Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15/20.2GTALQ.L1-5
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: VÍCIOS DO ARTº 410º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I - Mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos os vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, desde que os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
II - A impugnação da matéria de facto tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada.
III - Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório
No processo nº 15/20.2GTALQ do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de ..., consta da parte decisória da sentença datada de 11/09/2023, o seguinte:
“Em face do exposto, julga-se a acusação pública procedente, por provada, e em consequência, decide-se:
DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL:
i. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €600,00 (seiscentos euros).
ii. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses, ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
iii. Declarar perdoada a pena de multa aplicada ao arguido AA nos presentes autos, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 2, al. a), da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08. (…)”
*
Inconformado com aquela decisão, veio o arguido interpor o presente recurso, pugnando pela sua absolvição e formulando as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público deduziu acusação contra o aqui Arguido/Recorrente, imputando-lhe a prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, conforme factualidade descrita na acusação de fls. 287 a 291
2. O arguido apresentou contestação, alegando, em síntese:
a) O arguido não invadiu a faixa de rodagem da esquerda, destinada aos veículos que circulam no sentido contrário àquele em que seguia;
b) É falso que, na sua actuação, o arguido não tenha procedido com o devido cuidado e atenção.
c) O Arguido atentou e analisou correctamente a condução que exercia, conduzindo com segurança, não causando o acidente rodoviário.
d) O Arguido actuou observando as regras estradais e de cautela que se impunham, tendo observado as precauções exigidas pela prudência e cuidado.
e) O acidente não se deveu à conduta descuidada do arguido, não lhe sendo imputável a morte do seu filho.
f) A estrada tinha sido repavimentada e não se encontrava nem marcada, nem prémarcada, pelo que, sendo de noite, causava perigo.
g) Não tinham sido corrigidas as bermas, pelo que existia um desnível entre o pavimento e a berma, susceptível de causar despiste.
h) As valetas encontravam-se sem condições de segurança, com conformação em "V", sendo, igualmente, motivo de eventual despiste, dado que um carro depois de entrar na valeta não consegue sair de lá.
i) O arguido circulava devagar, e quando circulava na sua faixa de rodagem, constatou que a camioneta que circulava em sentido contrário, vinha a invadir a faixa de rodagem destinada ao veículo em que circulava o arguido, por isso, foi obrigado a encostar-se o mais à sua direita possível.
j) O arguido foi embatido, o seu veículo pelo outro veículo / camioneta que circulava em sentido contrário, na lateral esquerda, na zona da porta de trás do condutor, do veículo que o Arguido conduzia. Tal embate causou o acidente, tendo o arguido, depois, ainda, sido embatido no seu veículo, por um segundo veículo.
k) O arguido não causou o acidente e não cometeu o crime de que vem acusado.
3. Atenta a prova produzida, foram incorrectamente julgados os factos vertidos nos pontos 3 a 8, 15 e 17 a 22, dos factos, erradamente, tidos por provados.
Na verdade,
4. A matéria vertida nos pontos 3 a 8, 15 e 17 a 22, dos factos, erradamente, tidos por provados, deveria entender-se/concluir-se como não provada.
5. E, ao invés, deveria dar-se como provada a matéria vertida nas alíneas n) e o) a q), dos factos, erradamente, tidos por não provados.
Efectivamente,
6. A impugnação, que ora se faz, da decisão proferida sobre matéria de facto, tem na sua origem a prova produzida nos autos e, nomeadamente, a prova testemunhal. De facto,
a) Nas circunstâncias de tempo e de lugar, transitava pela mesma via, mas em sentido oposto ao do arguido e FORA da respectiva faixa direita de rodagem, o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..-MB tripulado por BB e, imediatamente antes deste, o veículo automóvel de matrícula ..-LN-.. conduzido por CC, que circulavam no sentido ....
b) Na sua actuação, o arguido AA PROCEDEU com o devido cuidado e atenção por forma a impedir que o veículo por si conduzido invadisse a via de trânsito contrária, atento o seu sentido de marcha.
c) O arguido sabia e tinha consciência de que é obrigado por lei a conduzir veículos automóveis na via pública com cuidado, atenção, zelo e respeito pelas normas relativas à circulação automóvel, que lhe impunham o dever de circular pelo lado direito da faixa de rodagem e de conservar das bermas e passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
d) Por isso, o arguido atentou, analisou correctamente a condução que exercia, não tendo agido de modo a que o veículo atravessasse toda a via de trânsito contrária e fosse circular na faixa da esquerda, atento o seu sentido de marcha.
e) Ao agir do modo descrito, o arguido AA actuou OBSERVANDO as mais elementares regras estradais e de cautela que se impunham a qualquer condutor que circulasse na mencionada via de trânsito e a si em particular, as quais conhecia e conseguiria ter respeitado E RESPEITOU.
f) O Arguido observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado,
g) Não tendo, a sua conduta, como consequência necessária e directa a produção de lesões em DD, seu filho, que foram causa directa e necessária da morte do mesmo,
h) Resultado esse não pretendido pelo recorrente,
i) Nem lhe é pessoalmente imputável.
j) O acidente não se deveu à conduta do arguido, que não omitiu o dever de cautela que podia e adoptou.
k) O arguido agiu com o cuidado devido e de que era capaz.
l) A conduta do Arguido não era proibida nem punida por lei.
m) Ao actuar da forma descrita, o arguido conduzia com segurança, atento ao trânsito de veículos.
n) O arguido, quando circulava na sua faixa de rodagem, constatou que a camioneta que circulava em sentido contrário, vinha a invadir a faixa de rodagem, sendo obrigado a encostar-se o mais à sua direita possível.
o) O arguido foi embatido, no seu veículo, pelo outro veículo / camioneta que circulava em sentido contrário, na lateral esquerda, na zona da porta de trás do condutor, do veículo que o arguido conduzia.
p) Após o arguido foi embatido, no seu veículo, por um segundo veículo.
7. A alteração da decisão sobre a matéria de facto, resulta dos depoimentos do Arguido e das testemunhas inquiridas e, nomeadamente:
a) Das declarações do Arguido - gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 10:15:27 horas e fim às 11:00:29 horas.
b) CC - gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 11:52:00 horas e fim às 12:16:55 horas.
c) BB - depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 12:17:38 horas e fim às 12:36:54 horas.
d) EE - depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 14:28:31 horas e fim às 14:58:41 horas.
e) FF - depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 15:02:40 horas e fim às 15:36:52 horas.
f) GG - depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 15:37:37 horas e fim às 15:59:35 horas.
g) HH - depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 16:00:14 horas e fim às 16:10:56 horas;
h) II - depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal com início às 16:11:36 horas e fim às 16:25:01 horas.
8. Imputa-se, pois, à decisão recorrida, os vícios formais de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.
9. O douto Tribunal "a quo" não fez uma apreciação cuidada da prova produzida, errando de forma ostensiva quanto ao apuramento da matéria de facto provada e não provada.
10. Violando a decisão recorrida o previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo -.
11. Entende o recorrente que as provas produzidas impõe a alteração da decisão da matéria de facto, nos termos acima expostos.
12. Como se pode ler na sentença recorrida,
- “O arguido declarou que visualizou a carrinha (veículo de matrícula ..-..-MB) a aproximar-se na sua direcção, que a carrinha invadiu a sua hemi-faixa de rodagem, o que o levou a encostar-se o máximo à direita, sendo que a estrada não tinha berma. Mais declarou que a carrinha embateu no seu veículo, na porta traseira do lado esquerdo, tendo o seu veículo rodopiado e tendo o arguido perdido o controlo do veículo, após o que foi ainda embatido por um segundo veículo (de cor escura), tendo posteriormente o seu veículo ficado imobilizado na via. Negou, assim, ter invadido a faixa de rodagem contrária ao seu sentido de trânsito, assim como ter embatido quer na carrinha, quer no automóvel ligeiro de passageiros (de matrícula ..-LN-..) que seguia a carrinha.”
13. Sendo que, entende o Recorrente, não foi feita uma correcta apreciação dos depoimentos das testemunhas. Nomeadamente,
14. Os depoimentos acima transcritos.
15. Sendo que, à excepção do depoimento da testemunha FF, único condutor que circulava no mesmo sentido do arguido, e que permite concluir pela culpa do condutor que embateu no veículo conduzido pelo Arguido ao entrar, sim, esse condutor, em contra-mão, fora da hemi-faixa rodoviária que está destinada ao sentido de marcha que o mesmo tomava.
