Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8760/20.6T8LSB.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
CARTA DE CONFORTO
CONTRATO UNILATERAL
INTERPRETAÇÃO
CONFORTO MEDIANO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (elaborado pela relatora - art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. As denominadas “cartas de conforto” constituem contratos unilaterais, e são habitualmente classificadas como fracas, médias ou fortes.
2. A classificação da “carta conforto” depende do sentido das declarações nela vertidas, a interpretar de acordo com a doutrina da impressão do destinatário (cf. art.º 236º, CC), tendo por base, não só, o elemento literal, como o contexto global em que foi produzida/emitida e evidenciado pela matéria factual emergente da prova produzida em audiência.
3. O “conforto” deve considerar-se como mediano quando o subscritor assume a realização de diligências instrutórias destinadas a facilitar o desempenho do devedor com vista a que este venha a cumprir a sua obrigação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Relatório
KABELPOWER PORTUGAL – COMÉRCIO E INDÚSTRIA, S. A.”, com sede em Sintra, Comercial ..., propôs a presente ação declarativa de condenação sob a forma única de processo comum contra:
“CORE CAPITAL – SOCIEDADE DE CAPITAL DE RISCO, S. A.”, com sede na Rua ...; e
“CORE EQUITY, S. A.1, com sede na Rua ..., em Lisboa, pedindo que, julgada a mesma procedente, por provada, sejam as Rés condenadas, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de € 740.208,45, acrescida de juros de mora à taxa aplicável aos créditos entre sociedades comerciais a partir da interpelação e até efetivo e integral pagamento.
Alega, para tanto, que as Rés assumiram comportamentos que constituem atos materiais de assunção de dívida que integram a previsão do artigo 595.º do Código Civil, tendo ambas subscrito, na pessoa dos seus legais representantes, declarações reconhecendo os créditos da Autora sobre as empresas do “Grupo AA”, e a disponibilidade para os pagarem, nas seguintes quantias:
a) AA – Energie: € 724.634,20;
b) AA – Energia e Sistemas, S. A: € 15.574,25.
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As Rés foram citadas e contestaram a ação. Rejeitaram a assunção de dívida ou a prestação de qualquer garantia do pagamento das dívidas daquelas sociedades e pediram a respetiva absolvição do pedido.
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A autora foi notificada para se pronunciar, querendo, sobre as exceções invocadas na contestação (o que fez, relativamente à alegada falta de capacidade das Rés, e existência de negócio usurário) e pugnou pela sua improcedência.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia com a anuência das partes.
O processo foi saneado, foi fixado o objeto respetivo e enunciados os temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que absolveu as Rés do pedido e condenou a Autora nas custas do processo.
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Inconformada com a decisão, a Autora veio apresentar recuso, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões:
1. A decisão de que ora se recorre padece de grave e irreparável erro na apreciação da matéria de facto e, bem assim, decorrente dessa deficiente apreciação da matéria de facto, padece igualmente de erro na aplicação das normas jurídicas aplicáveis.
2. Deveria a douta sentença recorrida ter considerado que a “carta de reconhecimento de dívida” foi emitida por ambas as Rés.
3. As Rés têm sede no mesmo local, partilham o mesmo endereço de correio eletrónico, o mesmo papel timbrado e os mesmos administradores.
4. Tal documento foi subscrito por dois dos administradores quer da 1ª como da 2ª Ré, BB e CC, assinaturas essas que obrigam as indicadas sociedades.
5. Ainda que as Rés não tivessem formalmente a intenção de assumir a dívida do Grupo AA, no qual investiram, deveria considerar-se que materialmente tal assunção de dívida existiu.
6. BB e CC assumiram em nome das suas representadas perante a recorrente a dívida do grupo AA.
7. No ano de 2019 o legal representante das Rés, CC, exercia já funções executivas no grupo AA.
8. De acordo com o n º 1 do artigo 73.º do CSC a responsabilidade dos administradores é solidária, acrescentando o n.º 2 do citado normativo que “o direito de regresso existe na medida das respetivas culpas e das consequências que delas advierem, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis”, respondendo, nos termos gerais, perante terceiros pelos danos que lhes causarem no exercício das suas funções, nos termos do n.º 1 do artigo 79º do CSC. 17.º
9. Caso o tribunal a quo entendesse como procedente a tese das recorridas em como os seus administradores agiram contra os interesses da sociedade e em detrimento das formalidades legais, deveria ter considerado os administradores BB e CC civilmente responsáveis nos termos do artigo 483º do Código Civil, como de resto a ora recorrente peticionou nos autos.
10. A maioria da doutrina considera que as cartas de conforto constituem contratos unilaterais, sem que o facto de serem apenas assinadas por uma das partes impeça essa qualificação.
11. À luz dos elementos fáticos na posse do tribunal, deveria ter este considerado estarmos perante uma carta de conforto forte, uma vez que as emitentes e ora recorridas, assumiram uma declaração negocial de pagamento, tendo em ideia de provocar, em caso de necessidade, um cumprimento, mediato ou imediato, pelas emitentes.
12. As obrigações assumidas pelas Rés constituem efetivas garantias de pagamento perante a Autora.
13. As recorridas, no texto do documento denominado “carta de reconhecimento de crédito”, assumem a obrigação de pagamento “em qualquer cenário”.
14. Interpretando as declarações negociais corporizadas na carta de conforto, a que deram a designação de “carta de reconhecimento de crédito” junta aos autos, de acordo com o n.º 1 do art.º 236.º do Código Civil, ou seja, segundo a teoria da impressão do declaratário, dela se extrai a assunção pelas Rés de uma obrigação de pagamento em substituição da AA Energie SARL, e, como tal deveria, desde logo, neste sentido ser interpretada.
15. Expressões como “Para os efeitos se declara (…) declara a sua firme intenção de, uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar em qualquer cenário o pagamento das dívidas da AA à KABELPOWER ”, apontam claramente no sentido de que as Rés, com este documento e os demais juntos aos autos, pretenderam garantir o cumprimento da obrigações de pagamento que recaíam sobre as empresas do grupo AA perante a Autora.
16. Consubstancia a aludida carta de conforto verdadeira obrigação de dare, não sendo razoável ou expectável que um declaratário normal, colocado na posição da aqui Autora e recorrida, entendesse de outra forma o seu teor.
17. O texto desse documento é suficientemente claro no que se refere à obrigação de pagamento assumida pelas Rés, sem qualquer ressalva ou limitação da extensão da sua obrigação, apenas com a sua validade dependente da realização do investimento no grupo AA, o qual veio efetiva e confessadamente a existir.
18. Está provada a essencialidade, para a Autora e ora recorrente, da assunção da dívida por parte das Rés como condição para a entrega dos cabos e só os entregou perante a responsabilização das mesmas.
19. A Autora cumpriu com essa sua obrigação de entrega dos cabos mediante – e apenas nesse caso – a garantia das Rés em como assumiriam a dívida da AA Energie SARL.
20. É indubitável que se verificaram os pressupostos e requisitos constantes do documento de fls. 23, a carta de conforto denominada “carta de reconhecimento de crédito”.
21. Tais requisitos e condições consistiam na realização por parte das Rés de um investimento no grupo AA superior a 9 milhões de euros, o que veio a suceder e consta da matéria dada como provada.
22. O segundo requisito e condição consistia na entrega dos cabos destinados ao projeto de Évora por parte da Autora, o que veio efetivamente a suceder (provado nomeadamente pelo ponto 35 dos factos provados).
23. Deveria ter entendido a douta sentença recorrida que, verificados estes pressupostos e requisitos, as Rés assumiram perante a Autora o pagamento a esta da dívida existente referente à sociedade AA Energie SARL.
24. É apenas essa a dívida explicitada nesse documento e na troca de correspondência entre as partes junta aos autos.
25. A não ser assim, restaria sem conteúdo ou sentido útil a vinculação precedentemente assumida pelas Rés, entendimento que os factos provados não consentem.
26. A matéria de facto efetivamente provada é suficiente para se concluir pela demonstração da vontade real das partes e, bem assim, de que esta era, efetivamente, a de que fosse prestada uma verdadeira garantia do cumprimento das obrigações tendo a carta de conforto emitida visado precisamente concretizar esse acordo prévio, condicionada apenas aos dois pressupostos estipulados e indicados nas conclusões nº 21 e 22.
27. As cartas de conforto constituem um instrumento jurídico e não apenas declarações graciosas, de boa vontade, ou simples compromissos de honra (como seria o caso de se limitar a repetir o que já resultava do regime legal), recaindo sobre o patrocinante, interessado na sua irrelevância jurídica, provar que no caso concreto faltou essa intenção.
28. Não pode deixar de qualificar-se como forte a carta de conforto emitida e ao abrigo da qual a Autora cumpriu, na íntegra, com a sua obrigação de entrega dos cabos para o projeto de Évora, constituindo, com esse seu cumprimento, as Rés numa obrigação de pagamento em substituição da AA Energie SARL.
29. Consubstancia o documento emitido uma garantia pessoal que impõe às Rés um dever de prestar correspondente à obrigação de pagamento dos montantes reclamados em substituição do devedor, sendo que o incumprimento o faz incorrer em responsabilidade civil (art.º 798.º do Código Civil).
30. A douta sentença recorrida padece de erro, quer na apreciação da matéria de facto, conforme se explicita com as transcrições no corpo das presentes alegações, quer com manifesto erro de direito, que implicariam decisão diferente da recorrida, dado que deveria ter a mencionada decisão condenado as Rés nos termos peticionados.
31. O crédito da Autora perante a AA Energie SARL foi considerado como provado na douta decisão recorrida.
32. Verifica-se assim que se considerou como provado a existência desse crédito da Autora perante a sociedade AA Energie, SARL.
33. Está igualmente provado que o investimento mencionado na carta de conforto denominada “carta de reconhecimento de crédito” foi efetivamente realizado pelas Rés no grupo Jayme da Costa.
34. Está provada a correlação entre a assunção da dívida da AA Energie SARL pelas Rés e a realização do investimento de mais de dez milhões de euros no grupo AA.
35. Os dois únicos requisitos constantes dos documentos trocados entre as partes e ainda a “carta de reconhecimento de dívida” verificaram-se.
36. Tal sucedeu quanto à entrega dos cabos pela A. no projeto de Évora.
37. E sucedeu de igual modo com a realização do investimento das Rés no grupo AA, investimento esse que passou da intenção inicial de € 9.000.000,00 para os realmente investidos € 10.000.000,00 (vide facto provado nº52).
