Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA | ||
Descritores: | SOCIEDADE COMERCIAL SÓCIOS GERENTES RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL TRIBUNAL COMPETENTE JUÍZO DE COMÉRCIO JUÍZO LOCAL CÍVEL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | É o Juízo Local Cível (e não o Juízo de Comércio) o materialmente competente para preparar e julgar uma acção em que a A. pretende efectivar a responsabilidade contratual de uma sociedade comercial (que, entretanto, passou a ser representada na acção pelos dois sócios, ao abrigo do disposto no art.º 162.º, n.º 1 do CSC) pelo incumprimento do contrato de compra e venda entre ambas celebrado, bem como a responsabilidade extracontratual dos seus dois sócios e gerentes, por inobservância de disposições legais destinadas a proteger os interesses dos credores e por desconsideração da personalidade colectiva. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO 1.1. S, S.A, instaurou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Y, LDA, H e M, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe: «A) A INDEMNIZAÇÃO PREVISTA NO N.º 3 DA CLÁUSULA 8ª DOS CONTRATOS EM CAUSA, NO IMPORTE DE 20.000,00 EUR; B) OS JUROS DE MORA SOBRE A QUANTIA REFERIDA NA ANTERIOR ALÍNEA A), À TAXA LEGAL PARA AS DÍVIDAS COMERCIAIS, ATÉ À DATA DO EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO, IMPORTANDO OS JÁ VENCIDOS, NA PRESENTE DATA, EM 2.033,23 EUROS; 3 C) A DEVOLUÇÃO DA CONTRAPARTIDA CONCEDIDA PELA AUTORA, DEDUZIDA DA PARTE PROPORCIONAL CORRESPONDENTE AO PERÍODO DO CONTRATO CUMPRIDO, NO VALOR DE 12.000,00 EUR – CFR. N.º 4ª DA CITADA CLÁUSULA 8ª; D) OS JUROS SOBRE A QUANTIA REFERIDA NA ANTECEDENTE ALÍNEA C), À TAXA MÁXIMA PERMITIDA PELA APLICAÇÃO CONJUGADA DOS ARTIGOS 559.º, 559.º-A E 1146.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL, ATÉ AO EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO – CFR N.º 4 DA CITADA CLÁUSULA, IMPORTANDO OS JUROS JÁ VENCIDOS ATÉ 19/06/2016, EM 6.107,51 EUROS; E) TUDO NO MONTANTE GLOBAL DE 40.140,74 EUR. SUBSIDIARIAMENTE, CASO SE ENTENDA QUE O VALOR A PAGAR PELOS 2º E 3º RÉUS POSSUI UM CARÁCTER INDEMNIZATÓRIO, • QUE OS MESMOS SEJAM CONDENADOS A PAGAR À AUTORA UMA INDEMNIZAÇÃO IGUAL AOS VALORES REFERIDOS NAS ANTERIORES ALÍNEAS A), B), C) D) E E), ASSIM COMO JUROS VINCENDOS, CALCULADOS NOS MESMOS TERMOS, ATÉ INTEGRAL E EFECTIVO PAGAMENTO. G) TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS». Assenta a responsabilidade da 1.ª R. no facto de esta ter celebrado com a A. um contrato de compra e venda exclusiva e de o ter incumprido culposamente, o que determinou a resolução do mesmo por iniciativa da A. e a exigência de uma indemnização contratual. Considera que os 2.º e 3.º RR., na qualidade de gerente de facto e de direito da 1.ª R., são, também, responsáveis pelo pagamento do crédito referido ou de uma indemnização equivalente ao mesmo, porquanto: - mantiveram um administração dolosa e de má-fé, inobservando as disposições legais destinadas a proteger os interesse dos credores (arts. 64.º e 78.º do CSC e 164.º, n.º 2 do CC); - dissiparam bens da sociedade e tornaram o seu património insuficiente para satisfação dos seu débitos, o que os faz incorrer em responsabilidade civil extracontratual perante os credores, tornando legítima a derrogação do princípio da separação entre o ente societário e as pessoas que, em seu nome e representação, actuaram, possibilitando que os credores ataquem os seus bens pessoais; - incumpriram o dever de apresentação e depósito das contas societárias, o que viola o disposto nos arts. 65.º, 65.º-A e 66.º do CSC e o art.º 3.º, n.º 1 al n) do CRC, que contêm normas que, também, visam a protecção dos credores e cuja inobservância gera responsabilidade civil dos 2.º e 3.º RR.; - não tomaram as medidas adequadas para pôr termo à situação de perda de capital social da 1.ª R., incumprindo o disposto no art.º 35.º do CSC, o que se repercutiu no seu património, tornando-o insuficiente para satisfação dos créditos dos credores; - inobservaram o dever de apresentação atempada à insolvência, com o intuito de prejudicar os credores sociais e tornar impossível o pagamento dos seus créditos, o que gera responsabilidade civil dos 2.º e 3.º RR.; - ocultaram perante a A. a situação financeira da 1.