Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA | ||
Descritores: | UNIÃO DE FACTO ACÇÃO DE RECONHECIMENTO MEIOS DE PROVA PROVA DOCUMENTAL IMPUGNAÇÃO FACTOS INDICIÁRIOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. A prova da união de facto não está condicionada a um concreto meio de prova, podendo emergir de prova documental, testemunhal, por presunções judiciais e mesmo por declarações de parte. II. A impugnação de um documento escrito pode versar sobre três aspetos: sobre a autenticidade (coincidência entre autor real e autor aparente); exatidão (concordância da cópia ou certidão com o original) e sobre a certeza, ou seja, concordância das declarações vertidas no documento com a realidade. Nesta última modalidade, está em causa apenas o valor persuasivo do documento em função do seu conteúdo na formulação da convicção do julgador (valor probatório material), realidade totalmente diversa da discussão do valor probatório formal do documento, ou seja, da sua genuinidade ou autenticidade. III. A vivência em união de facto ao longo de anos deixa um alargado rasto documental, sendo que este assume um carácter objetivo, brota naturalmente dos eventos, sendo revel a manipulações oportunistas de última hora para encenar uma vivência em comunhão de mesa, leito e habitação. IV. Num contexto em que existe abundante documentação que evidencia que, desde a data de nascimento do filho em comum, os autores têm como centro da sua vida a mesma morada, na qual residem com o filho, recebem a correspondência, efetuam contratos de fornecimento de serviços essenciais, assumindo perante a autoridade tributária brasileira que vivem em união de facto, cada um dos referidos documentos opera como facto-indiciário ou facto probatório conducente ao facto probando, qual seja, o de que os autores residem juntos desde novembro de 2011 como se de marido e mulher se tratassem. V. Segundo o modelo da explicação plausível, a inferência entre o facto probatório e o facto probando conduz à prova deste facto, se o facto probando constituir uma explicação possível do facto probatório e se não houver uma melhor explicação daquele facto probatório. Noutros termos: do facto probatório pode ser inferido o facto probando que constituir a melhor explicação daquele facto probatório. VI. «Para que o facto probando seja considerado provado é suficiente que aquele facto constitua uma explicação possível do facto probatório e que o tribunal não admita que este último facto é mais bem explicado por um facto distinto daquele facto provado; basta, por isso, a ausência de uma melhor explicação, não sendo necessária a exclusão pelo tribunal de toda e qualquer outra explicação do facto probatório.» VII. Os autores demonstraram que o facto probando constitui uma explicação possível e consistente dos factos probatórios confluentes. Pelo contrário, o Réu Estado Português não logrou demonstrar que exista um outro facto que possa constituir uma melhor explicação dos factos probatórios. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO BB e DD propuseram ação declarativa comum contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo que este seja condenado a reconhecer a união de facto existente entre ambos os autores, a fim de a autora adquirir a nacionalidade portuguesa, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 3.º, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro. Para tanto alegam, em síntese, que mantêm entre si uma relação análoga à dos cônjuges, desde 2011, mais alegando que, com a presente ação, pretendem instruir o pedido de aquisição de nacionalidade portuguesa da autora. Citado, o Ministério Público apresentou a contestação em que apenas aceita a nacionalidade dos autores e a parentalidade do filho em comum, impugnando no mais por desconhecimento. Não havendo audiência prévia (Artigo 592º, nº1, al. a)), foi proferido o despacho nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 593.º do Código de Processo Civil e notificadas as partes para alegar, porquanto não fora requerida a produção de qualquer prova em audiência. Os Autores alegaram, juntando diversa documentação no sentido de provar a existência da união de facto. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente por não provada, não reconhecendo a existência da união de facto. * Não se conformando com a decisão, dela apelaram os Autores formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES: I. A Lei n° 7/2001 conceitua a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”. O art. 2°- A do mesmo diploma legal estabelece os meios de provar essa situação que consiste em prova da coabitação há pelo menos dois anos acompanhadas de declarações sob compromisso de honra de viverem como unidos de facto há pelo menos dois anos, e respetivas certidões de nascimento. Todavia, a sentença recorrida não se ateve aos parâmetros da norma mencionada para avaliar o caso sub judice, descartando arbitrariamente a prova documental apresentada que cumpre com as exigências parametrizadas pelos n° 1 e n° 2 do art. 2°- A da Lei 7/2001. II. As provas acostadas aos autos demonstram que os Recorrentes cumprem com os requisitos supramencionados para o reconhecimento de que sua situação jurídica enquadra-se na categoria de “unidos de facto” nos termos da Lei portuguesa cf. n° 1 e n° 2 do art. 2°- A da Lei 7/2001. A Escritura Pública de União Estável e Convivência Marital, documento revestido de fé pública nos termos da legislação brasileira já mencionada, faz prova quanto à natureza da relação entre os Recorrentes, estabelece seu marco temporal inicial, que recua até 30 de julho de 2011. Nela ainda declararam solenemente coabitarem e qual a morada do casal, sendo a mesma até o presente a mesma, conforme se verifica dos demais documentos. No mesmo sentido, as Declarações de Imposto de Renda dos Recorrentes, que cobrem o período desde 2018 até o presente, comprovam que ambos têm consistentemente se declarado mutuamente companheiros (unidos de facto) perante a Receita Federal Brasileira para todos os fins; os mesmos documentos corroboram a coabitação por todo o período da data dos documentos referidos, somada à prova da propriedade do imóvel que serve de morada da entidade familiar. Os demais documentos apresentados (discriminados no item 40 do texto das Alegações, alíneas “a” a “k”) convergem todos no mesmo sentido: reforçam os factos-materiais da coabitação há mais de dois anos e de partilha de vida familiar. Além disso, foram acostadas declarações sob compromisso de honra de que os Recorrentes vivem em união de facto (união estável) até o presente, conforme n° 2 do art. 2°-A da Lei n° 7/2001. III. A Lei n° 7/2001 estabeleceu normas de proteção das uniões de facto, dentre elas, a facilitação da sua prova, nos termos do art.