Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VIEIRA LAMIM | ||
Descritores: | FALSIDADE DE TESTEMUNHO CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/29/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | – O crime de falsidade de testemunho, tipo criminal integrado no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, é um crime público em relação ao qual o interesse essencialmente protegido é da titularidade do próprio Estado. –Contudo, se existe esse interesse geral do Estado, de realização da justiça, também existe o interesse particular das partes de cada processo em ver acolhida uma versão que corresponda à verdade material, para o que é essencial a verdade dos testemunhos de quem é chamado a depor. –Ora, um testemunho falso, pode conduzir a uma decisão injusta com reflexos negativos na esfera jurídico de uma parte, entendendo-se que, nesse caso, esse particular é titular de interesse que a lei visa proteger com o crime de falsidade de testemunho, o que lhe garante legitimidade para intervir nos autos como assistente, nos termos do art.68, nº1, al.a, do CPP. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: Iº–1.-Nos autos de instrução nº7127/19.3T9LSB, da Comarca de Lisboa (Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 1), na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público de 24 de setembro de 2020 (proferido após inquérito inciado por denúncia apresentada por VF, imputando crimes de falsidade de testemunho a FG, CP e JR), o denunciante requereu a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, tendo o Mmo JIC, em 9 de junho de 2021, proferido o seguinte despacho: “… VF requereu a sua constituição como assistente e a abertura da instrução. Embora estejam em causa requerimentos distintos, a apreciação do seu requerimento para a constituição como assistente está relacionado e é compreendido em função do requerimento para a abertura da instrução, de forma a que se perceba os interesses jurídicos envolvidos. Assim, independentemente da análise da admissibilidade ou inadmissibilidade da instrução pretendida, nomeadamente sobre a descrição dos factos e sobre a possibilidade de voltar a analisar judicialmente aquilo que já apreciado por outro tribunal, é claro que o mencionado requerente pretende a sua constituição como assistente porque “...mantém a esperança de que ainda será feita justiça, que se irá provar que as testemunhas FG, CP e JR, prestaram depoimentos falsos, em audiência de discussão e julgamento no processo judicial cível 471/13.5TVLSB do Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 14, no dia 14 de Março de 2019...E dessa forma consiga alterar a sentença ...” (arts. 9.º e 10º do RAI) Ora, do objecto do processo apresentado no RAI, independentemente da sua invocação mais vaga e prolixa, não resulta que o ora requerente seja o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação invocada, prevista no art. 360.º do Código Penal. De todo o exposto, uma mistura factos e razões de discordância do arquivamento, resulta a referência ao desagrado pela prova produzida em autos em que se desconhecer sequer se o requerente terá sido parte, pelo menos, não se lhe fazendo referência concreta, mas sim a diversas sociedades comerciais. A titularidade dos interesses relevante para efeito de constituição como assistente não pode ser uma titularidade derivada, conexa ou dependente dos interesses em relevo; tem de ser a titularidade jurídica do interesse especialmente protegido pela incriminação, incidindo sobre a pessoa jurídica concreta, singular ou colectiva, que possui o interesse especialmente afectado. Se existe algum interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação da titularidade do requerente, tal não se encontra exposto, não cabendo ao tribunal fazer essa derivação. Pelo exposto, indefiro o pedido de constituição como assistente por parte de VF por falta de demonstração de legitimidade para o efeito, ou seja, por não demonstrar possuir a titularidade dos interesses que a lei especialmente pretendeu proteger com a incriminação enunciada – cfr. Art° 68, n.°1, a), do Código de Processo Penal. …”. 2.–Deste despacho de em 9 de junho de 2021, recorre VF, motivando o recurso com as seguintes conclusões: 1.º-O recorrente considera que a douta decisão de indeferimento do pedido de constituição de assistente viola os seus direitos constitucionais de direito à justiça e acesso aos tribunais, previstos no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa; 2.º-O recorrente considera que a douta decisão de indeferimento do pedido de constituição de assistente impede que toda a prova documental e testemunhal que consta no processo-crime 7127/19.3T9LSB seja convenientemente avaliada; 3.º-O recorrente para além de ter legitimidade tem um concreto e próprio interesse em agir; 4.º-O crime denunciado pelo recorrente de falsidade de testemunho impediu a realização da justiça que o recorrente pediu aos Tribunais; 5.º-A não realização da justiça derivada da prática dos factos denunciados pelo recorrente acarretou para o recorrente prejuízos patrimoniais e não patrimoniais; 6.º-O recorrente considera que tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva, que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça; 7.º-O recorrente considera que é titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime de falsidade de testemunho, relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente. 8.º- O artigo 360.