ª R., impedindo-a de compreender a sua situação patrimonial à data da celebração do contrato; - transmitiram o estabelecimento comercial onde o contrato celebrado com a A. deveria ter sido cumprido e integraram o valor da transmissão nos seus patrimónios pessoais, tornando o património da 1.ª R. insuficiente para satisfação dos seus débitos, incorrendo, por isso, em responsabilidade civil extracontratual perante os credores. 1.2. Apenas o 2.º R. apresentou contestação, que concluiu nos seguintes termos: «deverá a globalidade da pretensão do Autor ser declarada improcedente por não provada, ordenando a extinção da instância, nos termos da al. e), do artigo 277.º do CPC. Caso assim não se interprete, deverá o 2.º Réu ser absolvido da instância, nos termos da alínea e), do número 1, do artigo 278.º, do artigo 577.º e do artigo 578.º todos do CPC ou, ainda que assim não se entenda, o que não se concede mas por dever de patrocínio se aventa, sempre deverá o 2.º Réu ser absolvido da totalidade dos pedidos, nos termos do número 3, do artigo 576.º do CPC, do número 2, do artigo 762.º do C.Civil, e dos números 3 e 4 do artigo 82.º, dos números 1 e 2 do artigo 146.º, do artigo 148.º e do número 1, do artigo 188.º, todos do CIRE». 1.3. A A. respondeu, por escrito, às excepções deduzidas pelo 2.º R., propugnando pela sua improcedência. 1.4. Foi, entretanto, proferido o seguinte despacho: «Encontrando-se a sociedade a Ré “Y, Lda.” extinta em razão do encerramento da respectiva liquidação e cancelamento da matrícula – artigo 160.º, n.º 2, das Sociedades Comerciais, a mesma é processualmente substituída pela generalidade dos respectivos sócios, representados liquidatários. Desta forma os igualmente Réus H e M, na qualidade de sócios, substituem processualmente a mesma, o que declaro». 1.5. Após vicissitudes várias, foi proferido despacho que culminou com o seguinte dispositivo: «julga-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, e, em consequência: (i) Absolvem-se os Réus H e M da instância; (ii) Condena-se a Autora S, S.A., em custas». 1.6. Inconformada apelou a A., pedindo que aquela decisão seja revogada e que se considere o tribunal cível competente em razão da matéria para conhecer do objecto da acção, formulando, para tanto, as seguintes conclusões: «1º Vem o presente recurso de apelação interposto da douta decisão 02/06/2024 que, além do mais, absolveu os 2º e 3º réus da instância por incompetência material do Tribunal Cível. 2º S. m. o. sem razão. Na verdade, 3º Nos presentes autos, veio a autora peticionar o cumprimento de uma obrigação de dívida comercial da sociedade Y (1ª Ré), com responsabilização dos 2º e 3º réus, invocando que (1) a autora celebrou com a 1ª ré o contrato invocado nos autos; (2) a 1ª ré explorava o estabelecimento comercial onde tal contrato deveria ter sido cumprido; (3) e que os 2º e 3ª réus eram à data dos factos infra aludidos sócios-gerentes daquela sociedade. 4º Na petição inicial, foram alegados factos que consubstanciam a sua atuação culposa: (1) relativamente ao não cumprimento do contrato: artºs 18 ao 46 da p. i.; e (2) relativamente à responsabilidade dos 2º e 3º réus como sócios-gerentes: artºs 47 a 185 da p. i., nomeadamente por incumprimento do dever de proteção dos credores sociais, por dissipação de bens e confusão de patrimónios, por incumprimento do dever de apresentação e depósito das contas societárias, por inércia face à situação de perda de metade do capital social, por inobservância do dever 44 de apresentação à insolvência, por ocultação da situação financeira da empresa, por violação contratual na transmissão do estabelecimento. 5º Mais foi invocado que os 2º e 3º réus respondiam solidariamente pela dívida da 1ª ré, porque teriam agido de má fé e com abuso de direito, no sentido da frustração dos créditos da autora, sendo delitualmente (ou extracontratualmente) responsáveis – artºs 483 e sgs, v. g. art.º 490, CC, procurando, unicamente, que a 1ª ré nada pagasse à autora. 6º No decurso do processo, foi dada notícia da dissolução da sociedade 1ª Ré, Y, e, na sequência da mesma, foi pela Autora requerido (cfr., requerimento de 12/06/2019, com a Refª: 32712107) que os 2º e 3º Réus passassem a substituir nos presentes autos a sociedade dissolvida e extinta, ordenando-se o prosseguimento dos respetivos trâmites processuais. 7º Então, passaram os 2º e 3º Réus a ser demandados numa dupla qualidade: (1) Como co-obrigados (sócios-gerentes) pelas dívidas da sociedade Y junto da Autora; (2) Como (sócios) representantes da 1ª Ré, entretanto dissolvida. 