16. Todas as demais testemunhas - condutoras em sentido contrário, e que embateram no veículo do arguido - o que quiseram foi “sacudir a água do seu capote”.
17. E, é, por isso, com esta parcialidade que tais depoimentos terão que ser considerados.
18. Contrariamente ao depoimento do arguido, absolutamente claro e sincero.
19. Referir que, no local não foram encontradas marcas que permitam concluir pela dinâmica do acidente tal qual reflectida, erradamente, na sentença recorrida.
20. Ficou provado que o veículo de matrícula ..-..-MB invadiu a via de trânsito do arguido. Mais,
21. Como se pode, sempre, ler na sentença recorrida,
“... o arguido referiu circular a uma velocidade na ordem dos 50/60 km/h, o que não foi contrariado por qualquer testemunha ou por qualquer outro meio de prova, sendo que tal velocidade se encontra dentro do limite fixado para o local (cfr. fls. 194), sem que tenha sido produzida qualquer prova que indiciasse velocidade excessiva para as condições atmosféricas, da via, de visibilidade ou de trânsito.” E,
22. “As condições da via não eram favoráveis já que a faixa de rodagem não dispunha de marcas longitudinais delimitadoras das duas vias de trânsito e das bermas (cfr. auto de exame directo ao local de fls. 194 e ss.).
23. Não podendo, pois, dirigir-se à conduta do arguido um juízo de censura.
24. O Arguido circulava com a perícia e o cuidado que a generalidade dos condutores ali teria adoptado, não tendo o arguido como evitar o despiste e as suas consequências.
25. Não foi, pois, o arguido, que, pelo menos com culpa, ainda que negligente, iniciou o processo causal que desembocou na produção de lesões determinantes da morte do ofendido,
26. Não foi a conduta do arguido que fez aumentar a probabilidade de produção do resultado, em comparação com o risco permitido.
27. Assim, tudo visto e ponderado, afigura-se-nos que a prova produzida importa a alteração da decisão da matéria de facto.
28. E, assim, alterada que seja a decisão sobre a matéria de facto, como se impõe, só pode concluir-se pela falta de culpa, ainda que negligente, do Arguido. E, logo, concluir-se pela absolvição do Arguido.
29. E, ainda que se conclua não ser de alterar decisão sobre a matéria de facto, o que, apenas se prespectiva por dever de patrocínio, sempre, ainda assim, será de alterar a decisão de direito,
30. Entendendo-se que o Arguido não cometeu o crime pelo qual vinha acusado.
31. Não se encontrando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal,
32. Pelo que se impõe a sua absolvição pelo crime de homicídio negligente
20. O que, sempre resultaria do princípio in dúbio por reo, de que, sempre, será de “lançar mão”.
21. Ao conduzir do modo enunciado, o arguido não violou o dever geral de diligência, consagrado no artigo 3.º, n.º 2, do Código da Estrada, nem infringiu o disposto nos citados preceitos estradais, que contemplam deveres de cuidado a que todo e qualquer condutor deve obediência.
22. Pelo que a decisão recorrida violou as disposições legais acima referids e, designadamente, o disposto nos artigos 137.º, n.º 1 e 15.º, ambos do Código Penal.
23. Em face do exposto, deve julgar-se a acusação pública improcedente, e em consequência, absolver o arguido AA.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público também apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, no qual pugna pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida, acompanhando a posição assumida na primeira instância.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).
Assim sendo, as questões a apreciar no presente recurso consistem em saber se houve:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova.
- erro de julgamento;
- violação do princípio in dubio pro reo;
- violação de deveres de cuidado por parte do arguido.
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3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação, na parte que interessa ao presente recurso:
2.1. Matéria de Facto Provada
Realizada a audiência de julgamento, encontram-se provados, com relevância para a boa decisão da causa, os factos seguintes:
1. No dia 2 de Março de 2020, pelas 18:30, o arguido AA conduzia o veículo automóvel de matrícula ..-..-ER, no …, Km 47, 100, ..., no sentido ....
2. No interior do veículo de matrícula ..-..-ER, conduzido pelo arguido, encontravam-se, ainda, JJ, DD e KK.
3. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, transitava pela mesma via, mas em sentido oposto ao do arguido e pela respectiva faixa direita de rodagem, o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..-MB tripulado por BB e, imediatamente antes deste, o veículo automóvel de matrícula ..-LN-.. conduzido por CC, que circulavam no sentido ....
4. No interior do veículo de matrícula ..-..-MB conduzido por BB encontrava-se EE.
5. Após conformar a curva para a esquerda existente, o arguido saiu da via onde circulava pisando a berma do seu lado direito.
6. O arguido apercebeu-se que estava fora da via e ao iniciar manobra para tentar retomar a sua via invadiu a faixa de rodagem da esquerda, destinada aos veículos que circulam no sentido contrário àquele em que seguia, nomeadamente os veículos de matrícula ..-..-MB e ..-LN-...
7. Porém, é no momento em que o arguido tenta retomar a faixa de rodagem da direita que ocorre o embate entre a zona lateral esquerda do seu veículo de matricula ..-..-ER com a frente esquerda do veículo de matrícula ..-..-MB.
8. Em consequência daquela colisão, o veículo do arguido entra em despiste e colide com o veículo de matrícula ..-LN-.., que seguia imediatamente atrás do veículo de matrícula ..-..-MB.
9. Tendo ficado imobilizado atravessado na via contrária ao seu sentido de marcha.
10. Como consequência exclusiva, directa e necessária do referido embate, DD sofreu as seguintes lesões:
a. Cabeça: ligeiros infiltrados sanguíneos dispersos no tegumento piloso e periósteo da metade esquerda da região frontal; fractura com afundamento na metade esquerda do frontal (abóbada); fractura a nível da lâmina crivosa (linha média do andar anterior) e andar anterior esquerdo (base); hemorragia subdural e focos de contusão da subaracnoideia envolvendo o encéfalo; laceração no polo anterior do lobo frontal esquerdo; vários focos de contusão dispersos em ambos os hemisférios cerebrais, cerebelos e tronco cerebral (encéfalo); vários focos de contusão dispersos (cavidade oral e língua);
b. Pescoço: infiltrados sanguíneos dispersos nos tecidos moles do pescoço; seccionamento da traqueia abaixo da cartilagem tiroide, com infiltrado sanguíneos dos topos e tecidos moles adjacentes, muco sanguinolento disperso à superfície das mucosas;
c. Coluna Vertebral e Medula: Luxação atlanto-occipital. Marcados infiltrados sanguíneos dos tecidos moles pré-vertebrais; Focos de contusão dispersos da meninge adjacente à luxação (Meninges e Medula).
11. As lesões traumáticas referidas, particularmente as lesões crânio-meningeoencefálicas e raqui-medulares, supra descritas, foram causa directa e necessária da morte de DD, que ocorreu às 19:15 horas daquele dia 02-03-2020.
12. A zona onde ocorreu o acidente configura uma recta, precedente de uma curva à esquerda, tomando o sentido de marcha do veículo de matricula ..-..-ER conduzido pelo arguido, com dois sentidos de trânsito, com 8,20 metros de comprimento, em toda a largura e extensão e de boa visibilidade.
13. O pavimento era betuminoso, encontrando-se seco, limpo e em bom estado de conservação.
14. O falecido DD nasceu a .../.../2012, era filho do arguido AA e tinha 7 anos de idade.
15. Na sua actuação, o arguido AA não procedeu com o devido cuidado e atenção por forma a impedir que o veículo por si conduzido invadisse a via de trânsito contrária, atento o seu sentido de marcha.
16. O arguido sabia e tinha consciência de que é obrigado por lei a conduzir veículos automóveis na via pública com cuidado, atenção, zelo e respeito pelas normas relativas à circulação automóvel, que lhe impunham o dever de circular pelo lado direito da faixa de rodagem e de conservar das bermas e passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
17. Não obstante, de forma livre e consciente, o arguido não atentou, nem analisou correctamente a condução que exercia, não impediu que o veículo atravessasse toda a via de trânsito contrária e fosse circular na faixa da esquerda, atento o seu sentido de marcha.
18. Ao agir do modo descrito, o arguido AA actuou sem observar as mais elementares regras estradais e de cautela que se impunham a qualquer condutor que circulasse na mencionada via de trânsito e a si em particular, as quais conhecia e conseguiria ter respeitado.