° 2-A. Porquanto, não se pode exigir um nível probatório mais exigente que aquele ali estabelecido, sob pena de violar os termos expressos do n° 1 do art. 2°-A e o objeto da Lei conforme n° 1 do seu art. 1°. IV. Na falta de declaração de coabitação por parte da Junta de Freguesia, justificada pelo facto dos Recorrentes terem sua morada no Brasil, onde não existe órgão da Administração Pública com competência similar, e cuja prova da morada faz-se por outros meios, devem ser aceitas todas as outras provas em direito admitidas capazes de cumprir com o mesmo objetivo, sob pena de violar o n°1 do art. 2°-A da Lei 7/2001, que estabelece um princípio de ampla aceitação probatória para o reconhecimento da união de facto. V. No caso, alguns dos documentos apresentados pelos Recorrentes, descritos nos itens “II” e “VI”, superam o nível de presunção de veracidade quanto aos factos substantivos que se referem, em comparação com as provas sugeridas pelo art. 2°-A da Lei 7/2001. VI. A escritura pública declaratória da união estável é uma das formas legalmente estabelecidas pela legislação brasileira para produzir a formalização e publicitação da situação fática familiar perante terceiros, consolidando o requisito da observância de forma escrita, salvaguardando ainda os conviventes perante terceiros a quem é dada, desse modo, a conhecer. (Provimento CNJ n° 37, alterado pelo n° 141, art. 94 – A, da Lei n° 6.015, de 31 de dezembro de 1973, Lei de Registros Públicos, alterada pela lei 14.832 de 22 de junho de 202). Nos termos das normas mencionadas e da prática jurisprudencial, uma vez celebrada a Escritura Pública de União Estável e Convivência Marital, os factos e pactos nela transcritos gozam de presunção iuris tantum e efeito erga omnes, podendo ser desconstituída apenas na presença de prova robusta no sentido contrário e de vício da vontade de declarar/pactuar. VII. Portanto, conforme o descrito em VI, a Escritura de União Estável e Convivência Marital é um documento complexo que abrange aspetos declaratórios, negociais e constitutivos de situações jurídicas, tal como o regime de bens do casal, direitos e deveres recíprocos e possibilidade de adoção por parte de um dos “companheiros” do apelido do outro. Logo, também em vista da sua específica regulamentação já referida em “VI”, não é reconduzível ao regime comum das escrituras públicas portuguesas, devendo ser analisada à luz das normas do seu país emissor, sobretudo por se tratar de documento que rege direitos e deveres pessoais de natureza familiar/conjugal, conforme aplicação analógica dos arts. 52, 53 e 54 do CC. VIII. As Declarações de Imposto de Renda dos Recorrentes possuem presunção legal de veracidade, nos termos do art. 75, n°1 da LGT c/c art. 365, n°1 do CC. O mesmo se depreende da legislação brasileira, por constituir crime prestar informações inexatas em declaração fiscal, nos termos do art. 1° da Lei 8137 de 27 de dezembro de 1990. Portanto, deveriam os documentos ter sido recebidas pelo Juízo a quo para constituição de prova,, ou, caso presente dúvida justificada de sua autenticidade, que fosse requerida a legalização das declarações IRS nos termos do n° 2 do art. 365 do CC.. IX. Diante das informações derivadas de documentos dotados de presunção legal de veracidade dos factos que os fundamentam que vão ao encontro dos requisitos da Lei 7/2001, é desnecessária maior produção de provas para a demonstração dos factos materiais, conforme aplicação do n° 1 do art. 350 do CC. X. O n°1 do art. 2°-A da Lei n° 7/2001 estabelece que a união de facto pode ser provada por qualquer meio admitido legalmente, o que equivale dizer que viola o dispositivo legal descartar arbitrariamente meios de prova, ainda que se trate de documentos particulares. Cabe ao juiz, mediante um exercício de inferência e aplicação das regras da experiência, realizar um exercício hipotético de probabilidade ou de verossimilhança quanto ao cenário construído pelos elementos probatórios apresentados no decorrer do processo, sob pena de também violar substantivamente o direito fundamental constitucional de acesso à Justiça (art. 20 da Constituição da República Portuguesa), ao lado do dispositivo legal ao início referido. XI. Todavia, todos esses elementos probatórios e parâmetros legais discriminados nos pontos precedentes foram sumariamente descartados pelo Juízo a quo, que sequer formulou um juízo de verossimilhança a partir deles, em cotejamento com os requisitos probatórios estabelecidos pelos n° 1 e n° 2 dos art. 2°-A da Lei 7/2001. XII. Além de não ter seguido os critérios e requisitos da Lei n° 7/2001, a sentença recorrida falhou em aplicar a lei estrangeira que rege a união de facto dos Recorrentes, ou seja, a lei brasileira, com a consequente desconsideração por todo o arcabouço legal que rege a verificação de existência, validade, prova e, especialmente, formalização com vistas a publicitação e produção de efeitos da união estável perante terceiros. XIII. O referido em “XII” justifica-se uma vez identificada a lei brasileira como a lei aplicável. Na falta de um regime de direito internacional privado próprio para as uniões de facto, justifica-se a remissão para as regras de DIP aplicáveis ao casamento, aplicando-se analogicamente às uniões de facto os artigos 52.°, 53.° e 54.