8º Levantada a questão da competência material do Tribunal Cível, a Autora, por requerimento de 31/01/2024 (Refª: 47832900) defendeu que o Juízo Local Cível de Lisboa deveria ser considerado competente, em razão da matéria, para os presentes autos. 9º Assim não entendeu a douta decisão recorrida que absolveu da instância os referidos 2º e 3º réus com base na aludida incompetência material. 10º Fê-lo, em primeiro lugar, esquecendo a dupla qualidade (antes referida) em que os 2º e 3º Réus passaram a ser demandados: (1) não só como co-obrigados pelas dívidas da sociedade Y junto da Autora; mas também (2) como representantes da 1ª Ré, entretanto dissolvida, sendo certo que, pelo menos, esta segunda qualidade, não levanta qualquer questão relativamente à incompetência material do Tribunal Cível: os Réus passariam a representar tal sociedade numa ação tendente à sua condenação no pagamento à Autora de dívida comercial. 11º Em segundo lugar, há a anotar que as considerações do douto acórdão do Venerando STJ invocado pela douta decisão recorrida não têm aplicação ao presente caso (estava em causa ação de administrador e acionista, ligado por vínculo contratual à sociedade – hipótese que nada tem a ver com a dos autos). Depois, 12º Tendo em consideração o disposto no art.º 67.º do C. P. Civil, atual art.º 65 do N.C.P.C., e nos artºs 40º nº 1, 128º e 130º nº 1 da LOSJ, sendo o juízo sobre a competência em razão da matéria assente no tipo da relação controvertida contextualizada na ação, tal qual ela é configurada pelo demandante, a presente ação não se insere no grupo de ações relativas ao exercício de direitos sociais e, por isso, não pode ser julgada pelos tribunais de comércio. 13º Os direitos que a Autora pretende exercer relativamente aos 2º e 3º Réus não se reconduzem ao exercício de direitos sociais. 14º Tal pedido está baseado, (1) primeiro, nos normativos legais do CSC, invocados na petição inicial (que preveem a responsabilidade de gerentes e administradores perante a sociedade, sócios e terceiros), (2) depois, à cautela (prevenindo a hipótese de aqueles preceitos não permitirem corrigir a ilicitude das condutas em causa) foi o pedido baseado no instituto da desconsideração da personalidade coletiva (pelo qual o próprio ordenamento jurídico alargou a garantia e a responsabilidade para proteção dos credores); (3) finalmente, face à dissolução da sociedade 1ª Ré, foi requerida (como antes exposto) a representação desta pelos 2º e 3º Réus. 15º Não se pode, assim, aceitar a tese da douta sentença recorrida de que na categoria de direitos sociais cabem não só os sócios, mas também os credores terceiros da mesma, bastando, para tanto, que se preencha a previsão de que esteja em causa um direito conferido pelas normas que regulam a relação societária (o que, aliás, não seria o caso). 16º Se acaso fosse intenção do legislador delimitar o conceito de “direitos sociais” apenas pela circunstância de a sua fonte ser a legislação societária, mais facilmente exprimiria essa intenção dizendo isso mesmo. 17º E não o fez pois que tal opção conduziria a um alargamento excessivo da competência material dos tribunais de comércio, com distanciamento das razões subjacentes à especialização em razão da matéria. 18º Sendo a autora uma sociedade, e formulando na petição o pedido de condenação dos réus - sócios de uma outra sociedade (entretanto dissolvida) - em indemnização por danos alegadamente decorrentes de atos praticados pelos réus em seu prejuízo, a ação em apreço não deverá ser preparada e julgada pelos Juízos de Comércio, mas antes pelo Juízo Cível onde foi intentada. 19º A autora respeitou as exigências da alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, da alegação dos factos constitutivos do direito (artigos 5º e 264º nº 1 do CPC). 20º A presente ação não consubstancia o exercício dos “direitos sociais” referidos no artigo 128° n° 1º al. c), da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto): (1) Nem objetivamente (quanto à natureza da pretensão): a reparação solicitada não reverte a favor da sociedade; (2) Nem subjetivamente (quanto à qualidade em que a Autora agiu): a mesma não possui nenhum vínculo societário relativamente à 1ª Ré. 21º Assim, deve a douta sentença recorrida ser revogada, por ter violado por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido, nomeadamente considerando o tribunal cível competente em razão da matéria para conhecer da causa de pedir e pedidos formulados quanto aos 2º e 3º réus, ordenando o prosseguimento dos autos contra os mesmos, assim se fazendo Justiça». 