Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA FRANCISCO | ||
Descritores: | PROVA INDICIÁRIA CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSOS PENAIS | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO E NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I–A prova indirecta assenta na passagem de um facto conhecido para a prova de um facto desconhecido, através de um processo de avaliação lógico e intelectual, com apelo às regras da normalidade e da experiência comum. II–Os factos estritamente subjetivos, a não ser que ocorra a sua confissão, apenas são percecionáveis pelos próprios agentes, pelo que a sua prova está dependente das inferências que se possam extrair dos aspetos objetivos em que se materializa a ação do agente e através do significado que tais atos têm na comunidade social. III–Pratica o crime de violência doméstica, na pessoa da sua companheira e mãe das suas filhas, com quem vive, o agente que bate na sua companheira por duas vezes, causando-lhe dores, a impede de acudir a uma das filhas, bate na outra filha por várias vezes na frente da companheira, deixa-a sozinha com as filhas, durante dez dias, sem dinheiro, compra-lhe bilhetes de avião para regressar ao seu país de origem contra a sua vontade e sujeita-a a viver numa situação de angústia e medo permanentes de que lhe volte a bater a qualquer momento ou a uma das filhas. IV–Em face das regras da experiência comum e do normal acontecer das coisas, ao praticar os referidos factos relativamente às suas filhas e à sua companheira, dúvidas não podem haver de que o arguido quis molestar física e psicologicamente a assistente, faltou-lhe ao respeito, fê-la viver em permanente sobressalto e angústia, sabendo que as suas condutas eram necessariamente idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade, a afectarem a sua dignidade pessoal e a porem em causa o seu equilíbrio psicológico, físico e emocional, o que quis e conseguiu. V–Tendo a assistente recorrido e tendo sido alterada a matéria de facto e a qualificação jurídica dos factos efectuada pelo Tribunal a quo, o Tribunal de recurso tem que extrair as consequências jurídicas do comportamento ilícito do arguido, tanto ao nível penal, determinando a pena concreta a aplicar-lhe, como ao nível cível, apreciando o pedido de indemnização efectuado pela assistente. (Sumário da responsabilidade da relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1–Relatório No processo nº 465/22.0SXLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 5, foi proferida sentença, datada de 17/10/2023, de cujo dispositivo consta: “Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julgo parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente: A)- Absolvo o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a), n.os 4 a 6 do Código Penal (perpetrado na pessoa de BB). B)- Condeno o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e e) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, (perpetrado na pessoa da sua filha CC), numa pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspendendo-se a execução da pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão pelo período de 3 (três) anos, subordinando-a a regime de prova, não se aplicando qualquer das penas acessórias a que alude o artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal. C)- Absolvo o arguido AA do pedido de indemnização civil deduzido por BB. D)- Não se arbitra o pagamento de qualquer quantia a pagar pelo arguido AA a BB, ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.º2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 82.º-A, do Código de Processo Penal. E)- Condeno o arguido AA a pagar a CC a quantia de €800 (oitocentos euros), montante que se arbitra ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.º2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 82.º-A, do Código de Processo Penal.(…)” * Inconformado com aquela decisão, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: “1–Vem o presente recurso impugnar a matéria de facto dada como provada, na douta sentença dos presentes autos, nos termos do artigo 412º. Nº3 do Código de Processo Penal. 2–Não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes nas alíneas G), H), I), J), K), L), M), N), O), P), R), S), U), V), W), X), Y) e Z) da sentença recorrida. 3–Conforme resulta da sentença proferida nos autos, a prova em que se fundou a condenação do recorrente, no que respeita ao crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 alíneas d) e e) e n.º 2 do Código Penal (perpetrado na pessoa da sua filha CC), resultou exclusivamente das declarações da assistente. 4–A testemunha ouvida não confirma a versão dos factos da Assistente BB. 5–A assistente está, nos termos do artigo 133º do CPP, impedida de depor como testemunha. Não é uma testemunha desinteressada, tem interesse no desfecho do processo. 6–As declarações da assistente BB não podem ser consideradas prova suficiente para condenar o arguido AA. 7–Não foi produzida outra prova. 8–As declarações da assistente são apresentadas após AVC do Arguido que se encontrava fisicamente debilitado, não tendo força sequer para efetuar os atos pelos quais vem acusado, e com o intuito de permanecer na Europa. 9–Assim não foi produzida prova suficiente para afastar a presunção de inocência e condenar o arguido. 10–O recorrente deve ser absolvido da prática do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 alíneas d) e e) e n.º 2 do Código Penal (perpetrado na pessoa da sua filha CC). 11–Nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada livremente pelo tribunal, segundo as regras da experiência. 12–No entanto, o artigo 32º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, prevê uma limitação à livre apreciação a prova, o princípio de presunção de inocência. 13–As declarações da assistente não podem ser prova bastante para condenar um arguido em julgamento. 14–Entende-se que não foi produzida prova suficiente para condenar o arguido, devendo este ser absolvido.” * Igualmente inconformada com aquela decisão, veio a assistente interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: “1.–Face à prova produzida, designadamente os factos F), H) L), M), N), o Tribunal recorrido deveria ter decidido de forma completamente oposta à sua decisão. 2.–O Tribunal recorrido incorreu em erro no enquadramento jurídico que fez dos factos praticados pelo arguido, ao não considerar que as agressões à aqui recorrente (factos H) e L) dos factos dados como provados integram a prática de um crime de violência doméstica apesar de afirmar que são reprováveis ou mesmo desagradáveis num contexto conjugal. 3.–Os maus-tratos físicos quando praticados sobre cônjuge e/ou mulher que com ele se relacione amorosamente e/ou viva em união de facto, e que praticados com terceiros corresponderiam a um crime de ofensa à integridade física simples, são considerados/integram o crime de violência doméstica! 4.–Contrariando o entendimento maioritário (quase unânime), para o Tribunal recorrido, o facto de o arguido/recorrido ter pontapeado a recorrente ao longo do corpo, desferindo-lhe um número não concretamente apurado de pancadas com a mão na cabeça e no corpo (factualidade provada em L), não é suscetível de integrar um mau trato físico, pois não consubstancia um mau trato físico e psíquico que atinja a integridade da recorrente (!!!). 5.–Ou seja, ainda que reprovável, segundo entendimento do Tribunal, é lícito num contexto conjugal uma partes desferir pancadas e pontapés a outra parte (sublinhado nosso). 6.–E como se não bastasse este erro no enquadramento jurídico da conduta do recorrido, o Tribunal recorrido concluiu, ainda, que não resultou demonstrado que a aqui recorrente fosse efetivamente casada com o arguido…”. 7.–Porém, esse mesmo Tribunal recorrido, deu como provado que ambos viviam em união de facto (factos dados como provados em A) e F) dos factos provados), que ambos coabitavam, e que faziam parte do mesmo agregado familiar. 8.–O que significa que, o Tribunal recorrido violou notoriamente o disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 152 do Código Penal, notoriedade essa, aliás, agravada pelo facto de o Tribunal recorrido saber e dar como provado que a recorrente e o recorrido mantiveram um relacionamento análogo à dos cônjuges, com coabitação, no qual nasceram duas filhas! 9.–Quer isto dizer que, face à prova produzida, o Tribunal ao dar como provado os factos descritos em H) e L) da factualidade dada como provada, não podia absolver o arguido do crime a que estava a ser acusado. 10.–Ao absolver o arguido da prática do referido crime, o Tribunal incorreu em inequívoco CONTRADIÇÃO ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO, comprometendo irremediavelmente o texto da decisão recorrida. 11.–Impõe-se, assim, declarar a NULIDADE da sentença proferida. 12.–De igual modo, tendo em consideração que face à prova produzida, o arguido não pode deixar de ser condenado… 13.–E, porque se impõe declarar essa NULIDADE, impõe-se, também, considerar, procedente o pedido de indemnização civil que contra o mesmo foi deduzido. 14.–Face ao que antecede, a decisão recorrida incorre em vício de violação da lei por contradição entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 410, do CPPenal.” * Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, o do arguido, e devolutivo, o da assistente. * O Ministério Público apresentou resposta, no sentido da improcedência dos recursos e da confirmação da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões: “A)-O arguido recorreu da decisão condenatória invocando erro de julgamento devendo ser valoradas as contradições entre as versões da assistente e da testemunha DD. B)-A assistente recorreu da decisão absolutória invocando contradição entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação, pugnando pela condenação do arguido pelo crime que lhe era imputado quanto à pessoa da assistente. C)-O arguido não indicou as concretas passagens dos depoimentos invocados que considera deveriam ter sido valorados de forma diversa de modo a serem dados como não provados os factos imputados na acusação. D)-Não existiu qualquer contradição entre os depoimentos de DD e da assistente considerando que aquele apenas esteve um momento com a assistente e que a ouviu sobre as razões de não pretender ir para a .... E)-Não existe qualquer contradição entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação de facto ou de direito porquanto o Tribunal, face ao depoimento da assistente, considerou que apenas dois factos foram dados como assentes sendo os restantes julgados como não provados por inexistir de forma clara uma subjugação e humilhação por parte do arguido à assistente. F)-Nesses termos, e colocando-se em causa a factualidade tal como descrita na acusação, a qual a própria assistente não admitiu, inexiste qualquer fundamento para alterar a decisão quanto à matéria de facto. G)-No mais, e considerando os dois factos dados como provados de actos do arguido sobre a assistente, acompanhamos a decisão absolutória quanto aos factos referentes à assistente. H)-No mais, pugna-se pela manutenção da sentença proferida nos seus precisos termos.” * Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, no qual acompanhou a posição já defendida na primeira instância, no sentido da improcedência de ambos os recursos. * Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo os recorrentes vindo acrescentar ao já por si alegado. * Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência. * 2– Objecto do Recurso Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.») À luz destes considerandos, as questões a decidir neste recurso consistem em saber se existe: A)- Relativamente ao recurso do arguido: I)- Erro de Julgamento; II)-Violação do princípio do in dúbio pro reo; B)- Relativamente ao recurso da assistente: I)- Contradição entre a fundamentação e a decisão. * 3–Fundamentação: 3.1.