° do CC. XIV. Nos termos do art. 52, n°s. 1 e 2, a lei brasileira apresenta-se como a lei nacional comum, logo, como aquela que rege as relações entre os unidos de facto. Idêntica solução obtém-se aplicando-se a regra do n°.2 do art. 53, que se refere à lei da “data do casamento” e na sua falta, a primeira residência do casal. Assume-se como análoga à data da celebração do casamento a data da formalização e registo da união estável, ocorrida em 25 DE FEVEREIRO DE 2014; desde essa época os Recorrentes afirmam residir na mesma morada. Porquanto, deve-se remeter à lei brasileira para a verificação da validade da união conjugal do tipo legal estrangeiro “união estável” e, em especial, a norma brasileira deve ser levada em conta para a verificação dos efeitos jurídicos atribuídos à Escritura Pública de União Estável, dado seu papel de documento formalizador e regulador da convivência marital, como já discriminado em “VI”. XV. Portanto, seja com exclusivamente com fundamento termos da Lei nª 7/2001, seja à luz da lei brasileira, os Recorrentes cumprem com os requisitos legais de constituição e de prova para fins de reconhecimento da situação jurídica conjugal de unidos de facto e/ou união estável. XVI. Salienta-se que caso a sentença recorrida seja confirmada, e a união estável entre os Recorrentes e consequentemente o pacto antenupcial que a regula sejam desconsideradas perante o Estado Português, isto possui o potencial de gerar conflitos graves para a determinação de direitos patrimoniais e sucessórios no futuro, caso no futuro os Recorrentes estabelecer morada em Portugal, o que pode ocorrer eventualmente considerando o facto do Recorrente varão e o filho em comum serem portugueses. XVII. Caso tenha ainda restado dúvida quanto ao facto dos Recorrentes efetivamente viverem em união estável/união de facto e que obste este Tribunal conceder a tutela jurisdicional requerida neste Apelo, e considerando tratar de direitos da personalidade com repercussões de cariz familiar combinada com a dúvida razoável produzida pelas provas, requer que este Tribunal determine nos termos do art. 662 nº2, “b” e “c” do CPC nova produção probatória. Os Recorrentes encontram-se dispostos a fornecer rol de testemunhas quanto à veracidade dos factos, fornecer declarações ao Exmo. Juiz, exibir originais de documentos, entre outros meios que este Tribunal considere pertinentes para esclarecer totalmente a matéria de facto. Neste sentido, juntam declarações escritas sob compromisso de honra de duas eventuais testemunhas com o resumo de seus conhecimentos diretos sobre a união de facto dos Recorrentes. XVIII. Por fim, chama-se à atenção dos D. Julgadores o contexto maior no qual se insere o presente recurso de Apelação. A revisão jurisprudencial efetuada pelo Acórdão n 10/2022 em autos de uniformização de jurisprudência combinada com a importância extraordinária que o instituto da união estável e a escritura pública de união estável alcançaram junto à população residente no Brasil, têm o potencial de gerar enorme insegurança jurídica e sérios conflitos no direito de família internacional em razão de quebra de expectativas de casais luso-brasileiros que acreditavam estar amparados documentalmente para o reconhecimento de suas uniões, respetivos pactos e regulação de direitos patrimoniais e sucessórios. Desta forma, os Tribunais portugueses possuem a tarefa de estabelecerem parâmetros probatórios adequados e realistas para que efetivas uniões estáveis previamente formalizadas de portugueses ou de luso-brasileiros residentes no Brasil, não restem juridicamente desamparadas perante o Estado Português. Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se a V/ Exas. dar provimento ao presente recurso, revogando totalmente a sentença contra a qual se recorre, consequentemente substituí-la por nova decisão judicial que reconheça o que se pede: a) que os Recorrentes convivem em união de facto desde 07 de novembro de 2011, por se tratar da data que passaram a coabitar, data que declararam formal e solenemente como início da união perante o Escrivão com poderes para registar e regular o ato - cf. regras pertinentes para o registo do termo inicial da união dispostas no §4°, art. °1 do Provimento 37 de CNJ com alterações -, constante em Escritura Pública de União Estável, e que goza de verossimilhança factual por anteceder em 4 meses ao nascimento do filho comum dos Recorrentes, b) ou, alternativamente, que se estabeleça como marco inicial da união de facto 25 de fevereiro de 2014, data que coincide com a declaração e pacto oficiosos perante a autoridade brasileira para fins da formalização da união estável. Pede ainda o reconhecimento da união de facto para todos os devidos efeitos legais, inclusivamente para os determinados pela Lei n° 7/2001 e suas alterações. c) Não sendo o caso de procedência dos item “a” ou “b” precedentes, por ter restado dúvida que obste este Tribunal conceder a tutela jurisdicional acima requerida, requer que este Tribunal determine nos termos do art. 662 n°2, “b” e “c” do CPC nova produção probatória, estando os Recorrentes dispostos a cooperar com qualquer tipo de produção probatória determinada oficiosamente por este Tribunal, mas solicitando-se o deferimento da produção testemunhal e declaração das partes em audiência. d) Requer sejam aceitos os documentos ora acostados, pois sua apresentação excecional é legalmente embasada e apresentam prova relevante para a justiça do caso concreto, sendo eles: c.1) amparados pelo art. 425 do CPC, apresentam Declaração de Imposto de Renda devidamente legalizadas de ambos os Recorrentes, ano-calendário 2024, disponibilizadas apenas após encerrada a instrução probatória de 1ª Instância; c.2) Reapresentam as mesmas Declarações de Imposto de Renda Pessoa Física dos Recorrentes dos anos anteriores, previamente juntas nos docs. 13 à 20 dos articulados de 27.11.2023, com a diferença de estarem agora devidamente legalizadas com o Apostilamento de Haia. Sua apresentação excecional ampara-se nos termos do n° 1 do art. 651 do CPC, última parte, combinado com o n° 2 do art. 365 do CC. c.3) amparando-se no art. 425 do CPC, dada a falta de realização da audiência de instrução e julgamento em razão do protesto posterior pela produção de prova testemunhal, apresenta Declarações sob compromisso de honra de pessoas com conhecimento direto da união de facto dos Recorrentes. Nestes termos, Pede deferimento.» * Contra-alegou o Ministério Público, propugnando pela improcedência da apelação. QUESTÕES A DECIDIR Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2] Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes: i. Admissibilidade da junção dos documentos na apelação; ii. Se existe prova demonstrativa da existência da união de facto entre os autores. Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: 1. BB nasceu em 16.08.1976, no (...), Brasil. 2. DD nasceu em 30.11.1975, no Brasil, e é divorciado. 3. DD é cidadão português. 4. JM nasceu em 07.11.2011 e é filhos dos autores BB e DD. * Foi julgado não provado que os autores residam juntos desde novembro de 2011 como se de marido e mulher se tratassem. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Admissibilidade da junção dos documentos na apelação. Os apelantes requerem a junção com as alegações dos seguintes documentos: declaração de imposto de renda do ano de 2024, disponibilizada após encerramento da instrução probatória da 1ª instância; nova junção das declarações de imposto de renda dos autores dos anos anteriores, já anteriormente juntas, mas agora legalizadas com a Apostilha de Haia; declarações sob compromisso de honra de pessoas com conhecimento direto da união de facto dos Autores. Apreciando. Nos termos do Artigo 651º, nº1, do Código de Processo Civil, «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.» Por sua vez, o Artigo 425º do Código de Processo Civil dispõe que «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.» No que tange à impossibilidade de apresentação anterior, afirmam Lebre de Freitas et al, Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, p. 426, que «Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil].» Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, afirma que: «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes.» Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (Artigo 651º, nº1), «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» - Antunes Varela et al, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., pp. 533-534. Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2022, 7ª ed., pp. 286-287, afirma que: «Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo. / A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.» rcia objetiva]alves Rocha, 174/08, que «(..»is ou nos articulados supervenientes ( cf. Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2012, Gonçalves Rocha, 174/08, que «(…) a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela 1ª vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam.»[3] Visa-se abranger as situações que - pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação - tornaram necessário provar determinados factos, cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, ter em consideração antes da decisão ter sido proferida.[4] O regime do Artigo 651º, nº1, não abrange a hipótese da parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância.[5] Dito de outra forma, não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa ab initio e não apenas após a sentença,[6] ou seja, não é admissível a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.[7] Ora, atento o thema decidendum destes autos, os Autores estavam - desde o início - cientes que lhes incumbia carrear para os autos prova suficiente/demonstrativa da existência da união de facto entre eles. Nessa medida, a junção de documentos já anteriormente incorporados nos autos com aposição de apostilha constitui procedimento cuja utilidade era descortinável ab initio, o mesmo sucedendo com a produção de prova testemunhal, seja através de depoimento oral ou escrito, nos casos em que este é admissível (cf. Artigo 518º do Código de Processo Civil). Note-se que os autores nunca chegaram a arrolar prova testemunhal, apesar de terem enunciado o propósito genérico de o fazer (cf. artigo 25º da petição e artigo 30º do requerimento de 27.11.2023[8] – alegações que precederam a sentença), sendo que podiam ter aditado testemunhas à prova documental nos termos do Artigo 598º, nº1, in fine, do Código de Processo Civil. O que está vedado aos autores é virem apresentar depoimentos escritos em fase de recurso quando nem arrolaram, tempestivamente, qualquer prova testemunhal (cf. Artigos 498º, 518º e 598º do Código de Processo Civil ). Flui do exposto que apenas é admissível a junção da declaração de imposto de renda do ano de 2024, disponibilizada após encerramento da instrução probatória da 1ª instância, por se tratar de documento objetivamente superveniente (cf. Artigos 651º, nº1, e 425º do Código de Processo Civil ), sendo, no mais, inadmissível a junção de novos meios de prova, devendo os autores ser condenados nas custas do incidente (cf. Artigo 7º, nº4, do RCP). Se existe prova demonstrativa da existência da união de facto entre os autores. O Tribunal a quo julgou como não provado que os autores residam juntos desde novembro de 2011 como se de marido e mulher se tratassem. Os Autores insurgem-se contra tal decisão, argumentando que as provas documentais juntas aos autos permitem ao Tribunal concluir pela prova da existência da união de facto. Ou seja, o cerne da apelação consubstancia uma impugnação da matéria de facto, tendo sido dado cumprimento suficiente aos ónus decorrentes do Artigo 640º do Código de Processo Civil . O Tribunal a quo fundamentou a resposta de não provado nestes termos: «Para aquisição da matéria acima selecionada, o tribunal atentou na prova documental apresentada pelos autores, nomeadamente as certidões de nascimento da autora e de filho de ambos, a digitalização do cartão de cidadão do autor e ainda a digitalização do assento de casamento do autor. A demais prova documental apresentada, nomeadamente a digitalização de fotografias, a “declaração de manutenção de união estável”, bem como a escritura de