1.7. O 2.º R. contra-alegou, propugnando pela confirmação da decisão recorrida, alinhando, para tanto, as seguintes conclusões: «A) A decisão de absolvição dos RR. da instância, por incompetência absoluta do Tribunal a quo, em razão da matéria, não merece censura. B) Porquanto, o objecto dos autos delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, nos termos configurados pela Recorrente, centra-se na responsabilidade dos gerentes, segundo critérios típicos do direito comercial societário e num contexto de insolvência da sociedade em que exerceram esse cargo, com fundamento no incumprimento, pelos RR., do contrato celebrado com a Recorrente, originando a obrigação de pagamento das quantias que são objecto do pedido, na declaração de insolvência da 1ª Ré, com encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente. C) Todos os credores devem reclamar a verificação dos seus créditos, devendo fazê-lo no momento e através do meio processual adequado, previsto na lei, nos termos do artigo 128.º do CIRE e, em última instância, em verificação ulterior. D) A Recorrente, com a instauração dos presentes autos, pretende vir reclamar o crédito que alegadamente detém sobre o Recorrido, contornando, desta vez, a previsão do disposto nos artigos 128.º e 146.º do CIRE. E) Assim, mesmo que a presente acção fosse julgada procedente, nenhum efeito jurídico contra a massa insolvente dela retiraria a Autora, pois a mesma seria inoperante perante os demais credores e massa insolvente, em observância ao princípio da igualdade de credores perante o património do insolvente. F) Com a declaração de insolvência do devedor, aquando do trânsito em julgado da sentença, as acções declarativas instauradas posteriormente, não são passíveis de ter prosseguimento, não tendo qualquer efeito útil. G) Por outro lado, e tal como perfilhado pela Mmª. Juiz a quo, considera-se que o objecto dos presentes autos, do modo como foram expostos pela Recorrente, se reportam a matéria que é da competência dos juízos de comércio, sendo o juízo local cível absolutamente incompetente para conhecer do mérito dos presentes autos. H) Nos termos do artigo 64.º do CPC, a competência dos tribunais judiciais é uma competência subsidiária, pois são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. I) Segundo o artigo 65.º do CPC, as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada. J) Em conformidade, o artigo 128.º da LOSJ determina quais as matérias que competem aos juízos de comércio julgar e preparar. K) Mais precisamente, nos termos da alínea c), n.º 1 do referido preceito, competem aos juízos de comércio julgar e preparar as acções relativas ao exercício de direitos sociais. L) Ora, tem sido entendimento da jurisprudência maioritário (vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2024, proc. 10009/19.5T8LSB-H.L1-A.S1) que: “A competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor. É, portanto, a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é o tribunal (ou a jurisdição) competente para a apreciação do mesmo; M) E, contrariamente ao que a Recorrente quer fazer valer, “O conceito de direitos sociais, para efeitos da alínea c) do art.º 128º da LOSJ., não se reduz aos direitos específicos dos sócios, mas tem-se exigido que os direitos a exercer respeitem a matéria especificamente regida pelo direito societário, tendo em consideração o pedido e a causa de pedir formulados”. N) Face a todo o exposto, e atendendo, em especial, ao objecto dos presentes autos, e ao modo como se encontra delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, formulados pela Recorrente, conclui-se que o mesmo se na responsabilidade dos gerentes (ou seja, do Recorrido e do 3º. R.), segundo critérios típicos do direito comercial societário e num contexto de insolvência da 1ª. R., em que exerceram o Recorrido e o 3º. R. esse cargo, sendo, como tal, um litígio respeitante a direitos sociais; pelo exposto, encontra-se preenchida a previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, verificando-se uma excepção dilatória de incompetência (absoluta) em razão da matéria, que determina na absolvição da instância do Recorrido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a), 577.