° do Código Penal prevê o crime de falsidade de testemunho, crime que protege o bem jurídico realização da justiça e a veracidade de depoimentos de terceiros em conflito, que é o que o recorrente pediu aos Doutos Tribunais que lhe fosse feita justiça e que fosse apurada a veracidade dos depoimentos de terceiros em conflito; 9.º- O recorrente explicou e demonstrou na sua denúncia, no seu requerimento de constituição de assistente e abertura de instrução, na prova documental que juntou ao processo, ser titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação invocada; 10.º-A análise global do requerimento de constituição de assistente e abertura de instrução, de toda a prova documental junta ao processo-crime, da denúncia apresentada pelo recorrente no DIAP de Lisboa, permitem concluir que o recorrente é titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação invocada; 11.º-O recorrente considera que a decisão do Douto Tribunal a quo que indeferiu o requerimento de constituição de assistente ao recorrente, contraria o acórdão do STJ de 24.7.2005, acórdão do TRC de 6.5.2009, acórdão do TRL de 24.09.2015, acórdão TRL de 3.10.2007, acórdão do TRC de 6.5.2009, acórdão do TRC de 23.5.2012, acórdão do TRL de 18.7.2007, acórdão do TRL de 24.9.2015; 12.º-O recorrente considera que com a prática dos factos por si denunciados que consubstanciam no seu entender um crime de falsidade de testemunho foi-lhe causado um severo prejuízo patrimonial e foi negado o seu direito à realização da justiça; 13.º-O recorrente era à época dos factos denunciados, um dos sócios da empresa FM, empresa familiar, que, contra a vontade do recorrente, vendeu um prédio urbano em Lisboa por um preço muito inferior ao preço de mercado; 14º-Por causa da prática dos factos denunciados pelo recorrente, este foi impedido de anular a venda do prédio da empresa FM, situado em Lisboa, vendido contra a vontade do recorrente, por um preço muito inferior ao preço de mercado, perdeu a respetiva ação civil de anulação de venda e consequentemente teve um grande e até agora irremediável prejuízo patrimonial e não patrimonial; 15.º-Em 14 de setembro de 2019 o recorrente apresentou queixa-crime no DIAP de Lisboa onde não foi posta em causa a sua legitimidade para apresentar queixa-crime, consideraram que o recorrente tinha um interesse legítimo tutelado pela lei e concretizado e inserido de modo relevante na relação teleológica funcional entre o bem jurídico e o sujeito afetado. 16.º-O bem jurídico protegido pela incriminação do artigo 360.° do Código penal é a realização da justiça e a tutela da veracidade dos depoimentos de terceiros em conflito, o recorrente considera que com a prática dos factos por si denunciados não lhe foi realizada justiça nem lhe foi tutelada a veracidade dos depoimentos de terceiros em conflito; 17.º-A realização da justiça é um bem jurídico comunitário mas também é um bem jurídico individual; 18.º-O recorrente tem direito à realização da justiça, é titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação; 19.º-Os factos denunciados pelo recorrente tiveram consequências que se repercutiram diretamente na esfera jurídica do recorrente e por isso deve ser reconhecida legitimidade para o recorrente intervir como assistente no respetivo processo penal; 20.º-O recorrente foi prejudicado, os seus interesses foram prejudicados em consequência dos factos por si denunciados em 14 de Setembro de 2019, no DIAP de Lisboa. Face ao exposto o recorrente tem legitimidade e interesse em agir pelo que deverá ser constituído assistente; 3.–O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos (despacho de 7fev.22) e com efeito devolutivo, após o que o Ministério Público respondeu, concluindo pelo seu provimento. 4.–Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se pelo provimento do recurso, a que responderam os arguidos CP e JR , defendendo o decidido. 5.–Realizou-se a conferência. 6.–O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se o recorrente tem legitimidade para intervir nos autos como assistente. * * * II.–1.-Como é sabido, a lei concede a certas pessoas a possibilidade de se integrarem no procedimento criminal, através do acompanhamento de um técnico de direito e de exercitarem alguns poderes próprios, além de auxiliarem o detentor da ação penal, ou seja, o Ministério Público, adquirindo a qualidade de sujeitos processuais, no objetivo da promoção da boa administração da justiça, com o estatuto de assistente, previsto nos arts.68 e segs. do CPP. Visando o estatuto de assistente colocar o requerente na posição de auxiliar do Ministério Público, importa verificar se em relação ao objeto dos autos no momento em que é requerido tal estatuto ele pode ser reconhecido como titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Na verdade, além de outras situações que não interessam para o caso em apreço, a lei admite a intervir como assistentes os ofendidos, entendendo por estes os titulares dos interesses que a lei especialmente quer proteger com a incriminação (arts.68, nº1, al.a, CPP e 113, nº1, CP). Em relação à fase de inquérito, já ultrapassada, o seu objeto foi definido pela denúncia apresentada por VF, imputando crimes de falsidade de testemunho a pessoas aí identificadas. Tendo o inquérito terminado com despacho de arquivamento e tendo os autos sido remetidos para instrução, o seu objeto passa a ser definido pelo RAI apresentado. Ao contrário do que parece resultar do despacho recorrido, a admissão de assistente não pode estar condicionada pelo mérito do