– Fundamentação de Facto A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação: “II.–DOS FACTOS 1.- Factos Provados Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e com relevância para a decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos: A)-O arguido e BB são ambos naturais da ..., tendo celebrado cerimónia religiosa africana de inicio de relacionamento conjugal entre si em 2017. B)-Dessa relação nasceram duas filhas: CC em .../.../2018 e EE em .../.../2021. C)-A cerimónia referida em A) foi convencionada e realizou-se na ..., sendo que o arguido deslocou-se à ... em data não concretamente apurada já após a referida celebração, aí passando a coabitar com BB que, nessa ocasião, já residia na casa dos pais do arguido. D)-Coabitaram durante três meses e, estando BB grávida, o arguido regressou a Portugal. E)-O arguido apenas conheceu a filha mais velha em Novembro de 2019, ocasião em que BB e a filha vieram viver para Portugal, reunindo-se ao arguido. F)-O agregado familiar fixou residência num apartamento sito no ..., em ... e, após, em data não concretamente apurada mas situada em ..., mudaram-se para a residência sita na .... G)-A partir do momento em que passaram a viver em Portugal, o arguido, por número não concretamente apurado de vezes, utilizando o cabo do carregador do telemóvel, atingiu com o mesmo o corpo da sua filha CC, causando-lhe dores e, em algumas ocasiões não concretamente apuradas, escoriações. H)-Em data não concretamente apurada, quando BB disse ao arguido para não bater na filha, este desferiu-lhe uma palmada num dos pés. I)-O arguido desferia, ainda, palmadas pelo menos na zona da barriga e costas de CC. J)-Num dia não concretamente apurado, de noite, quando EE tinha cerca de 15 dias, a bebé encontrava-se a chorar ao que o arguido, quando se apercebeu que BB ia ao encontro da criança para a acalmar, disse-lhe que não o fizesse, que deixasse a filha chorar que acabaria por calar-se. K)-Como BB foi ao encontro da filha, o arguido retirou-lhe a criança dos braços e colocou-a em cima da cama. L)-De seguida, empurrou BB contra a parede e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de pancadas com a mão na cabeça e no corpo, fazendo-a cair ao chão e pontapeou-a em número de vezes não concretamente apurado ao longo do corpo. M)-Com a sua conduta o arguido causou a BB, pelo menos, dores. N)-Enquanto agia da forma descrita, o arguido dizia a BB para não gritar, não fazer barulho. O)-Após, o arguido pegou em alguns pertences e, sem nada dizer, saiu de casa, durante cerca de 10 dias, período durante o qual nunca contactou com BB e com as filhas nem pediu a terceiro que o fizesse por si. P)-Nessa ocasião, o arguido deixou BB sozinha com as duas filhas e sem numerário. Q)-O arguido abriu uma conta em nome de BB, numa instituição bancária portuguesa. R)-Em noite não concretamente determinada, mas situada no primeiro semestre do ano de 2022, encontrando-se CC constipada e deitada na cama de grades colocada no quarto dos pais, o arguido muniu-se de um fio de carregador tendo-lhe BB pedido para não bater na filha. S)-Nessa ocasião, o arguido vergastou, com o fio do carregador e por número de vezes não concretamente apurado, o corpo de CC. T)-O arguido, apesar da posição da sua mulher quanto a regressarem à ..., adquiriu bilhetes de avião para esta e as suas filhas viajarem no dia 13.7.2022. U)-Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, CC sofreu escoriações obliquas para baixo e para fora na região torácica esquerda, ocupando toda a área torácica entre a omoplata e o limite da grelha costal, que demandaram 30 dias de doença. V)-O arguido quis e agiu do modo descrito, sabendo que, de forma recorrente, molestava fisicamente a sua filha CC, infligindo-lhe maus-tratos físicos, ciente de que agia no domicilio comum a todos. W)-O arguido conhecia a idade da sua filha CC, estava ciente de que era sua filha menor de idade, que não tinha capacidade de se opor à sua actuação, que era, em razão da idade, especialmente indefesa e que estava a si subordinada, uma vez que provia ao seu sustento, saúde e educação e era seu representante legal. X)-Bem sabia que ao agir da forma descrita condicionava gravemente a vida e bem- estar psico-social da sua filha, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana e pondo em perigo a sua saúde física e psíquica. Y)-O arguido também não desconhecia que, a reiteração do seu comportamento e a forma como o mesmo se prolongou no tempo, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares, impedindo-a de se verificar. Z)-Contudo, o arguido quis, sempre e em tudo, agir da forma que se descreveu, o que fez deliberada, livre e conscientemente, embora ciente de que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. AA)-O grau de risco atribuído à relação entre o arguido e BB é médio. BB)-O arguido é ... auferindo, mensalmente, a quantia de €1.300. CC)-O arguido não tem companheira. DD)-O arguido tem duas filhas com 5 e 2 anos de idades, as quais residem com a respectiva progenitora. EE)-O arguido reside sozinho em habitação arrendada, suportando, mensalmente, a título de renda, a quantia de €900. FF)-O arguido é licenciado em economia. GG)-O arguido não tem averbada qualquer condenação ao respectivo certificado do registo criminal. * 2.–Factos não provados 1)- Que a cerimónia referida em A) fosse um casamento e que o mesmo tenha sido convencionado através de um amigo do arguido, tendo o casamento sido celebrado por procuração. 2)-Que no momento descrito em C) o arguido se tenha deslocado à ... dois meses após a celebração. 3)-Que a mudança referida em F) tenha ocorrido entre o Verão e Outono de 2020. 4)-Que o arguido actuasse conforme descrito em G) por a sua filha CC, por não estar habituada a conviver consigo, se recusar a ir para o seu colo, dobando o cabo. 5)-Que o facto descrito em H) tenha ocorrido em data próxima da vinda de BB para Portugal e que o arguido tenha dito que a filha era dele, não lhe cabia dizer quando podia ou não bater na filha e, se não pudesse bater na filha batia na mulher. 6)-Que no momento descrito em I) o arguido empurrasse CC, com força, para cima da cama quando a mesma não queria dormir. 7)-Que no momento descrito em J) o arguido tenha dito a BB que lhe bateria se esta fosse acalmar a bébé. 8)-Que no momento descrito em P) BB tivesse apenas €5 que gastou em fraldas. 9)-Enquanto viveram no ..., o arguido não permitia que BB saísse de casa sozinha, mas quando passaram a residir no ..., esta podia sair de casa para ir ao supermercado que ficava nas imediações. 10)-Quando BB ou as filhas precisavam de ir ao médico/hospital, apenas o podiam fazer quando este tinha disponibilidade, pois que aquela não o podia fazer sozinha. 11)-Num dia, no inicio do ano de 2022, estando uma das filhas a sangrar do nariz, o arguido que se encontrava adoentado e não queria sair de casa, não permitiu que a sua mulher levasse a filha ao médico dizendo que iriam depois, contudo não o fez. 12)-Que fosse o arguido quem controlasse a conta bancária referida em T), tendo na sua posse o cartão bancário respectivo, usando inclusive as quantias provenientes de um subsidio titulado por BB. 13)-Ao longo da relação o arguido disse por número não concretamente apurado de vezes a BB que só se tinha “casado” por pressão da mãe, que não a amava e que havia mulheres bonitas em Portugal e tendo dinheiro conseguiria quem quisesse. 14)-Quando BB dizia ao arguido que queria prosseguir os estudos superiores na área de Biologia o arguido dizia-lhe que não iria conseguir, porque “isso é uma coisa para intelectuais ou pessoas inteligentes”. 15)-Sempre que BB manifestava vontade de aprender português, o arguido ia sempre adiando a inscrição em escola. 16)-O arguido desencorajava qualquer tentativa de BB ter amigos, não a levava à mesquita nem a encontros com amigos ou festas religiosas. 17)- Aquando do nascimento da EE, BB travou conhecimento com uma mulher que se encontrava na mesma maternidade, mas, após alta, a fim de impedir o contacto entre ambas o arguido disse a BB que essa mulher o seduzia e que lhe dissesse que não se podiam encontrar porque já tinham outros compromissos. 18)-No inicio do ano de 2022, BB logrou inscrever-se numa escola, contudo logo que teve conhecimento dessa situação, o arguido disse que a mesma tinha de regressar à ..., com as filhas e que iriam viver para casa da mãe do arguido, a qual iria providenciar pela excisão genital das filhas. 19)-Como BB se opôs ao plano do arguido, este disse que o casamento tinha acabado e deixou de falar com a mulher, optando por deixar-lhe bilhetes. 20)-Que a factualidade descrita em R) tenha ocorrido no final de Abril de 2022, por volta da meia noite e que o arguido tenha decidido castigar fisicamente a filha por se encontrar a chorar, tendo empurrado BB e, gritando, lhe tenha ordenado que não se intrometesse e saísse do quarto. 21)-Que no momento descrito em S) o arguido, continuando a gritar, pelo menos, por três vezes, tenha actuado conforme mencionado em S), apresentando-se o fio dobrado, atingindo CC na zona do tronco e cabeça e que, de seguida, de forma súbita, o arguido tenha levantado CC, a tenha sentado na cama, desferindo-lhe outra vergastada, atingindo-a na zona do tronco e pescoço. 22)-Como BB se recusava a viajar, o arguido, como forma de pressão, pediu à sua mãe que contactasse os pais daquela, dizendo-lhes que se a filha e as netas não regressassem a culpa seria deles, de forma a persuadirem BB a regressar. 23)-Ao actuar da forma descrita, o arguido, molestando física e psicologicamente BB, faltou ao respeito e consideração devida para com a sua esposa, e mãe das suas filhas, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angustia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade. 24)-O arguido, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, BB, sua esposa e mãe dos seus filhos e que o fazia, além do mais, no interior da residência comum do casal. 25)-Mais sabia o arguido que ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, sua esposa e mãe dos seus filhos, bem como, punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional, daquela, pois que a submetia a grande sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu. 26)-Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB receou pela sua segurança, tendo sentido angústia, revolta e horror. Não resultaram provados outros factos, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem qualquer relevância para a boa decisão da causa. * 3.