Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3319/23.9T8CSC.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: CITAÇÃO
ACTO PROCESSUAL
FALTA DE CITAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Estando em causa a citação de dois réus, uma pessoa singular e uma pessoa colectiva, e sendo aquele o legal representante desta, a citação de ambos pode ser reunida num mesmo acto, dirigido ao réu pessoa singular, e desde que se identifique expressamente que o destinatário está a ser citado em nome próprio e como representante da pessoa colectiva.
2- Perante a certificação de que a carta expedida pela secretaria para a citação de ambos os RR. foi entregue ao 2º R., que a recebeu em nome próprio e como representante legal da 1ª R., e tendo presente a falta de alegação (e demonstração) de quaisquer circunstâncias que colocassem em causa tal realidade, não há lugar a declarar a nulidade de todo o processo (aí se incluindo a sentença recorrida) por falta dessa citação.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

T., Unipessoal, Ld.ª intentou acção declarativa com forma de processo comum contra V., Ld.ª (1ª R.) e B. (2º R.), pedindo a condenação solidária dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 33.720,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento, e alegando para tanto, e em síntese, que:
· Em 1/8/2019 celebrou com a 1ª R. um contrato pelo qual prometeu vender à 1ª R. um imóvel, que esta prometeu comprar, pelo preço de € 225.000,00, a pagar com a realização da escritura pública, até 30/7/2020;
· Nos termos do mesmo contrato promessa a 1ª R. aceitou pagar € 5.000,00 na data da assinatura do mesmo, bem como € 700,00 a título de garantia dos bens móveis existentes no imóvel, e ainda € 1.700,00 como reforço do sinal até ao fim do período de 180 dias a contar da data da assinatura do contrato promessa, e € 1.700,00 como reforço do sinal até ao fim do período de 270 dias a contar da data da assinatura do contrato promessa;
· Com a assinatura do contrato promessa a A. entregou o imóvel à 1ª R., que o recebeu, na pessoa do 2º R., seu gerente, bem como todo o mobiliário e equipamento existente no mesmo;
· Em consequência do incumprimento contratual da 1ª R. a A. comunicou-lhe, em 7/7/2020, a resolução do contrato promessa, tendo a 1ª R. procedido à entrega do imóvel na sequência dessa comunicação, em 7/4/2021, e tendo na mesma data sido realizado o inventário dos bens móveis e equipamentos existentes no imóvel;
· Na sequência de tal entrega e do inventário em questão a A. detectou a falta de vários bens, no valor de € 12.300,00, detectando ainda danos no imóvel, cuja reparação ascendeu a € 3.420,00, quantias pelas quais os RR. são solidariamente responsáveis;
· Nos termos convencionados no contrato promessa os RR. são ainda responsáveis pelo pagamento da quantia de € 18.000,00, correspondente ao valor mensal de € 2.000,00, a título de indemnização pelo atraso na entrega do imóvel, entre 30/7/2020 e 7/4/2021.
Tendo em vista a citação dos RR. foi expedida pela secretaria carta registada com aviso de recepção, endereçada ao 2º R. e expedida para a morada indicada na P.I. como sendo o domicílio do mesmo (R. (…), Alcabideche), mais constando da nota de citação respectiva que:
Nos termos do disposto no art.º 228.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado, por si e na qualidade de Legal Representante de V., Lda., para, no prazo de 30 dias, contestar, querendo, a acção acima identificada com a advertência de que a falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo(s) autor(es).
Com a contestação, deverá o citando, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, de acordo com o artº 572º do Código de Processo Civil.
Ao prazo de defesa acresce uma dilação de: 0 dias.
No caso de pessoa singular, quando a assinatura do Aviso de Recepção não tenha sido feita pelo próprio, acrescerá a dilação de 5 dias (art.º s 228.º e 245º do CPC).
A citação considera-se efectuada no dia da assinatura do AR.
O Prazo é contínuo, suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais.
Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte.
Fica advertido de que sim é obrigatória a constituição de mandatário judicial.
Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos”.
Deu entrada nos autos o aviso de recepção relativo à carta registada acima mencionada, aí estando certificado pelo distribuidor do serviço postal que a assinatura do aviso de recepção foi aí aposta pelo 2º R., e mais estando anotado o número do seu documento oficial de identificação.