38. A verificação cumulativa dessas condições acordadas entre as partes teria assim de desembocar na consequência e intenção das mesmas, ou seja, o pagamento pelas RR. da dívida da AA Energie SARL à aqui recorrente.
39. A segunda tranche do investimento das Rés no grupo AA, como consta da matéria de facto dada como provada e como resulta confessado através do depoimento de parte do legal representante das RR., foi efetivamente realizado.
40. As Rés, quando se comprometeram através do que assumiram nos dois documentos assinalados, tinham total conhecimento da situação AA Energie SARL em França, o que não as impediu de realizarem o investimento a que se propuseram.
41. As Rés comprometeram-se a pagar à Autora essa dívida da AA Energie SARL, daí a expressão “No entanto” constante quer no documento de fls. 20 a 21 dos autos (e-mail de CC dirigido ao então Diretor Geral da Autora) quer com a expressão “em qualquer cenário”, constante do documento de fls. 23, a carta de reconhecimento de dívida.
42. Face ao teor destes documentos e face à prova produzida, deveria o tribunal a quo ter decidido de forma diferente da que decidiu.
43. Todas as considerações constantes da sentença quanto ao estado e situação da AA Energie SARL deverão ser consideradas irrelevantes, porque a situação dessa sociedade era do conhecimento das Rés, e as mesmas, detentoras desse conhecimento, assumiram, ainda assim a obrigação de pagamento à Autora independentemente dessa situação da AA Energie SARL.
44. No que se refere à natureza do pagamento da quantia de € 25.000,00 pela Ré Equity à Autora, deveria o tribunal a quo ter dado como provado que esse pagamento foi realizado a título de amortização parcial da dívida da AA Energie SARL perante a Autora.
45. Entende a recorrente que também quanto a esta questão existiu um manifesto erro na apreciação na matéria de facto e de igual forma na aplicação do direito.
46. Se está provado que os cabos em causa e destinados ao Parque ... em Évora já estavam integralmente pagos (matéria que nem a A., nem as RR. Colocam em causa), este pagamento de € 25.000,00 nunca se poderia reconduzir ao pagamento dos mesmos.
47. Dúvidas não subsistem, atenta a prova produzida nos autos, que o pagamento da 2ª Ré à Autora da quantia de € 25.000,00 foi imputado na dívida da AA Energie SARL, pelo que deveria tal matéria ter sido levada aos factos provados.
48. Dever-se-á proceder à alteração da matéria provada e não provada no exato sentido indicado expressamente quanto a cada um dos pontos indicados no corpo das presentes alegações.
49. A douta sentença recorrida viola os artigos 217º, 236º, 483º, 595º, 627º a 632º, 635º, 637º, 798º do Código Civil, os artigos 73º, nº 1, 79º e 406º al. f) do Código das Sociedades Comerciais e os artigos 607º, 615º, nº 1, al. c) e al. d) do Código de Processo Civil.
TERMOS EM QUE e com o douto suprimento de Vexas., deverá ser recebido o presente recurso, o qual deverá ser considerado procedente por provado e, em consequência, com a reapreciação da prova produzida, ser alterada a matéria de facto nos termos ora peticionados e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida que considerou improcedente a pretensão da recorrente e ser a mesma substituída por outra que condene as recorridas nos termos inicialmente peticionados, e como é de inteira JUSTIÇA!”
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As Rés/recorridas responderam ao recurso e formularam as seguintes conclusões:
“1. Pretendendo a Recorrente impugnar o julgamento da matéria de facto, incidia sobre a mesma, sob pena de rejeição, um (duplo) ónus de (i) não só identificar (na motivação e nas conclusões) os factos concretos que considera erradamente julgados, (ii) mas também de, relativamente a cada um desses factos, indicar (na motivação) os concretos meios de prova que justificam uma decisão diversa.
1.1. Compulsada a alegação da Recorrente verifica-se, desde logo, que não indicou, para cada concreto facto que entende mal julgado, a concreta prova que exigiria decisão diferente, limitando-se a “despejar” meios de prova num primeiro bloco de texto e depois a indicar, num segundo bloco, os factos que considera que devem ser modificados, mas sem os ligar concretamente, conforme a lei exige;
1.2. Acresce que nas conclusões com que termina a sua alegação a Recorrente não faz qualquer referência aos concretos pontos da matéria facto que pretende ver alterados, limitando-se a fazer uma remissão genérica para o que indicou no corpo da alegação.
2. Assim, a Recorrente não cumpriu os ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que, em conformidade com a cominação prevista naquele comando legal e na linha da doutrina e da jurisprudência citadas no corpo desta peça, deve o recurso ser rejeitado na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.
3. Em todo o caso, e por cautela de patrocínio, importa verificar que, à luz da prova produzida, nenhum dos pontos da matéria de facto vertidos na sentença recorrida e indicados pela Recorrente deve ser alterado no sentido pugnado pela mesma.
4. Não merece qualquer censura a decisão do Tribunal a quo de julgar não provado que nenhuma das Recorridas se disponibilizou a pagar os créditos da Recorrente sobre empresas do Grupo AA, nos termos que constam do facto não provado n.º 6 e que se devem manter.
4.1. É o que desde logo resulta dos factos provados n.º 16 a 27, 31 a 35, 51 e 57 (e não impugnados na alegação da Recorrente), relativos aos antecedentes e contexto em que foram emitidos o e-mail de CC de fls. 20 e 21, a carta da 2.ª Recorrida de fls. 23 e a declaração do Banco BPI de fls. 26 e 27, nos termos dos quais resulta que, pretendendo a 2.ª Recorrida proceder à recuperação das empresas do Grupo AA, por via de perdão de parte do passivo e novas condições de pagamento do remanescente, injecção de novo capital e assunção de nova gestão, não faria qualquer sentido ter-se disposto a pagar a dívida da AA Energie, SARL à Recorrente Autora, sob pena de comprometer o sucesso da almejada recuperação.
4.2. Dos documentos juntos pela Recorrente, concretamente do e-mail de CC de fls. 20 e 21, da carta de fls. 23 e da declaração do Banco BPI de fls. 26 e 27 também não resulta qualquer assunção de dívida, como decorre do respectivo teor, correcta e detalhadamente analisado na sentença recorrida.
4.3. Tal tão pouco resulta dos depoimentos prestados, sendo que da conjugação dos depoimentos de CC, DD e EE resultou precisamente o inverso, nos termos assinalados e transcritos no corpo desta peça.
5. Da prova produzida também não resultou que o depósito de € 25.000,00 a que se refere a declaração do Banco BPI de 4.1.2019 a fls. 26 e 27 (Doc. 5 da contestação) tenha sido feito para amortização da dívida da AA Energie França, pelo que não deve aceitar-se a alteração dos factos provados n.º 33 e n.º 36 e do facto não provado n.º5 pretendida pela Recorrente.
5.1. Conforme atestado pelos depoimentos, designadamente de CC, DD e FF e também de GG, nos termos transcritos no corpo desta peça, o referido depósito foi uma exigência da (casa-mãe) da Recorrente para fazer a entrega de uns cabos já comprados pela AA e que estavam já pagos, razão pela qual aquela quantia foi registada como crédito sobre a Recorrente.
5.2. De resto, na troca de e-mails que antecedeu a realização do referido depósito e subsequente emissão da declaração de fls. 27, e que foi junta como Doc. 5 da contestação, nada é referido a respeito de que a respectiva quantia se destinava a uma amortização da dívida da AA Energie França, sendo irrelevante a referência vertida no e-mail de 10.1.2019 junto como Doc. 4, a fls. 24 (facto provado n.º 36), que é um e-mail interno da Recorrente ao qual as Recorridas são totalmente alheias.
6. Dos diversos depoimentos prestados resulta que também a matéria vertida nos factos provados n.º 39, n.º 41, nº 52 e n.º 56 relativa à situação da sociedade francesa AA Energie foi correctamente dada como provada, sendo que o alegado conhecimento pelas Recorridas de um processo de redressement judiciaire à data das negociações nem foi sequer anteriormente alegado.
7. Com efeito, para além do balanço daquela sociedade francesa junto com o requerimento probatório das Recorridas de 10.1.2022, e para que remeteram as testemunhas, apurou-se, dos depoimentos de CC, HH e de DD, nos termos indicados e transcritos no corpo desta peça, que houve uma total surpresa quanto à (má) situação financeira da sociedade AA Energie, não só por parte da 2.ª Recorrida, mas também da própria DD que era quadro da AA.
8. Por último, deve manter-se o teor do facto provado n.º55 e do facto não provado n.º4 nos termos dos quais a 1.ª Recorrida não teve qualquer intervenção nos contactos com a Recorrente que levaram à emissão do e-mail de 26.11.2018, de fls. 20 e 21 e da carta de 21.12.2018 de fls. 23, respectivamente por CC e pela 2.ª Recorrida Core Equity.
8.1. Como consta do respectivo teor, o e-mail de CC de fls. 20 e 21 não contém qualquer referência à 1.ª Recorrida e a carta de fls. 23 está expressamente assinada em representação da 2.ª Recorrida, assim como da declaração do Banco BPI de fls. 26 e 27 também consta única e expressamente a referência à 2.ª Recorrida.
8.2. Tratam-se de duas sociedades distintas, com escopos diferentes, conforme consta da factualidade dada como provada e não impugnada nos Factos provados n.º 2 a 7 (cf. ainda certidões do registo comercial das Recorridas juntas como Docs. 1 e 2 da contestação e depoimento de CC tal como citado no corpo desta peça), sendo que o facto de terem sede no mesmo local, ou de partilham correio electrónico e papel timbrado, ou ainda terem sócios ou administradores comuns não lhes retira a personalidade jurídica própria ou sequer permite indiciar que um acto praticado por uma delas deva ser imputado também à outra.
9. Demonstrou-se, assim que a 1.ª Recorrida não teve qualquer intervenção na factualidade em causa neste processo, pelo que bem andou a sentença recorrida a rejeitar a responsabilidade que lhe é assacada pela Recorrente.
10. Também carece de fundamento a tentativa ensaiada na alegação da Recorrente de responsabilizar pessoalmente os administradores das Recorridas por dívidas do Grupo da AA, não só à luz dos factos provados, mas também considerando que aqueles não são pura e simplesmente parte na presente acção.