declaração de união estável, ou faturas de despesas domésticas não têm, por si só, a virtualidade de demonstrar a matéria alegada pelos autores. Com efeito, quanto à escritura de declaração de união estável, não demonstra a efetiva situação de união, mas tão-só a declaração dessa união, não constituindo prova bastante da partilha de vida comum dos autores. Quanto aos demais documentos, constituem, essencialmente, documentos particulares, não tendo o tribunal forma de apreciar se o conteúdo neles vertidos corresponde à realidade descrita. As fotografias não são identificáveis, não estão datadas e não são, de todo o modo, aptas a demonstrar a existência de uma coabitação e vida em comum. As faturas de despesas domésticas não permitem situar a união dos autores na data alegada, além de não demonstrarem, por si só, a união das duas pessoas, mas apenas a indicação de uma morada comum – que não se sabe, nem foi demonstrado, se corresponde ao efetivo local onde cada um dos autores. A (parca) matéria alegada não suportada em documento autêntico foi, assim, considerada não provada.» Apreciando. Nos termos da Lei nº 7/2001, de 11 de maio: Artigo 2.º-A Prova da união de facto 1 - Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível. 2 - No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles. 3 - Caso a união de facto se tenha dissolvido por vontade de um ou de ambos os membros, aplica-se o disposto no número anterior, com as necessárias adaptações, devendo a declaração sob compromisso de honra mencionar quando cessou a união de facto; se um dos membros da união dissolvida não se dispuser a subscrever a declaração conjunta da existência pretérita da união de facto, o interessado deve apresentar declaração singular. 4 - No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido. 5 - As falsas declarações são punidas nos termos da lei penal. A propósito desta norma, refere Rossana Martingo Cruz, União de Facto Versus Casamento, Gestlegal, 2019, p. 264: « (…) além da prova documental, pode ser usado qualquer outro meio de prova, sendo a testemunhal aquela que se tem revelado de maior utilidade. «Logicamente, entre esses meios surge com maior relevância a prova testemunhal, pela qual as pessoas que lidam de perto com os companheiros podem comprovar que estes vivem em comunhão de mesa, cama e habitação, mantendo a estabilidade da relação (nomeadamente, sexual) e em exclusividade.» É certo que o conhecimento que as testemunhas possam ter da intimidade desta convivência não será absoluto (não será comum que pessoas próximas possam atestar com certeza o carácter sexual daquela união, sem recorrer a um discurso indireto, através de conversas tidas com um ou ambos os membros daquela união). Como tal poderá ser necessário recorrer à experiência para que de umas circunstâncias conhecidas se presumam outras desconhecidas, presumindo-se uma união de facto. A notoriedade daquela união, não sendo um elemento legal da mesma, pois a nossa lei não exige que ela seja pública ou que exista uma perceção social da convivência «more uxório», acaba por viabilizar (ou facilitar) a prova testemunhal.» E, prosseguindo a propósito da declaração emitida pela junta de freguesia: «Naturalmente que junta de freguesia dificilmente saberá (ou terá como saber) se a coabitação das partes se traduz numa convivência «more uxório» ou não. Esta declaração não é, contrariamente a alguma convicção popular, um meio de constituir ou oficializar a união de facto. É, somente, um meio de prova que poderá ser usado para diferentes fins (por exemplo, no âmbito laboral no âmbito das férias, faltas ou licenças, para exigir prestações sociais, etc.). Atendendo ao seu carácter meramente probatório e à impossibilidade da juntar de freguesia atestar, com total certeza, aquela união de facto, é também exigida a declaração por ambos os unidos de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos (nº2 do art. 2º-A). As falsas declarações prestadas neste âmbito serão puníveis nos termos da lei penal (nº5 do mesmo preceito legal). (…) Sem este registo e dependendo de meras declarações das partes (constantes de documentos realizados por autoridades municipais ou não), a prova direta é difícil de fazer. Querendo uma das partes reivindicar jurisdicionalmente qualquer efeito jurídico, pode o tribunal lançar mão de todos os meios de prova admissíveis, ouvindo as declarações das partes, aceitando documentos, testemunhas, recorrendo a presunções e indícios, etc. Tudo o que possa auxiliar o juiz a formar a convicção que aquelas pessoas vivem ou viveram numa comunhão de leito, mesa e habitação» (pp. 268-269). Rita Lobo Xavier, “O “estatuto privado” dos membros da união de facto”, in RJLB, Ano 2 (2016), nº1, p. 1518, afirma que: «Note-se ainda que a declaração da junta de freguesia, em princípio, se referirá apenas ao facto de os interessados terem uma residência comum há mais de dois anos, não abrangendo a natureza do seu relacionamento (muito embora, repita-se, não seja de excluir a hipótese de serem atestados esses factos com base nas perceções da entidade documentadora). Sendo assim, o documento emitido pela junta de freguesia não é suficiente para demonstrar a união de facto. Na verdade, a LUF não exige apenas a alegação e prova de que duas pessoas residem juntas há mais de dois anos e a falta de impedimentos à sua relevância jurídica; é necessário que se demonstre que vivem em “união de facto”. Em conformidade, aquele documento poderá ser proposto para demonstração de que duas pessoas vivem juntas e a duração da sua vida em comum, devendo ainda ser alegados e provados os factos relativos à natureza da sua relação – como uma vida “em condições análogas às dos cônjuges” –, factos que, na ausência de atestado respeitante a esses factos com base nas perceções da entidade documentadora, pareceria apenas poderem ser demonstrados por via de prova testemunhal.» A propósito da força probatória dos atestados das juntas de freguesia, refere-se em Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 3ª ed., pp. 155-156: «O atestado da Junta de Freguesia é um documento autêntico que faz, assim, prova plena dos factos que refere como praticados pelo oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base em perceções da entidade documentadora (cf. art. 371º, nº1). Assim, se o subscritor do mesmo invocar, expressamente, o seu conhecimento direto e pessoal como razão de ciência, os factos atestados ficarão revestidos de força probatória plena porquanto estão baseados nas perceções diretas da entidade documentadora. Se o atestado declarar determinada factualidade, mas com base em testemunho oral ou escrito de cidadãos ou mediante declaração do próprio interessado, o atestado só faz prova plena que os declarantes produziram aqueles afirmações perante o emitente do atestado. Não faz prova plena da veracidade, sinceridade ou eficácia de tais declarações emitidas perante o emitente.