19. Ao não fazê-lo e ao não observar as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado, o arguido AA actuou com descuido e a sua conduta teve como consequência necessária e directa a produção de lesões em DD, seu filho, que foram causa directa e necessária da morte do mesmo, resultado esse não pretendido por aquele, mas que lhe é pessoalmente imputável.
20. O acidente deveu-se unicamente à conduta descuidada do arguido, que omitiu o dever de cautela que podia e devia ter adoptado, para evitar o resultado que sobreveio da mesma, que podia e devia ter previsto como possível.
21. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sem o cuidado devido e de que era capaz.
22. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Da contestação:
23. A estrada tinha sido repavimentada, não se encontrando marcada.
24. Existia um desnível entre o pavimento e a berma do arguido, com dimensão não concretamente apurada.
25. O talude tinha, pelo menos, 2 metros de altura, e não tinha baia de protecção.
Mais se provou que:
26. Não se encontram averbadas quaisquer condenações no Certificado do Registo Criminal do arguido.
27. Não se encontram averbadas quaisquer infracções no Registo Individual do Condutor do arguido.
28. O arguido exerce actividade laboral, auferindo mensalmente cerca de €2.000,00.
29. Habita em casa arrendada, suportando a título de renda a quantia mensal de €800.
30. Vive com a companheira e com a filha mais nova, de um ano de idade.
31. Tem mais três filhos, de 15, 13 e 12 anos de idade.
32. Tem o 12.º ano de escolaridade.
33. Veio para Portugal em data não concretamente apurada, no ano de 2011 ou 2012.
34. O arguido reside desde há cerca de 9 meses no ... onde se fixou juntamente com a actual companheira e a filha menor, fruto desta relação, por motivos laborais, com intenção de se afastar do anterior meio de residência e atenuar os impactos emocionais associados ao acidente de viação e às suas trágicas consequências.
35. No actual contexto de residência, o arguido tem vindo a rentabilizar ofertas de trabalho na construção civil, de carácter temporário, confrontando-se com alguns períodos de inactividade.
36. Estas dificuldades de inserção são agudizadas pelos entraves linguísticos, não dominando o arguido a língua francesa. Não obstante tem como intenção permanecer nesse país de acolhimento, perspectivando obter melhores condições de empregabilidade e estabilidade laboral e contratual, enfatizando dispor de melhor nível salarial.
37. A companheira encontra-se desempregada, tendo a situação de residência por regularizar naquele país de acolhimento.
38. O arguido contribui para as despesas de educação e subsistência dos três filhos mais velhos – dois, fruto do anterior relacionamento que se encontram a cargo da mãe a residir no ..., e uma filha de 15 anos de idade, fruto de outro relacionamento, que se encontra a cargo de uma prima a residir também na zona do ... – com o montante mensal de €300,00 euros.
39. O arguido não dispõe no actual contexto de residência de redes de sociabilidade ou familiares.
40. Estrutura o seu quotidiano junto da companheira e da filha bebé e focalizado na procura de trabalho e no desempenho laboral.
41. Perspectiva angariar melhores condições de inserção e de integração no país onde actualmente reside, dando prioridade à sua estabilidade laboral e à obtenção uma habitação.
42. O arguido manifesta-se profundamente consternado com as consequências trágicas resultantes do acidente, encontrando-se ainda traumatizado.
43. Decidiu afastar-se da anterior área de residência, onde dispunha de estabilidade laboral e apoio da família, pelas dificuldades em se confrontar diariamente com o local da tragédia.
44. O arguido apresenta-se emocionalmente afectado com o desfecho trágico resultante do acidente de viação, tendo, segundo reportou, tido necessidade de se afastar do anterior meio de residência.
45. Constituiu novo agregado e tem vindo a focalizar-se na procura de estabilidade familiar, laboral e económica, num outro contexto sociocomunitário.
46. Preserva, contactos e a relação parental com os três filhos menores residentes em Portugal e dispõe de apoio de familiares directos.
47. O arguido é tido como uma pessoa trabalhadora, competente e responsável.
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2.2. Matéria de Facto Não Provada
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provou que:
Da acusação:
a) Ao actuar da forma descrita, o arguido bem sabia que não conduzia com segurança e que podia causar, como causou, um acidente rodoviário.
b) Ao actuar da forma descrita, o arguido circulava desatento ao trânsito de veículos. (…)
Da contestação:
g) Não tinham sido corrigidas as bermas, e o desnível era susceptível de causar despiste.
h) As valetas encontravam-se sem condições de segurança, com conformação em "V", sendo, igualmente, motivo de eventual despiste, dado que um carro depois de entrar na valeta não consegue sair de lá.
i) Existe na estrada um aqueduto que deveria estar identificado por um sinal 8B e protegido por forma a que não causasse perigo.
j) Este aqueduto por não estar protegido foi ocupando a estrada, causando perigo para quem nela circulava.
k) A estrada não se encontrava pré-marcada.
l) Era de noite.
m) O talude tinha mais de 3 metros.
n) O arguido, quando circulava na sua faixa de rodagem, constatou que a camioneta que circulava em sentido contrário, vinha a invadir a faixa de rodagem.
o) Em consequência do descrito em n), o arguido foi obrigado a encostar-se o mais à sua direita possível.
p) O arguido foi embatido, no seu veículo, pelo outro veículo / camioneta que circulava em sentido contrário, na lateral esquerda, na zona da porta de trás do condutor, do veículo que o arguido conduzia.
q) Após o arguido foi embatido, no seu veículo, por um segundo veículo.
*
No mais, inexistem factos não provados, não tendo sido considerada a matéria de Direito, genérica, conclusiva, meramente negatória, ou sem relevância para a boa decisão da causa.
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2.3. Motivação da Decisão de Facto
Relativamente à matéria da acusação, o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, conjugadas com a prova documental e pericial junta aos autos, tendo tal prova sido concatenada entre si e apreciada segundo as regras da experiência e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Foram inquiridos:
- LL, militar da Guarda Nacional Republicana que compareceu no local e que descreveu o que aí constatou, e que elaborou o croquis de acidente de viação de fls. 115; o auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-LN-.., de fls. 157 a 167; o auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-..-ER, de fls. 168 a 178; o auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-..-MB, de fls. 179 a 189; o auto de exame directo ao local de fls. 195 a 218, e o relatório final de fls. 257 a 269.
- HH, militar da Guarda Nacional Republicana que compareceu no local e que descreveu o que aí constatou, e que elaborou o auto de notícia de fls. 19 e a participação do acidente de viação de fls. 24 a 28.
- CC, condutora do veículo interveniente no acidente ..., de matrícula ..-LN-..;
- BB, condutor do veículo interveniente no acidente ..., de matrícula ..-..-MB;
- EE, passageiro do veículo interveniente no acidente de matrícula ..-..-MB;
- FF, condutor de veículo que circulava atrás do veículo conduzido pelo arguido, no mesmo sentido que o mesmo;
- GG, condutora de veículo que circulava atrás do veículo de matrícula ..-LN-.., no mesmo sentido que o mesmo;
- II, amigo do arguido.
No que concerne à factualidade vertida nos pontos 1 a 4, 9, 12 a 14 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido, que expressamente confirmou a factualidade descrita nos pontos 1 a 3, 12 e 14, da matéria de facto provada, e bem assim, que DD seguia no banco de trás, atrás do condutor; nos depoimentos de MM, NN, EE e GG, que confirmaram que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação circulavam na via em causa; e no teor do auto de exame directo ao local de fls. 195 a 218, e do relatório final de fls. fls. 257 a 269, confirmado em audiência pelo militar LL, que os elaborou, que permitiu atestar a configuração do local e as características da via e dos veículos; e bem assim, no teor do auto de notícia de fls. 19 e na participação de acidente de viação de fls. 24 a 28, cujo teor foi confirmado em audiência pelo militar HH, que os elaborou.
No que concerne à factualidade vertida nos pontos 5 a 8 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nos depoimentos de MM, NN, EE e GG, que relataram a dinâmica dos acontecimentos no sentido em que resultou assente, de modo coerente e congruente entre si, os quais se revelaram secundados pelo teor do croquis de acidente de viação de fls. 115; do auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-LN-.., de fls. 157 a 167; do auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-..-ER, de fls. 168 a 178; do auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-..-MB, de fls. 179 a 189; do auto de exame directo ao local de fls. 195 a 218, e do relatório final de fls. 257 a 269.