RAI, importando, apenas, apurar a legitimidade do requerente face ao objeto da instrução, tal como o mesmo é definido por quem a requer. A apreciação liminar da viabilidade da instrução, que o Mmo Juiz acaba por fazer no despacho recorrido, pressupõe que o requerente seja admitido a intervir como assistente, pois só com essa admissão poderá ele exercer depois o contraditório em relação à decisão de verificação ou não dos restantes requisitos de admissão da instrução. Ao contrário do afirmado no despacho recorrido, é seguro que o recorrente não invocou a titularidade derivada de um direito, alegando de forma expressa no nº5 do RAI que os falsos testemunhos dos denunciados lhe provocaram um prejuízo de cerca de dois milhões de euros. Neste momento não está em causa o mérito do requerimento de abertura de instrução, sobre o que se pronunciam os arguidos JR e JP na resposta ao douto parecer da Ex.ma PGA, mas tão só a legitimidade do recorrente para se constituir como assistente. O crime de falsidade de testemunho, imputado no RAI, tipo criminal integrado no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, é um crime público em relação ao qual o interesse essencialmente protegido é da titularidade do próprio Estado. Contudo, como é referido na fundamentação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº1/03 (DR Iª Série A, nº49, de 27Fev.03) “recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça começou a inflectir o caminho anteriormente percorrido… e decidiu que «sendo o objecto mediato da tutela penal sempre de natureza pública (sem o que não seria justificada a incriminação), o imediato poderá também ter essa natureza ou significar, isolada ou simultaneamente com aquele, o fim de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular». Posição que vai no sentido ..., de que «especial» não significa «exclusivo», mas sim «particular», e que um só tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado”. Por essas razões, admitiu o Supremo Tribunal de Justiça a intervenção como assistente em relação a crime de denúncia caluniosa (arestos citados naquele Ac. nº1/03) e foi fixada jurisprudência por aquele mesmo acórdão nº1/03, no sentido de admitir como assistente, em relação ao crime de falsificação, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente. No caso, em relação ao crime de falsidade de testemunho, é inquestionável que se pretende proteger a realização da justiça. Contudo, se existe esse interesse geral do Estado, de realização da justiça, também existe o interesse particular das partes de cada processo em ver acolhida uma versão que corresponda à verdade material, para o que é essencial a verdade dos testemunhos de quem é chamado a depor. Ora, um testemunho falso, pode conduzir a uma decisão injusta com reflexos negativos na esfera jurídico de uma parte, como é alegado pelo recorrente que afirma ter a conduta dos denunciados conduzido a uma decisão judicial que ele não desejava, com um consequente prejuízo patrimonial de valor muito elevado. Assim, em relação ao caso concreto, entende-se que o recorrente é titular de interesse que a lei visa proteger com o crime de falsidade de testemunho, o que lhe garante legitimidade para intervir nos autos como assistente, nos termos do art.68, nº1, al.a, do CPP[1]. * * * IIIº– DECISÃO: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em dar provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que reconheça legitimidade ao recorrente VF para se constituir assistente nestes autos. Sem tributação. Lisboa, 29 de março de 2022 (Relator: Vieira Lamim) (Adjunto: Artur Vargues) [1]Neste sentido, acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt: - desta Secção, de 20Nov.07, proferido no processo nº8112/2007, em que interveio o Relator dos presentes autos “… II – Após o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003, têm os tribunais vindo a reconhecer que, em determinados tipos de crime público que protegem bens jurídicos eminentemente públicos (v.g. denúncia caluniosa e falso testemunho), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza individual, assim se afastando da orientação que, tradicionalmente, resolvia a questão da legitimidade para constituição de assistente, atendendo à natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação (apenas no primeiro caso se admitindo essa constituição como assistente)” - da Rel. Coimbra de 24Jun.09 (Pº nº966/08.2TBLRA, Relator Calvário Antunes) “A prestação de um falso testemunho repercute-se directamente na esfera jurídica da pessoa que o depoente dolosamente visou desfavorecer, devendo, assim, ser reconhecida legitimidade ao ofendido para intervir como assistente no respectivo processo penal”, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. - da Relação de Coimbra de 7-06-2016 (Pº 59/14.3TAPBL.C1, Relator Maria Pilar de Oliveira “A pessoa que haja sofrido prejuízos com a falsidade de depoimento ou declaração deve-se considerar ofendida, porque titular de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo, em consequência, perante despacho de arquivamento do inquérito do Ministério Público, legitimidade para se constituir assistente e requerer instrução”. - da Relação do Porto de 11-01-2017 (Pº 2020/13.6TAPVZ.P1, Relator Donas Botto) “ No artº 360º CP é protegido não apenas um interesse de ordem publica mas também pode ser imediatamente protegido um interesse susceptivel de ser corporizado num concreto interesse individual, pelo que é admissível a constituição de assistente”. |