–Motivação da matéria de facto O tribunal estribou a sua convicção, no que concerne aos factos pelos quais o arguido vinha acusado, na prova documental constante dos autos e nas declarações produzidas pelo arguido, pela assistente BB e pela testemunha DD (amigo do arguido há 15 anos) em audiência de discussão e julgamento. Tomou aida em consideração as declarações para memória futura de fls. 191. A prova da factualidade elencada em A) a C) resultou demonstrada com base no cotejo do teor dos assentos de nascimento de fls. 32 e 34 com as declarações produzidas pelo arguido e por BB, tendo o arguido precisado que se tratou de uma cerimónia africana na qual o arguido não esteve presente nem ninguém compareceu à cerimónia munido com procuração por si outorgada ou em sua representação (conforme o arguido e BB mencionaram). BB explicitou que foi a família de ambos, e não um amigo comum, quem tratou de “arranjar” esta união conjugal (o que o arguido confirmou), tendo aquela ido residir para a casa da mãe do arguido sita na ..., deslocando-se o arguido até ao local no final do ano de 2017 em data que não logrou precisar mas situada após a celebração da referida cerimónia. Conforme referiu o arguido, a celebração tratou-se de uma cerimónia religiosa africana, pelo que a factualidade descrita em 1) e 2) não resultou provada. O arguido e BB confirmaram a factualidade vertida em D) a F), explicitando o arguido que a mudança de residência ocorreu em ..., pelo que o facto descrito em 3) não resultou provado. Quanto à demais factualidade, o arguido negou-a. Confirmando que a menina de fls. 68 e seguintes é a sua filha CC, negou que tenha sido o próprio a provocar-lhe tais lesões, admitindo que possa ter sido a própria BB porquanto na cultura guineense, à qual o arguido e BB pertencem, é a mulher quem cuida da casa e das crianças, tendo BB chegado a bater nas filhas com um cabo. Mencionou ainda que em 04 de Janeiro de 2022 sofreu um avc e, após um período de internamento de quatro dias no ..., voltou para casa sem conseguir trabalhar por ter menos força do lado direito do corpo. Se até então o relacionamento do casal era normal, após o seu regresso a casa na sequência do internamento, BB ausentava-se de casa por longos períodos de tempo deixando o arguido sozinho com as filhas apesar das dificuldades físicas que o arguido tinha. Como certa noite a filha chorasse incessantemente, BB houvesse decidido deixar de amamentar e o arguido, devido ao avc, não conseguisse prestar auxílio às filhas, o próprio adquiriu, em 04 de Julho de 2022, bilhetes para que BB e as filhas viajassem para a ... no dia 13 de Julho de 2022 (data em que o país estava mais calmo após o golpe de estado ocorrido em Setembro de 2021) para visitarem familiares. Questionado, o arguido referiu que a viagem não tinha data de regresso nem tempo definido de estadia, sendo que quando BB quisesse regressar poderia fazê-lo, tendo existido uma conversa onde estiveram presentes o casal e DD sobre esta viagem para a ... (o que BB e DD confirmaram). Mais referiu que na ... a excisão genital é proibida e o próprio arguido é contra a referida prática. Agastado, mencionou que para BB as filhas são uma “mercadoria” (sic) que utiliza para concretizar os seus intentos de permanecer na Europa. Explicitou que BB fingiu ser vítima de violência doméstica para permanecer em Portugal e receber ajuda estadual porquanto não pretende trabalhar considerando que se ficar em Portugal com as filhas recebe dinheiro do Estado. Acrescentou que, para BB, residir na Europa é uma oportunidade tendo a ideia de que se rumasse à ... já não poderia regressar. Mencionou que muitas mulheres … têm o comportamento que referiu estar a ser adoptado por BB, motivo pelo qual muitos homens que casam com mulheres … preferem mantê-las a residir na ... para que não tenham as questões que o arguido está a ter. Por contraponto com a versão apresentada pelo arguido, BB, prestando um depoimento espontâneo e isento, confirmou ao tribunal o facto descrito em G), explicitando que tal ocorria quando o arguido se enervava ou porque CC estava a chorar, e, acto contínuo, o arguido atingia a filha com o cabo do carregador, não tendo sido mencionado o teor de 4), pelo que tal factualidade não resultou provada. Mais confirmou, descrevendo circunstanciadamente, o referido em H) e I), não tendo mencionado o constante de 5) e 6) pelo que tais factos não resultaram provados, tendo explicitado, no que evidenciou isenção, que o arguido não empurrou CC. Sobre a factualidade descrita em J) a N), BB relatou ao tribunal, de modo circunstanciado, que duas semanas após o parto de EE, encontrando-se a bébé a chorar, o arguido disse a BB que a deixasse chorar até que se acalmasse, não tendo referido o indicado em 7). Porém, como BB fosse pegar na filha ao colo para a acalmar, o arguido retirou a bébé dos seus braços, deitando a criança na cama. Após, empurrou a cabeça de BB contra a parede e desferiu-lhe murros na cabeça e nos braços, tendo-lhe igualmente desferido pontapés no corpo. A depoente confirmou ter caído e sentido dores no braço. Acrescentou que enquanto BB gritava, o arguido dizia-lhe para se calar “por causa dos vizinhos” (sic). Com firmeza, BB confirmou o facto descrito em O), acrescentando que ficou com as duas filhas e não trabalhava, referindo nunca ter trabalhado enquanto residiu em Lisboa. Explicitou, no que evidenciou isenção, que o arguido sempre pagou tudo o que foi necessário para a própria e para as filhas, sendo que quando o arguido se ausentou de casa a mesma ficou sem dinheiro havendo apenas comida em casa, não tendo referido o constante de 8). Importa referir que o que resultou demonstrado é que BB ficou sem numerário porquanto, como a própria referiu, e o arguido também confirmou, a própria tinha um dos dois cartões bancários associados a uma conta bancária (tendo o arguido o outro cartão na respectiva posse, tendo o arguido mencionado que assim sucedia para o próprio depositar dinheiro na conta) que era da sua titularidade (tendo o arguido referido que abriu a conta no ano de 2019 para que BB pudesse utilizá-la quando o arguido estava a viajar), não o utilizando por não saber como fazê-lo sendo que o arguido lhe dizia que um dia a ensinaria a utilizar o cartão. Admitiu, porém, ter conhecimento do código PIN do cartão por o arguido lho ter dito. Acrescentou que o dinheiro respeitante ao abono das crianças ficava na posse do arguido por o mesmo dizer que o mesmo lhe pertencia, sendo que, segundo referiu o arguido, tal subsídio foi sempre pago através dos CTT, tendo passado a ser transferido para a referida conta bancária apenas a partir de dois meses antes da data em que BB saiu de casa com as filhas (o que ocorreu no dia 04 de Julho de 2022). Refira-se que o arguido reconheceu que pese embora BB tenha a conta bancária aberta (onde o arguido depositava, segundo o próprio referiu, dinheiro) e o cartão de multibanco na sua posse, como tem a percepção que a mesma não compreende bem com funcionar com o cartão bancário, aquela tinha sempre numerário disponível. Do cotejo das declarações produzidas, ficou o tribunal convencido da demonstração da factualidade descrita em P) e Q) mas não da elencada em 8) e 12). Quanto à factualidade descrita em 9) a 11), BB relatou ao tribunal, o que fez evidenciando isenção, que enquanto residiu na ... o arguido incentivou-a a estudar (o que o arguido também referiu), sendo que em Portugal a depoente não tinha familiares nem amigos, apenas conhecendo o arguido. Embora tenha mencionado que enquanto o agregado residiu no ... o arguido não a deixava sair sozinha de casa, saindo apenas juntos, questionada sobre o motivo para isso, começou por referir que o arguido a impedia, acrescentando que não saía de casa também devido à circunstância de não falar português. Mencionou ainda que, residindo já no ... e após o arguido ter deixado de lhe dirigir a palavra (o que aconteceu em 15 de Janeiro de 2022), a depoente passou a sair de casa para ir até ao supermercado sito nas redondezas. Acresce que quando era necessária alguma deslocação ao hospital ou a consulta médica, era o arguido quem tratava de tudo, referindo que como a própria “não falava a língua, não ia sozinha” (sic), sendo acompanhada pelo arguido devido à questão linguística. Negou ainda o facto descrito em 11). Do teor das declarações produzidas por BB, que recorreu a intérprete para prestação de depoimento em tribunal evidenciando dificuldades com a língua portuguesa, tendo a mesma mencionado que na ... o arguido sempre estimulou que estudasse no ensino superior, ficou o tribunal convencido que a factualidade que relatou sobre a necessidade de ser acompanhada em deslocações estava relacionada com as dificuldades linguísticas que a própria reconheceu ter e não com uma atitude enquadrável em termos de subjugação/controlo. BB referiu que o arguido nunca lhe disse os seus sentimentos por ela, apenas mencionando que a sua progenitora tivera gosto em que o mesmo tivesse esta relação com a depoente, não tendo mencionado a factualidade elencada em 13) pelo que a mesma, na ausência de outros meios de prova, não resultou demonstrada. A respeito da factualidade elencada em 14), o arguido referiu ter suportado o pagamento da faculdade na ... para BB aí estudar, tendo igualmente suportado os custos relacionados com a obtenção dos documentos necessários para que BB estudasse em Portugal. BB referiu ao tribunal que o arguido sempre a incentivou a frequentar o ensino superior enquanto a mesma esteve na .... Após mudar-se para Portugal, a depoente pretendia frequentar a licenciatura em Biologia, o que transmitiu ao arguido, tendo o mesmo dito que a iria “mandar para ...” (sic) pois a mesma falava francês (língua utilizada na prestação de depoimento em audiência de discussão e julgamento), sendo que o arguido dizia que era preciso que BB cuidasse das filhas. Acrescentou ter transmitido, por diversas vezes, ao arguido que pretendia aprender a língua portuguesa, sendo que apenas quando o arguido deixou de lhe dirigir a palavra em 15 de Janeiro de 2022 é que se inscreveu num curso de português, não tendo apresentado uma explicação verosímil para ter tomado a iniciativa nessa ocasião e não anteriormente, pelo que os factos descritos em 14) e 15) não resultaram demonstrados. Relativamente à factualidade elencada em 16), BB referiu ao tribunal ser de religião muçulmana sendo que desde que veio residir para Portugal foi à mesquita numa ocasião e acompanhada pelo arguido. Mencionando nunca ter querido ir a nenhuma festa, explicitou que quando nasceu a filha mais nova os amigos … do arguido nunca os foram visitar, não resultando das suas declarações o teor de 16), pelo que tal facto não resultou provado. Relativamente à factualidade constante de 17), BB confirmou ter travado conhecimento, na maternidade onde deu à luz a filha mais nova, com uma senhora guineense, tendo ficado amigas. Após a alta encontraram-se e começaram a sair juntas. Porém, o arguido disse que a senhora o tentou “engatar” (sic) e que não a queria lá em casa. Pese embora BB tenha ficado com a ideia que o arguido não queria que se desse com a dita senhora, certo é que a depoente desconhece se a mesma (que era casada) estava ou não efectivamente a “engatar” (sic) o arguido, sendo certo que a senhora entretanto regressou à ... porquanto apenas estivera em Portugal para o parto, pelo que a questão do contacto de BB com a dita senhora cessou. Atentas as declarações da depoente e não sendo possível concluir que o arguido disse a BB que a senhora o estava a “engatar” com o intuito de afastar as duas mulheres, sendo certo que a menção de BB a que chegou a sair com a senhora após ter tido alta, corrobora que o arguido não a impedia do contacto com outras pessoas, não resultou demonstrado o facto descrito em 17). Sobre a factualidade descrita em 18), BB relatou ao tribunal que no início do ano de 2022, no mês de Janeiro ou Fevereiro (não logrou precisar), deslocou-se até uma escola para recolher os formulários necessários à sua inscrição no referido estabelecimento de ensino, transmitindo ao arguido que pretendia