O arguido declarou que visualizou a carrinha (veículo de matrícula ..-..-MB) a aproximar-se na sua direcção, que a carrinha invadiu a sua hemi-faixa de rodagem, o que o levou a encostar-se o máximo à direita, sendo que a estrada não tinha berma.
Mais declarou que a carrinha embateu no seu veículo, na porta traseira do lado esquerdo, tendo o seu veículo rodopiado e tendo o arguido perdido o controlo do veículo, após o que foi ainda embatido por um segundo veículo (de cor escura), tendo posteriormente o seu veículo ficado imobilizado na via.
Negou, assim, ter invadido a faixa de rodagem contrária ao seu sentido de trânsito, assim como ter embatido quer na carrinha, quer no automóvel ligeiro de passageiros (de matrícula ..-LN-..) que seguia a carrinha.
Porém, as declarações do arguido revelaram-se contrariadas pelos depoimentos de NN e EE (condutor e passageiro da carrinha), MM (condutora do automóvel Megane de matrícula ..-LN-..) e GG (condutora de veículo que seguia o automóvel Megane), que circulavam na via de sentido contrário.
Com efeito, NN, EE e GG asseveraram ter visualizado o arguido sair da berma do seu lado direito, tendo este, de seguida, direccionado o seu veículo para a sua esquerda – numa tentativa de o recolocar na faixa de rodagem –, após o que invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário, tendo acabado por embater na carrinha, rodopiado, e tendo ainda embatido no automóvel Megane.
Explicou também NN que após o arguido ter invadido a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário, o arguido direccionou o seu veículo para a sua direita, após o que ocorre o primeiro embate.
Também a testemunha MM confirmou que o arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido contrário, tendo embatido na carrinha e, após, no Megane.
As referidas testemunhas foram, pois, unânimes ao referir que o arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido contrário ao que o arguido circulava, e que os embates ocorreram nessa hemi-faixa de rodagem.
O depoimento de FF, único condutor que circulava no mesmo sentido do arguido, não permitiu concluir por uma maior plausibilidade das versões em detrimento da outra, pois que referiu que apenas logrou obter campo de visão para o veículo do arguido e demais veículos segundos antes do embate, não tendo logrado confirmar se algum dos veículos invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário, o que nos leva a concluir que esta testemunha não presenciou os acontecimentos desde o seu início.
Por seu turno, os depoimentos de NN, EE, GG e MM revelaram-se consentâneos com os vestígios e marcas constatados no local e nos veículos por LL, em particular, pelas marcas de rodopio/derrapagem visualizadas no local por LL, ligeiramente perceptíveis na foto 43 de fls. 216; as marcas de travagem na via de trânsito em que seguia a carrinha e o veículo Megane, perceptíveis na foto 45 de fls. 217, e na foto 41 de fls. 215; a ausência de marcas de travagem na via de trânsito ocupada pelo arguido, conforme LL atestou; e as marcas de raspagem verificadas na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao do arguido, perceptíveis nas fotografias 11, 12 e 13 de fls. 200 a 201.
O depoimento do militar LL revelou-se isento, seguro, coerente e consistente, tendo revelado conhecimento directo dos factos, adquirido no exercício das suas funções, tendo explicado o que o levou a considerar as marcas de raspagem perceptíveis nas fotografias 11, 12 e 13 de fls. 200 a 201 o “ponto de conflito” dos veículos, de forma compatível com os demais vestígios que constatou no local e consentânea com os depoimentos das referidas testemunhas, pelo que o seu depoimento mereceu credibilidade e logrou fundar a convicção do Tribunal.
Os depoimentos de NN, EE, GG e MM afiguraram-se circunstanciados, claros, seguros, e mostraram-se congruentes entre si, sendo de salientar que a testemunha GG não foi interveniente no acidente de viação, e não tem qualquer relação com os interveniententes no mesmo, pelo que o seu depoimento se revelou indubitavelmente descomprometido e desinteressado no desfecho do processo, pelo que se revelou determinante na formação da convicção do Tribunal.
Ora, as declarações do arguido revelaram-se contrariadas pelos referidos meios de prova, não tendo qualquer das testemunhas inquiridas confirmado que o veículo de matrícula ..-..-MB tivesse invadido a via de trânsito do arguido, ou que qualquer dos veículos intervenientes tenha embatido no veículo do arguido, ao que acresce que os vestígios constatados no local também não corroboraram a versão dos acontecimentos apresentada pelo arguido.
Os referidos depoimentos revelaram-se, ainda, compatíveis com os vestígios e marcas constatados no local e nos veículos, pelo que, em face da conjugação dos referidos meios de prova, entendeu o Tribunal que resultou suficientemente demonstrada a dinâmica do acidente nos moldes em que constam descritos na factualidade assente, não tendo as declarações do arguido sido suficientemente corroboradas para lograr infirmar tais meios de prova.
A decisão do Tribunal no que respeita à factualidade vertida nos pontos 10 e 11 da matéria de facto provada, fundou-se no teor do relatório de autópsia médico legal de fls. 38 a 40 dos autos e na ficha CODU de fls. 20.
Relativamente à factualidade vertida nos pontos 15 a 22 da matéria de facto provada, a convicção do Tribunal resultou de uma apreciação da factualidade objectiva apurada à luz das máximas da experiência comum e das regras do normal acontecer, tendo-se considerado que a mesma decorria de forma segura, por inferência e com apoio nas regras de normalidade, da descrita conduta do arguido e do circunstancialismo subjacente à mesma.
Com efeito, resultou demonstrado que o arguido saiu da via onde circulava, pisando a berma do seu lado direito, o que motivou a posterior alteração da trajectória do veículo para a esquerda, na tentativa de normalizar a marcha do veículo, o que veio a determinar a invasão da via de trânsito contrária e a incapacidade do arguido de fazer regressar o veículo à sua hemi-faixa de rodagem, tendo vindo a embater na carrinha, e, após, no automóvel Megane.
Não foi detectada a presença de álcool ou de substâncias psicotrópicas no sangue de qualquer dos condutores dos veículos envolvidos cfr. relatórios de química e toxicologia forenses de fls. 106 a 107 (referente ao arguido AA), 109 a 110 (referente a CC) e 112 a 113 (referente a BB)].
Nada mais se apurou em desabono da conduta e da condução do arguido, ou do estado do veículo, do trânsito ou das condições de visibilidade. Em particular, no que respeita à velocidade, o arguido referiu circular a uma velocidade na ordem dos 50/60 km/h, o que não foi contrariado por qualquer testemunha ou por qualquer outro meio de prova, sendo que tal velocidade se encontra dentro do limite fixado para o local (cfr. fls. 194), sem que tenha sido produzida qualquer prova que indiciasse velocidade excessiva para as condições atmosféricas, da via, de visibilidade ou de trânsito.
As condições da via não eram favoráveis já que a faixa de rodagem não dispunha de marcas longitudinais delimitadoras das duas vias de trânsito e das bermas (cfr. auto de exame directo ao local de fls. 194 e ss.).
Porém, resultou assente que o arguido saiu da via onde circulava, pisando a berma do seu lado direito, o que veio a despoletar a sucessão de acontecimentos supra descrita, sendo que o motivo que o arguido apresentou para o efeito – invasão da sua via de trânsito pela carrinha – não resultou demonstrado, conforme se referiu supra.
Tendo o arguido saído da via onde circulava, pisando a berma do seu lado direito, e sem que tenha resultado demonstrada qualquer causa justificativa para o efeito, tal conduta não pode deixar de ser atribuível, à luz das máximas da experiência comum e às regras do normal acontecer, à falta de perícia e cuidado do arguido, que não logrou assegurar que o seu veículo se mantivesse na faixa de rodagem e não transpusesse a berma, e posteriormente, que não invadisse a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário.
Foi, pois, a falta de perícia do arguido que despoletou a sequência de actos e acontecimentos descrita, da qual resultou a morte do ofendido.
Ainda que as condições da via não se revelassem favoráveis, não pode deixar de se dirigir à conduta do arguido um juízo de censura.
Com efeito, a ausência de marcação na faixa de rodagem e o desnível entre o pavimento e a berma não consubstanciam factores que, por si só, tornem compreensível, à luz do que seria expectável e exigível a um homem médio comum, colocado nas mesmas concretas circunstâncias que o arguido, a saída do veículo da faixa de rodagem.
