradição com o que consta dos nºs 27 (parte final), 46, 49, 50 e 51 dos factos provados e das alíneas c) e d) dos factos provados, pelas razões já supra mencionadas.

Assim, sendo certo que o Tribunal de recurso pode formar a sua própria convicção  por referência  à prova constante dos autos e, com base nela, determinar a alteração do julgamento de facto, o certo é que apenas o poderá fazer se entender que a prova foi mal apreciada e/ou interpretada ou se constarem dos autos elementos probatórios relevantes que não foram considerados.

Não é essa a conclusão que este Tribunal retira da motivação da sentença, que nos parece correcta, assim, se indeferindo também nesta parte a impugnação da matéria de facto.

2.2.4.-Veio a Recorrida requerer a ampliação do âmbito do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 636º do CPC, para conhecimento da inadmissibilidade do documento nº 20 da oposição, por corresponder a um depoimento testemunhal apresentado por escrito, sem obedecer aos pressupostos e requisitos previstos nos artigos 518º e 519º do CPC, com a consequente eliminação do facto provado no nº 51 da fundamentação de facto da sentença recorrida.

Com efeito, como refere ABRANTES GERALDES, uma das possibilidades de ampliação do âmbito de recurso previstas no nº 2 do artigo 636º do CPC “respeita à matéria de facto considerada provada ou não provada e que se mostre relevante para a defesa dos interesses do recorrido, caso sejam acolhidos os fundamentos de facto ou de direito apresentados pelo recorrente para sustentar o seu recurso”.[11]

Ora, como não foram acolhidos na totalidade os fundamentos da impugnação da matéria de facto alegados pela Recorrente, não tem cabimento essa pretendida ampliação. Na verdade, apenas faria sentido apreciar as questões suscitadas se, porventura, fossem acolhidos os argumentos arrolados pela Recorrente com repercussões na modificação recorrida, o que não acontece nos presentes autos.[12]

De todo o modo, não cumpre agora apreciar a admissibilidade ou inadmissibilidade do documento nº 20  junto com a oposição, quando nada se disse sobre a legalidade das provas requeridas, durante a audiência final.
Em suma, não se conhece da pretendida ampliação do âmbito do recurso.

3.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Na sentença deram-se por assentes os seguintes factos:
1.– A REQUERIDA tem sede na Rua…, em Lisboa.
2.–A requerida tem por objecto social a exploração de estabelecimentos hoteleiros com restaurante; indústria de construção civil, empreitadas gerais, compra e venda de propriedades rústicas ou urbanas e representações; transporte em veículos ligeiros até 2500Kg; organização de actividades de animação turística.
3.–A requerida foi constituída em 1971 e teve como sócios fundadores, todos nomeados gerentes aquando da respectiva constituição:
a.- F....., que adquiriu a quota na qualidade de casado no regime da comunhão geral de bens com M..... ;
b.-J.;
c.-JD;
d.-C.;
e.-H.;
f.-R.;
g.-MM.;
h.-AS..

4.–Por Ap.50/921209 mostra-se registada a cessão da quota no valor de Esc.6.400.000$00, pertencente a JD. para G..... .
5.–Em 7.7.2011 mostra-se registado o aumento do capital social da requerida, para o valor de €280.000,00, dividido em duas quotas, no valor de €140.000,00 cada uma, tituladas por F..... e G..... .
6.–Após essa data, F..... e seu filho, G....., passaram a ser os únicos sócios e gerentes da requerida, que se vinculava pela assinatura dos dois.
7.–Pela Ap. 1/20210112, foi registada a cessação de funções de gerente de F....., por óbito.
8.–Por menção de depósito 154/2021-02-22 foi registada a amortização da quota de F..... .
9.–Por Ap.26 de 20210305 mostra-se registada a alteração do contrato de sociedade passando a ter a denominação de… Certidão da matrícula a fls. 81 e ss. e 116 e ss.
10.–Requerida foi citada a 22.3.2021.
11.–O Pacto Social da requerida, na sua versão originária, tinha a redacção constante do documento com cópia a fls. 121 verso, que aqui se considera integralmente reproduzido.
12.–Do contrato de sociedade da requerida, na versão datada de 31.3.2017, constam, entre outros, os seguintes artigos:
“(…) Artigo Quarto
O capital social, inteiramente subscrito e realizado em dinheiro, é de duzentos e oitenta mil euros, e corresponde à soma de duas quotas iguais de cento e quarenta mil euros, tituladas cada uma delas em nome de cada um dos sócios F..... e G..... .
Artigo Quinto
Serão exigidas prestações suplementares de capital, além disso, os sócios poderão fazer à sociedade os suprimentos de que ela carecer, mediante os juros e condições que deliberarem e constarem da ata para o efeito elaborada.
(…)
Artigo Sétimo
A gerência e representação da sociedade, em juízo ou fora dele, ativa e passivamente, fica a cargo dos sócios F..... e G....., desde já nomeados gerentes, com ou sem remuneração, conforme for deliberado em Assembleia Geral, sendo sempre necessárias as assinaturas conjuntas dos dois sócios gerentes a obrigar a sociedade em todos os seus atos e contratos.
(…)
Artigo Nono
A sociedade não se dissolverá por morte ou interdição de qualquer dos sócios, continuando com os sobrevivos ou capazes e, caso não seja amortizada a respetiva quota, com os herdeiros ou representantes dos falecidos ou interditos, devendo, nesse caso, estes nomear um que a todos represente enquanto a respetiva quota estiver indivisa.
(…)
Artigo Décimo Primeiro
A sociedade poderá amortizar quotas nos casos seguintes:
a)- Por acordo;
b)- Por morte ou interdição de qualquer sócio, se a sociedade assim o deliberar;
c)- A quota do sócio que deixe de cumprir as suas obrigações sociais, nomeadamente a entrada de prestações suplementares de capital, ou prejudique a sociedade no seu interesse ou crédito;
d)- A quota que for arrestada, penhorada, arrolada, dada em penhor ou por qualquer forma sujeita a apreensão ou venda judiciais.
Parágrafo 1.º Nos casos previstos nas alíneas b), c) e d) do presente artigo, o preço da amortização será o valor de balanço, especialmente dado para o efeito, for atribuído a quota a amortizar, acrescido da quota-parte nos fundos de reserva legal e especiais.
Parágrafo 2.º O pagamento do valor da quota assim obtido será pago em quatro prestações semestrais.”

