Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16/22.6PEALM.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DOMICÍLIO COMUM
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I - Refletindo-se nos contornos da decisão de facto, o princípio in dubio pro reo somente será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, apenas nesse caso, decidir a favor do arguido.
II - A agravante “domicílio comum”, enquanto circunstância a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 152.º do CP, traduz o propósito de se punir de forma grave os casos de violência doméstica potenciados pela limitação da vítima ao espaço do domicílio e pela ausência de testemunhas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum coletivo n.º 16/22.6PEALM do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 1, em que é arguido AA, melhor identificado nos autos, foi proferido acórdão a 11.01.2024, que decidiu, para o que importa, nos seguintes termos:
a. Absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.ºs 1 e 2, als. b) e j), 131.º n.º 1, 22.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), e 23.º, n.º 1 do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, do Decreto Lei n.º 5/96 de 23.02;
b. Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 al. b) e 2, als. a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, pelo período de três anos;
c. Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 144.º, al. a), e 145.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
d. em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, das penas de prisão referidas nas alíneas b) e c), na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
e. Condenar o arguido AA a pagar à demandante BB, o montante global de €40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros moratórios desde a data da decisão até integral pagamento, absolvendo-se quanto ao mais peticionado.
2. Recurso Arguido
Não se conformando com a sua condenação, veio o arguido interpor recurso da decisão proferida, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O arguido, ora recorrente, tendo sido condenado por douto acórdão, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática como autor material na forma consumada de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 al. b) e 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto punido pelo artigo 144º, al. a), e 145º, nº 1, al. c), e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 1 e 2, al. b), todos do Código Penal e não se conformando com o mesmo, vem expor as suas razões de discordância.
2. Pelo que, o presente Recurso tem por objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e de direito, nos termos do art. 412º n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, bem como a reapreciação da medida e excessividade das penas que lhe foram aplicadas.
3. Nesse sentido, deve ter-se presente que para haver uma condenação é exigível que o Digníssimo Magistrado tenha chegado a um estado de certeza, não valendo uma mera probabilidade.
4. No entanto, in casu, da análise da douta decisão ora recorrida em confronto com a prova produzida em julgamento e a prova constante nestes autos, parece-nos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que o Tribunal a quo na condenação do arguido pela prática do crime de violência agravada, incorreu em erro de julgamento por insuficiência de prova e incorreta valoração desta.
5. Desde logo por ser manifesto que da prova produzida não se pode inferir o facto de o arguido ter praticado esse crime e muito menos de se verificar a sua agravante.
6. Vejamos, o Tribunal a quo, na tomada da sua decisão sobre a matéria de facto, analisou e apreciou as declarações da ofendida, as declarações do arguido e os inúmeros depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, bem como a prova documental e pericial junta aos autos.
7. E na sua ponderação e análise dessas provas deu como provados os factos elencados no douto acórdão.
8. Contudo, o que se constata é que o único meio de prova que o Tribunal valorou nesse sentido, foram única e exclusivamente as declarações da ofendida e nada mais, porque efectivamente não houve mais nenhuma prova que corroborasse o alegado pela ofendida.
9. Ora, em sentido completamente oposto, temos as declarações do arguido que nega peremptóriamente a prática de quaisquer actos violentos contra a ofendida no que concerne ao crime de violência doméstica, bem como das testemunhas apresentadas por este.
10. Do mesmo modo, o teor do relatório social elaborado pela DGRSP corrobora a posição do arguido.
11. Pelo que, face ao exposto, não se compreende e não se pode aceitar, que as declarações do arguido e das suas testemunhas, não tenham merecido credibilidade por parte do Tribunal a quo, ao contrário das declarações prestadas pela ofendida.
12. Quando inclusive, é o próprio julgador quem nos Factos Não Provados, dá como não provado diversos factos alegados pela ofendida, apresentando assim, no nosso modesto entendimento, reservas e dúvidas perante o alegado.
13. Posto isto, ficamos perante factos alegadamente ocorridos dentro da residência de ambos, não só desmentidos veementemente pelo arguido, mas também por duas testemunhas que corroboram as declarações deste, enquanto que do outro lado, mais uma vez, não existe qualquer outra prova do alegado pela ofendida.
14. Pelo que, as meras declarações da ofendida, sem qualquer outro suporte, indício ou elemento probatório, não são a nosso ver, suficientes para que se possa considerar provados, sem dar azo a legítimas dúvidas, os factos de que vem o arguido acusado, nomeadamente no que concerne à prática do crime de violência doméstica
15. Não dispondo assim o Tribunal a quo, no nosso modesto entendimento, de elementos probatórios suficientes que lhe permitissem fazer um juízo seguro sobre essa autoria.
16. Sendo que à luz do Princípio in dubio pro reo, não devem ser julgados provados os factos relevantes para a decisão que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos a dúvida razoável, traduzindo-se na imposição de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido - a dúvida resolve-se a favor do arguido/recorrente.
17. Por isso e sem necessidade de mais considerações, o Tribunal a quo com a sua decisão, violou o artigo 127.º do C.P.Penal, na medida em que formou a sua convicção com liberdade excessiva ao decidir erradamente, contra as provas apresentadas e ao considerar a inexistência de dúvidas no que respeita à prática por parte do arguido do crime de violência doméstica.
18. Violou o Princípio in dubio pro reo, plasmado no n.º 2, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, sendo este a expressão máxima em matéria de prova do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, não devendo o julgador desfavorecer o arguido sempre que não logre prova do facto para além de toda a dúvida razoável. Por outras palavras, na dúvida, deve julgar a favor do réu.
19. Por último, é manifesta a insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto provada, o que consubstancia um erro notório na apreciação da prova nos termos do n.º 2 do art. 410º do C.P.Penal.
20. Pelo que deverá a douta decisão, ora impugnada, ser substituída por outra dando como Não Provados os factos do ponto 4 ao ponto 22, conforme o ora alegado, sendo consequentemente o recorrente absolvido da prática do crime de violência doméstica agravada.
21. Contudo, caso o entendimento seja no sentido de se considerar a existência de matéria de facto que consubstancie a prática do aludido crime pelo arguido, o que em mera hipótese se concede, deverá cair a agravante prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 152º do C.Penal, uma vez que, face à prova produzida, não se pode dar como provada essa agravante, devendo o arguido ser condenado por um crime de violência doméstica pelo art. 152º n.º 1, alínea b), do mesmo Diploma Legal, com a respectiva redução da pena que lhe foi aplicada, bem como do montante do pedido cível.
22. Quanto à medida e excessividade das penas que lhe foram aplicadas, e cúmulo operado, são manifestamente excessivas, tendo em consideração que face a tudo o que foi acima exposto e as finalidades subjacentes à aplicação e condenação numa pena, deveria o Tribunal a quo na determinação da medida concreta da pena a aplicar, ter feito um juízo mais consentâneo e conforme à situação ora em apreço, ponderando no sentido da aplicação de uma pena mais reduzida do que a efectivamente decidida.
23. Pelo que, no nosso entender, in casu e com o devido respeito, o douto acórdão errou ao não ponderar correctamente os princípios subjacentes à escolha e determinação das penas aplicadas - consagrados no Código Penal nos seus artigos 40º, 70º e 71º - uma vez que as circunstâncias atinentes, diminuem significativamente o grau de culpabilidade do arguido.
24. Crendo-se sinceramente que existe inequivocamente uma forte e séria expectativa favorável de actuação futura do arguido, no sentido de vir a ter novamente a sua vida ordenada e conforme ao Direito.
25. Pelo que, face a todo o circunstancialismo apurado sobre o arguido, deveria ter o Tribunal a quo no critério da escolha das penas aplicadas ao arguido, bem como na determinação da sua medida, ter decidido em conformidade com os Princípios da Proporcionalidade e da Adequação, reduzindo-as, uma vez que se revelam manifestamente desproporcionais e excessivas.
26. Sendo manifesto, que na situação em apreço, as penas aplicadas extravasam claramente as necessidades de prevenção geral, bem como as necessidades de prevenção especial das mesmas, porquanto não existe peremptóriamente o perigo para a sociedade de o arguido voltar a delinquir novamente.
27. Nesse sentido e por se afigurar mais consentâneo, adequado e proporcional ao caso em apreço, deverão as penas aplicadas ao arguido serem reduzidas para os seus mínimos, nomeadamente para uma pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática do crime de violência doméstica e uma pena de 3 (três) anos de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física grave qualificada.
28. Chegando a este ponto e operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos termos e limites previstos no art. 77º do Código Penal, a sua condenação numa pena única de 4 (anos) de prisão, será mais adequada, proporcional e justa ao caso em apreço.
29. E como corolário e não descurando as necessidades de prevenção e finalidades da punição, deverá essa pena única de 4 (quatro) anos de prisão, ser suspensa na sua execução por igual período, promovendo-se e alcançando-se assim desse modo, a ressocialização do agente e a sua plena reintegração na sociedade - princípio norteador do sistema penal português.
30. Sendo essa a reacção penal por excelência ao caso sub judice, satisfazendo desse modo, simultaneamente, as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
3. Resposta Ministério Público
O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, mas sem formular conclusões.
4. Resposta Assistente
De igual modo a assistente BB apresentou resposta ao recurso pelo arguido, subscrevendo o acórdão recorrido e pugnando, sem formular conclusões, pela improcedência do recurso.
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso e manutenção do acórdão recorrido.
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, face às conclusões extraídas pelo arguido da motivação do recurso interposto, cumpre apreciar as seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto: ponto 4 ao ponto 22 dos factos provados e vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP);
- impugnação da matéria direito: violação do princípio in dubio pro reo; qualificação jurídica (subsunção jurídica dos factos que, a manterem-se, devem apenas integrar o art. 152.º, n.º 1, al. b), com prejuízo da agravante prevista na alínea a) do n.º 2 da mesma disposição legal); quantum das penas parcelares e respetivo cúmulo jurídico; suspensão da execução.
2. Do acórdão recorrido
Factos Provados
1. O arguido AA e a ofendida BB iniciaram uma relação extraconjugal, no ano de 2012, tendo passado a viver como se de marido e mulher se tratassem, em data não apurada do ano de 2014.
2. Arguido e ofendida fixaram a residência conjugal na ....
3. A relação foi pautada por várias separações e terminou definitivamente em dia não concretamente apurado do mês de setembro de 2022.
4. Desde o início da relação e devido a ciúmes, o arguido controlava os movimentos da ofendida no seu dia a dia, nomeadamente querendo sempre saber a que horas esta ia trabalhar, onde estava e com quem estava.
5. A partir do ano de 2017, durante a constância da relação, em consequência dos ciúmes que sentiam mutuamente, em datas não apuradas, mas três a quatro vezes por ano, surgiam discussões entre o arguido e a ofendida.
1. No decurso dessas discussões, o arguido dizia à ofendida “és uma puta”.
6. A partir do ano de 2017, o arguido tornou-se uma pessoa ainda mais possessiva, nomeadamente proibindo a ofendida de falar com pessoas e de sair de casa sem lhe pedir autorização.
7. A partir desse ano, o arguido passou a telefonar várias vezes por dia para saber onde a ofendida estava e com quem a ofendida estava e ligava, várias vezes, para o local de trabalho da ofendida para confirmar se estava a trabalhar.
8. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2017, na sequência de uma discussão por ciúmes, o arguido apertou o pescoço à ofendida, acabando esta por desmaiar.