Afigura-se-nos, pois, que a prova produzida não permitiu concluir pela verificação de uma força ou condicionalismo estranho e insuperável, que tornasse inexigível ao arguido manter o veículo na via de trânsito, evitando que o mesmo transpusesse a berma, e que isentasse de culpa o arguido.
Pelo contrário, face à prova produzida, afigura-se-nos que a falta de perícia ocorrida consubstancia uma omissão do cuidado e diligência devidos, e que eram, em concreto, exigidos – como seriam exigíveis ao homem médio comum, colocado nas mesmas circunstâncias –, a qual se mostra, por isso, censurável, e a qual consubstanciou a causa directa e necessária do despiste e embates ocorridos, sem qualquer interrupção do nexo causal.
Por outro lado, face à prova produzida, afigura-se-nos que foi a falta de perícia verificada a causa directa e necessária das lesões que, em consequência do acidente, sobrevieram na pessoa de DD, e que determinaram a sua morte.
Com efeito, a conduta do arguido não pode deixar de ser a responsável, em primeira linha, pelo evento danoso, desde logo porque foi a sua omissão de cuidado que provocou o despiste, sendo o arguido que tinha o “domínio sobre o facto” enquanto condutor do veículo.
Conforme já se adiantou supra, sem qualquer razão atendível que o justificasse, o arguido perdeu o controlo do veículo por si conduzido, permitindo que o mesmo saísse da faixa de rodagem, e posteriormente, que invadisse a via de trânsito de sentido contrário.
Se o arguido circulasse com a perícia e o cuidado que a generalidade dos condutores ali teria adoptado – não se tendo apurado circunstâncias que revelassem que o arguido se encontrasse impedido de o fazer –, o arguido teria evitado o despiste e as suas consequências.
Foi, pois, o arguido, com a sua omissão de cuidado, que iniciou o processo causal que desembocou na produção de lesões determinantes da morte do ofendido, sem que se tenha apurado qualquer circunstância que tenha feito interromper o nexo causal despoletado pelo arguido.
Noutra formulação, foi a conduta censurável do arguido que fez aumentar a probabilidade de produção do resultado, em comparação com o risco permitido.
Deste modo, o resultado é imputável ao arguido (a título de culpa negligente – negligência inconsciente).
Assim, tudo visto e ponderado, afigura-se-nos que a prova produzida permitiu a demonstração suficiente da factualidade descrita na acusação pública.
No que respeita à factualidade vertida nos pontos 23 a 25 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se no depoimento de LL, no teor do auto de exame directo ao local de fls. 195 a 218, e em particular, quanto ao desnível entre o pavimento e a área adjacente à faixa de rodagem, no teor das fotografias 6 e 7, de fls. 198, e 33 a 35, de fls. 211 a 212; e no teor do relatório de inspecção a local de acidente de fls. 339 a 344.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais e infracções rodoviárias do arguido, teve-se em consideração o teor do Certificado do Registo Criminal de fls. 377 e do Registo Individual do Condutor de fls. 379.
No que concerne às condições pessoais e económicas do arguido, atendeu-se às suas declarações, as quais se afiguraram seguras e credíveis, e não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova, complementadas pelo teor do relatório social de 21/08/2023.
No que tange à factualidade vertida no ponto 47 da matéria de facto assente, a decisão do Tribunal fundou-se no depoimento de II, o qual não foi contrariado por qualquer meio de prova.
A decisão do Tribunal no que respeita à factualidade constante das alíneas a) e b) da matéria de facto não provada, resultou da sua ausência de demonstração suficiente. (…)
A decisão do Tribunal no que respeita à factualidade constante das alíneas g) a j) da matéria de facto não provada, decorreu da ausência de meios de prova que permitisse a demonstração suficiente e segura de tal factualidade, não tendo o depoimento de II, o teor das fotografias de fls. 316 a 317 verso, e os elementos remetidos pela ... remetidos aos autos, de fls. 339 a 343, e 345 a 360 se revelado suficientes para o efeito.
A decisão do Tribunal no que concerne à factualidade vertida na alínea k) da matéria de facto não provada, fundou-se no teor do auto de exame directo ao local de fls. 195 a 218, permitindo as fotografias 31 a 45, de fls. 210 a 217, constatar a existência de pré-marcação no pavimento.
A decisão do Tribunal no que concerne à factualidade vertida na alínea l) da matéria de facto não provada, estribou-se nas declarações do arguido e nos depoimentos das testemunhas inquiridas, os quais se revelaram unânimes ao atestar que o acidente ocorreu ao final da tarde, ao início do anoitecer, não se encontrando ainda escuro.
A decisão do Tribunal no que respeita à factualidade vertida na alínea m) da matéria de facto não provada, resultou da sua total ausência de demonstração.
A decisão do Tribunal no que concerne à factualidade vertida nas alíneas n) a q) da matéria de facto não provada, decorreu da motivação dos pontos 5 a 8 da matéria de facto provada, exposta supra. (…)”
*
3.2.- Mérito do recurso
A) Verificação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do Cód. Proc. Penal
Como fundamento do seu recurso, imputa o recorrente à decisão recorrida os vícios formais de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, dizendo que o Tribunal a quo não fez uma apreciação cuidada da prova produzida, errando de forma ostensiva quanto ao apuramento da matéria de facto provada e não provada, verificando-se na decisão recorrida a ocorrência dos vícios previstos nas alíneas a) e c) do nº 2 do art.º 410º do Cód. Proc. Penal, por se verificar nela uma "...contradição material insanável, erro de lógica e inobservância do que aconselha o senso comum", nos factos provados relativos à conduta do recorrente e à contribuição dessa conduta para o resultado morte.
Ora, quanto a estas questões, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.
No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.
Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.
Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”
No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
ou c) O erro notório na apreciação da prova.».
Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. – Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., pág.s 737 a 739.”
Veja-se ainda, a título de exemplo, o Ac. deste TRL de 22/09/20, no processo nº 3773/12.4TDLSB.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “ Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que, como já se adiantou, hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma. Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, a mesma consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, págs. 71 a 73).
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão de 12/03/2015, proferido no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “ Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».
Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).
Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves, onde cita vária jurisprudência (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova.
Como sustenta Pereira Madeira, no erro notório “estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-à, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo (…) que numa visão jurídica consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista e, naturalmente, ao tribunal de recurso, assegurar sem margem para dúvidas que a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem de ser «notório». Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha de ser devidamente escrutinada (…) e sopesada à luz das regras da experiência, Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.” (in Código de Processo Penal comentado, 3ª ed. Revista, Almedina, 2021, pag. 1293/1294.) (…).
Nos presentes autos, vem o recorrente invocar a verificação de todos estes vícios, mas sem concretizar em que parte ou partes da decisão recorrida é que cada um deles se verifica.
Porém, o que decorre da argumentação do recorrente é que o mesmo invoca todos os vícios constantes do art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, porquanto não se conforma que se tenha dado como provada a versão do acidente constante da acusação pública, pretendendo ser absolvido do crime de homicídio negligente pelo qual foi condenado.
Ora, analisada a decisão recorrida, não decorre da mesma a verificação de nenhum dos vícios invocados.
Mais à frente apreciaremos se existem ou não fundamentos para alterar a matéria de facto que conduziu à condenação do arguido.
Neste momento cumpre apenas referir que a factualidade descrita nos autos permite concluir, por si só, pelo preenchimento pelo arguido dos elementos objectivo e subjectivo do crime pelo qual foi condenado, razão pela qual não se verifica a invocada insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão.
A sentença recorrida descreve de forma lógica e ordenada os factos apurados, fundamenta os factos de forma coerente, justificando as razões que levaram a tal, e tira as ilações jurídicas dessa factualidade, no tocante à condenação do arguido nas respectivas penas, sem que em momento algum resulte do texto da decisão qualquer contradição, muito menos insanável.
Também no que concerne ao erro notório não se descortina a sua verificação na decisão recorrida, porquanto os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma.
Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelo recorrente, impõe-se julgar o recurso improcedente quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos.
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B) Erro de julgamento
Alega o recorrente que houve na decisão em apreço um erro de julgamento, entendendo que a matéria vertida nos pontos 3 a 8, 15 e 17 a 22, dos factos provados deveria ter sido dada por não provada e deveria ter sido dada por provada a matéria vertida nas alíneas n) e o) a q) dos factos tidos por não provados, o que leva à sua absolvição do crime de homicídio pelo qual foi condenado nos autos.