13.–O sócio F..... faleceu em 2 de Dezembro de 2020, com 89 anos de idade na condição de casado no regime da comunhão geral de bens com M..... .
14.–Deixou como seus únicos herdeiros, a sua filha, REQUERENTE, a sua mulher, M....., e o seu filho, G..... .
15.–Por testamento lavrado em 1 de Agosto de 2019, a REQUERENTE foi nomeada por seu pai, F....., sua testamenteira “(…) com as atribuições previstas na lei e, ainda, designando-a como representante comum dos herdeiros contitulares da quota do testador na sociedade (…), por minha morte, ao abrigo do disposto no artigo 223.º, números 1 a 6, do Código das Sociedades Comerciais, podendo essa exercer perante a sociedade todos os poderes inerentes à quota indivisa, incluindo poderes de disposição, podendo, assim, praticar atos que importem a extinção, alienação ou oneração da dita quota, aumento de obrigações e renúncia ou redução dos direitos dos sócios”.
16.–Por carta registada com aviso de recepção, datada de 17.12.2020 e recebida em 21 de Dezembro de 2020, remetida por REQUERENTE a G....., enquanto gerente da requerida foi comunicado:
“Venho por este meio, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 222.º, n.ºs 1 e 2, e 223.º, n.ºs 4 a 6, do Código das Sociedades Comerciais, comunicar-te que, por testamento público outorgado no dia 1 de agosto de 2019, fui nomeada pelo nosso falecido Pai, Sr. F....., sua testamenteira e representante comum dos herdeiros contitulares da sua quota na sociedade REQUERIDA, com o valor nominal de 140.000 euros, cabendo-me, assim, exercer perante a sociedade todos os poderes inerentes a essa quota indivisa, incluindo poderes de disposição, e devendo todas as comunicações e declarações da sociedade que interessem aos contitulares ser-me dirigidas.”
17.–Em 5 de Fevereiro de 2021, a REQUERENTE recebeu uma carta datada de 3 de Fevereiro de 2021, cuja cópia se mostra a fls. 37 verso, que lhe foi enviada pelo gerente da requerida, G....., com a convocatória para uma reunião da assembleia geral da sociedade requerida a realizar no dia 22 de Fevereiro de 2021, pelas 10h, na F. – Contabilidade, Lda., tendo como ordem de trabalhos:
Ponto Um: Deliberação sobre o eventual exercício do direito à amortização da quota do sócio F....., de acordo com o previsto no artigo 11.º dos Estatutos da sociedade.
Ponto Dois: Deliberação sobre a forma e condições para o exercício da amortização daquela quota, eventual necessidade de reduzir o capital, aquisição pela sociedade ou por sócio.”
18.–Em anexo à referida carta, vinha o documento denominado “Balanço Contabilístico em 02/12/2020”, subscrito pela gerência e pelo contabilista certificado, cuja cópia se mostra a fls. 38 verso.
19.–Do balanço enviado com a convocatória para a assembleia de 2.12.2020 consta:
a.- uma situação líquida (capital próprio) de €303.910,48,
b.- um capital social de €280.000,00, e
c.- uma reserva legal de €29.927,87.
20.–No balanço que serviu de base à fixação da contrapartida, o valor total dos imóveis da sociedade, correspondente ao seu custo histórico, é de €1.476.357,38 (activo não corrente + inventários).
21.–No dia 22 de Fevereiro de 2021, realizou-se a assembleia geral da requerida, na qual estiveram presentes G....., na qualidade de sócio titular de uma quota com o valor nominal de 140.000,00 €, e a ora requerente, na qualidade de contitular da quota deixada pelo sócio F....., com o mesmo valor nominal, e representante comum dos herdeiros deste.
22.–Na acta da assembleia, cuja cópia se mostra a fls.39 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pode ler-se, além do mais:
“Entrando-se no primeiro ponto da ordem de trabalhos foi aberta a discussão pelo sócio G....., que passou a ler a seguinte proposta: O abaixo-assinado, G....., na qualidade de sócio gerente da sociedade (REQUERIDA), com o número único 5.. ... ... de pessoa coletiva e de matrícula da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com sede (…), no âmbito ponto um da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da Sociedade que tem lugar neste dia vinte e dois de fevereiro, pelas dez horas, na Av… Lisboa por impossibilidade de realização na sua sede da Sociedade apresenta a seguinte proposta de deliberação:
É proposta a aprovação da seguinte deliberação no âmbito do ponto um da ordem de trabalhos quanto ao exercício do direito à amortização da quota do sócio F....., de acordo com o previsto no artigo 11. º dos estatutos da Sociedade, nos seguintes termos:
É proposta, em virtude da tomada de conhecimento por parte da Sociedade, do falecimento do sócio F..... no passado dia dois de dezembro de dois mil e vinte, constatando-se que, nos termos do artigo 11. º dos estatutos da Sociedade, se verifica uma situação de amortização objetiva compulsiva estatuariamente prevista e, tal como sempre sucedeu no passado aquando do falecimento de outros sócios da Sociedade, se torna necessário cumprir o estipulado no referido artigo 11. º dos estatutos da Sociedade, a tempestiva amortização - cumprindo o prazo de noventa dias - da quota com valor nominal de cento e quarenta mil euros, representativa de cinquenta por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade, pertencente ao sócio falecido F......, com extinção da mesma e sem redução de capital, nos termos no paragrafo 1. º do referido artigo 11. º dos estatutos da Sociedade.
(…)
O Presidente colocou então a votação a referida proposta após o que deu a mesma por aprovada por unanimidade dos votos emitidos, todos por si mesmo, enquanto sócio, em virtude de não ter sido admitido o voto de (REQUERENTE), pelas aludidas razões.
Conferida a palavra a (REQUERENTE), a mesma proferiu a seguinte declaração:
Não aceito os termos em que deliberação foi tomada.
De seguida, passou-se ao ponto segundo da ordem de trabalhos. O sócio G..... informou que, no seguimento da amortização de quota aprovada no ponto anterior, propunha que a mesma fosse efetivada nas seguintes condições, que passou a ler:
É proposta, em sequência da decisão de amortizar definitivamente a quota com valor nominal de cento e quarenta mil euros, representativa de cinquenta por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade, pertencente ao sócio falecido F..... em virtude da verificação de situação objetiva estatuariamente prevista e idónea a desencadear a amortização compulsiva, tempestivamente no prazo dos noventa e dias estipulados para o efeito, a amortização da citada quota com valor nominal de cento e quarenta mil euros, representativa de cinquenta por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade, pertencente ao sócio falecido F....., de acordo com o parágrafo 1. º do referido artigo 11. º dos estatutos da Sociedade, com extinção da mesma e sem correspondente redução de capital social, a efetivar por referência às seguintes condições:
a)-Ressalva do capital social: para estrita observância e cumprimento do requisito previsto no n. º 1 do artigo 236. º do CSC, concretamente, por forma a garantir que, após satisfeito o pagamento da contrapartida da amortização, a situação líquida da Sociedade não fique inferior à soma do capital e da reserva legal, convertem-se parte dos suprimentos realizados pelo sócio G......, registados contabilisticamente na rubrica 2532, no montante de duzentos mil euros, em prestações suplementares;
b)-Contrapartida da amortização: (i) a contrapartida da amortização da quota com valor nominal de cento e quarenta mil euros, representativa de cinquenta por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade, pertencente ao sócio falecido F....., de acordo com o histórico e prática habitual instituída na Sociedade, determinado estatuariamente a priori ao abrigo da primeira parte do número 1 do artigo 235.º do CSC, corresponde ao valor de balanço especialmente dado para o efeito que é atribuído à quota a amortizar, acrescido da quota-parte nos fundos de reserva legais e especiais, sendo que, in casu, de acordo com o balanço especialmente elaborado pelo TOC da Sociedade reportado a dois de Dezembro de dois mil e vinte e disponibilizado a todos os sócios, o valor da contrapartida da amortização é de cento e cinquenta e oito mil oitocentos e quarenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos, o qual deverá ser pago pela Sociedade proporcionalmente a cada um dos herdeiros do sócio falecido, em quatro prestações semestrais. Ficará a aguardar que a representante comum dos herdeiros contitulares da quota do sócio falecido indique qual a conta bancária da herança indivisa para a qual devem ser transferidos os quatro pagamentos semestrais que equivalem à proporção do valor devido a cada um dos herdeiros decorrente do valor da contrapartida pela amortização da ditada quota;
c)-Amortização: Assim e tendo em conta a verificação de situação objectiva estatuariamente prevista e idónea a desencadear a amortização compulsiva, e ainda tempestivamente no prazo dos noventa dias estipulados para o efeito, foi colocada a votação uma proposta de amortização da citada quota com valor nominal de cento e quarenta mil euros, representativa de cinquenta por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade, registada em nome do sócio falecido F....., de acordo com o parágrafo primeiro do referido artigo 11. º dos Estatutos da Sociedade, com extinção da mesma e sem redução de capital social, declarando o sócio gerente G....., sob sua responsabilidade, que à data da presente deliberação, a situação líquida da Sociedade, depois de satisfeita a contrapartida da amortização, não ficará inferior à soma do capital e da reserva legal, o que resultará no aumento proporcional da quota pertencente ao sócio remanescente G....., o qual detinha uma quota com o valor nominal de cento e quarenta mil euros, representativa de cinquenta por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade, e passa atualmente a deter uma quota com o valor nominal de duzentos e oitenta mil euros, representativa de cem por cento do capital social e direitos de voto da Sociedade.