9. Passado três a quatro dias após a discussão referida no ponto anterior, na residência conjugal, e na sequência de mais uma discussão por causa de ciúmes, o arguido encostou uma arma de fogo à cabeça da ofendida e disse-lhe “eu a ti mato-te”.
10. Também a partir do ano de 2017, em datas não concretamente apuradas, pelo menos noutras três ocasiões, em consequência de discussões por ciúmes, o arguido agrediu a ofendida, desferindo-lhe chapadas pelo corpo, pontapeando-a, apertando-lhe o pescoço e puxando-lhe os cabelos.
11. Perante a violência de tais agressões, a ofendida atirava objetos em direção ao corpo do arguido para que não se aproximasse, tentando fugir e, por diversas vezes, a ofendida dizia ao arguido que pretendia terminar o relacionamento.
12. Desagradado com tal atitude da ofendida e não aceitando o término da relação, nessas ocasiões, o arguido dizia “vai, que não andas mais na tua vida”, o que significava que a matava.
13. O arguido dizia, ainda, nessas ocasiões, à ofendida “os teus filhos nunca mais vão gostar de ti, vou incriminar o teu filho”, sabendo que a fazia ter medo pelo que poderia fazer aos seus filhos.
14. Perante tais expressões, e por medo do arguido, a ofendida acabou por desistir várias vezes da sua intenção de se separar daquele, decidindo manter a relação.
15. Nas ocasiões em que a ofendida logrou terminar o relacionamento e afastar-se do arguido, este perseguiu-a e dirigiu-se-lhe dizendo que se não reatasse a relação lhe faria mal a si.
16. Temendo o comportamento do arguido, por várias vezes, a ofendida acabou por reatar o relacionamento com aquele.
17. Em dia não apurado, mas anterior a 02.03.2022, não suportando o clima de terror e controlo em que vivia, a ofendida viu-se obrigada a fugir de casa.
18. Em data não apurada, o arguido conseguiu contactar a ofendida, insistindo para se encontrarem para resolver a situação, tendo-se encontrado, no dia 02.03.2022, nas proximidades do ....
19. Naquele local, o arguido abordou-a e, após esta introduzir-se no seu veículo automóvel, conduziu-a até à ..., no ..., onde lhe bateu.
20. Em dia não concretamente apurado do mês de setembro de 2022, a ofendida fugiu novamente de casa, aproveitando-se da ausência do arguido que se encontrava a trabalhar para este não saber da sua saída.
21. Mais uma vez, não aceitando o fim da relação, o arguido tentou encontrar a ofendida, tendo ido ao seu local de trabalho e à sua antiga morada, falando com várias pessoas que a conhecem para saber onde se encontrava.
22. O arguido enviou à ofendida e recebeu daquela as seguintes mensagens no seu telemóvel:
Enviada pelo arguido a 11-10-2022, às 18h43:
“Boa tarde nao quero incomodar te mas aguardo q me ligues para podermos falar. Acho q já é tempo demais para resolver as coisas nao quero ir a tua porta bater porque somos adultos o suficiente para resolver ja chega se queres como disse tanro a candida como a guida podem estar presentes e 9s teus também obrigada e deus t abençoe”.
Enviada pela vítima a 11-10-2022, às 18h45:
“Para jé como tens o meu numero?”
Enviada pelo arguido a 11-10-2022, às 18h46:
“Já te disse nao quero ir a tua porta ou t dar ate amanha para resolvermos bj fica bem ja t disse não qiero bater a porta”
Enviada pelo arguido a 11-10-2022, às 18h47:
“Estamos em 2022 para com isso senao vou a tua porta e nao quero ok bj fica bem”
Enviada pelo arguido a 11-10-2022, às 18h54:
“Quero fazer tudo na boa queres mesmo q te bata a porta os nr podes mudar mil vezes” “So quero paz e resuluçao ok bj va já não mando mais nada”
Enviada pelo arguido a 11-10-2022, às 18h56:
“O nr podes mudar mil vezes a porta não e escolhe o sitio a hora q já não quero so resolver e dizer o q tenho ok se feliz”
23. No dia 12 de outubro de 2022, pelas 11h10, a ofendida aceitou encontrar-se com o arguido para este lhe entregar os seus pertences, no estabelecimento comercial denominado “...”, sito na ..., em …, local situado em frente à Esquadra de Investigação Criminal da PSP de …, onde aquela se sentia protegida de qualquer eventual atitude do arguido.
25. Naquele local, sentados à mesa da esplanada, o arguido tentou persuadir a ofendida a reatar o relacionamento consigo, ao que esta se negou, dizendo-lhe que gostava de outra pessoa, na sequência do que aquele insistiu e pediu-lhe um beijo, tendo esta recusado, afirmando que não queria dar-lhe falsas esperanças, após o que o arguido se dirigiu ao interior do estabelecimento para ir buscar dois copos.
26. O arguido regressou à mesa da esplanada, onde a ofendida permanecia sentada, e pousou os dois copos, que trazia numa mão, à frente desta, colocando-se por detrás da mesma.
27. Em ato contínuo, e sem que nada o fizesse prever, o arguido, munido de uma faca com uma lâmina de 7,5 cm, que trazia consigo, passou o lado inverso ao gume pelo pescoço de BB, da direita para a esquerda, com força.
28. Ao sentir a presença da lâmina no pescoço, a ofendida colocou as suas mãos na zona do pescoço a fim de desviar a mão do arguido.
29. Em ato contínuo, o arguido inclinou-se e golpeou a ofendida com a faca em causa, atingindo-a na face, na região maxilar esquerda.
30. Nessa altura, a ofendida logrou desviar a faca com a sua mão esquerda, tendo a lâmina atingido o 3º dedo dessa mão, na sequência do que a faca se partiu, separando-se o cabo da lâmina, que caíram no chão.
31. De seguida, o arguido, o qual continuava por detrás da ofendida, do lado esquerdo daquela, puxou-lhe a cabeça para o lado e mordeu-lhe a orelha direita, cortando-a com os seus dentes, acabando por cuspir o pedaço de orelha assim cortado.
32. O arguido apenas cessou com as agressões à ofendida, após a intervenção dos agentes da PSP, que se encontravam no interior daquele estabelecimento comercial.
33. Em consequência da conduta do arguido, a ofendida ficou ensanguentada, sofreu muitas dores, bem assim traumatismo da região maxilar esquerda, apresentando corte com cerca de 3 a 4 cm; do 3º dedo da mão esquerda, apresentando corte com cerca de 1 a 2 cm; e avulsão de 1/2 do pavilhão auricular com perda de substância após mordedura.
34. Em consequência de tal conduta, a ofendida foi transportada de ambulância para o ..., onde permaneceu algumas horas, tendo os ferimentos do dedo e da face sido suturados.
35. Devida à sua lesão no pavilhão auricular, foi, de seguida, transferida para o ..., em Lisboa, onde permaneceu duas noites, tendo sido necessário ser submetida a intervenção cirúrgica no dia 14.10.2022 sob anestesia local: desinfeção; desbridamento de tecidos inviáveis (pele e cartilagem); e encerramento direto com retalhos locais.
36. A ofendida apresentava amputação parcial da hélice, ramo da hélice, antélice e lóbulo do pavilhão auricular, que terá determinado 27 (vinte e sete) dias para a consolidação médico-legal: com afetação da capacidade de trabalho geral e com afetação da capacidade de trabalho profissional.
37. A ofendida apresenta, como consequências permanentes, uma cicatriz, linear, horizontal na face (transição zigomático-malar) esquerda, com 2,5cm x 0,5cm, e cicatriz linear, na face palmar do 3º dedo da mão esquerda com 2,0 cm x 0,5 cm.
38. Apresenta ainda, como consequência permanente, deformação importante do pavilhão auricular direito, por amputação parcial da hélice, ramo da hélice, antélice e lóbulo do pavilhão auricular, que pelas características consubstanciam o conceito médico-legal de desfiguração grave.
39. Fruto de toda esta pressão psicológica por parte do arguido, a ofendida encontra-se desgastada e com medo do arguido.
40. Como consequência do comportamento do arguido e da violência utilizada, a ofendida viveu e vive num estado de ansiedade permanente.
41. Em todas as situações acima mencionadas que a ofendida teve de suportar, o arguido sabia que estava a molestar o corpo e a saúde física e psíquica da ofendida, com quem mantinha uma relação análoga às dos cônjuges, mais sabia que a humilhava, diminuía e ofendia na sua honra e consideração pessoal, que a atemorizava, criando receio pela sua integridade física e vida, causando-lhe um sentimento permanente de terror e ansiedade, garantindo, deste modo, a sua superioridade e domínio sobre ela, bem sabendo que as expressões por si proferidas e atitudes adotadas são adequadas a causar medo, receio e inquietação e de lhe limitar a sua liberdade de movimentação e de lhe causar sentimentos de vergonha e humilhação, ofendendo-a na sua dignidade de pessoa humana, o que quis e conseguiu.
42. O arguido sabia dever uma especial obrigação de respeito à ofendida, por ser sua companheira e que ao praticar os atos acima descritos no interior da residência da família, os tornava particularmente gravosos.
43. O arguido sabia que no pescoço se alojam veias e artérias de importância vital cujas lesões podem ser potencialmente graves e rapidamente conduzirem à morte.
44. O arguido conhecia as características da faca que empunhava e sabia que a lâmina, permitia cortar e que, por isso, podia perfurar a pele.
45. O arguido sabia que ao espetar a faca do lado esquerdo da face e ao morder a orelha direita e ao arrancar com os dentes parte da mesma, a atingia no seu corpo, provocando-lhe lesão grave no corpo e saúde e fortes dores, e que a afetava de forma grave na sua aparência de mulher, ficando desfigurada.
46. Ao atingir o corpo da vítima da forma supra descrita, o arguido quis provocar as mencionadas lesões no corpo e na saúde da ofendida e afetar de forma grave e permanente o corpo desta, desfigurando-a.
47. Em todas as atuações, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
48. O arguido não tem antecedentes criminais.
49. À data dos factos, o arguido residia na morada constante nos autos, tratando-se de um apartamento de tipologia T3, inserido num bairro de habitação social onde existem várias problemáticas sociais e onde decorreu o seu processo de desenvolvimento. O apartamento pertença do ... (...) encontra-se arrendado em nome da progenitora, sendo então o agregado composto pelo próprio e o irmão consanguíneo com 21 anos do qual o arguido é tutor. O ambiente familiar era coeso e estável, sendo o arguido quem então assumia a gestão da vida familiar. A progenitora do arguido, que nos últimos anos tem integrado o agregado de modo alternado, e que se encontrava à data da instauração do presente processo a viver em ..., regressou ao país sendo presentemente o agregado composto pela mãe e o irmão do arguido.
50. À data, o arguido trabalhava por conta própria num estabelecimento comercial vulgo café, que explora há cerca de 15 anos. O arguido alega que obtinha rendimentos incertos que oscilavam entre os 700 e os 900 euros, verba que permitia assegurar a satisfação das suas necessidades pessoais e do irmão, que estava então desempregado. A renda da habitação, no valor de 260€, tem sido assegurada pela progenitora, figura que também participa nas outras despesas quando integra este agregado.
51. O arguido, que tem o 9º ano de escolaridade, apresenta hábitos de trabalho, tendo começado a trabalhar cerca dos 15 anos de idade. Até aos 18 anos teve diversas experiências de trabalho nos setores da restauração, logística e construção civil. Integrou posteriormente e de modo voluntário as forças especiais do exército português, onde permaneceu até aos 22 anos de idade. Entre os 25 e os 30 anos trabalhou em ..., como motorista. No sentido de conseguir manter uma situação financeira mais estável, a partir de 2013, o arguido passou a trabalhar fora do país, por períodos de 3 a 6 meses, na área da manutenção de plataformas ou como manobrador de máquinas.