Não tendo sido apresentada qualquer contestação, e após ter sido certificado que a 1ª R. se obriga pela intervenção de um gerente, estando designado o 2º R. como gerente da 1ª R., foi proferido despacho nos termos e para os efeitos do art.º 567º do Código de Processo Civil.
Após a apresentação de alegação pela A. foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Em face do exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
1- Condena-se os Réus (…) a pagar solidariamente à Autora (…) a quantia de € 15.720,00 (quinze mil setecentos e vinte euros), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, que se fixa presentemente em 4%, contados desde a citação dos identificados Réus até efectivo e integral pagamento.
2- Condena-se a Ré (…) a pagar à Autora (…) a quantia de € 18.000,00 (dezoito mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, que se fixa presentemente em 4%, contados desde a citação da identificada Ré até efectivo e integral pagamento.
3- Absolve-se o 2.º Réu (…) do demais peticionado pela Autora (…) nos presentes autos.
4- Condena-se a Autora (…) e os Réus (…) no pagamento das custas processuais, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 10%, 65% e 25%, respectivamente”.
Os RR. recorrem desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A. Os ora Recorrentes nunca foram citados para o presente processo.
B. Consequentemente e tendo constatado a existência da presente Acção, apenas com o recebimento da decisão oportunamente proferida, vêm aqui demonstrar e arguir o seu completo desconhecimento da acção que lhes foi movida e da qual não tiveram conhecimento, para, dentro do prazo legal poderem deduzir oposição à mesma;
C. A ter sucedido foi a citação efectuada em pessoa diversa dos citandos o que constitui uma modalidade de citação "quase pessoal", obrigando à observância das formalidades enumeradas no artigo 233º do CPC, de modo a que a citação realizada na pessoa de terceiro tenha o valor da citação pessoal, com todas as suas consequências.
D. O que não aconteceu nos presentes autos e nos termos do citado normativo, a citação não foi completada, por inobservância das formalidades prescritas na lei, o que constitui nulidade da citação, sendo que a falta prejudicou gravemente a defesa dos Réus, obstando a que pudessem contestar a presente acção.
E. Devendo considerar-se, assim, estarem reunidas as condições para a Nulidade da Citação.
F. Assim, nos termos do artigo 191º nº 1 e 2 do CPC, requer-se que seja repetida a citação o que acarretará, necessariamente, a NULIDADE de tudo quanto no processo tenha sido praticado, salvando-se apenas, o requerimento inicial, o que expressamente se requer e invoca, sempre com o douto suprimento de V. Exa..
G. O Gerente da Autora recebeu pessoalmente o estabelecimento e todos os bens moveis e equipamentos constantes das listas anexas por si subscritas.
H. O Réu B. não provocou qualquer estrago no referido estabelecimento, por nunca o ter tido na posse ou fazer dele qualquer exploração que, como bem sabe a A. era feita por pessoa diversa, conforme constatado e decidido no processo criminal também intentado pela A.
I. A atitude da Autora é de autentica extorsão, que já tentou sem sucesso na via criminal, litigando com visível má fé e em manifesto abuso de Direito, pelo que deverá ser condenada em quantia não inferior aos montante que se arroga o direito de receber, bem sabendo que tais montantes não lhe são devidos
Não foi apresentada alegação de resposta.
Com o despacho de admissão do recurso o tribunal recorrido pronunciou-se no sentido da não verificação do vício da falta de citação.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, tal como se encontram delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
· A nulidade de todo o processado (incluindo a sentença recorrida) por efeito da falta de citação;
· O direito da A. a ser indemnizada dos danos correspondentes aos estragos no imóvel restituído e ao valor dos bens que não lhe foram restituídos;
· A litigância de má fé da A.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (corrigem-se as referências processuais):
1. Em 1 de Agosto de 2019, a A. e a 1ª R., representada no acto pelo 2º R., celebraram um escrito denominado “contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal”, mediante o qual a primeira declarou prometer vender à segunda, e esta declarou prometer comprar, livre de quaisquer hipotecas, penhoras, ónus ou encargos, ou outras responsabilidades o imóvel designado por ‘Loja’, sito na Rua C., em Alcabideche, (…), mediante o pagamento por parte da segunda da quantia de € 225.000,00.