Apreciemos a sua pretensão.
A reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação desses vícios tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Quanto à impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, verifica-se que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, mas já não quando tais provas apenas permitirem uma outra decisão, a par da decisão recorrida.
Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal ( cf., Ac. TRL de 02.11.2021, no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.).
Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
O recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.
A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª instância não é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma, pois o poder de apreciação da prova do tribunal de recurso não é absoluto, nem se reconduz à realização integral de um novo julgamento da matéria de facto, em substituição do já realizado em 1ª instância.
A reapreciação da prova só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.
Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário.
Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso.
Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 13/02/08, no processo nº 07P4729, relator: Conselheiro Pires da Graça, in www.dgsi.pt ).
A lei não considera relevante a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal, até porque, se assim fosse, não seria possível existir qualquer decisão final.
O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece também os limites da mesma, ou seja, os poderes de cognição do tribunal de recurso.
Mesmo nos casos em que exista documentação dos atos da audiência, o recurso para o Tribunal da Relação não constitui, como já se referiu, um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova.
Na verdade, como se refere no Ac. deste TRL, datado de 26/10/21 ( proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt): «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…).
Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase.
As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.
Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.
Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.
Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
Não por acaso, a antecedente prova escrita (a velha assentada) foi obliterada do processo português, precisamente porque, eliminando o material supramencionado, facilmente permitia a afirmação judicial de inverdades e justamente na fase de recurso.
Paralelamente, é essa a razão de ser das apertadas e exíguas possibilidades de recurso sobre a matéria de facto. Maior abertura à sua restrição aumentaria, na exacta proporção, aí sim, a hipótese de erro judiciário.
Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»
Assim sendo, o que o Tribunal da Relação pode e deve fazer nesta matéria, em sede de recurso, é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação de matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância.
A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência.
A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso.
Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, ou seja, no cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal.
Para este efeito, como se escreveu no Ac. deste TRL datado de 11/03/2021 ( proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»
Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» (cf. Ac. TRP datado de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, se decidiu no Ac. TRG datado de 28/06/2004 (proferido no processo nº 575/04-1, em que foi relator Heitor Gonçalves, in www.dgsi.pt ), onde se refere que: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”.
Em suma, o recorrente que invoca a existência de um erro de julgamento tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas e que sustentam uma decisão diversa, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.
Importa, neste momento, analisar as questões concretamente suscitadas pelo recorrente nestes autos.
O recorrente impugna a decisão da matéria de facto pondo em causa, no essencial, a dinâmica provada do acidente de viação.
Pretende ser absolvido do crime de homicídio negligente, alegando, para tanto, que o acidente que vitimou o seu filho não se ficou a dever a culpa sua, mas antes a culpa do condutor do veículo que circulava em sentido contrário ao seu, que invadiu a faixa de rodagem pela qual o arguido seguia e que veio embater no veículo conduzido pelo arguido, levando a que este se despistasse, indo embater num segundo veículo que circulava em sentido contrário ao seu.
Para tanto, alega que a sua versão do acidente resulta do seu depoimento e do depoimento das testemunhas inquiridas e, nomeadamente, CC, BB, EE, FF, GG, HH, II.
Entende que da análise conjugada destes depoimentos resulta que não se pode dirigir à sua conduta um juízo de censura, dado que circulava com a perícia e o cuidado que a generalidade dos condutores ali teria adoptado, não tendo podido evitar o despiste e as suas consequências.
Mais alega que, pelo menos com culpa, ainda que negligente, não iniciou o processo causal que desembocou na produção de lesões determinantes da morte do ofendido, não foi a sua conduta que fez aumentar a probabilidade de produção do resultado, em comparação com o risco permitido, impondo a prova produzida a alteração da decisão da matéria de facto.
Ora, da análise das conclusões do recorrente verifica-se que o mesmo cumpriu minimamente as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas, pese embora não tenha isolado as partes da gravação de cada depoimento que este Tribunal de recurso deveria ouvir, remetendo para a generalidade dos depoimentos prestados.
No entanto, pese embora o recorrente tenha identificado concretamente os pontos de facto que considera erradamente julgados, o que decorre das suas alegações é que se limita a pôr em causa a credibilidade do depoimento das testemunhas inquiridas, dizendo que o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os factos que deu com fundamento nesses depoimentos.
Como se deixou expresso, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem o recorrente aqui fazer.
No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos termos supra transcritos, procedendo a uma análise dos depoimentos prestadas pelas testemunhas e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum.
Para tal, relacionou o Tribunal a quo os depoimentos das testemunhas com os outros meios de prova constantes dos autos, sobretudo com o croquis, a participação do acidente, o relatório técnico do acidente de viação e os registos fotográficos, dos quais decorrem os danos observados em todos os veículos interveninetes no acidente e os vestígios deixados no pavimento, os quais se mostram consentâneos com a versão dos factos resultante dos depoimentos das testemunhas.
Para a formação da convicção do Tribunal a quo foram sobretudo tidos em conta os depoimentos das testemunhas:
- LL, militar da Guarda Nacional Republicana que compareceu no local e que descreveu o que aí constatou, e que elaborou o croquis de acidente de viação de fls. 115; o auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-LN-.., de fls. 157 a 167; o auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-..-ER, de fls. 168 a 178; o auto de exame directo ao veículo de matrícula ..-..-MB, de fls. 179 a 189; o auto de exame directo ao local de fls. 195 a 218, e o relatório final de fls. 257 a 269;
- HH, militar da Guarda Nacional Republicana que compareceu no local e que descreveu o que aí constatou, e que elaborou o auto de notícia de fls. 19 e a participação do acidente de viação de fls. 24 a 28;
- CC, condutora do veículo interveniente no acidente ..., de matrícula ..-LN-..;
- BB, condutor do veículo interveniente no acidente ..., de matrícula ..-..-MB;
- EE, passageiro do veículo interveniente no acidente de matrícula ..-..-MB;
- FF, condutor de veículo que circulava atrás do veículo conduzido pelo arguido, no mesmo sentido que o mesmo;
- GG, condutora de veículo que circulava atrás do veículo de matrícula ..-LN-.., no mesmo sentido que o mesmo.
Verifica-se, assim, que o Tribunal a quo analisou criticamente todos os meios de prova produzidos, relacionou-os entre si e não teve dúvidas no apuramento dos factos, pelo que a decisão em apreço se mostra efectivamente suportada pela prova produzida em julgamento.
Ouvidas as declarações do arguido e das testemunhas em causa, confirma-se o que consta da fundamentação da matéria de facto da decisão recorrida.
Dos depoimentos prestados em julgamento, decorre que as testemunhas CC, condutora do veículo interveniente no acidente ..., de matrícula ..-LN-.., BB, condutor do veículo interveniente no acidente ..., de matrícula ..-..-MB, e GG, condutora de veículo que circulava atrás do veículo de matrícula ..-LN-.., no mesmo sentido de marcha, depuseram efectivamente de forma clara, segura, completa e convincente, tendo todas sido peremptórias em afirmar que o arguido seguia em sentido contrário ao delas, saiu da faixa de rodagem por onde seguia, pisando a berma do seu lado direito e quando retomou a faixa de rodagem, guinou para a esquerda, invadindo a hemi-faixa de rodagem de sentido contrário ao seu, por onde seguiam os veículos das referidas testemunhas, e quando tentou retomar o seu lado da via, embateu no veículo MB, perdeu o controle da sua viatura, rodopiou e foi embater na viatura LN, imobilizando-se de seguida, atravessado na via, com a dianteira do seu veículo no sentido da sua hemi-faixa de rodagem.
Se podíamos pôr em causa o depoimento das testemunhas CC e BB por terem sido intervenientes no acidente de viação em apreço, o certo é que a versão dos factos trazida aos autos por estas testemunhas foi corroborada pela versão coincidente apresentada pela testemunha GG, que assistiu ao desenrolar de todo o acidente, não foi interveniente no mesmo e ajudou a prestar assistência às vítimas, tendo a mesma deposto de forma emocionada, mas muito correcta e sem que do seu depoimento decorra qualquer intenção de prejudicar o arguido, mas apenas a de relatar os factos tal como os mesmos ocorreram.