[9] O art. 2º-A da Lei nº 7/2001, de 11.5, veio prever expressamente que se possa fazer a prova da união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia, acompanha de declaração do interessado (sobrevivo) ou de ambos os interessados, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos (art. 2º-A, nº2 e nº4), consignando-se que as falsas declarações são punidas nos termos da lei penal (nº5 do mesmo artigo). Este regime em nada bule com o que acima ficou dito, não conferindo força probatória plena à declaração emitida pela junta de freguesia. A declaração só faz prova plena que os interessados proferiram aquelas afirmações perante o emitente. Esta declaração da junta de freguesia funciona como uma espécie de certificado administrativo, constituindo um elemento presuntivo de convicção do juiz como atestação de ciência emitida com base em declaração voluntária dos interessados. O juiz pode desatender ao que resulta da declaração com fundamento noutros elementos de prova adquiridos no processo e que mereçam maior atendibilidade. Ou seja, o atestado emitido pela Junta de Freguesia pode ser impugnado, admitindo prova em contrário.[10] Tanto mais que a união de facto se prova por qualquer meio legalmente admissível (art. 2º-A, nº1) e que a entidade da segurança social, que tenha fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover ação de simples apreciação negativa (art. 6º, nº2, do mesmo diploma).» Feito este excurso preambular, há que atentar nos dados concretos do processo. Atenta a causa de pedir e o pedido enunciados, cabia aos autores o ónus da prova da existência da união de facto entre eles (Artigo 342º, nº1, do Código Civil). E, consoante resulta do Artigo 2º-A, nº1, da Lei nº 7/2001, a prova da união de facto não está condicionada a um concreto meio de prova, podendo emergir de prova documental, testemunhal, por presunções judiciais e mesmo por declarações de parte (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 3ª ed., pp. 301-312), não sendo pertinente para este efeito a realização de prova pericial. Os Autores foram incautos ao não arrolarem prova testemunhal, desde logo na petição inicial ou, subsequentemente, aditando testemunhas após a dispensa da audiência prévia (cf. Artigos 598º, nº1, e 593º, nº3, do Código de Processo Civil ). Com efeito, neste tipo de processos é curial e bastante operativa a inquirição de testemunhas que possam comprovar, por experiência própria, que as partes vivem em comunhão de mesa, leito e habitação. Em qualquer caso, a demonstração da comunhão de leito resulta necessariamente de uma prova indireta, por presunções judiciais, não sendo de prever que possa ocorrer por prova direta. Atenta a motivação formulada pelo tribunal a quo, infere-se que a falta de produção de prova testemunhal ditou a sucumbência da ação pela não prova da união de facto. Contudo, não cremos que essa conclusão seja irrefragável, havendo que atentar nos juízos probatórios formuláveis a partir da prova documental junta pelos autores. Os autores juntaram documentos com a petição inicial, com a petição aperfeiçoada e com o requerimento de 27.11.2023. Na contestação apresentada, o Ministério Público tomou posição nestes termos: «Impugnam-se os documentos apresentados pelos Autores (identificados como documentos nº6, nº8, nº9 e 10 º juntos com a petição inicial), pois os mesmos nada permitem demonstrar ou concluir quanto à vivência em união de facto que os Autores pretendem ver reconhecida na presente ação» (art. 9º da contestação). No artigo 10º da contestação, sustentou que a “Escritura pública de união estável e convivência material” apresentada pelos autores «consubstancia uma mera declaração dos Autores, termos em que não poderá servir como meio de prova da união de facto». Quanto à segunda e terceira junção de documentos, o Ministério Público não se pronunciou sobre as mesmas. A impugnação de um documento escrito pode versar sobre três aspetos: sobre a autenticidade (coincidência entre autor real e autor aparente); exatidão (concordância da cópia ou certidão com o original) e sobre a certeza, ou seja, concordância das declarações vertidas no documento com a realidade (cf. cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 3ª ed., p. 172). Nesta última modalidade, está em causa apenas o valor persuasivo do documento em função do seu conteúdo na formulação da convicção do julgador (valor probatório material), realidade totalmente diversa da discussão do valor probatório formal do documento, ou seja, da sua genuinidade ou autenticidade. Em resumo, o Ministério Público não questionou a genuinidade/autenticidade dos documentos juntos inicialmente pelos autores, cingindo a sua apreciação ao valor probatório material dos mesmos, ao argumentar que os mesmos eram inidóneos a servir como meio de prova da união de facto. Não acompanhamos esta posição do Ministério Público nem a análise feita pelo tribunal a quo. A vivência em união de facto ao longo de anos, como é o caso, deixa um alargado rasto documental atinente nomeadamente: a despesas de aquisição, manutenção e consumos de uma residência tendencialmente comum; a encargos com filhos, se os houver; à assunção dessa realidade perante a entidade fiscal; à partilha de momentos