É proposta, continuando no mesmo ponto, e para os efeitos do artigo 234.º n. º 1 e 2, do CSC, em simultâneo à amortização compulsiva, a comunicação presencial à representante dos herdeiros do sócio falecido da correlata amortização, e extinção, da quota detida pelo sócio falecido, tornando-se a amortização e extinção da quota imediatamente eficaz.
Conferida a palavra a (REQUERENTE), a mesma proferiu a seguinte declaração:
Não aceito este valor, nem este balanço não foi feito por um ROC independente.
G..... declarou ainda que:
O balanço foi elaborado por um TOC, mas temos um ROC independente a acompanhar.
REQUERENTE reiterou que o balanço que lhe foi remetido não está certificado por um ROC.
O Presidente reiterou que (REQUERENTE) estava impedida de votar (…).
Após emissão dos votos, deu a mesma proposta por aprovada por unanimidade dos votos emitidos, todos por si mesmo, enquanto sócio, em virtude de não ter sido admitido o voto de (REQUERENTE).(…)”
23.–A requerida explora o “N1 Hostel…”, em…, o qual ocupa um prédio urbano do qual é proprietária, tendo sido posto à venda pelo sócio gerente G..... na mediadora Sotheby’s, pelo preço de €2.699.200,00, com a menção a 556,2m2.
24.–Em 2018, o valor patrimonial atribuído pela AT ao imóvel propriedade da requerida, onde está instalado o Hostel, com a área de implantação de 556,2000 m2, foi de € 611.296,20.
25.–O imóvel é composto por 2 andares ou divisões com utilização independente, sendo uma delas a “AL” e a outra situada no R/C, a primeira com o valor patrimonial de €485.010,00 e a segunda com o valor patrimonial de €126.286,20.
26.–A requerida, é ainda proprietária da fracção autónoma onde tem a sua sede, cujo valor patrimonial tributário é de €47.441,10, por referência a 2018, valor muito inferior ao seu valor de mercado.
27.–Os passivos externos conhecidos à requerida são um empréstimo de €115.606,10, em que são mutuantes o Turismo de Portugal e o BCP, que onera o imóvel onde está instalado o Hostel e um outro empréstimo de, aproximadamente, €90.747,55 que foi amortizado pelo sócio gerente G..... .
28.–As dívidas a fornecedores inscritas no balanço mantêm-se desde 2007 e são fictícias.
29.–Não havia suprimentos do sócio G....., no montante de €200.000,00, para converter em prestações suplementares, conforme foi decidido pelo mesmo na assembleia geral de 22 de Fevereiro de 2021.
30.–O balanço que serviu de base à fixação do valor da contrapartida da amortização da quota foi elaborado pelo contabilista certificado da sociedade, Dr. ..... .
31.–Não foi deliberada a sua aprovação pelos sócios da requerida.
32.–As últimas contas da requerida que foram aprovadas pelos sócios F..... e G..... respeitam ao exercício de 2016.
33.–No dia 18 de Dezembro de 2018, foi efectuado um registo por depósito das contas da requerida referentes ao exercício de 2017, o qual foi cancelado no dia seguinte.
34.–Em 22 de Janeiro de 2019, F..... recebeu uma carta enviada pelo filho G....., datada de 18 de Janeiro de 2019, com a convocatória para uma reunião da assembleia geral da requerida a realizar no dia 19 de Fevereiro de 2019, pelas 10h, na F..... – Contabilidades, Lda., sita na Rua…, Lisboa, tendo como ordem de trabalhos deliberar sobre o relatório de gestão e as contas do exercício de 2017 e respectiva proposta de aplicação de resultados e, ainda, com cópias do relatório de gestão, datado de 30 de Março de 2018 e subscrito apenas pelo G....., e das referidas contas (balanço e demonstração de resultados), subscritas pelo G..... e pelo técnico oficial de contas, sem data.
35.–No dia 18 de Fevereiro de 2019, véspera da data agendada para a aludida reunião da assembleia geral, G..... informou F..... que escusava de comparecer na mesma porque ele, G....., não iria lá estar.
36.–F..... deu poderes à (REQUERENTE), para o representar na referida assembleia geral.
37.–No dia 19 de Fevereiro de 2019, às 10 horas, a REQUERENTE compareceu no local indicado na convocatória para a realização da reunião da assembleia geral.
38.–G..... apareceu pelas 10h15m e, perante o contabilista certificado da requerida, o Dr..... repetiu que tinha desconvocado a assembleia geral, o que “toda a gente sabia”, e recusou-se a realizá-la.
39.–O sócio gerente G..... não voltou a convocar a assembleia geral da requerida com vista à apreciação do relatório de gestão e das contas do exercício de 2017 e respectiva proposta de aplicação de resultados.
40.–O exercício económico da requerida corresponde ao ano civil, encerrando a 31 de Dezembro de cada ano, e as suas contas não estão sujeitas a regimes especiais, designadamente à obrigação de consolidação ou ao método da equivalência patrimonial.
41.–Em 3.3.2021, foram depositadas as contas da sociedade requerida referentes ao exercício de 2017.
42.–As quotas dos sócios anteriormente falecidos não foram amortizadas compulsivamente pela requerida, foram cedidas aos sócios F..... e G..... .
43.–O preço da cessão foi acordado com os herdeiros dos sócios anteriormente falecidos.
44.–O sócio gerente G..... utilizou para o giro comercial da sociedade requerida uma conta pessoal sua na Caixa Geral de Depósitos, para a qual eram transferidos ou depositados todos os pagamentos dos clientes do Hostel e através da qual paga a fornecedores e a trabalhadores, sem que alguma vez disso tenha informado o seu falecido Pai.
45.–Durante alguns anos, até à entrada de G..... como sócio, para desenvolver a sua actividade a sociedade requerida não se socorria de empréstimo bancário, cada sócio contribuía com montante proporcional à sua quota no capital da sociedade e no momento da venda dos imóveis o produto obtido com a venda era distribuído entre os sócios na proporção da sua participação social.
46.–Era comum, quando a sociedade requerida estava descapitalizada serem feitos suprimentos, como tal registados na conta de suprimentos, mediante talão de depósito ou transferência para ou na conta da sociedade.
47.–O de cujus sempre foi pessoa activa e determinada quanto aos negócios da sociedade tendo ao longo dos anos assumido papel preponderante na condução dos negócios sociais.
48.–Na acta das Assembleias Gerais de Sócios de número 42, de 31.3.2017, foi deliberada a conversão de suprimentos – já existentes – em prestações suplementares.
49.–No escrito datada de 8.6.2020 dirigido ao gerente F..... e assinado por “G.....”, é referido que: “A M. (REQUERIDA), tal como referiu, não tem em caixa o capital necessário para amortizar o empréstimo em questão, pelo que eu irei aprovisionar a conta bancária da empresa com capitais pessoais a título de suprimentos.”
50.–No escrito datada de 17.6.2020 dirigido ao gerente F. e assinado por “G”, é referido que: “(…) isto porque, quando falo em suprimentos, está subentendido que irei adoptar aquilo que sempre foi prática da M. (REQUERIDA) nesta matéria, mesmo antes de eu integrar a sociedade. Sei que o Pai está mais do que ao corrente de como os suprimentos sempre foram processados na nossa empresa e seria natural e expectável que tivesse assumido que eu iria atuar da mesma forma. Caso não o tenha feito, confirmo-lhe agora isso mesmo.”
51.–Do escrito denominado “DECLARAÇÃO”, datado de 29.3.2021 e assinado por: H....., Membro da OCC n.º, com assinatura certificada pela Ordem dos Contabilistas Certificados consta: “Eu, H....., (…), Contabilista Certificado n.º....1, na qualidade de Contabilista Certificado da empresa M. (…) NIF , atesto que, à data de 22/02/2021, tem o sócio G.....N....., NIF, mais de 200.000,00 EUROS na sua conta de suprimentos.”
52.–Foi elaborado o “Relatório de Auditoria - Período Compreendido entre 1 de Janeiro de 2020 e 2 de Dezembro de 2020”, com cópia a fls. 204 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
53.–O Relatório de Auditoria elaborado por ROC, do período compreendido entre 1 de Janeiro de 2020 e 2 de Dezembro de 2020 teve por base de análise a demonstração de resultados por natureza e o balanço que se mostram a fls. 203 e verso, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
54.–No balanço que se mostra a fls. 203 verso consta, além do mais:
a.- uma situação líquida (capital próprio) de €317.694,49,
b.- um capital social de €280.000,00, e
c.- uma reserva legal de €29.927,87.
55.–Os gerentes da sociedade requerida F..... e G..... estavam desavindos.
56.–Foram instaurados por ou contra F..... e G..... os seguintes processos judiciais:
- Acção especial de suspensão e destituição de gerente que o sócio gerente F. propôs contra o sócio gerente G....., que correu temos perante o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 6, sob processo n.º 4885/19.9T8LSB.
- Acção especial de suspensão e destituição de gerente que o sócio gerente G..... propôs contra o sócio gerente F....., que correu temos perante o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 6, sob processo n.º 6812/20.1T8LSB.
- Acção especial de Inquérito judicial que o sócio gerente F..... propôs contra a Requerida no dia 24/02/2020, que correu temos perante o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 4, sob processo n.º 5722/20.7T8LSB;
- Acção especial de convocação de assembleia de sócios que o sócio gerente F..... propôs contra a Requerida e contra o sócio gerente G....., que correu temos perante o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 6, sob processo n.º 5731/20.6T8LSB.
57.–Foi celebrado um contrato de mediação imobiliária com a imobiliária Sotheby´s.
58.–O “N1 Hostel” esteve disponível para venda desde meados de 2018.
59.–Nos anos em que esteve à venda nunca existiu um interessado sério em fazer realmente negócio.
60.–Em Dezembro de 2020 a Requerida iniciou conversações com a Sotheby’s no sentido de o “N1 Hostel” ser retirado de venda.
61.–Em 30.3.2021 não estava disponível qualquer promoção do “N1 Hostel” em Santarém.