11. É ainda infundada a alegação de que a 2.ª Recorrida se obrigou a pagar os créditos da Recorrente sobre a AA Energie por força carta que emitiu com data de 21.12.2018, a fls. 23, e que esta corresponde a uma carta de conforto forte.
11.1. Desde logo, do teor da mesma não decorre qualquer assunção da referida dívida da AA Energie, SARL perante a Recorrente por ausência de declaração de vontade da 2.ª Recorrida de se responsabilizar por dívida alheia;
11.2. O compromisso assumido na referida carta e que se veio efectivamente a concretizar foi o de fazer um investimento em empresas do Grupo AA (factos provados n.º 40, 50 , 52), não tendo esse investimento incluído a sociedade AA Energie, por se ter verificado, tal como demonstrado, que afinal essa sociedade francesa não tinha um crédito de sete milhões de euros sobre um seu o cliente referido mas antes uma dívida de cerca de 2 milhões, o que determinou a sua liquidação (facto provado n.º 41).
11.3. Acresce que, ao contrário do sustentado pela Recorrente, a referida carta de 21.12.2018 assinada pela 2.ª Recorrida, a fls. 23, não constitui uma carta de crédito forte, pois para tal seria necessário que constasse, designadamente do seu texto, expressões conclusivas sobre a assunção da obrigação de pagamento, o que não é o caso, nem nunca foi essa a intenção 2.ª Recorrida, conforme se demonstrou.
12. Tão pouco do e-mail de CC a que alude o facto provado n.º27 se pode retirar qualquer assunção de dívida por parte das Recorridas; para além do contexto em que se demonstrou que tal e-mail foi emitido, não resulta do respectivo teor que o seu autor pretendeu dizer que as Recorridas ou uma delas pagaria o crédito da Recorrente sobre a AA Energie, SARL, mas sim e apenas que, com a segunda tranche do investimento que estava em curso na AA, tal pagamento de créditos seria feito com montantes decorrentes de tal investimento.
13. Por fim, tendo em consideração a factualidade demonstrada a respeito do depósito de € 25.000,00 a que alude o facto provado n.º 33 (incluindo o respectivo teor, contexto e forma como foi contabilizado na AA) é manifesto que do mesmo também não se pode retirar a assunção pelas Recorridas da dívida da AA Energie à Recorrente.
14. Termos em que deve o presente recurso ser rejeitado, confirmando-se a sentença recorrida, com o que V. Exas. farão JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões a decidir são as seguintes:
a) Impugnação da decisão de facto;
b) Se importa revogar a decisão recorrida e, em consequência, condenar as Rés nos termos pugnados pela Autora.
Fundamentação de Facto
Em 1ª instância foi fixado o seguinte quadro factual:
Factos Provados
1 - A Autora dedica-se à atividade de prestação de serviços no âmbito da eletricidade industrial e naval, comércio e indústria de artigos elétricos, eletrónicos, mecânicos, eletromecânicos para fins industriais, domésticos, civis e comércio para fins militares e, ainda à importação e exportação dos mesmos bens e serviços.
2 - A Ré “Core Capital - Sociedade de Capital de Risco, S. A.” foi constituída em 8 de fevereiro de 2017 - então sob a denominação social de “Core Capital Partners, S. A.” -, sendo o seu atual objeto social a realização de investimentos de capital de risco, gestão de fundos de capital de risco e investimento em unidades de participação em fundos de capital de risco e, como objeto acessório, o desenvolvimento das atividades que se revelem necessárias à prossecução do seu objeto principal, designadamente em relação às sociedades por si participadas ou a fundos de capital de risco, em qualquer um dos casos nos termos permitidos por lei.
3 - A primeira Ré, aludida em 2 -, vincula-se com a assinatura: a) de dois administradores; b) de um administrador delegado; c) de mandatário(s), nos termos dos respetivos mandatos.
4 - Os atuais administradores da “Core Capital - Sociedade de Capital de Risco, S. A.” são, desde 10.10.2017, os seguintes: II, JJ, CC e BB.
5 - A Ré “Core Equity, S. A.” foi constituída em 29.10.2018, sendo o seu objeto o de prestação de serviços de consultoria económico-financeira, detenção de participações sociais e prestação de serviços de suporte à gestão.
6 - A Ré “Core Equity, S. A.” vincula-se através da assinatura: a) de dois administradores; b) do administrador delegado; c) de um procurador.
7 - Os atuais administradores da “Core Equity, S. A.” são, desde a sua constituição, os seguintes: CC, II e BB.
8 - A “AA- Energia e Sistemas, S. A.”, com sede na Rua de ..., em Vila Nova de Gaia, foi constituída em 30.8.1982, cifrando-se o seu objeto no seguinte: comércio em geral e, designadamente o de máquinas e seus acessórios, engenharia e fabricação de aparelhagem elétrica e mecânica e montagem de instalações elétricas, mecânicas e de energia.
9 - A “AA - Energia e Sistemas, S. A.” vincula-se com a assinatura de dois administradores ou de um ou mais mandatários.
10 - Os atuais administradores da sociedade “AA - Energia e Sistemas, S. A.” são, desde 24.9.2019, os seguintes: CC, HH, KK, LL e MM.
11 - A sociedade “AA - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A.” foi constituída em 19.7.2007, tendo por objeto social a gestão de participações sociais como forma indireta de exercício de atividade económica.
12 - A sociedade “AA - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A.” vincula-se através da assinatura: de dois administradores; um ou mais administradores com poderes delegados; um ou mais mandatários, nos termos dos respetivos mandatos.
13 - Os atuais administradores da sociedade “AA - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A.” são os seguintes: CC (Presidente do Conselho de Administração desde 23.4.2020); HH; MM; KK e LL.
14 - A Autora era, desde momento não concretamente apurado, um dos fornecedores das sociedades integrantes do Grupo AA.
15 - Do “Grupo AA” faziam parte, além das sociedades aludidas em 8 - a 13 - e outras, a sociedade “AA Energie, SARL”, com sede em França.
16 - Em novembro de 2018 a Autora tinha, para entrega à sociedade “AA - Energia e Sistemas, S. A.” dois cabos elétricos, integralmente pagos por esta.
17 - No momento aludido em 16 -, a Autora comunicou à “AA - Energia e Sistemas, S. A.” que não entregaria os cabos sem a garantia de pagamento dos seus créditos sobre a “AA Energie, SARL” e sobre a “AA- Energia e Sistemas, S. A.”.
18 - À data aludida em 16 - a 17 -, a “AA - Energia e Sistemas, S. A. tinha em curso um projeto, denominado “ Hyperion de Évora “, que se traduzia na construção de um parque fotovoltaico, para cuja execução eram necessários os cabos aludidos em 16 -, sob pena - não sendo fornecidos, de eventual atraso na execução do projeto ou sua não execução/incumprimento para com o dono da obra e consequências inerentes possíveis.
19 - À data aludida em 16 - e segs., o Grupo AA encontrava-se numa situação económica difícil, estando as empresas que o constituíam numa situação de rutura de tesouraria ou falta de liquidez em sede de tesouraria e com um passivo total de cerca de 24 milhões de euros.
20 - A Ré “Core Equity, S. A.” encontrava-se, nessa altura, interessada em poder vir a investir no Grupo AA e na sua recuperação, por ser um grupo muito antigo em Portugal e ter, em sua opinião, possibilidade de recuperação.
21 - Por essa razão, a segunda Ré encontrava-se, à data aludida em 16 - e segs., a investir na execução do projeto referido em 18 -, da mesma execução ou cumprimento dependendo uma futura eventual aquisição - ou não -, pela “Core Equity, S. A.”, de uma percentagem do capital social no Grupo AA e, em seu entender, a possibilidade de recuperação do referido grupo de empresas que o integravam.
22 - O investimento da “Core Equity, S. A.” no projeto referido em 18 - estava a ser feito e foi feito mediante a aquisição, por aquela, dos créditos detidos pela “AA- Energia e Sistemas, S. A.” sobre o dono da obra aludida e utilização de tais valores no desenvolvimento/execução do aludido projeto de construção do parque fotovoltaico, com um aporte inicial de 3,5 milhões de euros que, posteriormente, chegou ao valor de cerca de 4 milhões de euros, investido pela segunda Ré em tal projeto.
23 - Na sequência do aludido em 22 - e com vista à finalização da execução do projeto Hyperion, em Évora, pela “AA - Energias e Sistemas”, a Ré “Core Equity, S. A.” depositava - à medida das necessidades de financiamento da execução do mesmo projeto, numa conta tripartida - ou como tal denominada e suscetível de controle e/ou movimentável ou controlada quer pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.”, quer pela dona da obra referida quer, por último, pela própria “Core Equity, S. A.” - os valores para o efeito necessários, sendo os pagamentos necessários à conclusão de tal projeto efetuados pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.” com tais valores aportados pela ora segunda Ré a tal conta e comprovados, a esta, pela sociedade executora do projeto, de forma a garantir que os valores referidos não eram utilizados para outros fins.
24 - A decisão da Ré “Core Equity, S. A.” de vir - ou não - a adquirir participações sociais no capital das sociedades que integravam o Grupo AA dependia da concretização/execução/cumprimento tempestiva(o) do projeto de execução do parque fotovoltaico aludido em 18 - e, assim, de a referida Ré vir a concluir pela capacidade – ou não - de recuperação de tal grupo.
25 - No seguimento do interesse da Ré “Core Equity, S. A.” num eventual investimento e recuperação das empresas daquele grupo, a segunda Ré acompanhou a execução do projeto Hyperion com regularidade e as necessidades de aporte económico necessário à sua execução/cumprimento, em sede de pagamentos a fornecedores e outros a tal execução necessários, fazendo tal acompanhamento mediante a prévia informação, pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.”, de quais os valores necessários para aquisição de bens e serviços essenciais à sua execução, financiamento do correspondente valor e verificação da sua utilização em tais fins.
26 - Com vista ao acompanhamento referido em 25 -, a Ré “Core Equity, S. A.” criou uma equipa de acompanhamento da execução de tal projeto, a qual incluía, inclusivamente, engenheiros eletromecânicos.