52. À data dos factos, o quotidiano do arguido mantinha-se aparentemente estruturado em torno da atividade profissional, da vida familiar e convívio com os seus conhecidos e amigos que segundo as fontes contactadas, em virtude da sua atividade profissional e características sociais, se constitui por um conjunto vasto e diversificado de pessoas.
53. O arguido foi preso preventivamente em outubro de 2022, na sequência da instauração do presente processo, encontrando-se desde então preso no ....
54. Em meio prisional e, até à data, AA tem evidenciado capacidade de cumprimento das regras institucionais. Tem procurado manter-se ativo e empenhado, tendo prosseguido os estudos, através do programa de Reconhecimento e Validação de Conhecimentos e Competências (RVCC), no sentido de obter o ensino secundário, participando ainda em várias atividades sejam de cariz cultural/recreativo ou desportivo, encontra-se a trabalhar desde julho último como faxina da biblioteca.
55. A demandante sentiu e sente tristeza.
56. A demandante sentiu e sente pavor com a perspetiva da própria morte, enquanto o arguido lhe passava com a faca, nos sobreditos termos, pelo pescoço.
57. Devido às dores que sofreu, a demandante ficou algumas noites sem dormir.
Factos não provados
a. Nas circunstâncias descritas em 11, o arguido empurrava a ofendida com força.
b. Nas ocasiões mencionadas em 16, o arguido dizia à ofendida que se não reatasse a relação faria mal aos seus filhos.
c. O arguido obrigava a ofendida a telefonar-lhe para o avisar que estava a sair de casa, tendo de fazer o mesmo quando regressava a casa.
d. Enquanto se mantiveram dentro do veículo, na ocasião descrita em 20, o arguido puxou os cabelos da ofendida, apertou-lhe o pescoço e os braços com força, retirou-lhe a mala, o telemóvel, e os documentos e deixou-a no meio da estrada.
e. Ao mesmo tempo, o arguido dizia à ofendida “vou-te avisar, tenho três coisas para te dizer, eu tenho a morada da tua colega e mais duas, agora vou ser eu a brincar, tens meia hora para estar no meu café, agora és tu que vais seguir as minhas regras, vou-te levar para um motel e vou fazer de ti a puta que já és.”
f. O arguido agiu como descrito em 27 a fim de cortar o pescoço da ofendida.
g. O arguido, com uma total insensibilidade e indiferença pela vida da vítima, tendo decidido matá-la naquele dia e pensando na forma de o fazer, sabia que, ao passar a faca no pescoço, com força, da direita para a esquerda, com intenção de cortar o pescoço da ofendida, podia ter-lhe provocado a morte, resultado que, antecipou e com o qual se conformou e que quis, e que só não aconteceu por factos alheios à sua vontade.
Motivação
(…)
Foram tomadas declarações ao arguido AA, que se pronunciou acerca de cada um dos factos vertidos na acusação, admitindo ter mantido uma relação amorosa com BB e negando a prática da generalidade das condutas que lhe foram imputadas. Em síntese, o arguido mencionou que, desde o ano de 2014 ou 2015, pretendia terminar a relação com BB, que continuamente o procurava e dela se reaproximava sempre por ter “piedade” dela e dos filhos desta. Assim, negou ter controlado, agredido ou maltratado BB, durante o lapso de tempo em que mantiveram a união.
Admitiu o envio das mensagens transcritas a fls. 307 e 307v., cujos termos foram por si esclarecidos como sendo “banais”.
Ademais, esclareceu que, no dia 12 de outubro, encontrou-se com a ofendida a fim de terminar a relação e entregar-lhe os pertences, sendo acompanhado por duas amigas, a CC e a DD; referiu que a ofendida levou consigo a faca, que estava posicionada no canto esquerda da mesa da esplanada do estabelecimento comercial onde se encontraram, tendo avançado que ao agarrar a faca e puxá-la para si, porquanto “o medo apoderou-se de si”, em luta pela posse deste objeto com a ofendida, que também agarrou a faca entre o cabo e a lâmina, foi feito um corte na face desta; afirmou que, ao dirigir-se à ofendida, enquanto “estava a dizer para, para, para, tentei dar-lhe uma mordidela e foi demais”; mencionou que “deu-me uma branca” pela ingestão do álcool e por estar, à data, a tomar medicação para diabetes, glicémia, colesterol, tensão alta e insónias. Por fim, o arguido verbalizou arrependimento, manifestou o propósito de ajudar nos ferimentos e de pedir desculpa à ofendida e aos polícias.
Foram tomadas declarações para memória futura a BB, no dia 30/11/2022 (cfr. fls. 165 e 166), que afirmou ter mantido uma relação amorosa com o arguido, entre 2012 e setembro 2022. Esclareceu que, durante os dois primeiros anos, a relação era extraconjugal e, a partir de 2014, viveram como se de marido e mulher se tratassem. Na residência conjugal, morava também o irmão mais novo do arguido, EE, tendo também morado a filha mais velha da arguida, num lapso temporal que situou entre 2017 e 2018.
Relatou que, inicialmente, entendiam-se bem, embora o arguido demonstrasse ser obsessivo e controlador com o que a ofendida fazia, tal como a hora a que ia trabalhar ou quem estava sentado consigo na mesa do café, que o arguido explorava. Afirmou que, quando a sua filha mais velha residia com eles, desentendiam-se porque “o arguido queria impor regras e acabavam por discutir”. Admitiu que, por terem ciúmes mutuamente, discutiam de modo a “massacrar um ao outro”, quer ingerissem álcool ou não, o que sucedia cerca de três ou quatro vezes por ano, a partir de 2017. Afirmou que o arguido lhe batia, apertava o pescoço, puxava os cabelos, desferia-lhe chapadas (murros não) e pontapés.
Neste contexto, relatou que, numa ocasião, que situou após o regresso do arguido dos Camarões, em 2017, mas antes da sua filha ir residir com eles, discutiram por ciúmes de um rapaz com quem a ofendida mantivera um relacionamento, enquanto o arguido também se relacionava com a ex-mulher, tendo-lhe o arguido apertado o pescoço, na sequência do que esta “desmaiou completamente”, tendo aquele chamado o seu irmão mais velho, FF. Afirmou que, a partir de 2017, o arguido apertava-lhe o pescoço e batia-lhe nos sobreditos moldes, o que sucedeu cerca de três ou quatro vezes. Relatou, ainda, que “puta era normal chamar nestas ocasiões”. Mencionou que, às vezes, reagia e respondia ao arguido, apelidando-o de “porco”; admitiu que às vezes motivava discussão, mas a maior parte das vezes era ele; assumiu que, embora não lhe batesse, “mandava-lhe coisas para que ele não chegasse ao pé de mim”, nomeadamente “garrafas, copos, pratos, com o que tivesse à mão, para o afastar”.
A ofendida declarou que, quando queria terminar a relação, o arguido dizia-lhe “não andas mais na tua vida”, entendendo com isso que a matava; referindo-se a seus filhos, o arguido dizia-lhe que eles nunca mais iriam gostar dela, que ia incriminar o seu filho (porque tem problemas com a justiça); verbalizou que, embora no início não acreditasse, depois começou a acreditar nisso e voltava a manter o relacionamento com aquele. Neste contexto, afirmou que o arguido tinha três pistolas, avançando que estiveram na sua mão e escondeu-as debaixo da cama, com munições que também escondeu dentro da gaveta. Relatou que o arguido apontou, pelo menos, uma vez, cerca de três ou quatro dias após aquela primeira situação em que lhe apertou o pescoço, uma arma à sua cabeça e “disse eu a ti mato-te”; embora sentindo medo, pensou, no momento, que não tinha coragem para o fazer. Descreveu que, nos últimos quatro anos, o arguido tornou-se uma pessoa mais possessiva do que já era, afirmando que, quando saíam, ela não podia falar com ninguém; tinha de pedir autorização para ir ao café; se estivesse com amigos no café, o arguido olhava para ela e tinha de ir para casa; se estivesse a trabalhar, o arguido controlava-a pelo telefone, ligava a dizer o que fazia.
Referiu que, durante a relação, separaram-se e saiu da casa dele, mas voltava porque cedia à chantagem que o arguido fazia e porque não tinha apoio. Afirmou que o arguido mandava mensagens a toda a hora para voltar para si, dizia que contratava um detetive e que a ofendida lhe devia €3.000,00 para pagar àquele. Afirmou, igualmente, que o arguido ficava atrás das pessoas que a conheciam, chegando mesmo a ameaçá-las, como sucedeu com GG. Desconhece como é que o arguido conseguiu saber o novo contacto de telefone, além de aceder a contas bancárias e ao email, “ele conseguia aceder a tudo, até ao Facebook, através de um amigo que o ajudou”. Esclareceu que a última vez que quis terminar a relação, “saiu de casa a fugir”, ele estava a trabalhar e sem se aperceber que o iria fazer. Na sequência, afirmou que o arguido falou com a antiga patroa, com amigas, nomeadamente a GG, tendo conseguido encontrá-la através do contato telefone e ligou-lhe, não tendo atendido nas primeiras vezes, depois cedeu.
Confirmou ter recebido as mensagens enviadas pelo arguido, cujo teor se encontra transcrito a fls. 307 e 307v., além de outra ainda “para tratar das coisas da melhor maneira”, uma vez que dois carros do arguido se encontram titulados em seu nome. Assim, afirmou que a fim de combinarem um encontro, o arguido sugeriu que ele levava duas pessoas e ela levava quem quisesse, tendo esta indicado como local o café …, em frente à esquadra da Polícia de Segurança Pública de ... por volta das 10h, porque há sempre polícias e sentia medo que ele a matasse.
Ainda relatou que, em data anterior, que situou no dia ... do ano corrente (2022), já tinha tentado fugir de casa, tendo o arguido conseguido contactá- -la e combinado encontrarem-se no ..., onde se introduziu no carro deste e, após conduzir até ao mato, lhe bateu. Afirmou que desta factualidade apresentou queixa na GNR da ... em março de 2022.
Naquele último dia (12-10-2022), BB relatou que, como combinado, pelas 10horas, foi a primeira a chegar ao café … (foi sozinha, porque confiava nas pessoas que o acompanhariam: a CC, na casa de quem, durante um período naquele mês de março, permaneceu a morar por determinação do arguido, porque a mãe deste não a aceitava na sua casa, após reatarem a relação; e a DD); quando o arguido chegou, cumprimentou-a como se nada se passasse e começou com juras de amor, embora a ofendida dissesse que queria terminar o relacionamento porque gostava de outra pessoa. Sentiu-o nervoso. Afirmou que o arguido entregou-lhe dois papéis dos três que levava consigo (não deu um terceiro) e tirou fotografia ao seu cartão de cidadão, dizendo que “se voltasse para ele, retirava a queixa que tinha feito contra ela”, após dirigiu-se à CC, dando-lhe o telemóvel e os papéis, e disse que ia buscar um copo, perguntando se queria alguma coisa, ao que a ofendida respondeu que não, tendo o arguido pedido que lhe desse um beijo e ela retorquido que não queria dar falsas esperanças; o arguido levantou-se e dirigiu-se ao interior do estabelecimento, enquanto a ofendida permaneceu sentada.