4.–FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Cumpre agora conhecer da questão fundamental deste recurso, qual seja a de saber se a factualidade dada por assente preenche todos os pressupostos previstos no artigo 380º, nº 1 do CPC para se recorrer à providência cautelar de suspensão de deliberações sociais.
Com efeito, na perspectiva da Recorrente, para além de a decisão impugnada violar uma quantidade apreciável de normas jurídicas (que refere na conclusão 12ª das suas alegações), considera que a factualidade dada por assente não preenche todos os requisitos legais, designadamente, o da exequibilidade da deliberação, a legitimidade substantiva para requerer a providência, o fumus boni juris, o dano apreciável, bem como o requisito da proporcionalidade. Em suma, para a Recorrente, a decisão não cumpre nenhum dos requisitos previstos na lei.
Analisemos, pois, cada um deles, com exclusão do requisito da legitimidade substantiva para requerer a providência, em virtude de já ter sido apreciado e decidido ao conhecermos da legitimidade activa.

4.1.-Como resulta do nº 1 do artigo 380º do CPC, se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, a suspensão da execução dessas deliberações, desde que, para tal, justifique a sua qualidade de sócio e demonstre que essa execução é susceptível de causar um dano apreciável.
Assim, de acordo com aquela norma, são estes os requisitos cumulativos que devem ser preenchidos para ser admissível esta providência cautelar:
a)-estar em causa uma deliberação societária que seja inválida, por violar a lei, os estatutos ou o contrato, o que corresponde ao fumus boni iuris exigido para as demais providências cautelares;
b)-ter o requerente a qualidade de sócio ou de associado da pessoa colectiva em causa;
c)-não ter a deliberação sido já executada; e
d)-resultar da execução dessa deliberação a produção de um dano apreciável.[13]