º, al. a) e 578.º, todos do CPC; O) Devendo o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra a Decisão recorrida, assim se fazendo a tão acostumada Justiça!». 1.8. Colhidos os vistos, importa decidir. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106), sendo que o tribunal ad quem não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5.º, n.º 3 do CPC). Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, a questão essencial a decidir consiste em saber se o Juízo Local Cível de Lisboa é ou não competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção. III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Os factos relevantes a atender para efeitos de apreciação do objecto do presente recurso são os que dimanam do antecedente relatório (ponto I deste acórdão). IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Conforme se referiu, a questão essencial a decidir consiste em saber se o Juízo Local Cível de Lisboa é ou não competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção. O tribunal a quo entendeu que «o objecto dos autos, tal como configurado pela autora, delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, centra-se na responsabilidade dos gerentes, segundo critérios típicos do direito comercial societário e num contexto de insolvência da sociedade em que exerceram esse cargo (cf. art.º 78.º, n.º 1 do CSC), sendo, como tal, um litígio respeitante a direitos sociais; pelo exposto, encontra-se preenchida a previsão do art.º 128.º, n.º 1, al. c) da LOSJ, supra transcrita, estando o conhecimento da matéria dos autos excluído da competência deste tribunal (cf. 130.º, n.º 1 da LOSJ)». Vejamos. É incontroverso que a apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir, tal como são configurados na petição inicial, em confronto com as normas delimitadoras da competência, sendo irrelevante o juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão (cfr. por exemplo, Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 91; Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, 1970, p. 379; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, 2108, p. 97; acórdãos da RP de 21.06.2021, da RL de 21.03.2023, da RG de 23.03.2023, in www.dgsi.pt). Ora, a competência material dos juízos de comércio mostra-se definida pela norma atributiva de competência contida no art.º 128.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26.08), que dispõe que: «1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades; f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. 2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. 3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões». Por sua vez, de acordo com o preceituado no n.º 1 do art.º 130.º da LOSJ, «os juízos locais cíveis (…) possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada». Atentando nos pedidos formulados pela A. e nos respectivos fundamentos, temos que, no que respeita à 1.ª R., a A. pretende, na presente acção, efectivar a sua responsabilidade contratual, pelo incumprimento do contrato de compra e venda celebrado entre ambas. Trata-se de matéria, clara e inequivocamente, do foro cível, para a qual são competentes os tribunais cíveis, atenta a competência residual destes e a circunstância de aquela matéria não integrar nenhum das alíneas do art.º 128.º da LOSJ supra citado. Em virtude da extinção da 1.ª R., foi a mesma substituída na acção pelos 2.º e 3.º RR., na qualidade de seus sócios, nos termos previstos no art.º 162.º, n.º 1, do CSC, onde se dispõe que «as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5» (cfr. despacho referido no ponto 1.4.). A substituição processual da 1.ª R. pelos 2.º e 3.º RR. não modifica, obviamente, o tipo ou a natureza da responsabilidade que é assacada àquela e que a A. pretende fazer valer. Os 2.º e 3.º RR. passaram, pois, a representar a 1.ª R., entretanto extinta, numa acção que visa a condenação desta no pagamento à A. de uma dívida contratual. Por conseguinte, os pedidos formulados na acção, na medida em que são dirigidos à 1.ª R. (agora substituída pelos 2.º e 3.º RR.), e a respectiva causa de pedir, mantêm-se inalterados, continuando, inequivocamente, o seu conhecimento a ser da competência dos tribunais cíveis. Os 2.º e 3.º RR. foram, também, demandados, como responsáveis em nome próprio, nos termos supra sumariados no ponto 1.1. deste acórdão. Será tal matéria respeitante ao exercício de “direitos sociais”, para os efeitos previstos na al. c) do n.