BB declarou que o arguido regressou à mesa da esplanada com dois copos de imperial só numa mão, que pousou à sua frente, abeirando-se dela por trás, momento em que sentiu que o arguido a afastar o seu cabelo para o lado e passar a faca, “ele fez força aqui no pescoço, da direita para a esquerda”, tendo de imediato o arguido olhado nessa direção, bem assim a ofendida que, ao virar a cara, foi atingida novamente de lado, “conforme ele viu que não tinha nada no pescoço, foi quando ele me espetou aqui”, indicando o lado esquerdo; a ofendida afirmou ter começado a pôr os seus braços à frente da sua cara e “foi quando ele ainda me cortou um bocado da cara, da testa, com a faca”, só tendo parado de a cortar porque a ofendida meteu a mão e agarrou a faca, que se partiu, separando-se a lâmina e o cabo, ocasião em que cortou o seu dedo da mão esquerda. Esclareceu que ao passar a faca no pescoço, não surgiu nenhum corte, porque “tem a noção que a faca estava ao contrário”, ou seja, que a parte da faca que estava a passar no seu pescoço era o lado inverso à lâmina; não sabe se a conduta do arguido foi inocentemente ou de propósito. Relatou ainda que, em ato contínuo, e permanecendo sempre sentada, o arguido agarrou-a e, do lado esquerdo onde tinha espreitado, “puxou a sua cabeça para ele e mordeu por cima da sua cabeça, não teve noção onde, só se apercebeu do que estava a acontecer, quando o viu a cuspir a orelha para o chão, tinha sangue na boca e na roupa”. Esclareceu que, em momento anterior, “nunca mostrou a faca, não a exibiu, só se apercebe quando a usa”.
Acrescentou que chegou a ambulância e sofreu ataques epiléticos, foi para o ... e transferida para o ..., pelas 23hora, onde ficou duas noites para ser operada, que só aconteceu na quinta-feira, “não conseguiram reconstruir, só limparam e cozeram, ficou com dores no ouvido, logo a seguir à primeira hora, ficou assim cerca de duas semanas, ainda dói agora ao toque ou a dormir, lá dentro dói constantemente”. Mencionou que “só viu quando lhe tiraram os pontos, quando se apercebeu que tinha ficado sem a orelha foi muito choro, é uma dor, é saber que anda sempre com o cabelo apanhado na rua, quando toma banho faz confusão, doi ainda mais por pensar que uma pessoa que seria capaz de fazer o que fez, não é só por ser quem é, tem vergonha do estado em que está a sua orelha, e a reconstrução leva 24 meses e tem muitas sequelas (é complicada e leva muito tempo) e nunca fica igual”. Referiu, em termos emocionais, que “a parte pior é à noite, fica com medo a olhar para a janela do quarto, tem medo dele e do que pode acontecer, porque ainda vem acabar, embora saiba que ele está preso, até por causa dos familiares, tem medo de andar sozinha na rua, dele e não só ”. A final, confrontada com fls. 27, 29, 31 e 33, a ofendida confirmou tratar-se da sua face e da sua mão, bem assim a faca supra mencionada.
Em audiência de julgamento, foram inquiridas as testemunhas HH, II e JJ, todos agentes da Polícia de Segurança Pública, que se encontravam presentes no interior do estabelecimento comercial “...” e relataram os factos que tomaram conhecimento direto de forma consentânea e clara. Da conjugação destes depoimentos resultou que, após o arguido ter ido buscar uma ou duas imperiais ao interior do estabelecimento comercial, ouviram gritos, enquanto o arguido agarrava o pescoço da ofendida, fazendo um mata-leão: o arguido estava com o braço esquerdo à volta da ofendida e fez o movimento com o outro braço a contornar; devido ao porte do arguido, não se aperceberam dos braços da vitima; não viram quem tinha a faca; aquando dos gritos, a faca caiu com o cabo de madeira partido, ficando no local onde a vítima estava sentada, do lado esquerdo da mesa; a cabeça do arguido estava encostada à cabeça dela do lado direito; considerado a posição da vítima e o porte do arguido, não seria possível àquela reagir; quando disseram polícia, o arguido afastou-se e a vítima resguarda-se; quando o arguido largou a vítima, aperceberam-se do corte na sua face esquerda a na sua mão direita; não se aperceberam da lesão na orelha, porque estava tapado pelo cabelo, pensaram que o sangue fosse daqueles cortes, só depois se aperceberam que faltava parte da orelha direita, que não apareceu, embora tivessem procurado. Acrescentaram que foi chamado socorro à vítima; o arguido, que não apresentava qualquer corte, não apresentou resistência e foi detido; e as duas pessoas, que vinham com aquele, mantiveram-se nas redondezas, a cerca de 20 metros, perto de viatura.
Foram igualmente inquiridas as testemunhas CC e DD, que se deslocaram com o arguido a fim deste se encontrar com a ofendida, naquele dia, no “...”.
A testemunha CC afirmou que o arguido pediu para ir consigo “levar os sacos da roupa e sapatitos”, porque queria acabar tudo com a ofendida; aceitou e foi também a DD; ficaram lá muito tempo, cerca de 2 horas, junto à carrinha, via-se, mas não se ouvia; quando olhou, já o arguido estava ao lado da ofendida e disse à DD “olha acho que já fizeram mais uma vez fizeram as pazes, depois voltou a olhar e viu-o a agarrar a mão, num movimento que não era de pazes, estavam a mexer um no outro, como se se estivessem a agarrar um ao outro”, tendo ido logo na sua direção e os polícias também; a parte do arguido se levantar à frente da ofendida não viu; não viu o arguido atrás da ofendida, nem viu debruçado em cima dela, só o viu a afastar-se dela; não viu qualquer objeto perigoso, nem faca, nem sangue, só um bocadinho na mão dele; a vítima ficou com um pano ou guardanapo na cara. Esta testemunha mencionou que, durante a relação entre o arguido e a ofendida, nunca viu violência, afirmando que “ela excedia-se um bocadinho, houve uma vez que chegou e começou a partir os pratos na cozinha do café, bebia em excesso; outro episódio, ela chegou ao café e pediu uma faca, daquelas da cozinha, e tentou furar os pneus do jeep dele, viu-a fazer disso, foi atrás dela e questionou-a se estava maluca, depois como não conseguia, começou a bater nos vidros, chegou a partir um; ela era explosiva e ciumenta, espreitava muitas vezes por uma janela do quarto que dava para o café e ficava com ciúmes das raparigas que lá iam”. Por sua vez, descreveu o arguido como sendo um companheiro preocupado quando a ofendida desaparecia, ficava desorientado para saber se estava no hospital ou na polícia e a perguntar a toda a gente se sabia dela; afirmou que “não é pessoa violenta, nunca foi com ninguém”.
A testemunha DD, ajudante de ..., referiu que, não sendo irmã de sangue do arguido, conhece-o desde que nasceu, foi criada pela mãe deste, e quando está em Portugal, fica na casa dele. Descreveu que, um dia antes do encontro no café …, o arguido estava muito em baixo e não queria mais nada com ela, tendo pedido para ir com ele e a CC proceder à entrega das coisas que a ofendida deixara lá em casa.
Afirmou que quando chegaram ao café, cerca das 10h da manha, a ofendida estava sentada na esplanada, tendo o arguido estacionado e dito que se sentia bem, pelo que ela e a CC esperaram perto do carro, tendo visibilidade boa da mesa onde estavam os dois a conversar e a beber cerveja, tendo decorrido cerca de meia-hora. Mencionou que os viu abraçados um ao outro de frente, estavam de pé, não se recordando se estavam do mesmo lado da mesa, mas logo percebeu que não tinham feito as pazes; não ouviu gritos (caso contrário, tinha ido a correr); depois foi uma confusão até que a polícia separou os dois. Referiu que não viu qualquer gesto no pescoço da ofendida e a polícia é que estava com a faca na mão, era pequena, só a viu na mão do polícia.
Afirmou que o arguido já estava farto da relação com a ofendida, descrevendo- -a como muito ciumenta, não podendo aquele ter amigas, porque senão ela fazia confusão e, se pudesse bater, batia, tentando o arguido evitar e apaziguar, porque tinha um negócio frequentado por muita gente. Descreveu ainda a ofendida como alguém que bebia muito e, por isso, às vezes, ele mandava ir para cima (referindo-se à sua casa).
Mencionou que não viu corte, nem viu a orelha, apenas viu a ofendida a tapar a zona do pescoço com um pano, que alguém lhe deu. Afirmou que só soube depois o que tinha acontecido, tendo acrescentado que descreve o arguido como uma pessoa pacífica, que até queria terminar o relacionamento, tendo feito o que fez como resposta a algo feito ou dito pela ofendida.
Foi ainda inquirida a testemunha KK, arrolada pela demandante civil e ofendida, que, na qualidade de psicóloga e técnica a exercer funções na ..., afirmou tê-la conhecido aquando da tomada de declarações para memória futura, que continuou a acompanhar socialmente e emocionalmente até ao presente. Esta testemunha descreveu a aflição e medo da ofendida pelas situações de violência que viveu, confessando ter medo de morrer, sentimentos que a par da marca da orelha ainda tem, na sequência do que ficou com complexo e vergonha, escondendo com o cabelo e ficando constrangida no trabalho, sendo que atualmente executa serviços de limpeza.
Arroladas pelo arguido, foram inquiridas as testemunhas indicadas pela defesa, EE e FF, sendo ambos irmãos do arguido, LL, MM (vizinho do arguido), NN, OO, PP, QQ, RR e SS, sendo estes amigos do arguido.
A testemunha EE, irmão mais novo, confirmou viver com o arguido há cerca de dez anos, referindo que começou a morar lá em casa com a ofendida há cerca de seis ou sete anos (cerca de 2015), tendo também chegado a viver lá a filha dela, TT. Mencionou que a vivência era tranquila, havendo discussões entre ambos, começando sempre a ofendia a elevar o tom de voz, chamando-o de nomes, “talvez cabrão, preto”, na sequência do que o arguido saia e ia dar uma volta à rua, quando regressava estava tudo mais calmo, sendo que nunca viu o arguido muito exaltado ou alterado, talvez uma resposta mais de cabeça quente.
Afirmou que viu a ofendida a puxar os cabelos ao arguido, a tentar rasgar a camisa dele, tendo também atos para consigo, desferiu-lhe um estalo, por causa da playstation. Mencionou que a ofendida partiu um armário de vidro para por copos, que era da avó, avançando que talvez estivesse bêbeda, “bebia muito e fumava muito”, até fazia às escondidas do irmão. Mencionou que nunca viu o arguido a ter atitudes agressivas para com a ofendida, nem para consigo, descrevendo-o novamente como sendo uma pessoa serena.
Declarou que a ofendida quase não deixava o arguido falar com outras mulheres, havia dias em que ia embora de casa sem dizer nada, por ex. a última vez fugiu de casa; eram ideias que lhe davam. Adiantou ainda que sentia que o arguido gostava da ofendida e queria ajudar, mas devido aos problemas que passaram queria desligar-se.
A testemunha FF, irmão mais velho do arguido, residindo perto deste e com quem tem relação próxima, por frequentar o café e a sua casa. Afirmou que a relação se pautava por muitas discussões iniciadas pela ofendida, principalmente quando bebia (maioria das vezes às escondidas) e tornava-se muito agressiva (“Se não bebesse, até era boa pessoa”). Avançou que, uma vez, retirou da mão da ofendida uma faca e, por isso, cortou-se e, noutras vezes, arranjava confusão com clientes; por sua vez, o arguido não a enfrentava, pedia-lhe para ir a casa. Mencionou que a ofendida tinha sempre uma faca, uma tesoura e um x-acto para defender-se, trazendo-a na bolsa, que chegou a mostrar-lhe. Descreveu a ofendida como ciumenta e agressiva também, batendo em mulheres porque fazia daquilo um filme e tentando atingir um cliente com uma garrafa.