Também o depoimento da testemunha LL se revelou essencial para o apuramento da versão dos factos que realmente aconteceu, porquanto esta testemunha descreveu de forma completa as marcas deixadas no solo pelos vários veículos, cuja observação vai ao encontro da versão dos factos apresentada pelas supra referidas testemunhas, na medida em que no sentido de marcha do arguido não foram registados no solo quaisquer sinais de travagem, mas foram registadas marcas de travagem e desvio para a direita do veículo MB, vestígios estes que permitem concluir que o embate se deu na hemi-faixa de rodagem de sentido contrário àquele por onde o arguido seguia.
Para além destes vestígios deixados no solo, a testemunha LL também descreveu e explicou os vestígios deixados pelo embate nos respectivos veículos, explicação que igualmente corrobora a versão do acidente apurada pelo Tribunal a quo.
Compreende-se que o recorrente manifeste o seu desacordo relativamente à leitura que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, sobretudo tendo em conta que foi penalmente responsabilizado pela ocorrência de um acidente de viação que vitimou mortalmente um dos seus filhos.
No entanto, avaliada por este Tribunal de recurso toda a prova produzida, verifica-se que o recorrente é o único que apresenta uma versão diferente do acidente, a versão que o mesmo gostaria que tivesse acontecido, mas que infelizmente para si não corresponde àquela que efectivamente aconteceu e que é a que o Tribunal a quo apurou.
Em face do exposto, não tendo a tese do arguido quanto à produção do acidente sustentáculo na prova produzida nos autos, impõe-se julgar improcedente, neste tocante, o recurso.
C) Violação do princípio in dubio pro reo
Alega ainda o arguido que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo.
Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.
Como refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.
No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ Se o recorrente invoca que foi violado o princípio in dubio pro reo, tem de impugnar a decisão da Relação, contrariando-a e afirmando e demonstrando que o Tribunal ficara na dúvida e mesmo assim decidira contra si (o arguido).
Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”
Também no Ac. deste TRL de 10/01/18, proferido no processo nº 63/07.8TELSB-3, em que foi relator Nuno Coelho, in www.dgsi.pt, se decidiu que: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.
O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.
Verifica-se, assim, que a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando se mostrarem esgotadas todas as operações de análise e de confronto de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência, da lógica geralmente aceite e do normal acontecer das coisas e, ainda assim, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador.
Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.
Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu.
Como se deixou supra referido, a factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não decorrendo da decisão em apreço, nomeadamente da factualidade assente e da sua motivação, que o julgador tivesse tido qualquer dúvida ou hesitação quanto à valoração da prova e à fixação dos factos, não tendo, para além do mais, o recorrente indicado prova que obrigasse a uma decisão diferente da que foi adoptada pelo Tribunal a quo.
Uma vez que os factos dados como provados na decisão recorrida são uma consequência lógica, racional e plausível da prova produzida em julgamento, à qual o Tribunal atribuiu credibilidade e verosimilhança, não se pode pôr em causa, sem mais, a convicção formada pelo julgador, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim sendo, não se tendo apurado a existência de um qualquer erro de julgamento ou da violação do princípio in dubio pro reo, impõe-se julgar improcedente, também neste tocante o recurso do arguido.
D) Violação de deveres de cuidado pelo arguido
Por último, alega o arguido que no caso em apreço não se verificam os pressupostos que permitem a sua condenação, porquanto vem acusado da prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos arts.º 137º, nº 1, e 69º, nº 1, alínea a) do Cód. Penal, mas não violou nenhuma das regras estradais e, designadamente, o dever geral de diligência consagrado no art.º 3º, nº 2 do Cód. da Estrada, nem desrespeitou nenhum dever de cuidado a que todo e qualquer condutor deve obediência, não se encontrando demonstrado relativamente a si o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço, pelo que se impõe a sua absolvição.
Quanto a esta matéria, a decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
“(…) 5. Após conformar a curva para a esquerda existente, o arguido saiu da via onde circulava pisando a berma do seu lado direito.
6. O arguido apercebeu-se que estava fora da via e ao iniciar manobra para tentar retomar a sua via invadiu a faixa de rodagem da esquerda, destinada aos veículos que circulam no sentido contrário àquele em que seguia, nomeadamente os veículos de matrícula ..-..-MB e ..-LN-...
7. Porém, é no momento em que o arguido tenta retomar a faixa de rodagem da direita que ocorre o embate entre a zona lateral esquerda do seu veículo de matricula ..-..-ER com a frente esquerda do veículo de matrícula ..-..-MB.
8. Em consequência daquela colisão, o veículo do arguido entra em despiste e colide com o veículo de matrícula ..-LN-.., que seguia imediatamente atrás do veículo de matrícula ..-..-MB.
9. Tendo ficado imobilizado atravessado na via contrária ao seu sentido de marcha. (…)
15. Na sua actuação, o arguido AA não procedeu com o devido cuidado e atenção por forma a impedir que o veículo por si conduzido invadisse a via de trânsito contrária, atento o seu sentido de marcha.
16. O arguido sabia e tinha consciência de que é obrigado por lei a conduzir veículos automóveis na via pública com cuidado, atenção, zelo e respeito pelas normas relativas à circulação automóvel, que lhe impunham o dever de circular pelo lado direito da faixa de rodagem e de conservar das bermas e passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
17. Não obstante, de forma livre e consciente, o arguido não atentou, nem analisou correctamente a condução que exercia, não impediu que o veículo atravessasse toda a via de trânsito contrária e fosse circular na faixa da esquerda, atento o seu sentido de marcha.
18. Ao agir do modo descrito, o arguido AA actuou sem observar as mais elementares regras estradais e de cautela que se impunham a qualquer condutor que circulasse na mencionada via de trânsito e a si em particular, as quais conhecia e conseguiria ter respeitado.
19. Ao não fazê-lo e ao não observar as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado, o arguido AA actuou com descuido e a sua conduta teve como consequência necessária e directa a produção de lesões em DD, seu filho, que foram causa directa e necessária da morte do mesmo, resultado esse não pretendido por aquele, mas que lhe é pessoalmente imputável.
20. O acidente deveu-se unicamente à conduta descuidada do arguido, que omitiu o dever de cautela que podia e devia ter adoptado, para evitar o resultado que sobreveio da mesma, que podia e devia ter previsto como possível.
21. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sem o cuidado devido e de que era capaz. (…)”
Desta factualidade extraiu o Tribunal a quo a responsabilização penal do arguido pela seguinte forma:
“(…) Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Preceitua o artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Acrescenta o n.º 2 do referido preceito que “Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.
A presente incriminação visa a tutela da vida humana, isto é, a vida de outra pessoa já nascida.
O tipo objectivo consiste na acção de matar (tirar a vida a) outra pessoa já nascida.
Trata-se de um crime de resultado, cujo preenchimento do tipo pode resultar de acção ou omissão, desde que, neste último caso, se possa afirmar em relação ao agente a existência de um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal).
Tal incriminação consubstancia o tipo negligente do crime de homicídio.
Dispõe o artigo 15.º do Código Penal, que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, (i) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou (ii) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
No que respeita à enunciação e concretização do delito negligente, a violação do dever de cuidado continua a ser preponderantemente identificada como constituindo o momento nuclear deste tipo de ilícito, a que se têm vindo a associar contributos de construções mais recentes, essencialmente assentes nas ideias de risco (criação ou potenciação pelo agente de um risco proibido de ocorrência do resultado) e de imputação objectiva.
Assim, o tipo negligente é erigido a partir da violação da norma de cuidado exigível na situação concreta de que se trate (com a criação ou exasperação, se se quiser, de um risco não permitido) – desvalor da acção – exigindo-se ainda que, como consequência daquela, ocorra a produção do resultado previsto num tipo legal – desvalor do resultado.
Quanto ao dever objectivo de cuidado, o seu conteúdo determina-se a partir do reconhecimento dos perigos que surgem da conduta para os bens jurídicos protegidos (da previsibilidade do resultado proibido, portanto) e da consequente necessidade da adopção da atitude que evite a lesão, vindo a sua medida a ser aferida pelas exigências que se devem fazer a uma pessoa sensata e conscienciosa no caso concreto e no papel social e intelectual do agente, considerando a situação de perigo de acordo com um juízo de prognose póstuma ex ante, processo em que não deve, no entanto, ser excluída a consideração das capacidades individuais do agente.