27 - Face à intenção manifestada pela Autora de não entrega dos cabos referidos em 16 -, a “AA - Energia e Sistemas, S. A.” solicitou auxílio à “Core Equity, S. A.”, com vista ao desbloquear de tal situação e, nessa sequência, CC dirigiu a NN, da Autora, um email, datado de 26.11.2018 e expedido através do endereço, m...@....pt, email em que o primeiro comunicou ao segundo o seguinte:
“Caro NN,
Sei que falou há pouco com o EE e, na sequência dessa conversa, vinha insistir para que de forma célere encontrássemos uma solução para a questão que levantou – um tema é a devida entrega dos cabos já pagos, outro a dívida da AA Portugal (16 K) e outra ainda, bem distinta, são os créditos da Kabelpower sobre a AA Energie, em França…
Mas talvez o EE não tenha sido completamente claro no enquadramento e, em particular, no sublinhar dos riscos que podem decorrer da não entrega em tempo dos cabos encomendados, apesar do facto de a Kabelpower ter recebido o pagamento total.
Essa decisão tem riscos para a Kabelpower: torna-a responsável pela possível quebra do contrato de EPC de Évora pela AA, causando prejuízos a várias das partes interessadas.
Julgo que é importante partilhar consigo o que aqui está em causa:
 O investimento da Core Capital na AA está, nesta fase, confinado ao projecto Hyperion Évora. Dependendo da boa execução do mesmo, e no prazo, o fundo Core Restart irá em seguida tomar uma percentagem maioritária no Grupo AA, tornando-se assim o seu principal acionista, operação que inclui as empresas de outras geografias (tais como a AA Energie, em França);
 Considerando a alocação desta primeira tranche do investimento da CoRe no projecto Hyperion de Évora, os 122 mil euros + 14 mil euros pagos pela AA à Kabelpower (com o apoio do investimento inicial do fundo CoRe Restart) cobrem integralmente o custo dos cabos encomendados, tal como consta da nota de encomenda da AAPortugal e não da AA Energie, em França;
 Este pagamento foi feito e era devido pela AA Portugal e por isso não pode ser legal nem financeiramente considerado como devido e pago por qualquer outra empresa (nomeadamente a AA Energie, em França) sem o acordo prévio, formal e válido da AA Portugal;
 Note: a CoRe Capital, como lhe dissemos, entende bem a preocupação da Kabellpower face ao processo de “ redressement judiciaire à l’ ègard “ da AA que entretanto se abriu em França, e declara-se naturalmente comprometida com o pagamento aos seus principais fornecedores presentes nesse processo (uma categoria entre os quais incluímos, naturalmente, a Kabelpower);
Os riscos de a Kabelpower não entregar os cabos, depois de ter recebido o pagamento total por eles, tem um conjunto importante de riscos:
 A AA Portugal falhará prazos decisivos no planeamento do EPC e consequentemente falhará o prazo final de entrega do projecto no tempo contratado;
 Em resultado disso, a CoRe não completará a sua segunda tranche de investimento o que certamente declarará insolvente a JdC Energie, em França;
 A consequência dessa insolvência implica que a Kabelpower não reaverá o crédito de 0,566 M junto da AA Energie, em França (crédito esse, é importante realçar, que a CoRe reconhece), uma vez que o pagamento de 122 K + 14 K feito pela JdC Portugal à Kabelpower não pode ser, legal nem financeiramente, considerado como um pagamento devido pela AA Energie, em França.
 Na pouco provável eventualidade de a Kabelpower decidir não entregar os cabos, a AA Portugal ver-se-á forçada a exigir judicialmente à Kabelpower que devolva de imediato os 122K + 14K pagos pelos cabos mas que não foram seguidos da sua entrega imediata na JdC Portugal;
 Adicionalmente, a Kabelpower poderá ainda ser judicialmente responsabilizada pela não entrega do projeto Hyperion Évora no devido tempo, dada a responsabilidade que tem na decisão de não entregar os cabos, apesar de todos os avisos e explicações;
Caro NN, estamos do mesmo lado. A CoRe não pode ser responsabilizada pela situação da AA Energie em França.
No entanto e como este email confirma por escrito (e já foi falado anteriormente), a CoRe compromete-se com o pagamento total dos crétidos da Kabelpower junto da AA Energie, em França, na concretização da segunda tranche do seu financiamento na JdC.
Conhecemos bem a reputação da Kabelpower na cadeia de fornecimentos da indústria fotovoltaica, e estamos certos que conhece bem a reputação da CoRe Capital e dos seus sócios – somos aliados perfeitos para permitir que a relação entre a Kabelpower e a AA possa manter-se e continuar frutífera.
A janela para resolvermos este tema é curta, pelo que sugerimos uma conversa telefónica ainda hoje de modo a encontramos juntos uma forma de mitigar os riscos da Kabelpower neste atraso injustificado na entrega dos cabos.
Parece-nos existir pelo menos um caminho evidente para essa resolução célere.
Sugerimos, se assim entender, que tenha os departamentos legais e financeiros da Kabelpower presentes na call.
Obrigado
CC
Com os melhores cumprimentos,
CC
Senior Partner “
28 - No final do ano de 2017 a situação económica da “AA - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A.” era negativa, num montante aproximado de cerca de 19 milhões de euros.
29 - Por entender ser possível a sua recuperação económica e financeira, a “AA - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A.” instaurou um processo especial de revitalização, em que foi requerente e que corria, em 16.9.2019, seus termos no 6º Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia sob o nº 2384/19.8T8VNG-A.
30 - No processo aludido em 29 - foi homologado o acordo extrajudicial de recuperação, por sentença de 12.7.2019, transitada em julgado em 30.7.2019, vinculando o mesmo acordo todos os credores, mesmo os que não participaram nas respetivas negociações, acordo esse com o teor constante do documento de fls. 533 a 562 dos autos, cujo teor, no mais, se dá por reproduzido e constante da certidão que constitui o documento nº 4 pelas Rés junto aos autos com a sua contestação, entrado em juízo em 3.7.2020.
31 - Na sequência do aludido em 16 - a 27 - e após negociações com a Autora, a Ré “Core Equity, S. A.” emitiu, com data de 21 de dezembro de 2018, um documento, em papel timbrado da CORE CAPITAL, denominado de “Carta de Reconhecimento de Crédito “, assinado por BB e CC, na qualidade de seus Administradores e enviado para a Autora por meio de email endereçado por EE, da “Core Equity, S. A.”, através do seguinte endereço de email: f...@....pt, documento esse com o seguinte teor:

Carta de reconhecimento de crédito
Exmos Senhores,
Para os devidos efeitos se declara que, conforme os termos do acordo de investimento concluído a 29 de Outubro de 2018, a sociedade CORE EQUITY SA afirma a sua intenção de investir no Grupo AA um montante de 9.609.166 EUR.
Adicionalmente a CORE EQUITY reconhece a existência de um conjunto de dívidas a fornecedores considerados essenciais ao desenvolvimento do negócio. Entre esses fornecedores considerados essenciais encontra-se a Kabelpower, com a qual a sociedade Francesa AA Energie - SARL, à data 21/12/2018, tem uma dívida com valores diferentes registados pelas duas sociedades, AA Energie SARL (566.433,33EUR) e Kabelpower (626.963,32 EUR), que deverá ser ajustada oportunamente.
A CORE EQUITY não só reconhece a existência das dívidas junto da Kabelpower como declara a sua firme intenção de uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar em qualquer cenário o pagamento das dívidas da AA à KABELPOWER.
Pelo Core equity,
(assinaturas)”.
32 - Apesar da emissão do documento aludido em 31 -, a Autora continuou a não proceder à entrega dos cabos referidos em 16 - à “AA - Energia e Sistemas, S. A.”.
33 - Na sequência da continuação da não entrega dos cabos já pagos pela Autora à “AA - Energia e Sistemas, S. A.” e com vista à sua entrega, a Autora - por a respetiva empresa mãe (alemã) ter entendido que o teor do documento referido em 31 - não era uma garantia suficiente - exigiu um pagamento e, nessa sequência, a Ré Core Equity efetuou um depósito no Banco BPI, S. A., no valor de 25.000,00 Euros, à ordem da Autora, depósito esse efetuado como caução relativamente à entrega dos cabos e cujo valor a Autora exigiu para proceder à sua entrega.
34 - Na sequência do aludido em 33 - e com data de 4.1.2019 -, o Banco BPI emitiu declaração com o seguinte teor:
“Declaração
A pedido do(s) interessado(s) o Banco BPI, S. A., com sede no Porto, na Rua ..., matriculado na Conservatória do Registo Comercial do Porto, com o número de matrícula e Pessoa Coletiva 501..., com o capital social de mil duzentos e noventa e três milhões, sessenta e três mil, trezentos e vinte e quatro euros e noventa e oito cêntimos, confirma que a sociedade CoRe Equity, S. A., pessoa colativa número 515..., efectuou neste Banco um depósito com o nº 5-5677717-001 à ordem de Kabelpower Portugal - Comércio e Indústria, S. A., pessoa coletiva número 509..., no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) no âmbito do fornecimento dos seguintes equipamentos, melhor identificadas nas faturas cujas cópias se juntam como anexos I e II (“Equipamentos”).
Mais se declara que, de acordo com as instruções da entidade depositante, o Banco BPI apenas permitirá a movimentação pela entidade beneficiária do depósito constituído, mediante a verificação de uma das seguintes duas condições: (i) a entidade depositária apresentar a este Banco uma declaração de que a entidade beneficiária cumpriu as obrigações assumidas de entrega de Equipamento; ou (ii) a entidade beneficiária comprovar documentalmente o cumprimento da mesma mediante a apresentação de um dos seguintes documentos: cópia do documento declaração de expedição ou CMR (Standardized document for cross-board transporto of cargo) elaborado pela Kabeltec GMBH com sede na Alemanha com indicação da morada de entrega e indicação de destino onde consta as quantidades entregues; ou cópia da Guia de Remessa (delivery note) elaborada pela Kabeltec GMBH com indicação do equipamento referido nas faturas em anexo e indicação do destino.
Os destinos em ambos os documentos será a empresa AA (R. ...) ou o Parque Fotovoltaico de ... (Herdade ..., ..., Évora, ... Torre de Coelheiros) em construção pela empresa AA.
Se não se verificar nenhuma destas condições até 30/01/2019, o depósito poderá ser livremente movimentado pela entidade depositante.
Qualquer pedido de movimentação do referido depósito que não respeite as condições previstas nos parágrafos anteriores será recusado pelo Banco BPI.
(Assinaturas)”.
35 - Na sequência do aludido em 33 - e 34 -, a Autora procedeu, em data não concretamente apurada, à entrega dos cabos à “AA - Energias e Sistemas, S.A.” e o valor de 25.000,00 Euros foi recebido pela aqui Autora, por meio de transferência para a mesma efetuada pelo Banco BPI, S. A., com data valor de 30.1.2019.