Afirmou que a relação entre os dois acabara: ela já tinha saído de casa (o que já sucedera anteriormente há cerca de mês e meio); ele queria refazer a vida dele e ia entregar as coisas. Descreveu, por sua vez, o arguido como pessoa tranquila, serena, foge dos conflitos, e apaziguadora, avançando que, relativamente à situação dos autos, que “há algo muito estranho, ele é muito calmo para ter reagido assim”. Negou ter tomado conhecimento de qualquer situação de agressão praticado pelo arguido, seu irmão, contra a ofendida (“nunca aconteceu”), afirmou desconhecer o teor das mensagens enviadas por aquele à ofendida, bem assim ignorar a posse de armas pelo arguido.
A testemunha LL, amigo do arguido há cerca de vinte anos, descreveu-o como boa pessoa e não sendo conflituoso, nunca presenciou discussões, mencionando que na relação com a ofendida se dava bem.
A testemunha UU afirmou que o arguido é seu amigo e, como frequentava o café que este explorava, relatou, em audiência de julgamento, situações em que presenciou a ofendida doméstica com o pai dos filhos. Referiu ainda que a ofendida nunca consentiu a relação que ela tem com o arguido.
A testemunha QQ, amiga do arguido há vinte anos, frequentava o café e mencionou que a relação deste com a ofendida tinha altos e baixos. Descreveu a ofendida como amiga de toda a agente, quando estava bem com cenas de ciúmes do arguido, apelidando-o de “muitos nomes em alta voz e à frente de clientes”, bem assim outros atos de violência, concretamente ter golpeado com uma facada o pescoço de uma pessoa e ter desferido com uma muleta contra uma senhora. Descreveu o arguido como sendo “calmo, vai dar uma volta e espairecer”, não se tendo apercebido que estivesse farto da relação com a ofendida. Em concreto, não logrou recordar os contornos de qualquer discussão por si presenciada entre o arguido e a ofendida, nem a discussão que mencionou entre si e a ofendida, mencionando apenas que foram separados pelo arguido.
A testemunha NN, amiga do arguido há cerca de quinze anos, afirmou ser habitual ir todos os dias beber café, quando sai do trabalho, mantendo com aquele uma relação especial de amizade, o que desagradava a ofendida. Mencionou que quando a ofendida se chateava, bebia em excesso, tornava-se agressiva, partia garrafa.
A testemunha OO, amiga do arguido há dezasseis anos, declarou que a ofendida ficava agressiva quando bebia, o que fazia sem ninguém ver, na sequência do que fazia cenas de ciúmes e arranjava confusão sem motivo com outros clientes. Mencionou que o arguido estava farto e queria separar-se, para o que pretendia entregar as coisas à ofendida e refazer a vida dele. Afirmou que o arguido nunca chamou nomes à ofendida, nem havia discussões, descrevendo-o como calmo e tranquilo, embora também bebesse, mas pouco.
A testemunha PP, cliente e amiga do arguido há dezoito anos, sendo o seu porto seguro, afirmou conhecer a ofendida desde os tempos da escola, já antes da relação com o arguido. Descreveu a ofendida como capaz de fazer jogos psicológicos. Mencionou que a ofendida sofre de violência, mas quando bebia ficava agressiva, o que fazia no café e fora, bem assim com muitos ciúmes dele, tinha de ser tudo como ela quer, quando o via falar com alguém, arranja confusão lá no café; por sua vez, o arguido para ela foi sempre bom. Relatou que a ofendida a agrediu, mandando-lhe com uma muleta na cara porque queria a chave do carro do arguido, mas não lha deu, porque não estava em condições para conduzir, estava alcoolizada.
A testemunha RR mencionou que, de início, via a relação do arguido e da ofendida como casal normal, mas ao longo dos tempos o arguido deixou de estar animado, tentou várias vezes falar com ele, mas retraia-se. Afirmou que chegaram a viver na mesma casa (tem um filho com a irmã do arguido), não tendo presenciado qualquer discussão. Mencionou ter mantido uma conversa, na altura do verão, em momento anterior a estes factos, tendo o arguido confidenciado que já estava saturado, queria que a ofendida continuasse com a sua vida dela e entregar-lhe as coisas dela.
A testemunha SS, cliente do estabelecimento comercial explorado pelo arguido, afirmou que presenciou a ofendida a fazer escândalos e distúrbios (“ela não obedecia ninguém”), chamando as clientes de “putas” e mandando coisas para o chão, tendo numa ocasião batido a uma senhora e noutra partido os vidros do jeep, pertença do arguido, à pedrada.
Foram considerados os documentos juntos aos autos, nomeadamente o auto de notícia por detenção de fls. 20 a 21 e o auto de apreensão de fls. 24, ambos elaborados pelo agente da PSP HH, as fotografias de fls. 27 a 33, 308, 309 e 360 a 363, o relatório de urgência do ..., junto a fls. 45 a 48, onde consta que a ofendida foi admitida às 12horas do dia 12/10/2022 (reproduzido a fls. 280 a 284), o auto de noticia datado de 02/03/2023, de fls. 89 a 91 (respeitante aos autos 113/22.8GDALM), as fichas clínicas de fls. fls. 121 a 134, concretamente um cd contendo imagens de exames, relatórios de ECG, resultado de análises clínicas e a informação clínica da especialidade de cirurgia plástica reconstrutiva; a nota de alta de 20/10/2022, de fls. 125 e a nota de alta anterior, datada de 14/10/2022, fls. 364, e relatório de consulta de cirurgia plástica reconstrutiva datado de 03/03/2023, de fls. 285, bem assim a transcrição das mensagens de fls. 307 e 307v.
Concretamente, do relatório de urgência do ..., junto a fls. 45 a 48, extrai-se que “apresenta ferida penetrante na região mandibular esquerda com hemorragia controlada, ferida no pavilhão auricular direito e ferida incisa no 4º dedo da mão esquerda. Sonolenta na triagem.”; “observa-se corte com cerca de 3-4 cm na região maxilar esquerda e corte com cerca de 1-2 cm do dedo da mão esquerda”; e “avulsão de 1/2 metade pav auricular após mordedura, perda de substância”.
Das duas notas de alta supra mencionadas decorre que, cita-se: “Ficou internada para tratamento em bloco operatório. No dia 14/10/2022 sob anestesia local fez-se: desinfeção; desbridamento de tecidos inviáveis (pele e cartilagem); encerramento direto com retalhos locais; penso com gaze gorda. Cirurgia sem complicações; (...) Tem alta às 24h de internamento com as seguintes indicações: não molhar o penso; dormir com cabeceira elevada; não realizar esforços físicos; cumprir medicação prescrita; deve agendar pensos e consulta de cirurgia plástica e reconstrutiva no ...”).
No teor do relatório de consulta de cirurgia plástica reconstrutiva datado de 03/03/2023, de fls. 285, consignou-se que “a doente em epigrafe é acompanhada em consulta de cirurgia plástica na sequência de alegada agressão ocorrida a 12/10/2022 por mordedura do pavilhão auricular direito com amputação do terço médio e inferior da hélix e por arma branca do que resultou ferida cervical esquerda. Foi submetida a cirurgia no ... a 14/10/2022, tendo sido realizado desbridamento e encerramento com retalhos locais de ferida do pavilhão auricular e encerramento directo de ferida cervical. À data da última observação apresentava cicatrização de feridas e sem evidência de sinais de infecção. Apresenta, contudo, deformação importante do pavilhão auricular direito.”.
Atendeu-se, à luz do previsto no nº 1 do artigo 163º do Código de Processo Penal, exame pericial de arma de fls. 113 e 113v. (conclui como “objecto corto-perfurante, denominado de faca, com 15,5cms de comprimento total, lâmina metálica, com7,5cms de comprimento, gume afiado corto perfurante, com cabo de empunhadura em madeira de cor castanha”; “a faca danificou-se (cabo partido), por fragilidade na estrutura de ligação à lâmina durante o manuseamento e transporte”; e “encontra-se em mau estado de conservação”), o relatório pericial ao dano corporal de fls. 263, 393 e 393v. e o relatório pericial final de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 459 a 461, de onde se extrai, fls. 459v., as seguintes conclusões:
“- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 08/11/2023.
- As lesões atrás referidas terão resultado de traumatismo de natureza cortocontundente o que é compatível com a informação.
− Tais lesões ("amputação parcial da hélice, ramo da hélice e lóbulo do pavilhão auricular direita") terão determinado 27 dias para a consolidação médico-legal: com afetação da capacidade de trabalho geral (27 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (27 dias).
− Do evento resultaram para a Examinada, como consequências permanentes, as cicatrizes atrás descrita (cicatriz, linear, na transição zigomático-malar esquerda; cicatriz, linear, na face palmar do 3ºdedo da mão esquerda), as quais pelas suas características não consubstanciam o conceito médico-legal de desfiguração grave.
− Do evento resultaram para a Examinada, como consequências permanentes, deformação importante do pavilhão auricular direito - amputação parcial da hélice, ramo da hélice e lóbulo do pavilhão auricular direita - da qual pelas suas características consubstanciam o conceito médico-legal de desfiguração grave.
− Contudo, face à possibilidade de intervenção cirúrgica para reconstrução, e tendo em conta que segundo a Examinanda o procedimento se iniciará em novembro do corrente, poderá (eventualmente), haver necessidade de reavaliação face às limitações e complicações relacionadas com (ou advindas) os procedimentos cirúrgicos aos quais poderá vir a ser submetida.
− Não obstante, os dados clínicos apurados e atrás descritos configuram uma situação de risco para a Examinada, requerendo, por isso, a adoção de medidas psicossociais tendentes a assegurar o seu tratamento e proteção.”.
Concatenando todos os elementos probatórios supra elencados e tendo presente as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal (cfr. artigo 127º do mesmo diploma), impõe-se salientar o mais relevante e decisivo.
Assim, os factos descritos em 1, 2 e 3 resultaram provados por ter sido admitido pelo arguido e pela ofendida que afirmaram de forma convergente que a relação foi pautada por várias ruturas, tendo terminado definitivamente em data não concretamente apurada do mês de setembro de 2022.
As circunstâncias enunciadas como provadas em 4 assentaram na ponderação das declarações tomadas à vítima, em sede de declarações para memória futura, nos termos supra consignados, que, em relato espontâneo, mencionou que, no início da relação, entendiam-se bem, mas o arguido demonstrava, já nessa fase inicial, comportamentos controladores com o que a própria fazia no seu dia-a-dia, como querendo sempre saber a hora a que a ofendida ia trabalhar, onde e com quem estava.
No que respeita aos acontecimentos descritos nos factos provados 5 a 8, a convicção do Tribunal estribou-se na ponderação das declarações para memória futura da vítima, nos termos supra explanados, que relatou, de forma descomprometida e sincera, que os ciúmes eram mútuos e discutiam cerca de três ou quatro vezes por ano, a partir de 2017, bem assim como mencionou que, a partir do ano de 2017, o arguido tornou-se mais possessivo do que já vinha sendo, pelo que não podia falar com ninguém, não saía de casa sem autorização, nem para ir ao café, e controlava-a pelo telefone para confirmar se estava a trabalhar.