2. Na ‘Cláusula Sétima’, n.º 3 do escrito denominado “contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal” referido em 1., consta que:
Fica estabelecido entre as partes, que caso haja incumprimento por parte da segunda outorgante e a primeira tenha que recorrer ao Tribunal para a entrega da loja, uma indemnização de €: 2.000,00 (dois mil euros) mensais, entregues à primeira outorgante, até que seja entregue o objecto do presente contrato, quer pela via Judicial, quer por acordo estre as partes”.
3.Em 1 de Agosto de 2019, a A. entregou as chaves do imóvel acima identificado à 1ª R., a qual passou a explorar um estabelecimento de cafetaria no referido espaço.
4.O imóvel identificado em 1. foi entregue pela A. à 1ª R. com o respectivo recheio, composto por diversos equipamentos relacionados e/ou necessários para o desenvolvimento da actividade de cafetaria acima referenciada.
5.Por carta datada de 7 de Julho de 2020, enviada pela A. à 1ª R., e por esta recebida, a primeira comunicou à segunda o seguinte:
(…) Verifica-se o incumprimento do contrato de promessa de compra e venda, celebrado entre as partes em 01-08-2019, no que diz respeito à outorga da escritura pública, na sua cláusula terceira, cuja redacção é a seguinte:
A marcação da escritura pública de compra e venda, é da responsabilidade da Segunda Outorgante, devendo avisar a Primeira com a antecedência mínima de 30 DIAS (1 de Julho de 2020), por carta registada com aviso de recepção, local data e hora da mesma.
Ora não se tendo verificado este pressuposto, damos o contrato por denunciado.
Assim, consideramos de que em 30 de Julho de 2020, deverão ser entregues as respectivas chaves da fracção em questão, precedida de uma vistoria ao espaço e aos bem mobiliários, que constam de relação anexa ao contrato, sob pena da aplicação da clausula penal, prevista na clausula SÉTIMA, ponto 3”.
6. Em 7 de Abril de 2021, a 1ª R. procedeu à entrega do imóvel à A.
7. Na referida data, o imóvel apresentava vários estragos nas respectivas paredes.
8. Os estragos referidos em 7. foram provocados pelo 2º R.
9. A A. despendeu a quantia global de € 3.420,00, com a reparação dos estragos existentes nas paredes do imóvel.
10. A 1ª R. não procedeu à devolução à A. de alguns dos equipamentos referenciados em 4., no montante global de 12.300,00.
11. O 2º R. apropriou-se dos equipamentos referidos em 10.
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Na sentença recorrida consignou-se ainda a inexistência de quaisquer factos não provados.
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Da nulidade
Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 223), “a nulidade da falta de citação é de conhecimento oficioso (art.º 196º), pode ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (art.º 198º, nº 2), deve ser conhecida pelo juiz em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (art.º 200º, nº 1). Mas esta nulidade, apesar da sua gravidade, ter‑se‑á por sanada sempre que o réu ou o Ministério Público intervenha no processo ser arguir logo a falta de citação (art.º 189º)”.
E dispondo a al. e) do nº 1 do art.º 188º do Código de Processo Civil que há falta de citação quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável, explicam os mesmos autores (pág. 227) que para que se possa concluir “pela verificação da omissão da citação é insuficiente a simples invocação e prova do efectivo desconhecimento; exige‑se ainda que este não seja imputável ao citando (…). Considerando a referida presunção de conhecimento, é sobre o réu que recai o ónus de alegar e de provar os pressupostos legais referidos. Com efeito em qualquer destas situações, pode ter-se verificado o efectivo desconhecimento do acto de citação e, ainda assim, afirmar-se ser isso imputável ao citando, caso em que a citação se deve considerar regularmente efectuada”.
No caso concreto os RR. afirmam que nunca foram citados para a acção e que apenas tomaram conhecimento da mesma com a notificação da decisão recorrida, porque “se de facto foi expedida carta cujo objecto foi entregue, foi certamente recebido por pessoa diversa dos RR., e da qual não lhes foi dado conhecimento”, uma vez que não foi dado cumprimento ao disposto no art.º 233º do Código de Processo Civil. E é a partir desta alegação que sustentam que ocorreu a falta da sua citação, a determinar a nulidade de tudo o que foi processado depois da apresentação da P.I., por força do disposto no art.º 187º do Código de Processo Civil.