º 1 do 128.º da LOSJ, como entendeu o tribunal a quo? Não cremos. A lei não define o que sejam “direitos sociais”, para efeitos de enquadramento na referida al. c). A doutrina e a jurisprudência maioritárias têm entendido que “direitos sociais”, para efeitos de aplicação do disposto naquele preceito, são direitos ou prerrogativas inerentes à qualidade de sócio de uma sociedade, decorrentes do próprio contrato de sociedade e tendentes à protecção do sócio, no âmbito dos seus interesses sociais, o que exclui aqueles outros direitos de que os sócios são titulares independentemente dessa sua qualidade ou em que essa qualidade é irrelevante para o exercício do direito (cfr. Raul Ventura, Reflexões sobre Direitos dos Sócios, C.J Ano IX– 1984, II, p.7; Ferrer Correia, Sociedades Comerciais, p. 348 e ss.; Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, II, 4.ª, p. 305 e ss; Pupo Correia, Direito Comercial, 7.ª ed., p.517; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, Das Sociedades, p. 205 e ss; Paulo Olavo e Cunha, Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios (das sociedades responsabilidade limitada) no âmbito do Código das Sociedades Comerciais, in Novas Perspetivas do Direito Comercial). Na jurisprudência, vejam-se, por exemplo, os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: - do STJ de 07.06.2011: direitos sociais são «todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais»; - do STJ de 15.09.2011: «direitos sociais são todas aquelas prerrogativas dirigidas à protecção de cada sócio de uma particularizada sociedade, mercê, exclusivamente, da qualidade de sócio que lhes está conferida; são direitos que advêm ao sócio por força do pacto de sociedade conscientemente aceite e neste ambiente contratual exercidos»; - da RL 18.01.2018: direitos sociais «são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade», não revestindo tais características os direitos de que os sócios são igualmente titulares, mas agora independentemente da sua qualidade de sócios, a qual já não releva para o exercício do direito, representando antes direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, e numa posição semelhante à de terceiros; - da RP de 21.06.2021: «exercício de direitos que se integram na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, direitos que são inerentes à qualidade e estatuto de sócio e são dirigidos à proteção dos seus interesses sociais»; - da RL de 21.03.2023: «para efeitos de integração da competência material do Tribunal de Comércio no art.º 128º nº 1, al. c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, deve-se entender que os “direitos sociais” aí referidos são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade». Não desconhecemos o entendimento perfilhado no acórdão do STJ de 24.02.2022, disponível em www.dgsi.pt., citado na decisão recorrida, que considerou que «A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais». Também o acórdão da RG de 23.03.2023, in www.dgsi.pt, decidiu que: «O conceito normativo de exercício de “direitos sociais”, para efeitos do artigo 128.º, n.º 1, al. c) da LOSJ, deve ser interpretado em sentido amplo, compreendendo não apenas o exercício de direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade». Sucede que o primeiro acórdão referido (de 24.02.2022) versou uma situação distinta da dos presentes autos, pois que nele estava em causa o pedido de condenação de uma sociedade anónima no pagamento das remunerações de um seu administrador, estando, portanto, o demandante ligado à sociedade por um vínculo contratual e pretendendo exercer um direito de que, alegadamente, era titular nessa qualidade e cuja apreciação convocava o regime específico da legislação sobre sociedades comerciais. Já no segundo acórdão citado (de 23.03.2023), pretendia-se o reconhecimento do direito à execução específica de um acordo relativo à aquisição definitiva, a favor do A., da totalidade das acções representativas do capital social de uma sociedade, da titularidade dos RR., com prolação de decisão judicial que produzisse os efeitos da declaração negocial destes de transmissão imediata a favor da A. e os efeitos dos actos materiais de transferência da titularidade dessas acções, sem quaisquer outras formalidades, mormente, a prevista no art.º 102.