A factualidade vertida como provada em 9 e 10 assentou nas declarações tomadas à vítima, que, conforme supra consignado, esclareceu de forma convicta ter memória precisa acerca do primeiro comportamento agressivo e violento, em contexto de discussão surgida entre ambos por ciúmes, situando-se temporalmente no ano de 2017, e descreveu, em síntese, que o arguido apertou o seu pescoço, na sequência do que desmaiou. Relatou, também de forma firme, que, cerca de três ou quatro dias após esta primeira agressão, na sequência de mais uma discussão por causa de ciúmes, o arguido apontou-lhe uma arma à cabeça e “disse eu a ti mato-te”.
Relativamente às situações descritas como provadas em 11, atendeu-se às declarações para memória futura da vítima, que afirmou de forma segura ter sido agredida pelo arguido, desde 2017, pelo menos, noutras três ocasiões em que lhe batia, apertava o pescoço, puxava os cabelos, desferia-lhe chapadas e pontapés. Neste particular, salienta-se que, atenta a posição de fragilidade psicológica e emocional da vítima, evidenciada ao longo das declarações para memória futura, reputa-se de natural a circunstância desta não lograr datar com exatidão cada discussão e cada episódio de agressão física e verbal praticado pelo arguido, o que não surpreende considerando o lapso temporal (desde 2017) e a frequência com que ocorreram as sucessivas condutas de natureza violenta praticadas pelo arguido (batia, apertava o pescoço, puxava os cabelos, desferia-lhe chapadas e pontapés), que culminaram no episódio de 12/10/2022.
Relativamente ao descritos como provado nos factos de 12 a 17, formou-se convicção face às declarações claras da vítima ao mencionar de forma espontânea e descomprometida que arremessava objetos ao arguido para que não se aproximasse de si, tentando assim fugir das agressões sofridas. Mencionou também que, quando manifestava que queria terminar a relação, o arguido dizia-lhe “não andas mais na tua vida”, entendendo com isso que a matava e, referindo-se a seus filhos, o arguido dizia-lhe que eles nunca mais iriam gostar dela, que ia incriminar o seu filho, demonstrando desta forma que não aceitava o término da relação. A vítima resignava-se, perpassando das suas declarações que esta foi sucessivamente desculpando e consentindo os comportamentos do arguido, que atuava em franca relação de ascendência sobre aquela.
Os factos provados descritos de 18 a 20 resultaram da tomada de declarações da vítima, que mencionou ter fugido de casa, em dia que não logrou indicar, mas anterior à apresentação da queixa na GNR da ..., tal como decorre do auto de notícia datado de 02/03/2023, junto de fls. 89 a 91, tendo o arguido conseguido contactá-la e encontraram-se no ..., onde a ofendida se introduziu no carro daquele, que a conduziu até ao mato e lhe bateu.
A factualidade vertida em 21 e 22 resultou como provada atentas as declarações prestadas pela vítima, ao relatar as circunstâncias da última vez em que quis terminar a relação, “saiu de casa a fugir”, encontrando-se o arguido a trabalhar. Referiu que, uma vez mais não aceitando o fim da relação, o arguido contactou a antiga patroa e amigas suas de modo a para saber onde se encontrava.
O facto provado 23 extraiu-se do teor das mensagens transcritas a fls. 307 e 307v., que o arguido confessou ter escrito e enviado à vítima, que igualmente confirmou ter recebido.
As circunstâncias referentes ao encontro, entre o arguido e a vítima, no dia 12/10/2022, tal como assentes no facto 24, resultaram das declarações tomadas quer ao arguido, quer à vítima, que confirmaram de forma consentânea ter sido a vítima a sugerir o local, por tal estabelecimento comercial situar-se em frente à Esquadra de Investigação Criminal da PSP de ..., local onde se sentia protegida de qualquer eventual atitude daquele.
Relativamente ao comportamento assumido pelo arguido, tal como enunciado positivamente nos factos 25, a vítima descreveu de forma pormenorizada as diversas formas pelas quais o arguido tentou reatar o relacionamento consigo, o que esta foi recusando.
As características da faca manuseada pelo arguido decorrem das declarações tomadas ao próprio, conjugadas com do teor dos registos fotográficos de fls. 31 e 33 e, ainda, do teor do relatório pericial de arma de fls. 113 e 113v..
A factualidade vertida como provado de 26 a 32 corresponde à dinâmica dos acontecimentos tal como descritos pela vítima, que afirmou de forma pormenorizada e espontânea, ter sentido o arguido a afastar o seu cabelo para o lado e passar a faca, “ele fez força aqui no pescoço, da direita para a esquerda”; não surgiu nenhum corte, porque “tem a noção que a faca estava ao contrário”, ou seja, que a parte da faca que estava a passar no seu pescoço era o lado inverso à lâmina; de imediato o arguido olhado nessa direção, bem assim a própria que, ao virar a cara, foi atingida novamente de lado, “conforme ele viu que não tinha nada no pescoço, foi quando ele me espetou aqui”, indicando o lado esquerdo; só tendo parado de a cortar porque a ofendida meteu a mão e agarrou a faca, que se partiu, separando-se a lâmina e o cabo, ocasião em que cortou o 3º dedo da sua mão esquerda; em ato contínuo, permanecendo a ofendida sempre sentada, o arguido agarrou-a e, do lado esquerdo onde tinha espreitado, “puxou a sua cabeça para ele e mordeu por cima da sua cabeça, não teve noção onde, só se apercebeu do que estava a acontecer, quando o viu a cuspir a orelha para o chão, tinha sangue na boca e na roupa”.
Atendeu-se, ainda, quanto às circunstâncias vertidas nos factos provados 31 e 32, o teor conjugado dos depoimentos das testemunhas HH, II e JJ, agentes da Polícia de Segurança Pública, que relataram conforme acima exposto os factos que tomaram conhecimento direto de forma consentânea e clara, complementados pelo teor do auto de notícia por detenção de fls. 20 a 21, o auto de apreensão de fls. 24, ambos elaborados pelo agente da PSP HH, as fotografias de fls. 27 a 33, 308, 309 e 360 a 363.
Neste particular, o arguido relatou, em síntese, ter visto uma faca, colocada em cima da mesa (no canto esquerdo), que alegou ter sido levada pela vítima, pelo que “o medo apoderou-se de si” e agarrou a faca, que a ofendida também pretendia, gerando-se uma luta entre ambos pela posse de tal objeto, na sequência do que, de forma que não logrou concretizar, foi atingida a face da ofendida, após o que, enquanto lhe dizia para parar, mordeu a orelha direita desta.
Assumindo os factos na medida em que não lograria negá-los, o arguido relatou os acontecimentos de forma confusa e adotou uma postura desculpabilizante e evasiva, afirmando “deu-me uma branca” pela ingestão do álcool e por estar, à data, a tomar medicação para diabetes, glicémia, colesterol, tensão alta e insónias. Tal alegação não foi sustentada por qualquer prova produzida em audiência de julgamento; nenhum documento foi apresentado, nenhuma testemunha mencionou tais circunstâncias.
Tal versão dos acontecimentos, não se revelou coerente, quando confrontadas com as declarações seguras prestadas pela vítima, consentâneas com os depoimentos das testemunhas HH, II e JJ, agentes da Polícia de Segurança Pública.
Da apreciação global dos factos, o Tribunal convenceu-se que o arguido não queria, uma vez mais, aceitar o fim da relação com a ofendida (factos provados 22 e 23), nem aceitou que esta tivesse sucessivamente recusado reatar o relacionamento consigo (facto provado 25), o que conferiu credibilidade acrescida ao relato efetuado pela vítima acerca dos factos relativos à vivência comum com aquele e dos comportamentos violentos praticados pelo mesmo, que esta foi sucessivamente desculpando e consentindo.
O arguido vinha atuando em franca posição dominante e ascendente perante a vítima, revelando não respeitar as suas vontades e decisões, que levou a que tivesse agido, como agiu, no último episódio ocorrido no dia 12/10/2022.
Desta forma, não mereceram verosimilhança as declarações tomadas ao arguido, quer negando controlar, agredir ou maltratar BB, durante o lapso de tempo em que mantiveram a união, que alegando que pretendia terminar o relacionamento com BB, desde 2014 ou 2015, de quem apenas se reaproximava por “piedade”. Tais declarações foram secundadas pelos depoimentos das testemunhas CC e DD, bem assim pelas demais testemunhas arroladas pelo arguido, nos termos supra consignados, que, além de se orientaram claramente no sentido de defesa da tese deste, traçaram a personalidade da ofendida como ciumenta, possessiva e agressiva, relatando factos que extravasam o objeto dos presentes autos. Estas testemunhas revelaram, contudo, ter conhecimento parcial dos factos referentes à relação mantida entre o arguido e a ofendida, quer na medida das confidências que aquele lhes fazia pontualmente, quer porquanto não conviviam com ambos em privado. Assim, a versão negatória e vitimizante, apresentada pelo arguido, não logrou suscitar qualquer dúvida acerca da veracidade do relato efetuado pela vítima.
Os factos provados descritos de 33 a 38 decorrem do teor das declarações prestadas pela vítima e do teor do relatório de urgência do ..., onde foi admitida às 12horas do dia 12/10/2022, junto a fls. 45 a 48, as fichas clínicas e a informação clínica da especialidade de cirurgia plástica reconstrutiva de fls. fls. 121 a 134, a nota de alta de 20/10/2022, de fls. 125 e a nota de alta anterior, datada de 14/10/2022, fls. 364, fls. 280 a 284 e relatório consulta de cirurgia plástica reconstrutiva datado de 03/03/2023, de fls. 285, conjugado com o teor do relatório pericial ao dano corporal de fls. 263, o relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 393 e 393v. e o relatório pericial final de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 459 a 461.
Na factualidade vertida como provada em 39 e 40 e de 56 a 60, atendeu-se ao teor das declarações espontâneas e sinceras da vítima, secundadas pelo depoimento da testemunha KK, que, enquanto psicóloga e técnica a exercer funções na ..., nos termos supra relatados, tem acompanhado socialmente e emocionalmente a ofendida.
No que respeita à convicção acerca da atitude interna do arguido, esta decorre dos factos objetivos dados como provados, analisados conjunta e criticamente segundo os princípios da experiência comum, resultando inferidos os factos integradores dos elementos psicológicos, emocionais e volitivos, com que o arguido atuou e sendo a proibição e punibilidade dos comportamentos da natureza dos descritos do geral conhecimento dos cidadãos e, concomitante e necessariamente, também, deste.
Com efeito, a consciência da natureza penal dos factos praticado corresponde a um conhecimento que qualquer pessoa possui ou está em condições de possuir, não podendo o arguido deixar de ter conhecimento, considerando a natureza dos factos que praticou, nos termos supra explanados, bem assim como a sua idade e experiência, o que é do saber da generalidade dos cidadãos, tanto mais considerado o crescente enfoque que é dado à proteção das vítimas de violência doméstica e à forte censura social de que são alvo tais comportamentos.
Assim, em todas as situações acima descritas como provadas, o arguido sabia que estava a molestar o corpo e a saúde física e psíquica da ofendida, com quem vinha mantendo uma relação análoga às dos cônjuges, devendo-lhe uma especial obrigação de respeito.
Mediante cada um dos factos objetivos dados como provados, analisados conjunta e criticamente segundo os princípios da experiência comum, o arguido sabia e queria molestar o corpo e a saúde física e psíquica da ofendida, que a humilhava, diminuía e ofendia na sua honra e consideração pessoal, que a atemorizava, criando receio, medo e inquietação pela sua integridade física e vida, causando-lhe um sentimento permanente de terror e ansiedade, que lhe limita a sua liberdade de movimentação, o que quis e conseguiu, ofendendo-a na sua dignidade de pessoa humana e demonstrando superioridade e domínio sobre esta.