realizar a inscrição. Porém, o arguido transmitiu-lhe que teria, primeiro, que ir a ... (refira-se que BB mencionou que um dos seus irmãos reside neste país), recusando a depoente tal deslocação e reafirmando que iria inscrever-se na escola, não tendo o arguido deixado que tal inscrição ocorresse dizendo que a mesma teria que ir afinal para a ..., sendo que as filhas ficariam na casa dos pais do arguido e BB ficaria na casa dos seus próprios familiares, tendo a depoente escutado uma conversa telefónica do arguido com a sua progenitora a respeito da excisão genital, não tendo existido uma conversa entre o arguido e BB sobre essa matéria. Questionada, referiu que antes de conhecer o arguido (o que só aconteceu quando o mesmo se deslocou à ... conforme referido em C)) desconhecia a opinião do mesmo a respeito da excisão genital. Porém, por ter sido vítima dessa prática, a própria não pretendia que as filhas fossem excisadas. Perante a recusa em viajar para a ..., o arguido respondeu que as filhas eram dele e que ele é que ia decidir, tendo dito a BB que “o casamento estava acabado” (sic) e, após esta data, o arguido deixou de falar com a depoente, que, perguntada, referiu desconhecer a razão para tanto. Todavia, continuavam a residir na mesma habitação, dormindo BB juntamente com as filhas, pernoitando o arguido no quarto de casal. Mencionou que não chegou a inscrever-se na escola, não tendo apresentado uma justificação para assim ter procedido. Não resultou pois demonstrada a factualidade elencada em 18) e 19). BB relatou ao tribunal que, em data que não logrou precisar, situada no ano de 2022 e antes de Julho desse ano, pelas 23H, estando a limpar o nariz da filha CC que chorava por estar constipada e, por isso, com dificuldades respiratórias, e estando a menina deitada na cama de grades situada no quarto de casal, o arguido enervou-se e, levantando CC da cama, desferiu pancadas nas costas da filha com um cabo do carregador. Embora BB lhe tivesse dito para parar, o arguido, dirigindo-se-lhe, referiu que se continuasse a falar que lhe batia, tendo a depoente levado as crianças para dormirem noutro quarto. Negando que o arguido tivesse adoptado mais algum comportamento, não resultou demonstrada a factualidade elencada em 20) e 21). O facto mencionado em T) foi confirmado pelo arguido e por BB, a qual mencionou que o arguido pediu a familiares seus residentes na ... e ao seu amigo DD (residente em Lisboa) para a convencerem a ir à ... com as filhas. BB mencionou que DD esteve na casa do casal a conversar com ambos, tendo perguntado ao arguido por que razão é que o mesmo pretendia que BB fosse para a ... e, perguntando a esta as razões para a sua recusa, a depoente explicou e DD compreendeu as suas razões e concordou consigo. Por sua ves, DD confirmou ao tribunal que, a pedido do arguido, esteve presente numa conversa do casal (ocorrida poucos dias após o arguido ter regressado a casa do internamento hospitalar) tendo-lhe sido solicitado por aquele que convencesse BB a ir passar um tempo à ... porquanto a mãe do arguido não conhecia a neta mais nova e, desse modo, ficava a conhecê-la. DD relatou que, conversando a sós com BB, esta lhe disse não pretender ir para a ... e, perante a informação do depoente de que por ter os documentos em dia poderia regressar a Portugal quando quisesse, BB respondeu que “se fosse obrigada a ir para a ... que se ia desenrascar” (sic). Após, o depoente rumou para a sua residência. BB confirmou ao tribunal que em data anterior à prevista para a viagem saiu de casa levando as filhas, não tendo avisado o arguido de que iria proceder desse modo. Questionada sobre os motivos para ter saído de casa, começou por referir que o arguido ameaçou a família da depoente na ..., explicitando, quando questionada, que o arguido disse que BB teria que levar as filhas para a casa da família do arguido e que aquela não o queria fazer, não logrando explicitar em que medida tal constituía uma ameaça aos seus familiares. Repetindo que tinha medo pela sua família, referiu, perante a insistência sobre as razões para sentir tal medo, que afinal tinha medo de perder as filhas dizendo que na ... é o pai quem tem direitos sobre as crianças. Confrontada com o facto desta explicação poder justificar a sua recusa em viajar para a ... mas não necessariamente em sair de casa do arguido e perguntada por que razões saiu de casa, mencionou que foi por ter visto os bilhetes de avião e, sentindo medo, saiu. Perguntada, não logrou apresentar uma justificação para o medo que disse ter sentido, referindo não saber o que é que o arguido ia fazer mas tinha medo dele. Quando confrontada com a ausência de explicações para o medo a que aludia, acabaria por dizer que o arguido queria mandá-la a si e às filhas para a ... porque “tem uma mulher branca em ...” (sic) e a depoente considera que tem mais hipóteses na Europa do que na ..., pelo que não queria viajar. Atento o modo como referiu esta explicação, ficou o tribunal convencido que era esta a real motivação para a sua conduta de sair de casa, não tendo resultado demonstrado o facto descrito em 22). Admitindo que a conversa da viagem para a ... apenas surgiu após o avc sofrido pelo arguido em 6 de Janeiro de 2022, negou ter actuado para com aquele e para com as suas filhas conforme o arguido havia descrito, explicitando ter deixado de amamentar por ter secado o leite. Do cotejo da prova produzida, e não olvidando as questões culturais e religiosas associadas ao contexto do arguido e de BB e que ficaram evidenciadas na importância da opinião da mãe do arguido para que o mesmo tivesse uma mulher com quem tivesse vivência conjugal (tendo o arguido verbalizado que foi por essa “pressão maternal” que avançou nesta relação com BB), certo é que, in casu, a circunstância de o arguido ter incentivado a que BB frequentasse o ensino superior e tivesse procurado que um amigo e familiares a convencessem a ir para a ... denotam que não actuava para com aquela desrespeitando a sua vontade ou controlando-a nos termos vertidos na acusação. Resultou pois demonstrada a factualidade elencada e não a descrita em 1) a 26) por ausência de prova a tanto conducente. O facto descrito em AA) resultou demonstrado com base no relatório de avaliação de risco de fls. 366 e seguintes. Relativamente às condições sócio-económicas do arguido, o tribunal teve em consideração as declarações produzidas pelo mesmo, as quais se revelaram verosímeis atendendo à forma espontânea e clara com que foram prestadas. No que concerne aos antecedentes criminais, foi considerado o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.” * 3.2.–Mérito do recurso A)- Recurso do arguido No recurso por si interposto invoca o arguido a existência de um erro de julgamento, relativamente aos factos dados como provados nas alíneas G), H), I), J), K), L), M), N), O), P), R), S), U), V), W), X), Y) E Z) da decisão recorrida. Para tanto, alega que o Tribunal a quo avaliou mal as suas declarações e as da assistente e que da articulação desses depoimentos não resultaram provados os referidos factos, devendo o arguido ser absolvido da prática do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado. No recurso do arguido não está em causa a qualificação jurídica dos factos apurados, nem a pena que lhe foi concretamente aplicada, mas apenas a discordância do mesmo quanto à apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo relativamente à factualidade que menciona. Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação desses vícios tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. Quanto à impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do Cód. Proc. Penal, verifica-se que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, mas já não quando tais provas apenas permitirem uma outra decisão, a par da decisão recorrida. Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal (cf., Ac. TRL de 02.11.2021, no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.). Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt). O recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo,razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)- As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”. Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª instância não é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma, pois o poder de apreciação da prova do tribunal de recurso não é absoluto, nem se reconduz à realização integral de um novo julgamento da matéria de facto, em substituição do já realizado em 1ª instância. Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada. Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário. Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso. Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova (cf., neste sentido, Ac. STJ de 13/02/08, no processo nº 07P4729, em que foi relator Pires da Graça, in www.dgsi.pt). A lei não considera relevante a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal, até porque, se assim fosse, não seria possível existir qualquer decisão final. O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional. Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece também os limites da mesma, ou seja, os poderes de cognição do tribunal de recurso. Mesmo nos casos em que exista documentação dos atos da audiência, o recurso para o Tribunal da Relação não constitui, como já se referiu, um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova. Na verdade, como se refere no Ac. deste TRL, datado de 26/10/21 ( proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt): «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…). Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase. As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos. Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido. Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade. Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução. Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século. Não por acaso, a antecedente prova escrita (a velha assentada) foi obliterada do processo português, precisamente porque, eliminando o material supramencionado, facilmente permitia a afirmação judicial de inverdades e justamente na fase de recurso. Paralelamente, é essa a razão de ser das apertadas e exíguas possibilidades de recurso sobre a matéria de facto. Maior abertura à sua restrição aumentaria, na exacta proporção, aí sim, a hipótese de erro judiciário. Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.» Assim sendo, o que o Tribunal da Relação pode e deve fazer nesta matéria, em sede de recurso, é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção. A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação de matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova, sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação, que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância. A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência. A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso. Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, ou seja, no cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal. Para este efeito, como se escreveu no Ac. deste TRL datado de 11/03/2021 (proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt.): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.» Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» (cf. Ac. TRP datado de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt). No mesmo sentido, se decidiu no Ac. TRG datado de 28/06/2004 ( proferido no processo nº 575/04-1, em que foi relator Heitor Gonçalves, in www.dgsi.pt ), onde se refere que: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”. Em suma, o recorrente que invoca a existência de um erro de julgamento tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas e que sustentam uma decisão diversa, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude. No caso dos autos, da mera análise das conclusões do arguido se verifica que o mesmo não cumpriu as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas, nem tais exigências resultam cumpridas também da motivação do seu recurso. Pese embora o recorrente tenha identificado concretamente os pontos de facto que considera erradamente julgados, tal corresponde a toda a matéria de facto relativa à sua responsabilidade pelo crime de violência doméstica porque foi condenado. Por outro lado, o que decorre das suas alegações é que se limita a pôr em causa a credibilidade do depoimento da assistente, dizendo que o Tribunal a quo não podia ter dado como provados todos os factos que implicam a sua responsabilidade criminal pela prática do crime de violência doméstica com fundamento nesse depoimento, porquanto o depoimento da assistente não é isento. Como se deixou expresso, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem o recorrente aqui fazer. No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos termos supra transcritos, procedendo a uma análise dos depoimentos prestadas pelas testemunhas e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum. O Juiz a quo conferiu maior credibilidade ao relato que lhe foi feito pela assistente, após o relacionar com os restantes meios de prova. Teve perante si o arguido e a assistente, viu-os, ouviu-os, apercebeu-se de muitos pormenores de atitude e postura que só a imediação permite e concluiu que o depoimento da assistente se mostrou mais credível e denotou coerência e isenção, não tendo ficado com a convicção de que a mesma tivesse inventado os factos somente para incriminar o arguido. Verifica-se, assim, que o Tribunal a quo analisou criticamente todos os meios de prova produzidos, relacionando-os entre si, pelo que a decisão de facto em apreço se mostra efectivamente suportada pela prova produzida em julgamento. Quanto ao recorrente, este limita-se a manifestar o seu desacordo relativamente à leitura que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, tecendo considerações genéricas sobre essa prova e sobrepondo a sua interpretação relativamente ao que foi dito à interpretação do Tribunal recorrido, sem indicar meios de prova suscetíveis de imporem decisão diversa e sem estabelecer relações entre o conteúdo específico de cada um desses meios de prova e os factos que considerou incorretamente julgados, em desobediência ao exigido pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal. Por outro lado, também não indicou o arguido qual a versão dos factos é que considera provada, em que provas se sustentaria essa versão dos factos, de que partes da gravação dos depoimentos das pessoas inquiridas é que não resulta a factualidade apurada e quais as partes da gravação do julgamento é que este Tribunal de recurso deveria ouvir, em desobediência ao exigido pelo art.º 412º, nº 4 do Cód. Proc. Penal. Assim sendo, não tendo o arguido cumprido minimamente o ónus de impugnação da matéria de facto imposto pelo art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do Cód. Proc. Penal, impõe-se julgar improcedente o seu recurso neste tocante. Alega ainda o arguido que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo. Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida. No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ Se o recorrente invoca que foi violado o princípio in dubio pro reo, tem de impugnar a decisão da Relação, contrariando-a e afirmando e demonstrando que o Tribunal ficara na dúvida e mesmo assim decidira contra si (o arguido). Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.” Também no Ac. deste TRL de 10/01/18, proferido no processo nº 63/07.8TELSB-3, em que foi relator Nuno Coelho, in www.dgsi.pt, se decidiu que: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica. O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.” Verifica-se, assim, que a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando se mostrarem esgotadas todas as operações de análise e de confronto de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência, da lógica geralmente aceite e do normal acontecer das coisas e, ainda assim, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador. Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido. Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu. Como se deixou supra referido, a factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não decorrendo da decisão em apreço, nomeadamente da factualidade assente e da sua motivação, que o julgador tivesse tido qualquer dúvida ou hesitação quanto à valoração da prova e à fixação dos factos, não tendo, para além do mais, o recorrente indicado prova que obrigasse a uma decisão diferente da que foi adoptada pelo Tribunal a quo. Uma vez que os factos dados como provados na decisão recorrida são uma consequência lógica, racional e plausível da prova produzida em julgamento, à qual o Tribunal atribuiu credibilidade e verosimilhança, não se pode pôr em causa, sem mais, a convicção formada pelo julgador, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova. Assim sendo, não se tendo apurado a existência de um qualquer erro de julgamento ou da violação do princípio in dubio pro reo, impõe-se julgar improcedente, também neste tocante o recurso do arguido, não se mostrando violado o art.º 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. B)-Recurso da assistente Como fundamento do seu recurso vem a assistente invocar o vício de contradição insanável, previsto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal. Alega para tanto que o Tribunal recorrido ao dar como provados os factos F), H) L), M), N), deveria ter decidido de forma diversa, porquanto a factualidade provada em H) e L) é suscetível de configurar maus-tratos físicos e da factualidade provada em A) e F) resulta que assistente e arguido viviam em união de facto, coabitavam e eram um agregado familiar. Conclui a assistente que ao dar como provados estes factos, o Tribunal a quo não podia ter absolvido o arguido do crime de violência doméstica na sua pessoa, nem do pedido de indemnização cível por si formulado, tendo incorrido em contradição entre a matéria de facto dada como provada e a decisão. É, pois, indubitável o interesse da assistente na interposição do presente recurso e na pretensão formulada. Vejamos se lhe assiste razão. A assistente invoca o vício de contradição insanável, mas o que decorre da sua argumentação é que não concorda com a qualificação jurídica que o Tribunal a quo fez dos factos provados. Ora, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c)-O erro notório na apreciação da prova. Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida. Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121, e na jurisprudência, entre muitos outros, os Ac. TRC de 12/09/18, no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, relator: Orlando Gonçalves, e Ac. deste TRL de 22/09/20, no processo nº 3773/12.4TDLSB.L1-5, relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt). A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 71 a 73). Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão de 12/03/2015, no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito». Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão. Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “ Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2. Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.» No caso em apreço a recorrente alega ter ocorrido contradição entre a fundamentação e a decisão recorrida, pretendendo a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica na sua pessoa, de que vinha acusado, bem como a condenação a pagar-lhe a indemnização peticionada. Voltando à decisão recorrida, verificamos que foram dados como provados os seguintes factos: “(…) A)- O arguido e BB são ambos naturais da ..., tendo celebrado cerimónia religiosa africana de inicio de relacionamento conjugal entre si em 2017. B)- Dessa relação nasceram duas filhas: CC em .../.../2018 e EE em .../.../2021. C)- A cerimónia referida em A) foi convencionada e realizou-se na ..., sendo que o arguido deslocou-se à ... em data não concretamente apurada já após a referida celebração, aí passando a coabitar com BB que, nessa ocasião, já residia na casa dos pais do arguido. D)-Coabitaram durante três meses e, estando BB grávida, o arguido regressou a Portugal. E)- O arguido apenas conheceu a filha mais velha em Novembro de 2019, ocasião em que BB e a filha vieram viver para Portugal, reunindo-se ao arguido. F)- O agregado familiar fixou residência num apartamento sito no ..., em Lisboa e, após, em data não concretamente apurada mas situada em ..., mudaram-se para a residência sita na .... G)- A partir do momento em que passaram a viver em Portugal, o arguido, por número não concretamente apurado de vezes, utilizando o cabo do carregador do telemóvel, atingiu com o mesmo o corpo da sua filha CC, causando-lhe dores e, em algumas ocasiões não concretamente apuradas, escoriações. H)- Em data não concretamente apurada, quando BB disse ao arguido para não bater na filha, este desferiu-lhe uma palmada num dos pés. I)-O arguido desferia, ainda, palmadas pelo menos na zona da barriga e costas de CC. J)-Num dia não concretamente apurado, de noite, quando EE tinha cerca de 15 dias, a bebé encontrava-se a chorar ao que o arguido, quando se apercebeu que BB ia ao encontro da criança para a acalmar, disse-lhe que não o fizesse, que deixasse a filha chorar que acabaria por calar-se. K)-Como BB foi ao encontro da filha, o arguido retirou-lhe a criança dos braços e colocou-a em cima da cama. L)-De seguida, empurrou BB contra a parede e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de pancadas com a mão na cabeça e no corpo, fazendo-a cair ao chão e pontapeou-a em número de vezes não concretamente apurado ao longo do corpo. M)- Com a sua conduta o arguido causou a BB, pelo menos, dores. N)- Enquanto agia da forma descrita, o arguido dizia a BB para não gritar, não fazer barulho. O)- Após, o arguido pegou em alguns pertences e, sem nada dizer, saiu de casa, durante cerca de 10 dias, período durante o qual nunca contactou com BB e com as filhas nem pediu a terceiro que o fizesse por si. P)- Nessa ocasião, o arguido deixou BB sozinha com as duas filhas e sem numerário. Q)- O arguido abriu uma conta em nome de BB, numa instituição bancária portuguesa. R)- Em noite não concretamente determinada, mas situada no primeiro semestre do ano de 2022, encontrando-se CC constipada e deitada na cama de grades colocada no quarto dos pais, o arguido muniu-se de um fio de carregador tendo-lhe BB pedido para não bater na filha. S)- Nessa ocasião, o arguido vergastou, com o fio do carregador e por número de vezes não concretamente apurado, o corpo de CC. T)- O arguido, apesar da posição da sua mulher quanto a regressarem à ..., adquiriu bilhetes de avião para esta e as suas filhas viajarem no dia 13.7.2022. U)- Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, CC sofreu escoriações obliquas para baixo e para fora na região torácica esquerda, ocupando toda a área torácica entre a omoplata e o limite da grelha costal, que demandaram 30 dias de doença. V)- O arguido quis e agiu do modo descrito, sabendo que, de forma recorrente, molestava fisicamente a sua filha CC, infligindo-lhe maus-tratos físicos, ciente de que agia no domicilio comum a todos. W)- O arguido conhecia a idade da sua filha CC, estava ciente de que era sua filha menor de idade, que não tinha capacidade de se opor à sua actuação, que era, em razão da idade, especialmente indefesa e que estava a si subordinada, uma vez que provia ao seu sustento, saúde e educação e era seu representante legal. X)- Bem sabia que ao agir da forma descrita condicionava gravemente a vida e bem-estar psico-social da sua filha, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana e pondo em perigo a sua saúde física e psíquica. Y)- O arguido também não desconhecia que, a reiteração do seu comportamento e a forma como o mesmo se prolongou no tempo, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares, impedindo-a de se verificar. Z)- Contudo, o arguido quis, sempre e em tudo, agir da forma que se descreveu, o que fez deliberada, livre e conscientemente, embora ciente de que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. (…)” E foram dados como não provados os seguintes factos: “(…)23)- Ao actuar da forma descrita, o arguido, molestando física e psicologicamente BB, faltou ao respeito e consideração devida para com a sua esposa, e mãe das suas filhas, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angustia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade. 24)- O arguido, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, BB, sua esposa e mãe dos seus filhos e que o fazia, além do mais, no interior da residência comum do casal. 