º do Código de Valores Mobiliários. Ora, no caso dos autos, a A. é um terceiro à sociedade e, embora invoque preceitos do CSC e do CIRE, apresenta-se a efectivar a responsabilidade civil extracontratual dos 2.º e 3.º RR. pelos prejuízos por si sofridos, em consequência da actividade ou conduta daqueles RR., que considera ser ilícita, por violadora de normas legais destinadas a proteger o interesse da A. e por utilização ilícita e abusiva da pessoa colectiva, com o propósito de prejudicar a A. e de obter proveitos para si. Em face do pedido e da causa de pedir, não pode, salvo melhor opinião, considerar-se que a presente acção corresponde ao exercício de um direito social de que a A. seja titular: o alegado direito da A. e, por conseguinte, o pedido que formula contra os 2.º e 3.º RR., enquanto sócios e gerentes, emerge da pretensa responsabilidade delitual dos mesmos, que, embora tendo como fundamento actos e omissões praticados naquela qualidade, não tem como suporte qualquer direito dos sócios enquanto tal, mas normas legais destinadas a proteger terceiros (ainda que, muitas delas, previstas em legislação societária). Estão em causa actos e omissões praticados por sócios e gerentes de uma sociedade comercial na qual a A. não tem qualquer participação social, sendo aplicável o regime jurídico que emerge do direito civil em geral (mormente, do art.º 483.º do CC), com alguma conexão com o regime que emerge do Código das Sociedades Comerciais (na identificação da “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” ilicitamente violada), mas sem respeitar ao exercício de qualquer direito social. Desta forma, impõe-se concluir que o pedido deduzido e a respectiva causa de pedir não respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário. Também no que concerne ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica convocado pela A., o mesmo é, como lembra a recorrente, um instituto autónomo, não consubstanciando o exercício de um “direito social”, mas uma reacção do sistema jurídico a formas anómalas do exercício daqueles direitos. Tal como bem defende a recorrente «A presente ação não consubstancia o exercício dos “direitos sociais” referidos no artigo 128° n° 1º al. c), da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto): (1) nem objetivamente (quanto à natureza da pretensão): a reparação solicitada não reverte a favor da sociedade; (2) nem subjetivamente (quanto à qualidade em que a Autora agiu): a mesma não possui nenhum vínculo societário relativamente à 1ª Ré». Enfim, em nossa opinião, não é legítimo considerar que estamos perante o exercício de “direitos sociais” só porque se apela a disposições decorrentes da legislação societária. Para nós, o conceito de “direitos sociais”, embora não se cinja a direitos de que são titulares os sócios em sentido estrito, não abarca qualquer direito de terceiros apoiado em legislação societária, sendo, pelo menos, necessário que tal direito seja conferido, directamente, pelas normas que regulam a relação societária. Entender o contrário traduzir-se-ia num alargamento excessivo da competência material dos tribunais de comércio e numa desconsideração das razões subjacentes à sua especialização em razão da matéria. Não se acompanha, pois, o entendimento perfilhado na decisão recorrida, segundo qual cabem na categoria de direitos sociais os direitos de credores, terceiros a uma determinada sociedade, desde que se invoque normas que regulam a actividade societária. Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão da RP de 29.09.2021, in www.dgsi.pt: «sendo a autora uma sociedade, e formulando na petição o pedido de condenação dos réus - sócios de uma outra sociedade (entretanto declarada insolvente) -, em indemnização por danos alegadamente decorrentes de atos praticados pelos réus em seu prejuízo, a ação em apreço não deverá ser preparada e julgada pelos Juízos de Comércio, mas antes pelo Juízo Cível onde foi intentada (…)». Concluímos, pois, que o juízo cível é o tribunal, materialmente, competente para preparar e julgar a presente acção. Destarte, o recurso deve ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho recorrido. V – DECISÃO Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o Juízo Local Cível de Lisboa materialmente competente para preparar e julgar a presente acção. Custas da apelação pelos recorridos. Notifique. Lisboa, 16/1/2025 Rui Manuel Pinheiro de Oliveira Marília Fontes Cristina Lourenço |