4.1.1.-Em primeiro lugar, a providência só se justificará quando se demonstre, pelo menos de forma indiciária, a invalidade das deliberações dos sócios, por estas violarem a lei, os estatutos ou o contrato de sociedade, quer sejam anuláveis, quer nulas ou ineficazes.[14]
No que respeita a este requisito, tem sido entendimento da jurisprudência que é suficiente um juízo de probabilidade quanto à invalidade da deliberação societária.[15]
Ora, nas conclusões de recurso a Recorrente sustenta que este requisito não se verifica uma vez que “a intangibilidade do capital social não ficou afectado, porquanto, por forma a garantir que, após satisfeito o pagamento da contrapartida da amortização, a situação líquida da sociedade não ficasse inferior à soma do capital e da reserva legal, converteram-se parte dos suprimento realizados pelo sócio G....., registados contabilisticamente, no montante de duzentos mil euros, em prestações suplementares”.
Só que não é essa a conclusão que se pode retirar da factualidade que o tribunal a quo deu por provada.
Com efeito, nestes autos são impugnadas as deliberações de amortização da quota do sócio falecido, F..... (com a respectiva extinção e sem redução do capital social) e as condições em que tal amortização foi aprovada.
E, sem dúvida, que face ao teor do artigo 11º do pacto social, sobrevinda a morte do referido sócio, a respectiva quota poderia ser amortizada, mas respeitando as condições previstas no artigo 236º, nº 1 do CSC, isto é, “…quando, à data de deliberação, a sua situação líquida, depois de satisfeita a contrapartida da amortização, não ficar inferior  à soma do capital e da reserva legal, a não ser que simultaneamente delibere a redução do seu capital.”[16]No caso, não foi deliberada a redução do capital social.
Seguindo a argumentação que consta da sentença e com a qual se concorda, não se pode chegar à mesma conclusão a que chegou a assembleia geral de sócios que aprovou aquela deliberação, de que, após o pagamento da contrapartida, a situação líquida da sociedade não ficaria inferior à soma do capital e da reserva legal. Considerando o valor de € 303.910,48 (ou de € 317.694,49) de activo líquido e deduzindo-lhe o valor da contrapartida (€ 158.847,25), obteríamos um valor de € 145.063,23, portanto, inferior ao da soma do capital social e de reserva legal (€ 309.927,87). Apesar disso, a deliberação impugnada refere o cumprimento desse requisito.
Assim, concordamos com a sentença impugnada, quando conclui que no caso, a intangibilidade do capital social não foi assegurada, ocorrendo, dessa forma, violação de lei imperativa, o que resulta em nulidade das deliberações tomadas, por força do disposto nos artigos 56º, nº 1, alínea d) e 236º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.
Tanto basta para se concluir pela verificação deste primeiro requisito, sendo certo que à Requerente (ora Recorrida) apenas se impunha que demonstrasse de forma indiciária, a invalidade da deliberação, por ser nula, anulável ou ineficaz.[17] Daí ser desnecessária a apreciação dos demais fundamentos para a invalidade das deliberações invocadas por aquela.[18]