Por outro lado, exige-se ainda a produção de um resultado proibido, devendo este resultado ser consequência da omissão do cuidado devido, o que vale por dizer que deve ser efeito da acção descuidada (noutra formulação, o resultado deve ser a materialização do risco criado ou potenciado pela conduta).
Importa salientar que para além da existência de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ocorrido (estabelecido segundo os princípios da causalidade adequada), é necessário que se verifique um segundo nexo de causalidade entre o dever objectivo de cuidado e aquele resultado, isto é, que o resultado verificado decorra da violação do cuidado devido, de tal modo que a observância do comportamento devido teria permitido evitar a ocorrência do dano.
Exige-se, assim, que se verifique um nexo de imputação (a causalidade constitui apenas o momento inicial da imputação) onde a previsibilidade (e inerente evitabilidade) do resultado assumem um papel de relevo, pois onde este resultado não seja previsível, falha liminarmente a sua imputação à conduta do agente: se não é previsível o resultado também não poderia ser antecipado o comportamento exigível e tendente a evitá-lo (imputação objectiva ou segundo momento daquele juízo de imputação).
O tipo objectivo de ilícito em causa é, deste modo, constituído pelos seguintes elementos:
 a violação de um dever objectivo de cuidado;
 a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo (isto, é o resultado);
 a produção do resultado típico, que se traduz na morte de outrem;
 o nexo de causalidade entre a conduta (acção ou omissão) do agente e a verificação do resultado (morte).
No que respeita ao tipo subjectivo, o artigo 15.º do Código Penal contempla duas modalidades de culpa negligente. Enquanto na negligência consciente o agente representa como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não representando sequer a possibilidade do cometimento do tipo de ilícito pela sua conduta.
O preenchimento do tipo subjectivo depende da possibilidade objectiva de cumprir o dever objectivo de cuidado, afigurando-se imprescindível que o agente esteja em condições de conhecer as exigências de cuidado que lhe são impostas e sua capacidade (pessoal) de as cumprir.
No caso vertente, resulta da factualidade apurada que no dia 2 de Março de 2020, pelas 18:30, o arguido AA conduzia o veículo automóvel de matrícula ..-..-ER, no …, Km 47,100, ..., no sentido ....
No interior do veículo de matrícula ..-..-ER, conduzido pelo arguido, encontravam-se, ainda, JJ, DD e KK.
Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, transitava pela mesma via, mas em sentido oposto ao do arguido e pela respectiva faixa direita de rodagem, o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..-MB tripulado por BB e, imediatamente antes deste, o veículo automóvel de matrícula ..-LN-.. conduzido por CC, que circulavam no sentido ....
Após conformar a curva para a esquerda existente, o arguido saiu da via onde circulava, pisando a berma do seu lado direito.
O arguido apercebeu-se que estava fora da via e ao iniciar manobra para tentar retomar a sua via invadiu a faixa de rodagem da esquerda, destinada aos veículos que circulam no sentido contrário àquele em que seguia, nomeadamente os veículos de matrícula ..-..-MB e ..-LN-...
Porém, é no momento em que o arguido tenta retomar a faixa de rodagem da direita que ocorre o embate entre a zona lateral esquerda do seu veículo de matricula ..-..-ER com a frente esquerda do veículo de matrícula ..-..-MB.
Em consequência daquela colisão, o veículo do arguido entra em despiste e colide com o veículo de matrícula ..-LN-.., que seguia imediatamente atrás do veículo de matrícula ..-..-MB.
Tendo ficado imobilizado atravessado na via contrária ao seu sentido de marcha.
Como consequência directa e necessária do referido embate, DDsofreu as lesões físicas descritas no ponto 10 da factualidade assente, as quais, particularmente as lesões crânio-meningeoencefálicas e raqui-medulares supra descritas, foram causa directa e necessária da sua morte, que ocorreu às 19:15 horas daquele dia 02/03/2020.
Preceitua o artigo 13.º, n.º 1, do Código da Estrada que “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.
Por seu turno, estabelece o artigo 17.º, n.º 1, do Código da Estrada que “Os veículos só podem circular nas bermas ou nos passeios desde que o acesso aos prédios o exija, salvo as exceções previstas em regulamento local”.
Ora, ao conduzir do modo enunciado, o arguido violou o dever geral de diligência consagrado no artigo 3.º, n.º 2, do Código da Estrada, e infringiu o disposto nos citados preceitos estradais, que contemplam deveres de cuidado a que todo e qualquer condutor deve obediência, pois que, sem qualquer razão atendível que o justificasse, o arguido saiu da via onde circulava, pisando a berma do seu lado direito, e ao encetar manobra para tentar retomar a sua via, invadiu a faixa de rodagem da esquerda, destinada aos veículos que circulam no sentido contrário àquele em que seguia, nomeadamente os veículos de matrícula ..-..-MB e ..-LN-.., e ao tentar retomar a faixa de rodagem da direita, dá-se o embate da zona lateral esquerda do veículo do arguido com a frente esquerda do veículo de matrícula ..-..-MB.
O arguido sabia e tinha consciência de que é obrigado por lei a conduzir veículos automóveis na via pública com cuidado, atenção, zelo e respeito pelas normas relativas à circulação automóvel, que lhe impunham o dever de circular pelo lado direito da faixa de rodagem e de conservar das bermas e passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
Tendo o arguido saído da via onde circulava, pisando a berma do seu lado direito, e sem que tenha resultado demonstrada qualquer causa justificativa para o efeito, actuou o arguido com falta de perícia e cuidado, pois que não logrou assegurar que o seu veículo se mantivesse na faixa de rodagem e não transpusesse a berma, e posteriormente, que não invadisse a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário.
Ao agir do modo descrito, o arguido AA actuou sem observar as mais elementares regras estradais e de cuidado que se impunham a qualquer condutor que circulasse na mencionada via de trânsito e a si em particular, as quais conhecia e conseguiria ter respeitado.
Conclui-se, assim, que o arguido violou o dever objectivo de cuidado a que estava obrigado, e de que era capaz.
Tendo em conta as condições da via, o estado do tempo e a forma como o embate ocorreu, é manifesto que a omissão do cuidado devido, em desrespeito pelas regras estradais – ao não ter empregue a perícia necessária por forma a manter o seu veículo na hemi-faixa de rodagem correspondente –, determinou a saída da via onde circulava, e a subsequente invasão da via da esquerda, e dos embates, tendo constituído a sua causa directa e necessária.
Conforme se viu, em consequência do acidente resultaram para DD as supra descritas lesões, as quais foram causa necessária e directa da sua morte, ocorrida no próprio dia 02/03/2020.
Assim, não há dúvida de que o resultado típico produzido constituiu um desenvolvimento previsível da violação do cuidado devido (do perigo criado), tendo sido desta violação que decorreu o resultado alcançado (sem qualquer interrupção do nexo causal).
O resultado típico produzido é, pois, objectivamente imputável à conduta do arguido.
Mais se apurou que o arguido, pese embora não tenha adoptado a perícia e o cuidado exigidos ao exercício da condução de veículo automóvel, como podia e devia, não representou a possibilidade da sua conduta provocar a morte ou lesões corporais a terceiros, e não previu, como podia e devia, as consequências que poderiam advir da sua conduta, tendo agido de modo livre e consciente, bem sabendo que agia de forma proibida e punida por lei, o que nos permite concluir que o arguido actuou com negligência inconsciente e com consciência da ilicitude (artigo 15.º, al. b), e 17.º do Código Penal).
Encontra-se, assim, demonstrado o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço, pelo que, não tendo sido apurada factualidade susceptível de consubstanciar qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, conclui-se que o arguido cometeu o crime de que vem acusado. (…)”
Relembramos que não foi efectuada qualquer alteração na matéria de facto fixada na decisão recorrida.
Assim sendo, impõe-se concluir que aquela decisão fez o enquadramento jurídico correcto da matéria de facto apurada, de uma forma que secundamos, tendo concluído pela violação pelo arguido dos apontados deveres de cuidado, violação esta que fundamentou a sua condenação pela prática do crime de homicídio negligente em apreço.
Em face de tudo o exposto, impõe-se julgar totalmente improcedente o recurso do arguido, não se considerando violada nenhuma das normas jurídicas apontadas pelo mesmo.
*
4. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.

Lisboa, 4 de Junho de 2024
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
(Relatora)
Sandra Oliveira Pinto
Sara Reis Marques
(Adjuntas)