25)- Mais sabia o arguido que ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, sua esposa e mãe dos seus filhos, bem como, punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional, daquela, pois que a submetia a grande sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu. 26)- Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB receou pela sua segurança, tendo sentido angústia, revolta e horror.(…)” No apuramento da matéria de facto, quanto aos factos que permitem imputar ao arguido a prática dos crimes em apreço, o Tribunal a quo fundamentou-se sobretudo nas declarações da assistente, já que o arguido negou que tivesse infligido quaisquer maus-tratos quer à sua filha CC, quer à assistente. O Tribunal a quo, para o apuramento desses factos, considerou que a assistente BB prestou um depoimento espontâneo e isento, tendo a mesma inclusive negado a prática pelo arguido de determinados factos que o incriminavam. Em face disto, e atenta a motivação de facto da decisão recorrida supra transcrita, da qual consta a reprodução das declarações da assistente consideradas pertinentes para a fundamentação da factualidade tida por provada e não provada, constata-se que existe efectivamente uma contradição entre a factualidade não provada descrita sob os números 23), 24), 25) e 26) e a factualidade considerada provada, pois os factos provados, sobretudo os descritos em G), H), I), J), K), L), M), N), O), P), R), S), U), V), W), X), Y) e Z), são idóneos a integrar o elemento objectivo do crime de violência doméstica na pessoa da assistente, como adiante se explicitará. Tendo sido dados como provados esses factos, a prova dos factos descritos em 23), 24), 25) e 26), que integram o elemento subjectivo do crime e os danos causados, é uma decorrência coerente e lógica da prova dos factos que integram o seu elemento objectivo. Esta contradição entre os factos provados e os não provados, neste tocante, não é, no entanto, uma contradição insanável, pois é passível de ser sanada através do que resulta das declarações da assistente, constante da motivação de facto da decisão recorrida, com apelo às regras da prova indirecta. Senão vejamos. A prova indirecta assenta na passagem de um facto conhecido para a prova de um facto desconhecido, em cujo processo intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, que determinado facto, que não está diretamente provado, é a consequência natural, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Tratam-se de factos estritamente subjetivos que, a não ser que ocorra confissão, apenas são percecionáveis pelos próprios agentes, pelo que a respetiva prova está dependente das inferências que se possam extrair dos aspetos objetivos em que se materializa a ação e através do significado que tais atos têm na respetiva comunidade social. Quer a intenção, quer a motivação, como conclusões de direito que são, não se podem fazer derivar, imediatamente, da prova, mas deduzir-se dela, na medida em que sejam uma mera consequência ou o prolongamento da mesma. Reitera-se que se tratam de factos, mas que assumem uma particular especificidade, na medida em que constituem realidades do foro psíquico, internos do sujeito, que não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face aos atos e às circunstâncias concretas do seu cometimento (cf. neste sentido, Manuel Cavaleiro Ferreira, in “Lições de Direito Penal”, Volume I, 1992, págs. 297 e 298; Acórdão do TC nº 521/2018, datado de 17.10.2018, proferido no processo nº 321/2018 – 3ª secção, em que foi relator Gonçalo de Almeida Ribeiro, in www.tribunalconstitucional.pt). Voltando ao caso dos autos, verifica-se que a prova dos factos descritos em 23), 24), 25) e 26), relativos ao conhecimento e vontade do arguido e aos danos advenientes para a assistente da conduta do mesmo, decorre como consequência necessária de toda a actuação do arguido e dos sentimentos manifestados pela assistente e resultantes das suas declarações, nos moldes supra transcritos. Recorrendo, mais uma vez, às declarações da assistente, verifica-se que se apurou que o arguido: - bateu por duas vezes na assistente, com quem vivia em condições análogas às dos cônjuges, causando-lhe dores; - bateu várias vezes na filha menor de ambos, causando-lhe dores e escoriações; - impediu a assistente de acalmar a filha bebé de ambos quando a mesma se encontrava a chorar, retirando-lha dos braços e dizendo à assistente para não gritar, nem fazer barulho; - esteve dez dias fora de casa, sem contactar com a assistente, deixando-a sem dinheiro algum; - comprou bilhetes de avião para a assistente e as filhas regressarem à ..., contra a vontade da mesma. Em face das regras da experiência comum e do normal acontecer das coisas, atendendo ao depoimento da assistente, nos termos mencionados na decisão recorrida, ao praticar os factos supra descritos relativamente às suas filhas e à sua companheira, dúvidas não podem haver de que o arguido quis molestar física e psicologicamente a assistente, faltou-lhe ao respeito, fê-la viver em permanente sobressalto e angústia, sabia que as suas condutas eram necessariamente idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade, a afectarem a sua dignidade pessoal e a porem em causa o seu equilíbrio psicológico, físico e emocional, o que quis e conseguiu. É que é preciso não esquecer que a assistente é uma pessoa estrangeira, que não conhecia ninguém no nosso país para além do arguido, não falava a nossa língua, não tinha familiares, nem amigos a quem pudesse recorrer, tem costumes e tradições diferentes das do país onde se encontrava a viver e não trabalhava, nem tinha dinheiro seu disponível, encontrando-se, por isso, na completa dependência económica, emocional e social do arguido, factos estes que o mesmo não podia desconhecer. Em face de tudo o exposto, constando dos autos todos os elementos necessários à alteração da decisão de facto, nos termos supra expostos, em conformidade com o disposto no art.º 431º, alínea a) do Cód. Proc. Penal, decide-se dar como provados os seguintes factos: “(…)23)- Ao actuar da forma descrita, o arguido, molestando física e psicologicamente BB, faltou ao respeito e consideração devida para com a sua esposa, e mãe das suas filhas, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angustia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade. 24)- O arguido, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, BB, sua esposa e mãe dos seus filhos e que o fazia, além do mais, no interior da residência comum do casal. 25)- Mais sabia o arguido que ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, sua esposa e mãe dos seus filhos, bem como, punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional, daquela, pois que a submetia a grande sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu. 26)- Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB receou pela sua segurança, tendo sentido angústia, revolta e horror.(…)” Vejamos, então, se da alteração da factualidade agora operada é possível concluir pela responsabilização do arguido pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da assistente, tal como vinha acusado. O crime de violência doméstica está tipificado no art.º 152º do Cód. Penal onde se prevê que: “1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b)- A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c)- A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d)- A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e)- A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2- No caso previsto no número anterior, se o agente: a)- Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b)- Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3- Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a)- Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b)-A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4- Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5- A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6- Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.” (sublinhados nossos) Quanto ao que se deva entender por violência doméstica, estabelece-se no art.º 3º, alínea b) da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de Maio de 2011, e ratificada por Portugal em 2013, que: “ “violência doméstica” designa todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima”. O nosso Código Penal prevê este tipo de ilícito no título dedicado aos crimes contra as pessoas, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, sendo o bem jurídico protegido mais amplo do que o previsto na citada Convenção, pois abrange, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, punindo os comportamentos lesivos da mesma (cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, págs. 329 a 339). Tem-se observado, no entanto, alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica. Porém, em geral, apontam-se como tuteladas pela citada norma a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar, sendo a estrutura “família” o que se toma como ponto de referência da normativização prevista no nº 1 do art.º 152º, sem que seja, no entanto, a “família” a figura central alvo de protecção, mas antes a pessoa que nela se insere, individualmente considerada. (cf., neste sentido, Nuno Brandão, in «A tutela penal especial reforçada da violência doméstica», “Julgar”, nº 12, págs. 9 e ss, Plácido Conde Fernandes, in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), págs. 304 e 305, e Augusto Silva Dias, in «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. AAFDL, pág. 110). STJ de 20/04/17, proferido no processo nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1, em que foi relator Nuno Gomes da Silva, in www.dgsi.pt: “A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto. Frise-se que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime. Mas a violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes, porventura, os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.” O bem jurídico protegido por este tipo de crime, a saúde física, psíquica e mental, é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge, de outro familiar ou de pessoa com quem se partilhe o lar. Fruto de uma longa evolução da consciência comunitária quanto à gravidade e censurabilidade de comportamentos que têm o ambiente familiar e as relações de intimidade por pano de fundo, o actual art.