em comum, tudo como se de um casamento se tratasse. Neste âmbito, o rasto documental assume um carácter objetivo, brota naturalmente dos eventos, sendo revel a manipulações oportunistas de última hora para encenar uma vivência em comunhão de mesa, leito e habitação. Dito de outra forma, à partida, esta prova documental é mais fiável e incorruptível que uma prova testemunhal oportunista, mais manipulável e moldável. Não se pretende com isto secundarizar, em absoluto, a relevância da prova testemunhal, mas apenas enfatizar que, em termos comparativos, a prova documental é mais segura e consistente, razão pela qual o legislador a prefere em muitos âmbitos. Percorrendo a prova documental junta pelos autores em ordem cronológica, verificamos que: a) O passaporte português do autor foi emitido em 24.11.2021; b) Em 25.2.2014, os autores outorgaram escritura pública de união estável e convivência marital, nos termos da qual declararam que vivem em união estável desde 30.7.2011, que adotam o regime de separação de bens, declarando-se residentes na Rua P(...) A(...), nº 1500, (...), cidade de (...), (...); c) Os autores são os pais de JM, nascido em 7.11.2011, constando como morada dos pais a já referida em b); d) Em janeiro de 2023, o contrato de consumo de eletricidade do local referido em b) está em nome da Autora; e) Em março de 2023, o autor é titular de contrato de seguro, tendo como morada a referida em b); f) O divórcio do autor de RR foi decretado por sentença e 8.7.2011, proferida no Tribunal de (...), (...); g) O autor está registado eletronicamente junto do Governo do Brasil na morada indicada em b); h) No ano letivo de 2023, o filho dos autores esteve inscrito na Escola (...), no 7º ano, sendo contratante a Autora com a morada referida em b); i) O autor nasceu a 30.11.1975, em (...), (...), sendo filho de pais português natural de (...); j) O autor é sócio do Club (...) desde 2015 com a morada indicada em b); k) Em maio, julho, agosto, setembro, outubro, novembro de 2023, a autora recebeu correspondência bancária na morada referida em b); l) No imposto sobre a renda do ano de 2019 atinente ao autor consta como CPF (número fiscal) da companheira o da autora, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); m) No imposto sobre a renda do ano de 2020 atinente ao autor consta como CPF (número fiscal) da companheira o da autora, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); n) No imposto sobre a renda do ano de 2021 atinente ao autor consta como CPF (número fiscal) da companheira o da autora, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); o) No imposto sobre a renda do ano de 2022 atinente ao autor consta como CPF (número fiscal) da companheira o da autora, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); p) No imposto sobre a renda do ano de 2020 atinente à autora consta como CPF (número fiscal) do companheiro o do autor, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); q) Nessa declaração fiscal consta que o apartamento referido em b) foi adquirido pela autora em 12.9.2003, sendo discriminado como “Declaração de Bens”; r) No imposto sobre a renda do ano de 2021 atinente à autora consta como CPF (número fiscal) do companheiro o do autor, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); s) No imposto sobre a renda do ano de 2022 atinente à autora consta como CPF (número fiscal) do companheiro o do autor, sendo o domicílio fiscal o indicado em b); t) No imposto sobre a renda do ano de 2023 atinente à autora consta como CPF (número fiscal) do companheiro o do autor, sendo o domicílio fiscal o indicado em b). Deste acervo documental resulta que, desde a data de nascimento do filho em 7.11.2011, os autores têm como centro da sua vida a mesma morada, na qual residem, recebem a correspondência, efetuam contratos de fornecimento de serviços essenciais. O filho de ambos também reside nessa morada. Mais resulta de tal documentação que os autores assumem perante a autoridade tributária brasileira que vivem em união de facto, conforme consta das declarações fiscais desde 2019. Cada um dos referidos documentos opera como facto-indiciário ou facto probatório conducente ao facto probando, qual seja, o de que os autores residem juntos desde novembro de 2011 como se de marido e mulher se tratassem. Existe uma pluralidade de factos-indiciários (presunção polibásica), concordantes e confluentes entre si, os quais acionam uma máxima de experiência decorrente da tipicidade da vida em sociedade, segundo a qual as circunstâncias (cumulativas) de ter ocorrido a gestação de um filho em comum, acompanhada da coresidência ao longo de anos, assunção de responsabilidades parentais e assunção perante o próprio Estado da vida em comum, evidenciam - de forma segura - que os autores vivem em comunhão de mesa, leito e habitação, como se de marido e mulher se tratasse. O nexo lógico derivado de uma máxima de experiência é um juízo de probabilidade qualificada, segundo o qual perante a ocorrência de um facto se gera uma probabilidade qualificada de que tenha ocorrido outro (cf., por todos, Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 4ª ed., pp. 59-71). Castro Mendes e Teixeira de Sousa afirmam: «A melhor maneira de justificar esta inferência entre o facto probatório e o facto probando é através da inferência para a melhor explicação: é possível inferir o facto probando do facto probatório quando o facto probando constituir a melhor explicação do facto probatório.»[11] Segundo o modelo da explicação plausível, «A inferência entre o facto probatório e o facto probando conduz à prova deste facto, se o mesmo constituir uma explicação possível do facto probatório e se não houver uma melhor explicação daquele facto probatório. Noutros termos: do facto probatório pode ser inferido o facto probando que constituir a melhor explicação daquele facto probatório.»[12] É «porque o facto probando explica o facto probatório que este facto fornece uma informação relevante para a prova daquele facto.»[13] Na inferência presuntiva parte-se do facto probatório (que é o efeito conhecido), procurando-se inferir o facto probando (como causa daquele efeito).