4.1.2.-Exige-se ainda que a deliberação que se pretende paralisar com a providência cautelar de suspensão ainda não tenha sido executada, impedindo, dessa forma, a produção de danos futuros. Com efeito, desde que se mostre que a deliberação já foi totalmente executada, o procedimento destinado a obter a suspensão ficaria sem objecto. O problema está em saber quando é que deve considerar-se concluída a execução do que foi deliberado, o que dependerá, desde logo, da espécie de deliberação a executar.
Assim, para quem “entenda (restritivamente) que a execução consiste na prática (pelo órgão de administração, nomeadamente) dos atos necessários para que essa deliberação obtenha  o seu efeito típico ou direto, serão insuscetíveis de suspensão – porque “já executadas” – quer as deliberações self-executing, quer as deliberações  que com aqueles atos tenham conseguido de facto o referido efeito.” Mas, para quem “entenda (amplamente) que a execução, para efeitos do procedimento cautelar, significa eficácia ou produção de efeitos jurídicos, serão susceptíveis de suspensão as deliberações capazes de produzir efeitos danosos não ou dificilmente reparáveis com a ação principal.”[19]
Seguindo a concepção ampla, maioritariamente defendida pela doutrina,[20] na esteira de COUTINHO DE ABREU, “é possível  serem suspensas (porque não inteiramente “executadas”) deliberações de designação ou de destituição dos administradores; de aumento do capital social; de amortização de quota; de fixação da remuneração dos membros dos órgãos sociais.”[21] Estas deliberações podem ser de “execução imediata” ou de “execução contínua ou permanente”. As últimas podem ser suspensas quando a execução revestir um carácter contínuo e permanente; as primeiras, quando, apesar de já terem sido executadas, continuem a produzir efeitos danosos.[22]
O caso dos autos trata, precisamente, de uma deliberação de amortização da quota do falecido sócio da sociedade requerida, cujo registo já havia sido efectuado no dia 22/02/2021. No entanto, não resulta dos autos que já tivesse sido entregue a correspondente contrapartida.
Assim, de acordo com o que vimos referindo, está correcta a afirmação constante da decisão impugnada de que “se trata de deliberação que não se consome no acto que a torna válida e eficaz mas que produz efeitos que se prolongam no tempo, ou seja, não é de execução instantânea mas sim de execução continuada, isto é, não se esgota com a sua formalização”.[23]
Em suma, consideramos que a deliberação objecto desta providência ainda não se encontra completamente executada. Por isso, improcedem as conclusões 13ª a 15ª das alegações da Recorrente.