36 - Por email dirigido ao Dr. OO, inicial mandatário da Autora, PP, funcionário da Kabelpower, comunicou ao mesmo, no ora relevante, que a quantia de 25.000,00 Euros liquidada pela “Core Equity, S. A.” à demandante através do depósito caução referido em 34 - a 35 - seria para amortizar a dívida da AA Energie França, cujo extrato atualizado lhe enviaria após a receção de tal montante.
37 - No âmbito do plano de recuperação do Grupo AA, a Ré “Core Equity, S. A.” pretendia instaurar um processo de reestruturação ou revitalização de empresas para cada uma das empresas do grupo aludido, ainda em situação de atividade e que considerasse viável, incluindo a AA Energie, francesa.
38 - As Rés entendiam que a “AA Energie, SARL” (com sede em França) seria recuperável por a mesma ter, de acordo com os documentos apresentados às mesmas, um alegado crédito, sobre um seu cliente, no valor de cerca de sete milhões de euros.
39 - Por a “AA Energie, SARL” apresentar atrasos de pagamentos superior a 60 dias, foi, entretanto, instaurado contra a mesma, em data não concretamente apurada mas nos finais de 2018, um processo de “redressement judiciaire”, em França.
40 - A intenção da Ré “Core Equity, S. A.” de vir a investir no Grupo AA e também na sociedade “AA Energie, SARL” foi comunicada ao processo aludido em 39 - e, tendo o Administrador Judiciário em tais autos solicitado o pagamento de uma quantia de 100.000,00 Euros - com vista a comprovar a intenção de recuperação da empresa, mediante a tomada de participações sociais pela Ré “Core Equity, S. A.” -, a “AA- Energia e Sistemas, S. A.” pagou/depositou, com dinheiro para o efeito à mesma aportado pela Ré “Core Equity, S. A.” àquela, o referido montante de 100.000,00 Euros.
41 - Posteriormente e em sede do processo referido em 39 - e 40 -, verificou-se que, afinal, a “AA Energie, SARL” não tinha um crédito de sete milhões de euros sobre o cliente referido em 38 - e sim ter a mesma, para com tal cliente, um débito de cerca de 2 milhões, o que levou quer à decisão da “Core Equity, S. A.” de desistir de investir em tal sociedade do grupo, mediante a aquisição de capital social ou tomada de posição social em tal empresa, quer à decisão do administrador judiciário francês no sentido da liquidação da sociedade francesa, em finais de 2019.
42 - No processo aludido em 39 - e segs. - pendente no Tribunal de Comércio de Nanterre, em França, com o nº 2018JOO949 - e por notificação efetuada através de carta de 20 de dezembro de 2018, foi a Autora notificada para reclamar o seu crédito em tais autos, tendo-o feito e vindo a ser reconhecido à mesma, ulteriormente, um crédito sobre aquela sociedade, no valor de 724.634,20 Euros.
43 - A “AA - Energia e Sistemas, S. A.” instaurou, em 14.3.2019, um processo especial de revitalização que correu termos no 2º Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia sob nº 2384/19.8T8VNG.
44 - No processo aludido em 43 - foi, por sentença de 12.7.2019 e transitada em julgado em 30.7.2019, homologado o plano de recuperação apresentado pela “AA – Energia e Sistemas, S. A.”, processo em que à aqui Autora foi reconhecido um crédito comum de 17.524,25 Euros.
45 - Em sede do plano de recuperação aludido em 44 -, cujo teor, no mais, se dá por reproduzido, os créditos comuns (entre os quais o da Autora sobre a “AA -Energia e Sistemas, S. A.”) eram objeto de uma remissão ou perdão, quanto a cada um, de 66,2% e de perdão ou remissão dos juros moratórios, comissões, custos e penalizações corridos e não pagos, não vencendo juros o valor remanescente de cada crédito.
46 - No âmbito do aludido plano de recuperação, os créditos comuns remanescentes deviam ser pagos pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.” a tais credores no prazo de oito anos a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação respetiva, sendo, em cada ano, a liquidar a quantia correspondente a 12,5% do respetivo valor remanescente.
47 - Com datas de 14 de agosto de 2020 e de 14 de agosto de 2021 a “AA - Energia e Sistemas, S. A.” pagou à Autora, por meio de transferência bancária, em cada ano, a quantia de 728,54 Euros e, nos anos de 2022 e de 2023, procedeu também a tal pagamento, em conformidade com o plano de recuperação homologado quanto à mesma e aludido em 43 - a 46 -.
48 - No âmbito das relações comerciais entre a Autora e as empresas do Grupo AA e anteriores à intenção da Autora de não entrega dos cabos à “AA - Energias e Sistemas, S. A.” aludida em 16 -, as encomendas eram feitas por cada uma destas sociedades à Autora e o respetivo pagamento era feito à Autora pela empresa de tal grupo que tinha efetuado cada uma das encomendas.
49 - As pessoas físicas, das empresas do Grupo AA, que intervinham na efetivação das encomendas à Kabelpower e pagamentos por cada uma das empresas à mesma, eram as mesmas pessoas.
50 - O projeto Hyperion, em Évora, foi cumprido/concluído pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.”, tendo pela Ré “Core Equity, S. A.” sido recebido o valor do financiamento aludido em 22 -, face à aquisição dos créditos da “AA- Energia e Sistemas, S.A.” pela segunda Ré e inerentes pagamentos pela dona da obra, valor posteriormente reinvestido pela Ré “Core Equity, S. A.” na recuperação de parte das empresas do Grupo AA, S. A., após os planos de recuperação das mesmas terem sido aprovados no âmbito dos respetivos PER.
51 - À data em que a Autora exigiu um pagamento de um valor - que se veio a cifrar em 25.000,00 Euros - para entregar os cabos elétricos encomendados pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.” e por esta já pagos àquela, a “AA - Energia e Sistemas, S. A.” já não conseguiria lograr a encomenda dos mesmos cabos a outro fornecedor a tempo de se concluir tempestivamente o projeto Hyperion nem, aliás, o conseguiria fazer por preço idêntico e sim e apenas por outro mais elevado.
52 - A Ré “Core Equity, S. A.” fez, no total, um investimento em empresas do Grupo AA no valor de cerca de 10 milhões de euros, investimento traduzido, numa fase inicial, no valor de cerca de 4 milhões de Euros para a conclusão da execução do projeto Hyperion Évora e, depois da homologação dos planos de reestruturação da “AA - Sociedade de Gestão de Participações Sociais, S. A.” e da “AA - Energia e Sistemas, S. A.”, de cerca de 6 milhões de euros, na aquisição de capital social das mesmas sociedades, investimento que não abrangeu a AA Energie, em França por, entretanto, ter sido determinada a sua liquidação judicial, face à inviabilidade da sua recuperação por os pressupostos económico-financeiros para tal conhecidos pela Ré “Core Equity, S. A.”, em fase inicial, não serem verdadeiros ou se não verificarem.
53 - Até à conclusão do projeto do parque fotovoltaico em Évora pela AA - Energia e Sistemas e à homologação dos planos de recuperação da “AA - Sociedade de Gestão de Participações Sociais, S. A.” e “AA - Energia e Sistemas”, a “Core Equity, S. A.” nunca participou das decisões de gestão daquelas empresas, nem do respetivo conselho de administração, o mesmo sucedendo com a primeira Ré.
54 - No mais, dão-se por reproduzidos, para todos os efeitos, o teor dos documentos constantes de fls. 32 a 41, 44 a 49, 56 a 185 e com continuação a fls. 188 a 317 dos autos, bem como o teor da certidão da competente C. R. Comercial quanto à Autora (a fls. 676, verso a 679 dos autos) e dos documentos pelas Rés juntos aos autos, quer com a sua contestação, quer com o requerimento entrado em juízo em 10.1.2022.
55 - A primeira Ré não teve qualquer intervenção nos contatos com a Autora que levaram à emissão dos documentos referidos em 27 - e 31 - por CC e pela “Core Equity, S. A.”, respetivamente.
56 - Nenhuma das Rés teve qualquer intervenção ou participação no capital da “AA Energie, SARL”, nem nenhum dos seus administradores foi da mesma administrador.
57 - A Autora sabia que a entrega dos cabos aludidos em 16 - supra à “AA- Energia e Sistemas, S. A.” era essencial ao cumprimento do projeto Hyperion, de Évora - por aquela em execução - e sabia ainda que aquela não conseguiria obter o fornecimento de cabos, por terceiro, a tempo útil ao cumprimento dos prazos contratuais de tal projeto uma vez que os cabos à mesma já pagos pela “AA – Energia e Sistemas, S. A.” se encontravam já produzidos por, inicialmente, se destinarem à sociedade “AA Energie, SARL”.
58 - A Autora mantém, ainda hoje, relações comerciais com empresas do Grupo AA mas tais relações comerciais não têm, hoje, a dimensão/volume que tiveram anteriormente, sendo de muito menor dimensão.
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Factos Não Provados
1 - Que as relações comerciais entre a Autora e as sociedades comerciais do Grupo AA remontem a 2016.
2 - Que desde meados de 2018 ambas as Rés tenham manifestado interesse em adquirir participações sociais nas empresas do Grupo AA e passado a acompanhar a sua gestão, a tomar decisões comerciais e financeiras quanto às mesmas e a assumir perante terceiros (incluindo a Autora) tais decisões.
3 - Que em novembro de 2018 a Autora tenha manifestado aos administradores das Rés a sua preocupação quanto ao pagamento dos montantes em dívida à mesma pela “AA - Energia e Sistemas, S. A.” e “AA Energie, SARL” e a necessidade de prestação de garantias quanto a tais montantes em dívida para a entrega dos cabos, já pagos à Autora pela “AA- Energia e Sistemas, S. A.”.
4 - Que o email aludido em A), 27 -, tenha sido dirigido a GG, da Autora, pelas Rés.
5 - Que entre a Autora e as Rés e/ou a “Core Equity, S. A.” tenha sido acordado que o pagamento do valor dos 25.000,00 Euros em A), 33 - a 36 - fosse uma garantia por conta da dívida da AA Energie francesa para com a Autora ou para a respetiva amortização e/ou que ambas as Rés ou apenas a Core Equity, S. A. reiteraria(m), por escrito, a entendida, pela Autora, assunção de dívida alegadamente formalizada nos termos aludidos em A), 27 -.