Sendo a citação “o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender” (art.º 219º, nº 1, do Código de Processo Civil, na sua versão anterior à que resulta das alterações introduzidas pelo D.L. 87/2024, de 7/11, por ser aquela aplicável ao tempo da citação ora colocada em crise, e que doravante será a única versão referida), importa igualmente recordar que, estando em causa a citação de uma pessoa colectiva, a mesma é feita na pessoa dos seus legais representantes, e bastando que seja citado um deles, ainda que a representação pertença a mais de uma pessoa (art.º 223º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil).
O que significa que, estando em causa a citação de dois réus, uma pessoa singular e uma pessoa colectiva, e sendo aquele o legal representante desta, a citação de ambos pode ser reunida num mesmo acto, dirigido ao réu pessoa singular, e desde que se identifique expressamente que o destinatário está a ser citado em nome próprio e como representante da pessoa colectiva.
Por outro lado, e tratando-se de efectuar a citação através da entrega ao citando (pessoa singular) de carta registada com aviso de recepção (al. b) do nº 2 do art.º 225º do Código de Processo Civil), deve a mesma ser dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho, incluindo todos os elementos a que respeita o art.º 227º do Código de Processo Civil, sendo entregue ao mesmo após assinatura do aviso de recepção, e devendo o distribuidor do serviço postal proceder previamente à identificação do citando, anotando os elementos do documento oficial que permita a identificação do mesmo (art.º 228º, nº 1 a 3, do Código de Processo Civil).
Por outro lado, e como resulta do art.º 230º do Código de Processo Civil, a citação postal efectuada ao abrigo do referido art.º 228º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de recepção, e tem-se por efectuada na própria pessoa do citando, mesmo que o aviso de recepção haja sido assinado por terceiro, presumindo‑se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário.
Assim, e como explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 257), “a elisão desta presunção [do conhecimento do acto da citação] deve ser feita logo na primeira intervenção que o réu tiver nos autos, arrolando os meios de prova susceptíveis de demonstrar que, por facto que não lhe é imputável (art.º 188º, nº 1, al. e)), não teve conhecimento da carta de citação, designadamente por não lhe ter sido entregue pela pessoa que assinou o aviso de recepção”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, torna-se patente que a carta registada com aviso de recepção que foi expedida pela secretaria contém todos os elementos que tinham de ser transmitidos obrigatoriamente aos RR., nos termos do art.º 227º do Código de Processo Civil. Do mesmo modo, foi tal carta dirigida ao 2º R., em nome próprio e na sua qualidade de gerente da 1ª R. (sendo que os poderes de representação respectivos estão comprovados nos autos e não são colocados em causa pelos RR.), e expedida para aquela que é residência do mesmo (tal como indicada pela A.) E, do mesmo modo, mostra-se certificado que a carta foi entregue ao 2º R., que assinou o aviso de recepção respectivo, após ter sido colhida a identificação do mesmo pelo distribuidor do serviço postal.
A afirmação dos RR. de que a carta foi “certamente recebida por pessoa diversa”, mas sem que coloquem em crise que a morada para onde foi expedida não corresponde à residência do 2º R., nem tão pouco colocando em crise a referida certificação da entrega da carta ao 2º R., nem tão pouco colocando em crise a autoria da assinatura aposta no aviso de recepção (e certificada como sendo do 2º R.), apresenta-se assim como uma afirmação desprovida de qualquer sentido e inapta para o fim visado pelos RR., quer no sentido de demonstrarem que não chegou ao conhecimento dos mesmos tal carta, quer no sentido de que essa omissão de conhecimento não lhes pode ser imputada.
Dito de forma mais simples, perante a certificação de que a carta expedida pela secretaria para a citação de ambos os RR. foi entregue ao 2º R., que a recebeu em nome próprio e como representante legal da 1ª R., e tendo presente a falta de alegação (e demonstração) de quaisquer circunstâncias que colocassem em causa tal realidade, conclui-se pela citação regular dos RR., não havendo lugar a declarar a nulidade de todo o processo (aí se incluindo a sentença recorrida) por falta dessa citação, e assim improcedendo as conclusões do recurso, nesta parte.
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Do direito da A. à indemnização
Na sentença recorrida ficou assim sustentada a obrigação dos RR. de indemnizar a A. relativamente aos danos causados no imóvel, bem como relativamente à falta de restituição de determinados bens móveis:
Conforme resultou da factualidade provada, na sequência da resolução contratual comunicada pela Autora à 1.ª Ré (…), esta última procedeu à entrega do imóvel que constituía o objecto do contrato-promessa celebrado pelas partes (cf. pontos 5. e 6. da matéria de facto).