Ademais, quanto à dinâmica dos acontecimentos e os comportamentos sucessivamente praticadas pelo arguido no dia 12/10/2022, o arguido abordou a ofendida por detrás e passou o lado inverso ao gume pelo pescoço, da direita para a esquerda, com força, na sequência do que, em ato contínuo, golpeou-a com a faca em causa, atingindo-a na face, na região maxilar esquerda, após o que puxou-lhe a cabeça para o lado e mordeu-lhe a orelha direita, cortando a mesma com os seus dentes.
Objetivamente, o arguido abordou a ofendida por detrás e passou o lado inverso ao gume pelo pescoço de BB, da direita para a esquerda, com força.
Caso tivesse manuseado a faca ao contrário, de modo a passar o lado do fio cortante pelo pescoço de BB, tanto mais com força, como sucedeu, esta ficaria necessariamente cortada da direita para a esquerda no pescoço, zona em que, com elevada probabilidade, se atingem artérias muito importantes do corpo humano.
O arguido sabia, como qualquer pessoa sabe, que, considerando a natureza do instrumento utilizado (uma faca com 7,5 cm de lâmina), ao passar o fio cortante da faca no pescoço, com força, da direita para a esquerda, pode provocar um corte e, assim, a morte da vítima. Não existem vergões no pescoço da ofendida; nenhuma lesão foi mencionada pela ofendida, nem tal resulta da prova documental ou pericial.
Das declarações tomadas à própria ofendida extrai-se que, ao passar a faca no pescoço, não surgiu nenhum corte, “tem a noção que a faca estava ao contrário”, ou seja, que a parte da faca que estava a passar no seu pescoço era o lado inverso à lâmina. Além desta descrição pormenorizada, a ofendida declarou não saber se a conduta do arguido foi inocente ou de propósito.
Concatenando o acervo probatório, não se alcança que ao ato praticado pelo arguido de passar o lado inverso ao gume pelo pescoço de BB, da direita para a esquerda, com força, tivesse presidido o propósito de tirar a vida à ofendida, ou seja, tivesse agido com intenção de cortar o pescoço da ofendida. O manuseamento da faca da forma descrita, pelo lado inverso ao gume, não é idóneo a cortar o pescoço de uma pessoa, ainda que tal ato seja realizado com força. Nenhum elemento permite concluir que o arguido manuseou a faca incorretamente, por inabilidade ou qualquer outro motivo.
Desta forma, é evidente que não se logrou formar convicção clara, segura e inequívoca acerca da atitude interna do arguido de, ao passar o lado inverso ao gume pelo pescoço de BB, da direita para a esquerda, com força, ter intenção de lho cortar e, assim, poder ter provocado a morte, resultado que, antecipou e com o qual se conformou e que quis, e que só não aconteceu por factos alheios à sua vontade, tal como descrito no libelo acusatório.
Desta forma, impõe-se que a convicção do Tribunal se forme tendo em conta os princípios de prova em Direito Processual Penal. Assim, como consequência do princípio da presunção de inocência, segundo o qual enquanto não for demonstrada a culpabilidade de uma pessoa não é admissível a sua condenação (artigo 32º, nº 2 da Lei Fundamental), a dúvida sobre os factos resolve-se sempre a favor do arguido, em cumprimento do princípio “in dubio pro reo”. Com a aplicação deste princípio não se consideram como provados factos cuja prova não se logrou fazer, uma vez que tal atuação iria contra outro princípio imanente ao direito processual penal: o princípio da descoberta da verdade material.
Assim, por aplicação do princípio “in dubio pro reo” e dos princípios acima referidos, impõe-se valorar os factos relativamente ao qual se suscitaram dúvidas da forma que mais favorece o arguido – factos não provados f. e g..
Sem prejuízo, apreciado, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência comum, o manuseamento da faca, conforme provado na matéria factual objetiva, pelo pescoço da vítima, da direita para a esquerda, com força, mas pelo lado inverso ao gume, permite inferir com certeza e além da dúvida razoável que o arguido queria atemorizá-la e criar-lhe medo e receio pela sua integridade física e vida, bem sabendo que esta atitude adotada era adequada a causar tais sentimentos de terror, propósito que efetivamente conseguiu.
Em momento imediatamente subsequente, por não aceitar o fim da relação com a ofendida, nem aceitar que esta tivesse sucessivamente recusado reatar o relacionamento consigo, o arguido, em crescendo de violência com o ato precedente, manuseou a faca, cujas características conhecia, e golpeou a ofendida, espetando a faca do lado esquerda da sua face, mordeu-lhe a orelha direita, tendo arrancado com os seus dentes parte da mesma.
Apreciada tal factualidade objetiva de acordo com as máximas da experiência comum, conclui-se que, ao agir como agiu, o arguido sabia que atingia o corpo da ofendida e queria provocar-lhe as lesões mencionadas nos factos provados, que a afetam grave e permanente, marcando a sua face e desfigurando-a, o que quis e conseguiu.
Atendeu-se, quanto à concreta situação pessoal, social e profissional do arguido, descrita como provados nos factos de 49 a 54, ao teor do relatório social de fls. 418 a 420, elaborados pela DGRSP e junto aos autos, quer pelos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas, arroladas ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 128º do Código de Processo Penal,FF, LL, UU, NN e OO.
Do certificado de registo criminal decorre que o arguido não tem antecedentes criminais (facto provado 48).
Finalmente, os factos descritos de a. a e. resultaram como não provados, por tais circunstâncias não terem sido relatadas ou mencionadas expressamente pela ofendida nas declarações, que lhe foram tomadas, nem referidas pelas testemunhas nos depoimentos que prestaram, não tendo igualmente sido admitidas ou confirmadas pelo arguido, em audiência de julgamento.
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3. Apreciando
Nos termos do estatuído no art. 368.º aplicável ex vi art. 424.º n.º 2, ambos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer em primeiro lugar das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão. Após, das que a este respeitem, começando pelas relativas à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do Código do Processo Penal. Finalmente, debruçar-se-á sobre as questões atinentes à matéria de Direito.
Nessa medida, independentemente da sequência pela qual o recorrente suscita as questões, na sua apreciação o tribunal de recurso deve seguir uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras, tendo por referência a ordem indicada na disposição legal citada.
a. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
In casu o recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto, impugnando-a por duas vias:
- com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art. 410.º, n.º 2 do CPP (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de «revista alargada»), concretamente, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPP)
- mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP (impugnação em sentido lato).
Ora, quanto a este último segmento, impõe-se, conforme resulta da análise do normativo correspondente (n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP), que o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, assim como que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada.
Tal delimitação decorre da circunstância de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num “remédio jurídico”, destinado a suprir eventuais erros. Por conseguinte, se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis, a mesma será inatacável.
In casu, considera o recorrente que, no respeitante à sua condenação pela prática do crime de violência agravada, incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento por insuficiência de prova e incorreta valoração desta.
A esse propósito, (uma vez que não coloca em crise os factos respeitantes à sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física grave qualificada), pretende sindicar a valorização dos meios de prova realizada pelo tribunal a quo, visando a reapreciação da prova produzida, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, impugnando, concretamente, os factos provados do ponto 4 ao ponto 22.
Porém, não dá cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, na medida em que não indica qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa em relação aos factos do acórdão recorrido recorrida que, na sua opinião, traduzem erros de julgamento.
Com efeito, não invoca o recorrente em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados pelo tribunal a quo, mas antes questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, concretamente, das declarações da assistente em detrimento das declarações do arguido, segundo ele secundadas pelas suas testemunhas, ao contrário daquelas que se mostram desacompanhadas de qualquer outro elemento probatório.
Fundamentalmente, pretende o recorrente descredibilizar as declarações da assistente, de modo a fazer funcionar a seu favor o princípio in dubio pro reo, obtendo, assim, a sua absolvição quanto à prática do crime em questão, ou, pelo menos, que se reconheça que deverá cair a agravante prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 152.º do Código Penal (factos praticados no domicílio comum).
Tendo essencialmente presente que decisão de recurso de impugnação da matéria de facto não determina nem admite a realização de um novo julgamento, de modo a fazer substituir o entendimento do tribunal a quo pelo entendimento do tribunal superior, adiantamos desde já não assistir razão ao arguido.
Na verdade, da reapreciação a que procedemos verificamos, ao invés do pretendido pelo arguido, ter sido realizada uma análise cuidadosa e conjugada, e mesmo exaustiva, de toda a prova constante dos autos e produzida em sede de audiência de julgamento, não vislumbrando nós que pudesse ter resultado outra decisão de facto distinta daquela que foi proferida.
Assim, não se olvidando ter sido dada prevalência à versão da assistente em detrimento da versão do arguido, que negou a prática da generalidade das condutas que lhe foram imputadas, certo é que tal opção se mostra perfeitamente assumida e justificada pelo tribunal recorrido, inclusive no que se refere à “parcialidade” das testemunhas oferecidas pela defesa, o que decorre da apreciação global dos factos e não apenas do relato efetuado pela vítima quanto aos relativos à vivência comum.
Ou seja, o tribunal não se limitou a descrever aquilo que foi relatado por cada um dos intervenientes processuais, nos termos enunciados pelo recorrente na sua motivação, mas antes o conjugou e interpretou, procedendo à sua análise crítica nos termos que se passam a transcrever:
Da apreciação global dos factos (sublinhado nosso), o Tribunal convenceu-se que o arguido não queria, uma vez mais, aceitar o fim da relação com a ofendida (factos provados 22 e 23), nem aceitou que esta tivesse sucessivamente recusado reatar o relacionamento consigo (facto provado 25), o que conferiu credibilidade acrescida ao relato efetuado pela vítima acerca dos factos relativos à vivência comum com aquele e dos comportamentos violentos praticados pelo mesmo, que esta foi sucessivamente desculpando e consentindo (sublinhado nosso) .
O arguido vinha atuando em franca posição dominante e ascendente perante a vítima, revelando não respeitar as suas vontades e decisões, que levou a que tivesse agido, como agiu, no último episódio ocorrido no dia 12/10/2022.
Desta forma, não mereceram verosimilhança as declarações tomadas ao arguido, quer negando controlar, agredir ou maltratar BB, durante o lapso de tempo em que mantiveram a união, que alegando que pretendia terminar o relacionamento com BB, desde 2014 ou 2015, de quem apenas se reaproximava por “piedade”. Tais declarações foram secundadas pelos depoimentos das testemunhas CC e DD, bem assim pelas demais testemunhas arroladas pelo arguido, nos termos supra consignados, que, além de se orientaram claramente no sentido de defesa da tese deste (sublinhado nosso), traçaram a personalidade da ofendida como ciumenta, possessiva e agressiva, relatando factos que extravasam o objeto dos presentes autos (sublinhado nosso). Estas testemunhas revelaram, contudo, ter conhecimento parcial dos factos (sublinhado nosso) referentes à relação mantida entre o arguido e a ofendida, quer na medida das confidências que aquele lhes fazia pontualmente, quer porquanto não conviviam com ambos em privado. Assim, a versão negatória e vitimizante, apresentada pelo arguido, não logrou suscitar qualquer dúvida acerca da veracidade do relato efetuado pela vítima.”
Desta feita, reanalisada a prova produzida nos presentes autos, bem como observada a decisão recorrida e respetiva fundamentação, é de considerar que, de acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, é razoável e verosímil o entendimento do tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto, existindo as provas para a decisão tomada e não se detetando qualquer violação de normas de direito probatório.