6 - Que as Rés ou a Ré Core Equity, S. A. se tenha(m) disponibilizado para pagar os créditos da Autora sobre as empresas do Grupo AA.
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Da impugnação da decisão de facto
De acordo com o disposto no art.º 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”, explicando António Abrantes Geraldes2 que esta norma tem cariz genérico, “de tal modo que tanto se reporta aos recursos em que sejam unicamente suscitadas questões de direito, como àqueles que também envolvam a impugnação da decisão da matéria de facto. Em qualquer caso, cumpre ao recorrente enunciar os fundamentos da sua pretensão no sentido da alteração, anulação ou revogação da decisão, rematando com as conclusões que representarão a síntese das questões que integram o objeto do recurso”.
Tendo presentes os ónus que recaem sobre o recorrente que pretende impugnar a decisão relativa à matéria de facto (art.º 640º do CPC) e/ou também a matéria de direito (art.º 639º, nº 2, do CPC), o recurso deve individualizar cada uma das impugnações, tanto mais que a reapreciação da decisão de mérito pressupõe a fixação definitiva do quadro factual relevante para a decisão.
No que em particular diz respeito à impugnação da decisão de facto, dispõe o referido art.º 640º:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)”.
Relativamente ao recurso que envolva impugnação da decisão da matéria de facto, salienta, ainda, António Abrantes Geraldes3, que:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (…)” - sublinhados nossos.
Nos termos previstos no art.º 662º, nº 1, do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”,
Os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto encontram-se, como vimos, enunciados no art.º 640º, do CPC. No nº 1, encontramos especificados os ónus ditos primários, que se traduzem na indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (al. a); na concretização dos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al. b); na designação da decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c).
No nº 2 da mesma norma, são enunciados os ónus ditos secundários, relevando o previsto na al. a), do nº 2, de acordo com o qual, nos casos em que os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, constitui ónus do recorrente, sob pena de rejeição imediata do recurso na respetiva parte, a indicação exata das passagens da gravação em que funda o recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A necessidade de cumprimento dos referidos ónus por parte do recorrente surge assinalada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 12/2023, de 17.10.2023, onde podemos ler que, “… no art.º 640, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, consta do n.º1, Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgado; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida; e quanto ao ora em análise, c) A decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Apontados como ónus primários, pois têm como função delimitar o objeto do recurso, fundando os termos da impugnação, daí a sua falta traduzir-se na imediata rejeição do recurso, em contraposição aos ónus secundários, previstos no n.º 2 do art.º640 relativos à alínea b) do n.º 1, enquanto instrumentais do disposto no art.º 662, que regula a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto pelos Tribunais da Relação, permitindo assim, um efetivo segundo grau de jurisdição no conhecimento das questões de facto, na procura da sua melhor realização, em termos relevantes isto é, na busca da verdade material com a decorrente justa composição dos litígios.”
Prosseguindo, decidiu ainda aquele mesmo Acórdão Uniformizador que, “Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.
O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do artigo 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”, tendo, neste seguimento, procedido à uniformização da jurisprudência nos seguintes termos: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
No caso vertente, a Autora /Recorrente não cindiu totalmente a impugnação da decisão de facto da impugnação da matéria de direito, decorrendo da leitura conjugada das alegações e da síntese conclusiva que o cerne do recurso alicerça-se no inconformismo perante a decisão recorrida, no plano do direito, constituindo evidência desta conclusão a circunstância de salientar, por diversas vezes, que a matéria de facto julgada como provada conduz necessariamente a decisão distinta daquela que foi proferida em 1ª instância.
Na sequência do que se deixou exposto a propósito do cumprimento dos ónus que recaem sobre o recorrente que impugna a decisão de facto, e tendo presente que é a síntese conclusiva que delimita o objeto do recurso, temos como adquirido que é crucial que o recorrente especifique nas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, Não o fazendo, o recurso terá de ser rejeitado.
No caso, no ponto 48 das conclusões, o recorrente procedeu à dita especificação por remissão para o alegado na parte final das suas alegações recursivas, onde, a par dos factos que indicou como incorretamente julgados, deixou também especificada a decisão diversa por que pugna relativamente a cada um deles.
Pondo de parte formalismos exacerbados, a indicação dos concretos pontos impugnados feita por remissão para o corpo das alegações, onde os mesmos foram devidamente especificados, permite-nos, no caso, e sem esforço, delimitar o objeto do recurso, tendo-se, consequentemente, por cumprido o referido ónus.
Porém, a recorrente não cumpriu o ónus a que se reporta a al. b), do nº do art.º 640º, na medida em relativamente a cada um dos factos impugnados, ou conjunto de factos estritamente conexionados entre si, não indicou os concretos meios probatórios que imporiam a decisão diversa por si preconizada.
E também não cumpriu o ónus da al. a), do nº 2, do mesmo normativo. A este respeito, e assinalando sobretudo o seu inconformismo com a decisão do ponto de vista jurídico, a recorrente foi tecendo considerações ao longo das alegações recursivas sobre determinados excertos de depoimentos (quer de parte, quer de testemunhas), sem cumprir, desde logo, e com a necessária exatidão, o estipulado naquela norma, quer no que diz respeito à necessidade de indicação das passagens da gravação em que funda o recurso (a alusão “a voltas”, seguido de indicação de minutos, sem qualquer outra referência, designadamente aos ficheiros respetivos das gravações, por referência a cada uma das sessões de julgamento, não cumpre suficientemente o ónus imposto pelo legislador, que visou e evitar que o Tribunal tivesse de se substituir às partes na identificação das passagens da gravação tidas como relevantes pelo recorrente), quer no que diz respeito à transcrição dos excertos das passagens relevantes, porquanto, e sendo as declarações precedidas de perguntas, não cuidou de proceder à transcrição exata daquelas, antes tendo optado por proceder a um resumo das mesmas ou procedido a uma mera descrição subjetiva do “enquadramento” no qual surge a resposta transcrita, situações que não permitem uma análise objetiva das passagens das gravações concretamente visadas.
Ressalta, no entanto, o incumprimento do ónus previsto na al. b), do nº 1, do art.º 640º. Como se disse, é ónus do recorrente indicar os meios de prova que conduzem a decisão distinta relativamente a cada um dos factos impugnados (ou conjunto de factos desde que entre eles exista uma estrita conexão), o que implica, também, fundamentar em que medida tais meios de prova determinam uma decisão diferente, face à fundamentação da decisão recorrida (o que, no caso, também não foi cumprido relativamente a cada um dos factos), não recaindo e não podendo recair sobre o Tribunal de recurso o dever de decidir, melhor “adivinhar”, em que passagens de gravações (no caso, incorretamente assinaladas) ou respostas transcritas (que no caso também não cumprem as regras objetivas de uma transcrição de depoimentos) vem fundada a reapreciação de determinado facto ou factos, não podendo ter-se como cumprido o dito ónus – ainda que estivesse devidamente cumprido aquele a que se reporta a al. a), do nº 2, do art.º 640º - quando o recorrente opta por discriminar passagens das gravações que pretende ver reapreciadas ao longo das alegações, alicerçando-se nelas também para justificar o invocado erro de direito, e sem estabelecer qualquer correspondência específica entre tais passagens e os pontos concretos de facto cuja decisão pretende ver alterada, limitando-se a indicar, a final, todos os pontos factuais concretamente impugnados e a decisão por que pugna relativamente a cada um deles.
Pelo exposto, decide rejeitar-se a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Consequentemente, os factos a ponderar em sede de decisão de mérito são os que se deixaram descritos no relatório deste acórdão e os que foram fixados em 1º instância.
Fundamentação de Direito
No plano jurídico, conclui a recorrente que contrariamente ao decidido, deve considerar-se, por um lado, que a “carta de reconhecimento de dívida” foi emitida por ambas as Rés, por terem sede no mesmo local, partilharem o mesmo endereço de correio eletrónico, o mesmo papel timbrado e os mesmos administradores, acrescendo a circunstância do dito documento ter sido subscrito por dois dos administradores quer da 1ª como da 2ª Ré - BB e CC – cujas assinaturas obrigam as ditas sociedades; por outro, e ainda que as Rés não tivessem formalmente a intenção de assumir a dívida do Grupo AA, no qual investiram, deveria ter sido considerado que ocorreu uma assunção de dívida do ponto de vista material, designadamente, que BB e CC assumiram em nome das suas representadas perante a Autora e recorrente, a dívida do grupo AA.
Cumpre, neste tocante, atentar na seguinte matéria:
- A Ré “Core Capital - Sociedade de Capital de Risco, S. A.” foi constituída em 8 de fevereiro de 2017; vincula-se com a assinatura: a) de dois administradores; b) de um administrador delegado; e, c) de mandatário(s), nos termos dos respetivos mandatos; os atuais administradores são os seguintes desde 10.10.2017: II, JJ, CC e BB.
- A Ré “Core Equity, S. A.” foi constituída em 29.10.2018; vincula-se através da assinatura: a) de dois administradores; b) do administrador delegado; c) de um procurador; e são seus administradores, desde a sua constituição, CC, II e BB.
- Na sequência do aludido em 16 - a 27 - e após negociações com a Autora, a Ré “Core Equity, S. A.” emitiu, com data de 21 de dezembro de 2018, um documento, em papel timbrado da CORE CAPITAL, denominado de “Carta de Reconhecimento de Crédito “, assinado por BB e CC, na qualidade de seus Administradores e enviado para a Autora por meio de email endereçado por EE, da “Core Equity, S. A.”, através do seguinte endereço de email: f...@....pt, documento esse com o seguinte teor:

Carta de reconhecimento de crédito
Exmos Senhores,
Para os devidos efeitos se declara que, conforme os termos do acordo de investimento concluído a 29 de Outubro de 2018, a sociedade CORE EQUITY SA afirma a sua intenção de investir no GrupoAA um montante de 9.609.166 EUR.
Adicionalmente a CORE EQUITY reconhece a existência de um conjunto de dívidas a fornecedores considerados essenciais ao desenvolvimento do negócio. Entre esses fornecedores considerados essenciais encontra-se a Kabelpower, com a qual a sociedade Francesa AA Energie - SARL, à data 21/12/2018, tem uma dívida com valores diferentes registados pelas duas sociedades, AA Energie SARL (566.433,33EUR) e Kabelpower (626.963,32 EUR), que deverá ser ajustada oportunamente.