[14]Na inferência presuntiva, «a incerteza sobre o facto probando é resolvida através da explicação do facto probatório por aquele facto probando».[15] Acompanhando o mesmo autor: «- Para que o facto probando seja considerado provado é suficiente que aquele facto constitua uma explicação possível do facto probatório e que o tribunal não admita que este último facto é mais bem explicado por um facto distinto daquele facto provado; basta, por isso, a ausência de uma melhor explicação, não sendo necessária a exclusão pelo tribunal de toda e qualquer outra explicação do facto probatório; - Para que o facto probando seja considerado não provado é necessário que o tribunal aceite que há pelo menos uma melhor explicação para o facto probatório do que o facto probando; a decisão de que o facto probando não está provado é, por isso, mais exigente do que a decisão de que o facto está provado.»[16] Conclui o mesmo autor que «os tribunais utilizam realmente o modelo de explicação plausível, dado que apenas consideram não provado o facto probando se admitirem (ou, naturalmente, se estiver provado) que um outro facto constitui uma melhor explicação do facto probatório.»[17]Cabe ao tribunal hierarquizar «as várias explicações prováveis: a menos provável é aquela que é afastada por todas as demais explicações e a mais provável é a que afasta todas as demais explicações. Isto permite que o tribunal forme a sua convicção, não da probabilidade do facto probando, mas antes da plausibilidade desse facto.»[18] Em termos do ónus da prova, isto significa que incumbe à parte onerada com a prova do facto probando a prova de que o facto probando constitui uma explicação possível do facto probatório (elemento positivo), cabendo à parte contrária demonstrar que um outro facto pode constituir uma melhor explicação do facto probatório (elemento negativo).[19] Aqui chegados, cremos que não haverá dúvidas que o facto probando (os autores vivem comunhão de mesa, leito e habitação ou como se marido e mulher fossem) constitui a melhor explicação para todos os factos probatórios emergentes da abundante documentação junta pelos autores. Dito de outra forma: a circunstância de os autores viverem como se marido e mulher fossem é que explica (dá luz e concordância prática) a sua residência há anos no mesmo local, que tenham um filho em comum, que assumam perante o próprio Estado essa sua situação. Em suma, os autores demonstraram que o facto probando constitui uma explicação possível e consistente dos factos probatórios confluentes. Pelo contrário, o Réu Estado Português não logrou demonstrar que exista um outro facto que possa constituir uma melhor explicação dos factos probatórios. Termos em que deve ser julgada procedente a apelação, revertendo-se o facto não provado para provado, passando a constar como facto provado: 5- Os autores residem juntos, desde novembro de 2011, como se de marido e mulher se tratassem. Atenta a prova deste facto, há que reverter a decisão, julgando a ação procedente. A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes). DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência: a) Revoga-se a sentença impugnada; b) Julga-se a ação procedente por provada, consignando-se que os autores vivem em união de facto desde 2011, o que deverá ser relevado para a autora adquirir a nacionalidade portuguesa; c) Condena-se os autores em uma UC pelo incidente suscitado com a junção dos documentos (Artigo 7º, nº4, do RCP). O reembolso das taxas de justiça pagas pelos autores incumbe o IGFEJ, IP (Artigo 26º, nº6, do RCP). Lisboa, 19.12.2024 Luís Filipe Pires de Sousa Edgar Taborda Lopes Alexandra de Castro Rocha _______________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186. [2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140. Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12). [3] No mesmo sentido, cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 24.4.2014, Manuel Bargado, 523/11, www.colectaneadejurisprudencia.com. [4] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.3.2013, Ana Resende, 371/09. [5] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.2.2003, Azevedo Ramos, 20/03, www.colectaneadejurisprudencia.com, de 30.4.2019, Catarina Serra, 22946/11. [6] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.10.93, Rodrigues Codeço, 6046, www.colectaneadejurisprudencia.com; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.4.2019, Catarina Serra, 22946/11. [7] CF. Acórdão da Relação de Guimarães de 27.2.2014, Ana Cristina Duarte, 323/12, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.3.2016, Tibério Silva, 2002/11, CJ 2016-I, p. 81-86. [8] «Contrariamente ao despacho saneador do D. Juiz, os Autores protestaram pela intenção de produzir prova testemunhal conforme item 31 do articulado aperfeiçoado de 06.07 do corrente ano, ao abrigo do art. 518 do Código de Processo Civil ou nos termos do art. 500, “b” do mesmo diploma legal.» [9] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2.12.1999, Urbano Dias, 0066156, de 10.10.2002, Manuela Gomes, 00127076 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.1.2009, Sílvia Pires, 1038/08. [10] Cf. também Rossana Martingo Cruz, União de Facto Versus Casamento, Gestlegal, 2019, p. 268. [11] Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, AAFDL, p. 524. [12] A Prova em Processo Civil, Ensaio sobre o Raciocínio Probatório, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2020, p. 103. [13] Op. Cit., p. 127. [14] Op. Cit., p. 57. [15] Op. Cit., p. 95. [16] Op. Cit., pp. 104-105. [17] Op. Cit., p. 111. [18] Op. Cit., p. 134. A plausibilidade é «sinónima de aceitabilidade ou do que é suscetível de receber concordância ou assentimento. «(…) a plausibilidade pode não coincidir com a probabilidade: algo pode ser plausível apesar de não ser provável ou, numa formulação mais específica, algo pode ser plausível no plano do conhecimento apesar de não ser o mais provável no plano empírico» (Op. Cit., p. 88). [19] Op. Cit., pp. 106-107 e 140. |