Sucede, porém, que aquando da respectiva devolução/entrega à Autora, o referido imóvel apresentava vários estragos nas paredes, tendo a Autora despendido a quantia global de € 3.420,00 com a respectiva reparação (cf. pontos 6., 7. e 9. da matéria de facto).
Por outro lado, resultou igualmente provado que a 1.ª Ré (…) não procedeu à devolução à Autora de alguns dos equipamentos que lhe haviam sido previamente entregues pela mesma, no montante global de 12.300,00 (cf. pontos 4. e 10. da matéria de facto).
Ora, por efeito da resolução do contrato-promessa celebrado com a Autora, encontrava-se a 1.ª Ré obrigada a restituir o imóvel no mesmo estado em que o recebeu, bem como a totalidade dos equipamentos que lhe haviam sido entregues pela Autora.
Destarte, tendo incumprido o dever de custódia que sobre si impendia e, outrossim, a obrigação de restituição acima descrita, deve a 1.ª Ré (…) ser condenada a indemnizar a Autora no montante global de € 15.720,00, correspondente aos prejuízos supra referenciados, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, que se fixa presentemente em 4%, contados desde a respectiva citação até efectivo e integral pagamento.
Por outro lado, resultou igualmente da matéria de facto que os estragos existentes no imóvel da Autora foram provocados pelo 2.º Réu (…) (cf. ponto 8. dos factos provados), o qual, de igual modo, se apropriou dos equipamentos pertencentes à Autora (cf. ponto 11.).
Prescreve o artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais que «os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções».
Conforme assinalado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07‑10‑2021/, proc. n.º 7357/19.8T8LSB.L1-2, rel. Nélson Borges Carneiro, disponível em www.dgsi.pt:
«No exercício das suas funções, os administradores, com os seus actos ou omissões e preterindo os seus deveres legais ou contratuais, podem causar danos não só na sociedade e nos credores sociais, como também, directamente nos sócios e outros terceiros que tenham uma ligação à sociedade que administram, nos termos do artigo 79.º, do Código das Sociedades Comerciais. (…)
Deste modo, e em termos gerais, pode dizer-se que um dano será considerado directamente causado na esfera jurídica de um sócio ou terceiro, se existir uma relação directa e imediata de causalidade adequada entre o facto ilícito e culposo praticado pelo administrador e o dano provocado aos sócios e terceiros, não decorrendo esses prejuízos por intermédio da sociedade. Assim, conclui-se que os danos ocorrem directamente nos sócios e terceiros, sendo eles os principais lesados e sem que exista uma interferência directa da sociedade
A responsabilidade aquiliana dos administradores para com os sócios ou terceiros seria sempre possível, por via do 483º/1. O problema reside no 79º/1 se reporta a danos causados “no exercício das suas funções”. Tais danos são, automaticamente, imputados à própria sociedade, a qual seria, então, responsável
A responsabilidade será directa quando os danos resultem do facto ilícito sem qualquer intervenção de quaisquer outros eventos. Em termos valorativos, isso redundará ou em práticas dolosas dirigidas à consecução do prejuízo verificado, ou em práticas negligentes groseiras, cujo resultado seja, inelutavelmente, a verificação do dano em causa (grifado nosso)».
Contrariamente aos prejuízos sofridos pela Autora relacionados com o atraso na devolução do imóvel – os quais, conforme se disse, apenas podem ser imputáveis à 1.ª Ré (…), já que apenas sobre a mesma impendia a referida obrigação –, neste último caso encontram-se igualmente reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual relativamente ao 2.º Réu (…).
Com efeito, pese embora o mesmo tenha actuado na qualidade de gerente da sociedade 1.ª Ré, o certo é que praticou um facto ilícito e culposo, provocando estragos no imóvel pertencente à Autora e apropriando-se de equipamento à mesma pertencente; danos esses que, tendo sido causados directamente na esfera da Autora, deve o mesmo ser obrigado a indemnizar.
Prescreve o artigo 497.º, n.º 1 do Código Civil que, «se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade».
Nestes termos, e em face do exposto, cumpre concluir pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil relativamente a ambos os Réus, devendo os mesmos serem condenados a indemnizar solidariamente a Autora no montante global de € 15.720,00 (correspondente a € 3.420,00 [custo de reparação dos estragos no imóvel] + € 12.300,00 [valor dos equipamentos pertencentes à Autora]), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, que se fixa presentemente em 4%, contados desde a citação dos identificados Réus até efectivo e integral pagamento”.