A CORE EQUITY não só reconhece a existência das dívidas junto da Kabelpower como declara a sua firme intenção de uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar em qualquer cenário o pagamento das dívidas da AA à KABELPOWER.
Pelo Core equity,
(assinaturas)”.
De acordo com o disposto no art.º 5º, do Código das Sociedades comerciais, “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (…)”.
As Rés “Core Capital – Sociedade de Capital de Risco, S.A” e “Core Equity, S.A” são pessoas coletivas/sociedades comerciais com personalidades jurídicas autónomas e distintas, independentemente de terem administradores comuns.
O documento atrás identificado, e independentemente do papel timbrado onde foi vertida a declaração que o mesmo encerra (referindo CORE CAPITAL) contém uma declaração emitida inequivocamente, apenas, pela Ré “Core Equity, S.A”, constituindo a obrigação ali assumida (independentemente da sua natureza) apenas da responsabilidade da sociedade que a subscreve, por intermédios dos seus administradores e legais representantes.
É a conclusão que cumpre extrair do texto de tal documento, mormente das seguintes passagens: “(…) a sociedade CORE EQUITY SA afirma a sua intenção (…); Adicionalmente a CORE EQUITY reconhece (…); A CORE EQUITY não só reconhece a existência das dívidas junto da Kabelpower como declara a sua firme intenção de, uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar em qualquer cenário (…);
Pelo Core equity,
(assinaturas)” – sublinhados nossos.
Adere-se, por conseguinte, ao que foi decidido em 1ª instância a propósito desta matéria, que, pela sua manifesta simplicidade, dispensa fundamentação exaustiva:
“(…) tal documento, assinado por dois administradores de ambas as Rés, em papel timbrado da primeira demandada, não pode, face à circunstância de as suas assinaturas estarem apostas após a menção “ Pelo Core Equity “, considerar-se emitido pela primeira demandada nos autos pois não basta o uso do papel timbrado de uma sociedade por alguém, ainda que seu legal representante, para se poder dizer que tal sociedade se quis vincular através da declaração do mesmo feita constar.”
Pelo exposto, o dito documento só vincula a Ré “Core Equity, S.A.”, ficando desde já prejudicado o conhecimento da alegada assunção material da dívida por parte da co-Ré “Core Capital – Sociedade de Capital de Risco, S.A”, ou pelos administradores que assinam o dito documento, a título individual, como alegadamente defende a Autora/apelante, posto que tal conclusão não encontra apoio no acervo factual apurado e ora discriminado.
Diz, ainda, a apelante, que independentemente de poder não ter ocorrido uma intenção formal de assunção da dívida, deve considerar-se que houve tal assunção do ponto de vista material. A assunção de dívida por parte de terceiro depende da verificação de pressupostos legalmente definidos.
Sob a epígrafe “Assunção de dívida”, dispõe o art.º 595º, do CC, o seguinte:
“1. A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se:
a) Por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor;
b) Por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.
2. Em qualquer dos casos a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado”.
“(…) a assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem.
A assunção opera uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação”.4
Segundo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/0272011 (processo nº 294/06.8TVPRT.91.S1, acessível em www.dgsi.pt), a assunção de dívida “… não é a aceitação (por compra e venda ou outro negócio jurídico causal) de um crédito (…).
É, antes, a aceitação do pagamento de um passivo de um devedor perante o credor deste, com libertação (assunção liberatória) ou não (assunção cumulativa) do primitivo devedor.
Nesta figura jurídica, o credor continua a ser o titular do mesmo crédito que detinha sobre o primitivo devedor mas que, por força do referido negócio jurídico, muda apenas de sujeito passivo (2), isto é, do adstrito ao cumprimento da prestação debitória, que assim passa a ser o novo devedor por ter assumido aquela obrigação (assuntor).
Note-se que o primitivo ou antigo devedor só fica exonerado do seu dever de prestar se o credor tal expressamente declarar (art.º 595º/2 do C. Civil) – assunção liberatória da dívida – pois, de contrário, mantém-se solidariamente obrigado perante o credor – assunção cumulativa da dívida.
O credor só deixará de ser o titular do direito de crédito objecto da assunção, quando a dívida for paga (extinção do crédito por pagamento) ou se o transmitir por cessão ou por outra via a outrem.
Por outras palavras, na assunção da dívida, nem há mudança de credor, que continua a ser o originário, nem da obrigação existente, como aconteceria na novação, mas apenas mudança do devedor, que deixa de ser o primitivo, passando a ser o que assumiu a dívida daquele perante o mesmo credor.” – sublinhados nossos.
Ao subscrever o sobredito documento a co-Ré “Core Equity, S.A” reconheceu manifestamente a existência de um crédito da Autora sobre a sociedade “AA Energie – SARL”, mas não se comprometeu a liquidá-lo, como se extrai do texto integral do documento, e sobretudo, da sua parte final, donde resulta que a devedora será sempre inquestionavelmente, aquela última sociedade: “A CORE EQUITY não só reconhece a existência das dívidas junto da Kabelpower como declara a sua firme intenção de, uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA procurar assegurar em qualquer cenário o pagamento das dívidas da AA à KABELPOWER” – sublinhado nosso.
Deste modo, e independentemente do tipo de garantia prestada por aquela co-Ré ao subscrever o dito documento – e que infra analisaremos – urge concluir pela não verificação dos pressupostos da figura jurídica de assunção de dívida, sufragando-se o decidido em 1ª instância, nomeadamente, também a propósito do pagamento da quantia de € 25.000,00 por parte daquela co-Ré (posto que quedou inalterada a decisão sobre a matéria de facto) e do teor do e-mail dirigido por CC ao então Diretor Geral da Autora) – cf. facto nº 27 –, que passamos a transcrever:
“(…) vejamos agora se as Rés ou, pelo menos, a Ré Core Equity, S. A., assumiu, perante a Autora, o pagamento do débito da AA Energie, SARL, com sede em França e ou da AA - Energia e Sistemas, S. A. ou se, de algum modo, garantiu o seu pagamento, questão essencial dos autos.
Veja-se que a Autora assenta tal alegação no teor dos documentos de fls. 20 a 21 e 23 dos autos e, ainda, na circunstância de a Ré Core Equity, S. A. ter pago à mesma a quantia de 25.000,00 Euros no âmbito da questão da entrega, pela Autora à AA– Energia e Sistemas, S. A., dos cabos por esta à demandante já pagos.
É, pois, essencial apurar se - do teor dos aludidos documentos e pagamento, conjugado com o apuramento das circunstâncias em que tais documentos e pagamento foram emitidos ou feito e dos eventuais acordos celebrados entre as partes se pode inferir que as Rés – ou uma delas - assumiu o pagamento dos aludidos créditos da demandante ou os garantiu, por qualquer forma.
Ora, em primeiro lugar, há ter presente, desde logo, o teor do art.º 595 do C. Civil, de acordo com o qual a transmissão, a título singular, de uma dívida pode verificar-se por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor ou por contrato entre o credor e novo devedor, com ou sem consentimento do antigo devedor, apenas ficando este desonerado do seu cumprimento se o credor emitir declaração expressa nesse sentido pois, não ocorrendo tal declaração, antigo e novo devedor serão responsáveis, solidariamente, perante o credor.
Tendo em conta o supra referido, há que ter presente, desde logo, que nem no documento de fls. 20 a 21 dos autos (mail de CC dirigido ao então Director Geral da Autora) nem no documento de fls. 23 dos autos (a carta de reconhecimento de crédito) alguma das Rés se comprometeu, de forma expressa, a efectuar qualquer pagamento à demandante.
Com efeito e antes de mais, o primeiro documento mostra-se dirigido por CC ao então referido Director Geral da Autora, não se podendo dizer que se mostre subscrito por qualquer das Rés por o seu expedidor nem as poder vincular de forma isolada e/ou sem a assinatura de outro administrador de qualquer uma das demandadas, não se conseguindo, por isso, concluir pela vinculação de qualquer das Rés por tal documento.
Por outro lado, em momento algum de tal documento (de fls. 20 a 21 dos autos) CC se refere ao crédito da Autora sobre a AA - Energia e Sistemas, S. A. num qualquer teor que permita concluir, por alguma forma, que estaria a garantir-se ou assumir tal crédito, antes se referindo apenas, eventualmente e dependendo da interpretação de tal documento, quanto ao crédito da demandante sobre a AA Energie, SARL.
De qualquer modo, sempre se dirá que o que CC fez constar de tal documento foi única e exclusivamente o seguinte, na parte mais relevante, que não pode ser dissociada do remanescente do seu teor:
“Note: A CoRe Capital, como lhe dissemos, entende bem a preocupação da Kabelpower face ao processo de redressement judiciaire à l’égard da AA que entretanto se abriu em França e declara-se naturalmente comprometida com o pagamento aos seus principais fornecedores presentes nesse processo (uma categoria entre os quais incluímos, naturalmente, a Kabelpower); “e, Caro NN, estamos do mesmo lado. A CoRe não pode ser responsabilizada pela situação financeira da AA Energie em França.
No entanto e como este email confirma por escrito (e já foi falado anteriormente), a CoRe compromete-se com o pagamento total dos crétidos da Kabelpower junto da AA Energie, em França, na concretização da segunda tranche do seu financiamento na JdC.”
Ora, antes de mais, o teor de tais declarações de CC não pode ser, desde logo, extrapolado ou descontextualizado do demais teor do aludido documento, antes tendo, as mesmas e o teor do documento em si, de ser interpretado considerando o seu teor literal e de harmonia com o disposto no art.º 236 do C. Civil e com o que se apurou quanto às circunstâncias concretas do investimento previsto efectuar nas sociedades do Grupo AA pela Core Equity.
Nesta matéria, impõe-se salientar que resulta claro dos factos provados e, em especial, dos elencados em III -, A), 19 - a 30 -, 37 - a 47 - e 52 -, que a Core Equity, S. A. pretendia proceder à recuperação de tais empresas do Grupo AA por meio de recurso a PER - ou processo similar, em França - e com um perdão ou corte de parte dos créditos/dívidas, sob pena de, a não ser assim e a manter-se a totalidade do seu valor, face ao montante total do passivo de tais sociedades (de 24 milhões), se frustrar a possibilidade da recuperação que a segunda Ré estava interessada em levar a cabo.