4.1.3.-No que respeita ao último dos requisitos para a admissibilidade da providência requerida – “dano apreciável”– volta a Recorrente a apodar a decisão de errada, porque, no seu entendimento, “da factualidade não resulta a prova que a execução das deliberações impugnadas possa causar o dano apreciável, quer para a sociedade, quer para a Requerente …”, o qual já não pode ser evitado.
Ora, para efeito da execução de deliberações sociais cuja suspensão se pede, não se exige a produção de danos irreparáveis ou de difícil reparação. É suficiente a “possibilidade de prejuízos imputáveis à demora no processo comum de anulação de deliberações sociais, de que o processo cautelar de suspensão de deliberações sociais é dependência.[24] Por isso, tanto abrange os danos patrimoniais, como os danos morais, quer se repercutam na sociedade, quer nos sócios.[25] Mas não se exige a verificação de um dano concreto e quantificável, uma vez que, neste âmbito, o tribunal actua no “domínio das conjecturas e probabilidades, em cujo campo o julgamento tem de atender às especiais circunstâncias do caso e de ser feito com base em indícios circunstanciais que levem a concluir pelo maior ou menor grau de probabilidade da ocorrência dos factos apontados como danosos, bem como da importância ou relevância do eventual dano para o poder qualificar de “apreciável”.[26] De todo o modo, o requerente desta providência terá sempre de alegar factos concretos de forma a deles se inferir a existência de prejuízos, bem como a sua gravidade.[27]
No caso dos autos, é legítimo concluir – como concluiu a sentença impugnada - que a extinção da quota decorrente da respectiva amortização, irá privar os herdeiros do sócio falecido de exercerem os seus direitos sociais como contitulares dessa quota, nomeadamente, “de participar nas deliberações dos sócios, concretamente, de aprovação de contas (o que no caso concreto se afigura relevante  considerando que a sociedade não tem contas aprovadas desde 2016) e de aprovação de venda dos activos da sociedade, em especial o “Hostel” que a mesma explora (decisão que poderá ocorrer no período que medeia a decisão deste processo e a decisão a proferir na acção principal), de obter informações sobre a vida da sociedade, de ser designado para os órgãos de administração e de fiscalização da sociedade e de quinhoar nos lucros”, para além de ficarem impedidos de impugnar outras deliberações que vierem a ser tomadas.
Por outras palavras, foram alegados e estão suficientemente indiciados factos concretos que nos permitem concluir que a total execução da deliberação de amortização da quota do sócio falecido poderá causar aos seus herdeiros dano apreciável, no sentido de ser dificilmente reparável sem a suspensão.
Desta feita, improcedem também as conclusões 20ª a 21ª das alegações de recurso da Recorrente.

4.1.4.-Resta, por fim, apreciar o requisito da proporcionalidade, uma vez que, para a Recorrente, há evidente prejuízo para a sociedade com a decretação da suspensão das deliberações, conforme disposto no artigo 381º, nº 2 do CPC.
Segundo esta norma “ainda que a deliberação seja contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato, o juiz pode deixar de suspendê-la, desde que o prejuízo resultante da suspensão seja superior ao que pode derivar da execução”. É, assim, atribuída ao juiz a “faculdade de indeferir a suspensão, mesmo que se verifiquem os requisitos de ilegalidade da deliberação e da natureza apreciável do dano que da sua execução pode resultar, quando entender que o dano resultante da suspensão pode ser mais grave.”[28]
Para a apreciação do justo equilíbrio dos interesses em jogo, deve atender-se ao grau de prejuízo quer de um, quer do outro, mas também ao número dos respectivos titulares.
Mas, no caso dos autos, para além de se saber que ambos os sócios gerentes estavam desavindos e que corriam várias acções intentadas um contra o outro, mais nada de relevante resultou provado que permitisse aferir esse “evidente prejuízo para a sociedade” decorrente da suspensão da execução das deliberações tomadas.
Ora, constituindo a superioridade do alegado prejuízo da requerida um facto impeditivo do direito da Requerente da providência, incumbia à Requerida sociedade (ora Recorrente), o ónus de alegar e provar a respectiva factualidade.[29]
É evidente que a Recorrente não cumpriu aquele ónus.
Por isso, improcedem também a conclusão 22ª das suas alegações de recurso.

Sumário (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil.(acima transcrito)
I. seja inválida, por violar a lei, os estatutos ou o contrato; b) ter o requerente a qualidade de sócio ou de associado da pessoa colectiva em causa; c) não ter a ....

5.–DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim confirmando a sentença.
Custas a cargo da Recorrente.



Lisboa, 08/03/2022


Nuno Teixeira - (Relator)
Rosário Gonçalves - (1ª Adjunta)
Manuel Marques - (2º Adjunto)