Contra tal fundamentação os RR. limitam-se a invocar todo um circunstancialismo fáctico que não é o que emerge da factualidade provada, sem que tenham impugnado a decisão de facto, e sem que hajam apresentado qualquer argumento no sentido de se verificar qualquer erro de julgamento do tribunal recorrido, ao afirmar a obrigação dos mesmos de reparar o prejuízo decorrente dos actos ilícitos e culposos que praticaram, no âmbito da detenção do imóvel da A.
Pelo que, sem necessidade de ulteriores considerações, improcedem as conclusões do recurso dos RR., também nesta parte.
***
Da litigância de má fé
No que respeita à litigância de má fé da A., sustentam os RR. que aquela reclamou valores a que sabia não ter direito, apresentando-se em juízo com um argumento falso e totalmente descabido e numa atitude de “autêntica extorsão, que já tentou na via criminal”, assim pretendendo que a A. seja “condenada em quantia não inferior aos montante que se arroga o direito de receber, bem sabendo que tais montantes não lhe são devidos”.
Para além de a pretensão dos RR. assentar em pressupostos de facto que não são aqueles que decorrem dos autos, a circunstância de a A. recorrer a tribunal para fazer valer um direito, e não ver o mesmo reconhecido por inteiro, não conduz à sua qualificação como litigante de má fé.
Com efeito, importa recordar que, como decorre do nº 2 do art.º 542º do Código de Processo Civil, diz‑se litigante de má fé aquele que, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de funda­mento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como já referiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 7/10/2004 (relatado por Maria Laura Leonardo e disponível em www.dgsi.pt), “a acção é um instrumento posto à disposição dos interessados para fazerem valer em juízo as suas pretensões.
No artº 266º-A do CPC [que corresponde ao art.º 8º do Código de Processo Civil de 2013] consagra-se um dever geral de probidade. “As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.”
É a violação deste dever (conduta ilícita), de forma dolosa (lide dolosa) ou gravemente negligente (lide temerária), que configura a litigância de má fé”.
E como já referiu este Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 5/5/2011 (relatado por Octávia Viegas e disponível em www.dgsi.pt), “a parte está obrigada a uma pesquisa séria e intensa da verdade dos factos que traz a juízo, tendo uma actuação diligente, usando das precauções exigidas pela mais elementar prudência, a própria de um bom pai de família, naquelas circunstâncias concretas”, sob pena de ser condenada como litigante de má fé.
Mas aí igualmente se refere que “o conceito de litigância de má fé previsto no art. 456 do C.P.Civil [que corresponde ao art.º 542º do actual Código de Processo Civil] não abrange os casos de manifesto lapso, lide meramente ousada, pretensão ou oposição cujo decaimento resultou de fragilidade de prova, de dificuldade em apurar os factos e da sua interpretação e de defesa convicta e séria de uma posição que não obteve merecimento.
A condenação como litigante de má fé só deve ser proferida quando se estiver perante uma situação em que se manifeste inequivocamente uma conduta dolosa ou gravemente negligente da parte, quando dos autos resultam apurados factos que demonstram o exercício abusivo do direito de acção ou de defesa, o qual deve proporcionar às partes a possibilidade de dirimir as questões de facto e de direito de forma equilibrada e razoável, sem receios de sanções decorrentes do entendimento do tribunal sobre as questões que lhe são submetidas”.
Ora, face ao acima exposto, é manifesto que aquilo que resulta da actuação da A. é a invocação de uma relação jurídica que, no essencial, resulta verificada, sendo que a improcedência de parte do pedido, relativamente ao 2º R., não decorre de qualquer alteração da verdade dos factos, mas tão só de uma errada configuração daquela relação jurídica, e sem que se possa afirmar que a A. sabia, ou não podia ignorar, que era manifesto que o 2º R. não era obrigado, por qualquer forma, a satisfazer o valor convencionado para o atraso na restituição do imóvel.
E é quanto basta para concluir que não há lugar à condenação da A. como litigante de má fé.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida, mais improcedendo o pedido de condenação da A. como litigante de má fé.
Custas do recurso pelos RR., sem prejuízo de eventual benefício do apoio judiciário.

13 de Fevereiro de 2025
António Moreira
Laurinda Gemas
Higina Castelo