º 152º do Cód. Penal pune condutas aptas a colocar em causa bens jurídicos que são emanação directa da dignidade da pessoa, como sejam a saúde, a vida, a integridade física e a liberdade individual, para salvaguarda do direito que qualquer pessoa tem a ser tratada com dignidade, sem ser humilhada ou vexada, sejam quais forem as circunstâncias em que se encontre e as relações que tenha com outras pessoas com quem viva. A preocupação legislativa centra-se, assim, na tutela da posição mais fraca nas relações de poder/domínio que potencialmente surgem nas formas de relacionamento de maior intimidade, designadamente na família enquanto célula social fundamental, e encontra raízes no princípio da solidariedade que enforma todo o nosso ordenamento jurídico. Como refere Nuno Brandão, in ob cit., pág. 18, confere-se uma “(…) tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível.” O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige, assim, uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, seja conjugal ou idêntica à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, familiar ou outra. O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. Com particular acerto, pode ler-se do sumário do Acórdão do TRG de 15/10/2012, proferido no processo nº 639/08.6GBFLG.G1, em que foi relator Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt que: “ I) A revisão do CP de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou de «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do artº 152º do CP) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a "reiteração" de comportamentos. II) Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do citado artº 152º do CP, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação. III) A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. III) Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.” Ou seja, se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, mas não o da violência doméstica. A doutrina tem definido o crime de violência doméstica também como um crime habitual. Refere Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 314, que: «Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual». A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é determinante para as consequências jurídicas do facto, ou seja, para a punição do agente. Há pluralidade de crimes se forem vários os preceitos violados ou se for o mesmo preceito violado várias vezes, pluralidade esta que só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas como crime continuado, como um único crime ou como crime de trato sucessivo. Dispõe o art.º 30º, nº 1 do Cód. Penal que: «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente». O crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, enquadra-se não só na figura de crimes habituais, mas também na categoria de crimes prolongados, protelados ou de trato sucessivo, desde que exista uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa, desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade da atuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos atos de trato sucessivo num só crime. Neste sentido se decidiu no Acórdão do STJ de 29/11/2012, proferido no processo nº 862/11.6TAPFR.S1, em que foi relator Santos Carvalho, in www.dgsi.pt: «(…) O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal Anotado” de P. P. Albuquerque)». Importa ainda ter em conta, como se referiu no Acórdão do TRE de 8/01/2013, proferido no processo nº 113/10.0TAVVC.E1, em que foi relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt., que: “Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, mas sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade. Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.” Conclui-se, assim, que para haver violência doméstica é necessário que haja uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração, que da parte do agressor haja uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento ou menosprezo, e que da parte da vítima exista o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual, verificando-se ainda um desequilíbrio entre a afirmação de uma igualdade jurídica consagrada na lei e uma desigualdade de estatuto económico e social que se imponha como realidade de facto. Importa ainda ter em conta que são também abrangidos pelo tipo penal os casos de «micro violência continuada», que Nuno Brandão, in ob. cit., caracterizou pela “opressão exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”. É este o caso abordado pelo acórdão do TRC de 7/10/2009, proferido no processo nº 317/05.8GBPBL.C2, em que foi relator Mouraz Lopes, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: a «ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa».” Voltando ao caso dos autos, vemos que, apesar de o Tribunal a quo não ter dado como provada toda a matéria de facto constante da acusação pública, a matéria apurada, com as alterações efectuadas, permite, por si só, concluir pelo preenchimento pelo arguido dos elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de violência doméstica. Na verdade, não só o arguido bateu na assistente por duas vezes, causando-lhe dores, como impediu a assistente de acudir a uma das filhas, bateu na outra filha por várias vezes na frente da assistente, deixou a assistente sozinha com as filhas, durante dez dias, sem dinheiro, comprou-lhe bilhetes de avião para regressar à ... contra a sua vontade e sujeitou-a a viver numa situação de angústia e medo permanentes de que lhe voltasse a bater a qualquer momento ou à filha CC. Com toda esta actuação o arguido incutiu medo na assistente, provocou-lhe dores, humilhação e sofrimento físico e psíquico e sujeitou-a a uma vivência de permanente mal-estar e angústia, num quadro de domínio económico, emocional e social, conforme supra referido. Quanto ao elemento subjectivo do tipo, apurou-se que o arguido agiu da forma descrita com a intenção concretizada de molestar psicologicamente a assistente, de a atingir na sua dignidade enquanto mulher e criar um ambiente atemorizador e violador da paz familiar, bem sabendo que a ofendida era sua companheira, não se coibindo de molestar a sua integridade física e psíquica e de lhe causar medo e receio, tendo agido com o propósito concretizado de atingir a dignidade humana e a saúde física e mental da ofendida, o que quis e conseguiu, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal. Tudo isto se passou entre pessoas que conviviam em condições análogas às dos cônjuges, no domicílio comum e na presença das filhas menores do casal. Em face desta factualidade dúvidas não restam de que se encontram preenchidos relativamente ao arguido os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica relativamente à assistente, previstos no art.º 152º, nºs 1, alíneas b) e c), e 2, alínea a) do Cód. Penal, tendo o arguido agido com dolo directo, nos termos do art.º 14º, nº 1 do mesmo diploma. Conclui-se, assim, que o Tribunal a quo não fez um correcto enquadramento jurídico-penal dos factos na sentença recorrida, devendo o recurso da assistente proceder e apurarem-se as consequências jurídicas do comportamento ilícito do arguido, tanto ao nível penal, determinando-se a pena concreta a aplicar-lhe, como ao nível cível, apreciando-se o pedido de indemnização efectuado pela assistente. Aqui chegados, importa proceder à determinação da pena concreta a aplicar ao arguido. O crime de violência doméstica previsto no art.º 152º, nºs 1, alíneas b) e c), e 2, alínea a) do Cód. Penal é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos. Os critérios que devem presidir à determinação da medida da pena encontram-se enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, pela seguinte forma: “ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena 1–A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2– Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a)-O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b)-A intensidade do dolo ou da negligência; c)-Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d)-As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e)-A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f)-A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3– Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” Tais critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, a dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art.º 71º do Cód. Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão, arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» Conforme explicita Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497, pág. 331, o critério geral de escolha (entre penas alternativas) e de substituição da pena é o seguinte: «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação», e acrescenta - § 498, pág. 332 - bem se compreender que assim seja: “sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena”. Quanto à função que as exigências de prevenção geral e de prevenção especial exercem neste contexto, esclarece este autor, in ob. cit., § 500, págs. 332 e 333, que: «Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão», acrescentando que «o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa (ou de uma pena de substituição) quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela(s) pena(s); coisa que só raramente acontece se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração». Também neste sentido decidiu o STJ em acórdão datado de 12/09/2012, proferido no processo nº 1221/11.6JAPRT.S1, em que foi relator Raul Borges, in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: ”A pena não privativa de liberdade só será preferível se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades preventivas da punição, casos havendo em que a execução da pena de prisão é exigida por razões de prevenção, por se mostrar necessário que só a execução da prisão permite dar resposta às exigências de prevenção. Há que ter em conta o critério da adequação e suficiência, atento por um lado, o bem jurídico protegido na espécie, uma das finalidades a que alude o artigo 40.º, mas e sobremaneira, atender às razões de prevenção geral, que se impõem no caso presente, não sendo excessivo a opção recair na pena privativa de liberdade, tendo em conta as necessidades de assegurar a paz comunitária, atendendo ao pleno do comportamento assumido pelo arguido no trecho de vida aqui analisado e valorado, que se não quedou apenas pela prática da infracção ora em equação e em discussão, antes a ultrapassando com uma configuração quantitativa e qualitativamente mais abrangente, bem mais ampla e gravosa em termos de lesividade, privando de vida a ex-companheira. A própria escolha da espécie da pena a aplicar deve ter na base elementos, que sendo exógenos em relação à concreta e singular conduta apreciada para o tema em causa (mesmo que representando um minus no contexto global), se prendem com o conjunto das circunstâncias que enformam o facto total submetido a julgamento.” Voltando ao caso concreto, verifica-se que são prementes as exigências de prevenção geral, porquanto a prática deste crime tem tido um incremento preocupante na nossa sociedade a que urge por cobro e cujos efeitos importa minimizar. Pelo contrário, não são prementes as exigências de prevenção especial, dado que o arguido não tem antecedentes criminais e encontra-se laboral e socialmente inserido. Como factores relevantes para a determinação concreta da pena a aplicar nos presentes autos, importa considerar: 1.