Por conseguinte, o juízo probatório positivo alcançado pelo tribunal recorrido quanto à verificação dos factos que o arguido recorrente pretende ver como não provados é logicamente correto e, como tal, não merece qualquer censura.
Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2021 desta mesma secção (Processo n.º 510/19.6S5LSB.L1-5, Relator: Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, em www.dgsi.pt.) «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…).
Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase.
As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.
Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.
Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.
Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.»
Assim, não invocando o recorrente em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados pelo tribunal a quo, mas antes questionando, como já “supra” se referiu, a avaliação que o tribunal fez daqueles, temos que aquilo que verdadeiramente resulta das conclusões do recurso é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal fixou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do CPP, cuja a alegada violação não vislumbramos.
Por outro lado, o arguido imputa ainda à decisão os vícios indicados no art. 410.°, n.ºs 2, concretamente, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova.
É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n. º 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
Os vícios previstos no art. 410.º do CPP devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, sendo eles os seguintes:
- Do vício da alínea a), do n.º 2 do art. 410.º do CPP insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão do de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher ” (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Recursos Penais”, 9.ª ed. 2020, Editora Rei dos Livros, p. 75);
- Do vício da alínea b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão – “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão” (in op. cit. p. 78);
- Do vício da alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP erro notório na apreciação da prova – “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum (...) de onde resulta que o “tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das lege artis” (in op. cit. p. 81).
Como dizem Simas Santos e Leal-Henriques (in op. cit. p. 81), “não poderá incluir- -se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com preceituado no art. 127.º”.
Nessa medida, e apelando ao caso concreto, quando o recorrente coloca em causa o modo como o tribunal valorou a prova não está a invocar os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, mas a questionar o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova.
O que se verifica, como aliás já se referiu, é que o arguido não concorda com a valoração que o tribunal a quo realizou da prova produzida, pretendendo fazer valer a sua própria valoração e por via disso alterar a decisão de facto.
Porém, a peça processual colocada em crise está corretamente fundamentada, a valoração realizada obedece às regras de experiência, mostrando-se a prova adequadamente analisada, tendo o acórdão sido elaborada de acordo com aquela (prova) que foi produzida em julgamento, sem qualquer insuficiência, erro ou contradição.
Concluindo, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto e a invocação dos vícios a que se refere o art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPP, ou qualquer outro deles.
b) Da violação do princípio in dubio pro reo
O princípio em referência tem efetiva relevância e aplicação no domínio da apreciação da prova.
Porém, refletindo-se nos contornos da decisão de facto, somente será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, apenas nesse caso, decidir a favor do arguido.
Assim considerando, a violação do princípio em questão apenas tem lugar quando, num estado de dúvida insanável, o tribunal opte por decidir de forma desfavorável ao arguido.
No caso concreto, e sem prejuízo do juízo negativo quanto à prática pelo arguido do crime de homicídio qualificado na forma tentada, a propósito do qual imperou o princípio em questão, não resulta do texto da decisão recorrida que a 1ª instância tenha ficado com qualquer dúvida quanto à ocorrência de qualquer facto relevante quanto à prática pelo arguido quer de do crime de violência doméstica agravado quer do crime de ofensa à integridade física grave qualificada, e que nesse estado de dúvida tenha decidido contra o arguido/recorrente.
Acresce que tendo sido interposto recurso sobre a matéria de facto, e não se tendo verificado, como já se escreveu, qualquer erro de apreciação da mesma por parte do tribunal recorrido, a dúvida apenas subsiste para o arguido recorrente, não sendo partilhada nem por nós nem pela 1ª instância.
Nestes termos, também neste particular o recurso improcede.
c) Do enquadramento jurídico-penal
Para além do mais, mostra-se o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 al. b) e 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal.
Pugna, porém, o recorrente por dever cair a agravante prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 152.º do Código Penal uma vez que, segundo ele, “face à prova produzida, não se pode dar como provada essa agravante, devendo o arguido ser condenado por um crime de violência doméstica pelo art. 152º n.º 1, alínea b), do mesmo Diploma Legal”.
Comete o crime em questão “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns (n.º 1): a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (al. b.);” sendo então punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
“No caso previsto no número anterior, se o agente: praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos (n.º 2, al. a.).”
Em análise está um crime específico impróprio, isto é, que pode ser cometido por qualquer pessoa, mas que se for cometido por pessoas com certas qualidades é agravado, sendo que in casu a ilicitude é precisamente agravada em virtude da relação análoga à dos cônjuges existente entre o arguido e a vítima.
Acresce ter resultado que parte dos factos ocorreram no domicílio comum, sendo disso máxima expressão, pelo menos, os provados em 10, onde se tem assente a afirmação “na residência conjugal”.
Assim sendo, está igualmente verificada a circunstância agravante que o recorrente pretende colocar em crise, sendo propósito do legislador «(…) censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas» (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal -, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 406).
Desta feita, nenhuma razão assiste ao recorrente, improcedendo essa questão.
d) Do erro de direito na desproporcionalidade da pena concretamente aplicada
O arguido mostra-se condenado numa pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, correspondendo a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica agravado, e de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada.
O recorrente considera cada uma das penas parcelares desadequada e desproporcional, sendo, nos mesmos termos, o cúmulo jurídico operado desproporcionado.
Ou seja, segundo ele, deverão as penas serem reduzidas para os seus mínimos, a saber, 2 (dois) anos de prisão pela prática do crime de violência doméstica e 3 (três) anos de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física grave qualificada, sendo o respetivo cúmulo jurídico fixado em 4 (quatro) anos de prisão.
Como é sabido as finalidades de aplicação de uma pena decorrem essencialmente da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da preocupação em se atingir a reinserção do agente na comunidade - artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal. Posto que, se terá de atender ao art. 71.º do Código Penal, que dispõe, no seu n.º 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção.
No que respeita ao relacionamento entre aqueles dois critérios, defende Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 215), que à culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, sendo em função de considerações de prevenção geral de integração e especial socialização, que deve ser determinada abaixo daquele máximo, a medida da pena.
Segundo o art. 71.º, n.º 2 do Código Penal, “na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...)”. Com efeito, os princípios da proibição da dupla valoração e do ne bis in idem implicam que não sejam de novo apreciadas, em sede de medida concreta da pena, as circunstâncias que outrora foram consideradas a propósito do tipo de crime.
Nesse pressuposto, o tribunal a quo analisou os factos praticados pelo arguido com vista à subsunção dos mesmos dentro dos concretos fatores da medida da pena, o que ponderou nos seguintes termos:
“Como circunstâncias que depõem contra o arguido, importa considerar a ilicitude, traduzida na insensibilidade às condutas devidas, situando-se ao nível da mediania, quer quanto ao crime de violência doméstica, considerando os factos concretos que a integram e o lapso de tempo pelo qual perdurou o relacionamento abusivo (entre 2017 e 2022), quer quanto ao crime de ofensa à integridade física grave qualificado; o modo de execução, manifestando considerável desdém pela comissão dos factos relativamente à dignidade humana da mulher, enquanto sua companheira; a gravidade das consequências das suas condutas, considerando as sequelas físicas e psicológicas (até porque o decurso do tempo não apaga facilmente estas últimas marcas), concretamente a amputação parcial da hélice, ramo da hélice, antélice e lóbulo do pavilhão auricular esquerdo, cicatriz, linear, horizontal na face (transição zigomático-malar) esquerda, com 2,5cm x 0,5cm, cicatriz linear, na face palmar do 3º dedo da mão esquerda com 2,0 cm x 0,5 cm; a que acresce a forte intensidade do dolo, porque direto e intenso.
No que respeita as exigências de prevenção especial, importa considerar, desde logo, que o arguido não tem antecedentes criminais. À data dos factos, o arguido assumia a gestão da vida familiar do seu agregado familiar, constituído por si e seu irmão consanguíneo com 21 anos do qual o arguido é tutor, além de sua mãe, de modo alternado, e que se encontrava à data da instauração do presente processo a viver em ....
O arguido, que tem o 9º ano de escolaridade e começou a trabalhar cerca dos 15 anos de idade, trabalhava por conta própria num estabelecimento comercial vulgo café, que explora há cerca de 15 anos, tendo em momento anterior (a partir de 2013), trabalhado fora do país, por períodos de 3 a 6 meses, na área da manutenção de plataformas ou como manobrador de máquinas.
Preso preventivamente em outubro de 2022, o arguido tem, até à presente data, evidenciado capacidade de cumprimento das regras institucionais e procurado manter-se ativo e empenhado, tendo prosseguido os estudos, através do programa de Reconhecimento e Validação de Conhecimentos e Competências (RVCC), no sentido de obter o ensino secundário, participando ainda em várias atividades sejam de cariz cultural/recreativo ou desportivo, encontra-se a trabalhar desde julho último como faxina da biblioteca.”
Em face de tudo isso, dentro de uma moldura penal abstrata equivalente a 2 (dois) anos a 5 (cinco) anos de prisão, fixou o tribunal a quo a respetiva pena parcelar em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, no caso do crime de violência doméstica agravado.
Por seu turno, e quanto ao crime de ofensa à integridade física grave qualificada, dentro de uma moldura abstrata equivalente a 3 (três) a 12 (doze) dozes anos de prisão, fixou a respetiva pena parcelar em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Por outro lado, com vista à fixação da pena única, dentro de uma moldura que se situa entre os 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses e os 9 (nove) anos de prisão, fixou a respetiva pena única em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, ou seja, abaixo do respetivo terço.
Aqui chegados, e no seguimento do acórdão do STJ de 19.05.2021 (Proc. 10/18.1PELRA.S1., disponível em http://www.dgsi.pt), regista-se que «no que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.»
Dessa forma, analisada por nós a fundamentação exarada pela primeira instância quanto à medida da pena, afigura-se-nos que o tribunal a quo individualizou, de forma correta, as diversas circunstâncias relevantes, salientando nós a particularidade de o arguido ter negado a prática da generalidade das condutas que lhe foram imputadas - ausência de juízo crítico -, antevendo-se, por isso mesmo, uma forte probabilidade de vir a reincidir em comportamentos semelhantes.
As exigências de prevenção geral são inquestionavelmente elevadas, e com elas confluem exigências de prevenção especial efetivas, independentemente de o arguido não registar antecedentes criminais, exibir hábitos de trabalho e de assumir a gestão da vida familiar do seu agregado familiar.
Mais ponderou o tribunal recorrido, de forma igualmente equitativa, o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução por contraponto à dignidade humana da mulher, enquanto sua companheira, a gravidade das consequências das suas condutas (a nível psicológico e físico), e a forte intensidade do dolo – direto e intenso.
Todos esses fatores, detalhadamente analisados pelo tribunal a quo, não se de molde a considerar a pretensão do arguido, no sentido de fazer situar as respetivas penas parcelares e pena única pelos seus mínimos.
Ao invés, são de molde a não permitir qualquer reparo quer às penas parcelares quer à pena única fixada pelo tribunal a quo, porquanto se mostram justas, adequadas às finalidades de prevenção, e proporcionais à culpa e personalidade do arguido/recorrente.
Deste modo, improcede esta questão e, consequentemente, o recurso, na medida em que a pena, por ultrapassar 5 (cinco) anos de prisão, não é legalmente suscetível de suspensão.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso apresentado pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra a decisão do tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
*
Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.

Lisboa, 21 de maio de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
João Ferreira
Manuel Advínculo Sequeira