[1]Cf. Curso de Direito Comercial, volume II, Das Sociedades, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 535 e ainda a “Anotação ao Artigo 60º” in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I (1º a 84º), 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 732.
[2]Cf. neste sentido, REMÉDIO MARQUES, “Anotação ao artigo 227º” in Código das Sociedade Comerciais em Comentário, volume III, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 452 e ss.
[3]Cf. REMÉDIO MARQUES, “Anotação ao artigo 225º”, in Código das Sociedade Comerciais em Comentário, volume III, pág. 430. Acrescenta ainda que “a quota integrará, desde logo e após aceitação, expressa ou tácita, (artigo 2056º, nºs 1 e 2 do Código Civil), dos sucessíveis chamados (artigo 2050º do Código Civil), a herança indivisa.
[4]Cf. SOVERAL MARTINS, “Anotação ao artigo 223º” in Código das Sociedade Comerciais em Comentário, volume III, pág. 420.
[5]Cf. Deliberações dos Sócios, Almedina, Coimbra, 1993, pág. 500. Segundo este autor, nos casos em que não tenha sido nomeado um representante comum pelos contitulares, é ao cabeça-de-casal (a quem, nos termos do artigo 2079º do Código Civil, incumbe a administração da herança até à sua liquidação e partilha) que pertence a legitimidade para requerer procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, uma vez que se trata de um acto de administração enquadrável nas suas competências.
[6]Esta é a posição maioritária da nossa jurisprudência mais recente, por exemplo o TRP, nos Acórdãos de 15/05/2012 (proc. 720/11.4TYVNG.P1) e de 10/03/2015 (proc. 560/14.9T8AMT.P1), o TRG no Acórdão de 18/01/2018 (proc. 5728/15.8T8VNF.G1) e, por último o já mencionado Acórdão do STJ de 06/10/2009 (proc. 398/09.5YFLSB – 6ª Secção), todos publicados em www.dgsi.pt.
[7]Estes factos não foram incluídos na impugnação da matéria de facto constante desta apelação.
[8]Cf. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, Anotação ao Art. 371º in Comentário ao Código Civil, Parte Geral [coord. de LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOSÉ BRANDÃO PROENÇA], Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 852/853.
[9]O contrato de suprimento, definido no artigo 243º, nº 1 do CSC, é um contrato nominado e típico através do qual o sócio disponibiliza, durante certo tempo, dinheiro ou outros bens fungíveis a favor da sociedade. Mas, “mesmo na modalidade do empréstimo, o contrato de suprimento não se confunde, portanto, com o contrato de mútuo (art. 1142º do CCIV).” – COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume II, Das Sociedades, 7ª Edição, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 319/320.
[10]Como refere RITA GOUVEIA in Comentário ao Código Civil, Parte Geral [coordenação de Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença], Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, anotação ao artigo 396º, “o tribunal é, pois, livre na apreciação dos depoimentos prestados pelas testemunhas, que deverá avaliar, para efeitos do juízo sobre a demonstração dos factos controvertidos, tendo em conta a sua consciência, a convicção que formou com base nos depoimentos, a isenção e imparcialidade demonstrada pelas testemunhas, as regras da experiência, os outros meios de prova trazidos para o processo, etc.”
[11]Recursos em Processo Civil, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 148.
[12]Neste sentido, cf. ABRANTES GERALDES, Ob. Cit., pág. 149.
[13]Cf. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Providências Cautelares, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 280 e ss..
[14]Cf. SOVERAL MARTINS, “Suspensão de deliberações sociais de sociedades comerciais: alguns problemas” in Revista da Ordem dos Advogados, ano 63º, vol. I/II, 2003, pág. 347 e ss..
[15]Cf. neste sentido STJ, Ac. de 24/10/1994 (proc. 086078) e TRC, Ac. de 08/11/2011 (158/10.0T2AVR-A.C2), ambos publicados em www.dgsi.pt.
[16]Como refere PAULO DE TARSO DOMINGUES, in Código das Sociedades em Comentário, volume III, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 534, “o regime do art. 236º constitui um corolário do princípio da intangibilidade do capital social, com o qual se visa obstar a que o património líquido da sociedade desça – por virtude da atribuição de bens aos sócios – abaixo do capital social (a que a nossa lei, neste caso, faz acrescer o valor da reserva legal – cf. Art. 236º, 1).”
[17]Cf. neste sentido TRL, Ac. de 28/09/2017 (proc. 2317/17.6T8FNC-A.L1-8) e TRC, Ac. de 02/04/2019 (proc. 58/19.9T8FVN.C1), todos publicados in www.dgsi.pt.
[18]Aliás, como já se decidiu, “o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais (…) não é o meio próprio para se declarar a nulidade, a inexistência ou qualquer outra forma de invalidade, matéria que pertence ao domínio da acção principal (TRC, Ac. de 18/03/2014, proc. 922/11.3TBPBL.C1).
[19]Cf. COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume II, 2021, pág. 538.
[20]Designadamente LOBO XAVIER, “Suspensão de deliberações sociais ditas “já executadas”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 123º, pág. 380; SOVERAL MARTINS, Ob. Cit., pág. 351; RUI PINTO DUARTE, “A ilicitude da execução de deliberações a partir da citação para o procedimento cautelar de suspensão”, in Cadernos de Direito Privado, nº 5, Braga, Janeiro-Março 2004, pág. 21. Na jurisprudência v. por todos, TRC, Ac. de 18/03/2014 (proc. 922/11.3TBPBL.C1).
[21]Ob. Cit., pág. 538.
[22]Neste sentido pronunciou-se o TRL no Ac. de 04/06/2009 (proc. 1196/07.6TYLSB-A.L1-8) e o TRC, no Ac. de 02/04/2019 (proc. 8510/18.7T8CBR.C1) e no Ac. 02/04/2019 (proc. 58/19.9FVN.C1), todos publicados em www.dgsi.pt.
[23]Neste sentido se tem pronunciado a melhor doutrina, por ex. PINTO FURTADO, in Deliberações dos Sócios, pág. 492, quando afirma que “a execução da deliberação de amortização de quota vai corporizando a sua realização jurídica e material, arrastando uma patente materialização executiva desde a comunicação ao sócio afectado e da alteração do contrato (com ou sem deliberação autónoma), pela escritura  ou acto público de documentação até ao registo, quando não mesmo até ao integral pagamento da contrapartida da amortização a que se reporta o art. 235º  – porque a indesmentível realidade é que, antes disso, não pode dar-se por encerrado todo o processo.
[24]Cf. TRL, Ac. de 10/12/1991 (proc. 052491), apenas sumariado em www.dgsr.pt/jtrl.
[25]Neste sentido, cf. TRC, Ac. de 08/11/2011 (proc. 158/10.0T2AVR-A.C2), publicado em www.dgsi.pt/jtrc.
[26]Cf. TRL, Ac. de 30/09/1993 (proc. 0069372), apenas sumariado em www.dgsi.pt/jtrl.
[27]Cf. TRC, Ac. de 08/11/2011 (proc. 158/10.0T2AVR-A.C2), publicado em www.dgsi.pt/jtrc.
[28]RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, volume II, 3ª Edição, Lisboa, 2000, pág. 183.
[29]Cf. neste sentido, LEBRE DE FREITAS e Outros, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º (Artigos 381º a 675º), Coimbra Editora, 2001, pág. 95.