–Como agravantes: - o grau elevado da ilicitude do facto, tendo o arguido actuado com dolo directo; - o modo de execução do ilícito, que se prolongou por mais de um ano consecutivo, exercendo o arguido um ascendente económico, emocional e social sobre a assistente durante todo esse período de tempo; - a culpa elevada do agente, encontrando-se bem patente na factualidade acima descrita; - a ausência de confissão dos factos e de arrependimento, reveladores da ausência de consciência do desvalor da sua conduta pelo arguido e das consequências da mesma; - a ausência de compaixão pela assistente; 2.–Como atenuantes: - as condições pessoais do arguido, que se mostra laboral e socialmente inserido, - a ausência de antecedentes criminais. Tudo visto e ponderado, entende-se aplicar ao arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo art.º 152º, nº 1, alíneas b) e c) e nº 2, alínea a) do Cód. Penal, perpetrado na pessoa de BB, uma pena de três anos de prisão. Uma vez que o arguido foi também condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, alíneas d) e e) e nº 2, alínea a), do Cód. Penal, perpetrado na pessoa da sua filha CC, numa pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, impõe-se efectuar o cúmulo jurídico de ambas as penas e determinar a pena única a aplicar-lhe. Em matéria de concurso de crimes importa ter em conta o disposto nos seguintes artigos do Cód. Penal: “Artigo 77.º - Regras da punição do concurso 1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2- A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. 3- Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores. 4- As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.” A moldura do cúmulo jurídico da pena única a aplicar ao arguido será de fixar entre um mínimo de 2 anos e 8 meses de prisão e 5 anos e 8 meses de prisão. Considerando os factos dados como provados e a personalidade do agente demonstrada no cometimento dos mesmos, reveladora de uma personalidade desprovida dos valores do respeito que deve existir entre os membros de um agregado familiar e da integridade física e psíquica dos mesmos, entende-se aplicar ao arguido AA, em cúmulo jurídico a pena única de 4 anos de prisão. Uma vez que a pena única ora aplicada ao arguido é inferior a cinco anos de prisão, importa ponderar se a mesma deve ou não ser suspensa na sua execução. Quanto à suspensão da execução da pena de prisão, há que atentar no disposto no art.º 50º do Cód. Penal, onde se prevê que: “1– O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2– O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova. 3– Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente. 4– A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições. 5– O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.” A suspensão da execução da pena de prisão, enquanto verdadeira pena de substituição, só pode ser aplicada se for possível fazer, à data da decisão, um juízo de prognose favorável de que uma suspensão de pena seja suficiente para afastar o arguido da prática de novos factos ilícitos. Nesse momento não estão em causa considerações sobre a culpa do agente, nem sobre o seu passado criminal, mas sobretudo prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção e de ressocialização do mesmo, a fim de prevenir a reincidência. Importa, pois, determinar se existe, com base nos factos apurados, uma esperança séria de que é possível a socialização do arguido em liberdade e de que o mesmo tem capacidade para se auto-controlar, pautar os seus comportamentos pela obediência às normas jurídicas e evitar o cometimento de novos crimes. Nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, a averiguação de tal capacidade deve, no entanto, ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou. Se no momento em que a decisão é tomada, se concluir que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são aptos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, então deverá ser decretada a suspensão da execução da pena. No caso dos autos, pondera em favor do arguido a sua inserção socio-profissional e a ausência de antecedentes criminais. Em seu desfavor pondera a ausência de confissão e de arrependimento, o que demonstra ausência de consciência do desvalor da sua conduta criminosa. Não se discute que são muito elevadas as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de crimes. No entanto, no momento de decidir pela suspensão da execução da pena de prisão o que importa considerar são as exigências mínimas de prevenção e de ressocialização do arguido, a fim de prevenir a reincidência. Em face da factualidade apurada, entende-se que ainda é possível formular um novo juízo de prognose favorável sobre a possibilidade de a ameaça de pena ser bastante para evitar que o arguido volte a cometer crimes. Em face de tudo o exposto, impõe-se concluir que as exigências de prevenção especial e de socialização do arguido ainda se satisfazem com a suspensão da execução da pena única de prisão ora aplicada, a qual deverá ser suspensa pelo período de cinco anos, com sujeição a um regime de prova, a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, executado com apoio e vigilância, com o objectivo de trabalhar a personalidade do arguido de modo a torná-lo mais empático e com maior compreensão e sensibilidade pelas necessidades específicas das mulheres e das crianças. O Ministério Público requereu ainda a aplicação ao arguido das penas acessórias previstas no art.º 152º, nºs 4 e 5, do Cód. Penal. Sucede, porém, que a aplicação destas penas não é de efeito automático, devendo as mesmas ser aplicadas caso tal se justifique. Nos presentes autos, considerando as exigências de prevenção especial em causa, o facto de a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ter ficado subordinada a regime de prova e não resultar dos autos que arguido e assistente não se possam encontrar, nomeadamente para resolverem os assuntos relativos ao exercício das responsabilidades parentais das duas filhas menores, entende-se não ser de aplicar qualquer pena acessória, sem prejuízo das restrições que possam existir ou virem a existir ao exercício das responsabilidades parentais das menores por parte do arguido, a regular em sede tutelar cível. Formulou ainda a assistente um pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de €8.000, acrescida de juros de mora desde a data da notificação e até efectivo e integral pagamento. De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos: a)-o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros; b)- o nexo de imputação do facto ao lesante; c)- a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito; d)- o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima. Segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Ainda segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão. A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento (cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443). Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis. Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1). O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pág. 606). A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado. Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção. Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais. Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso. Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral. É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação. A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral (cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375). Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, 2003, pág. 602 e seguintes). Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórias da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero (cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512). No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”. Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios. No caso dos autos, apurou-se que, como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB receou pela sua segurança, tendo sentido angústia, revolta, horror, medo e ansiedade. Estes danos morais sofridos pela assistente em resultado dos sucessivos actos do arguido, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhe uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos. Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso. Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado das lesadas à custa do lesante. Analisando a factualidade apurada, tendo em conta as condições económicas do arguido apuradas nos autos e fazendo apelo à equidade, considera-se justo e proporcional condenar o arguido a pagar à assistente o montante de 6.000 € (seis mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, contados desde a data da notificação do arguido da dedução do pedido cível até integral pagamento, nos termos previstos no art.º 805º, nº 3 do Cód. Civil. * 4.–Decisão: Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em: A.–Julgar improcedente o recurso apresentado por AA; B.–Julgar parcialmente procedente o recurso apresentado por BB, e, em consequência: - revogam a decisão recorrida na parte em que absolveu o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo art.º 152º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2, alínea a), nºs 4 a 6 do Cód. Penal, perpetrado na pessoa de BB; - condenam o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo art.º 152º, nº 1, alíneas b) e c) e nº 2, alínea a) do Cód. Penal, perpetrado na pessoa de BB, na pena de três anos de prisão; - operando o cúmulo jurídico das penas parcelares de três anos de prisão pela prática, do crime de violência doméstica agravado, perpetrado na pessoa de BB e de dois anos e oito meses de prisão pela prática, do crime de violência doméstica agravado, perpetrado na pessoa de CC, condenam o arguido AA na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, com sujeição a regime de prova a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, executado com apoio e vigilância, com o objectivo de trabalhar a personalidade do arguido de modo a torná-lo mais empático e com maior compreensão e sensibilidade pelas necessidades específicas das mulheres e das crianças; - condenam o arguido AA a pagar a BB a quantia de 6.000 € (seis mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da notificação do arguido do pedido cível até efectivo e integral pagamento; - absolvem o arguido AA da restante parte do pedido de indemnização contra si deduzido nestes autos por BB; - no mais confirmam a decisão recorrida. C)–Quanto às custas do recurso, decidem que as mesmas ficarão a cargo: - na parte criminal do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s; - na parte cível do demandado na proporção de 3/4 e da demandante na proporção de 1/4. Lisboa, 4 de Junho de 2024 (texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora) Carla Francisco (Relatora) Ana Cláudia Nogueira Sandra Oliveira Pinto (Adjuntas) |