Por outro lado, impõe-se ainda ter presente que não só não existe, no aludido documento -email aludido em III -, A); 27 - uma qualquer declaração que permita concluir que CC pretendeu dizer que as Rés ou uma delas pagaria o crédito da Autora sobre a AA Energie, SARL e sim e apenas de que, com a segunda tranche do seu investimento na AA, tal pagamento de créditos seria feito, com montantes decorrentes de tal investimento, o que não é coincidente com uma pretensa assunção de obrigação das Rés ou de uma delas pagar tal débito.
Refira-se que se é certo que a interpretação da declaração deve, nos termos do art.º 236 do C. Civil, valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, a verdade é que, no caso, era evidente, até pelo teor da primeira fase supra transcrita do segundo trecho do mencionado documento supra transcrito, que CC não quis, com a missiva do aludido email, assumir que as Rés ou a Ré Core Equity pagaria(m) o débito da demandante sobre aquela sociedade francesa e sim que, tal crédito seria pago pela respectiva devedora, em momento ulterior à concretização da segunda tranche do investimento que a Core Equity, S. A. se propunha efectuar nas sociedades do Grupo AA.
Não fora assim e não constaria, do mesmo documento e antes de tal aludido comprometimento (suposta assunção de obrigação) de pagamento total dos créditos da Kabelpower sobre a sociedade francesa, como referido por CC, que “A CoRe não pode ser responsabilizada pela situação financeira da AA Energie em França.” e que o pagamento dos cabos em causa nos autos (pagamento feito pela AA - Energia e Sistemas, S. A. com dinheiro aportado pela Core Equity) não podia ser imputado ao crédito da Autora sobre a AA Energie, SARL.
Desta forma, não se consegue vislumbrar que o documento de fls. 20 a 21 dos autos (a que se refere o ponto de facto aludido em III -, A), 27 -) contenha, em si mesmo, uma assunção, por parte de qualquer das demandadas, quer da dívida da AA Energie, SARL, quer da dívida da AA - Energia e Sistemas, S. A. perante a demandante uma vez que, em suma, CC nem sequer declarou, no seu texto, que as Rés pagariam tais débitos…
Por isso mesmo não se consegue, assim, vislumbrar que um declaratário normal, confrontado com o teor do documento em questão, pudesse entender as declarações de CC no sentido de o mesmo ter assumido, em nome das Rés ou de uma delas, a obrigação de pagamento da ou das dívidas da AA Energie, SARL e da AA - Energia e Sistemas, S. A. à demandante por, verdadeiramente, a assunção de uma dívida implicar, por um lado, o conhecimento, pelo assuntor, do efectivo valor de tal débito (o que aqui acontecia à data da emissão/expedição do email em questão, como se vê da análise da integralidade do texto do documento, conjugado com o de fls. 23 dos autos) e, por outro lado, por do mesmo documento nem sequer constar uma qualquer referência a forma e prazo de efectivação do pagamento, alegadamente assumido pelas Rés ou por uma delas. (….)”.
*
Em segundo plano, diz a Autora/recorrente que à luz dos elementos fácticos apurados deveria o tribunal recorrido ter considerado que o dito documento de “reconhecimento de crédito” configura uma “carta de conforto forte”, na medida em que as emitentes assumiram uma declaração negocial de pagamento: assumiram, em caso de necessidade, e “em qualquer cenário” um cumprimento, mediato ou imediato, constituindo, por isso, tal declaração, uma garantia efetiva de pagamento perante a Autora.
Reitera-se, na sequência do já decidido, que o documento em causa não vincula a co-Ré “Core Capital – Sociedade de Capital de Risco, S.A.”. Por conseguinte, e nesse tocante, e independentemente da obrigação que venha a considerar-se resultar do mesmo documento, sempre terá de julgar-se improcedente a pretensão da apelante no que diz respeito àquela Ré.
No mais, está em causa saber se o sobredito documento consubstancia uma “carta conforto”; a caracterização do respetivo tipo contratual: se estamos perante um negócio unilateral ou perante um contrato (a doutrina divide-se na qualificação deste tipo de declarações); e a respetiva força garantística.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 2016 (proferido no âmbito do processo nº 3798/13.2TBBRG.G2.S1), que aqui decidimos acompanhar de perto por tratar com proficiência a questão e com relevo para a situação dos autos, decidiu o seguinte:
“A carta de conforto é um documento, normalmente redigido sob a forma epistolar, no qual uma entidade (o patrono ou confortante) se dirige a uma outra entidade, em regra um banqueiro (o confortado ou beneficiário), tranquilizando-o quanto à capacidade, honorabilidade ou à eficácia de um terceiro interveniente (o patrocinado, afilhado ou devedor), assumindo mesmo, em certos casos, deveres próprios nesse sentido (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Volume X, Almedina, 2015, pág. 575 e segs., (….)).
(…)
Calvão da Silva (Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, 1999, págs. 372-373) aponta como razões para as empresas recorrerem às cartas de conforto como sucedâneo de garantias comerciais: (i) razões internas, como sejam as relacionadas com as regras societárias relativas à sujeição e aprovação pelos órgãos societários; (ii) razões de balanço, pelo diferente tratamento contabilístico dado a estas em relação às garantias comuns; (iii) razões fiscais, pelo distinto regime fiscal susceptível de ser aplicado às cartas de conforto; (iv) razões de prestígio, imagem e discrição, por a sociedade-mãe não pretender prestar garantias fidejussórias a dívidas de sociedades por si controladas; (v) razões valutárias, presentes nas relações entre residentes e não residentes.
Consideradas uma modalidade especial de garantia das obrigações, as cartas de conforto distinguem-se das garantias habituais por serem atípicas, na medida em que não dispõem de um regime legal traçado, e por não comungarem das suas características, distinguindo-se das garantias reais por não onerarem certos e determinados bens e apenas implicarem prestações e em relação às garantias pessoais como a fiança por, em regra, não serem acessórias em sentido forte, e quanto à garantia autónoma à primeira solicitação, por não funcionarem on first demand (Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 580. Distinção mais aprofundada entre a carta de conforto e outras figuras afins pode ser encontrada em Pinto Monteiro com a colaboração de Júlio Gomes, ob. cit., págs. 428-438).
As cartas de conforto apresentam-se estruturalmente como uma epístola dirigida a um destinatário e com a assinatura do remetente, consubstanciando, assim, uma única declaração de vontade. Mas tal não significa que se insiram no domínio dos negócios jurídicos unilaterais, caso em que estariam sujeitas ao princípio da tipicidade (art.º 457.º do Código Civil), porquanto da carta de conforto depreende-se a existência de um acordo entre o emitente e o destinatário, seja este prévio ou derivado de uma aceitação posterior, ainda que tácita (art.º 217.º do Código Civil).
Daí que a maioria da doutrina considere que as cartas de conforto constituem contratos unilaterais, sem que o facto de serem apenas assinadas por uma das partes impeça essa qualificação, uma vez que tal é comum em contratos unilaterais, como o contrato-promessa (art.º 410.º, n.º 2, do Código Civil) ou o pacto de preferência (art.º 415.º do Código Civil). Neste sentido Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 4ªed., Almedina 2012. pág. 136).
A forma como as declarações insertas nas cartas de conforto podem surgir são diversas, tendo a doutrina procurado proceder à catalogação de exemplos que, isolada ou conjuntamente, podem constituir hipóteses de cartas de conforto, como observa Menezes Leitão (ob. cit., pág. 135), sem que tal contribua, contudo, para a compreensão da figura, em grande medida, devido à multiplicidade de declarações que podem estar em causa.
Com maior utilidade para a sua caracterização assinala-se a classificação que distingue, no que concerne ao seu conteúdo, entre cartas fracas, médias e fortes, sem prejuízo de, no concreto, poderem surgir figuras mistas.
Acompanhando, novamente, Menezes Cordeiro (ob. cit., págs. 583-584), diremos que:
- na carta de conforto fraca, o emitente estabelece a relação de participação existente entre ele e a sociedade participada e apresenta tal relação com um mínimo de estabilidade; em suma, há uma concessão de informações e um dever genérico de diligência;
- na carta de conforto média, o emitente, além da parte informativa, que poderá ser omitida por desnecessária ou conhecida, faz ainda uma declaração negocial vinculando-se a actuações instrumentais (como seja, desenvolver esforços no sentido de acautelar interesses do credor ou proporcionar o efectivo cumprimento dos compromissos assumidos, ou mesmo vincular-se a manter ou reforçar determinada participação social); desta feita surgem deveres específicos, mas de facere ou de non facere, podendo estes assumir maior ou menor intensidade;
- na carta de conforto forte, o emitente, sempre para além dos aspectos informativos, assume declarações negociais de pagamento, tendo em comum a ideia de provocar, em caso de necessidade, um cumprimento, mediato ou imediato, pelo emitente; aqui os deveres específicos são, pois, de dare, sendo as obrigações em jogo efectivas garantias.
Em sentido coincidente, pronunciou-se já o Supremo Tribunal de Justiça por Acórdão de 07-12-2005 (Revista n.º 3558/05, desta mesma 7.ª Secção, disponível em http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios), afirmando que:
“No que concerne à natureza jurídica das cartas de conforto, importa considerar que: - o conforto fraco é o produto de uma obrigação de informar (prévia) e de uma obrigação de prestação de facto, maxime de prestação de serviço e de diligência; - o conforto médio é uma garantia imprópria combinada, isto é, uma garantia que não se traduz num acréscimo da massa patrimonial posta ao serviço do credor, mas antes numa teia de prestações que, em termos práticos, facilitarão o desempenho do devedor; - o conforto forte é uma garantia eventualmente combinada com determinadas prestações de serviços, podendo a garantia ser autónoma ou tipo fiança e assumir ainda diversas particularidades em função da interpretação concreta.”
Em todo o caso, e independentemente de classificações, o valor e a eficácia jurídica das cartas de conforto depende do sentido das declarações concretamente feitas por quem as subscreve, ou seja, trata-se, fundamentalmente, de um problema de interpretação e até de integração negocial, conforme é unanimemente realçado pela doutrina (cfr. Romano Martinez/ Fuzeta da Ponte, ob. cit., págs. 90-91) e pela jurisprudência (Acórdãos deste Supremo Tribunal de 07-12-2005, já citado, de 18-03-2003, Revista n.º 57/03, e de 19/12/2001, Revista n.º 2509/01,todos disponíveis em http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios).”
A propósito das cartas de conforto fortes, esclarecem Pinto Monteiro e Júlio Gomes que, nelas, «(…) o patrocinante assegura à outra parte que a obrigação da patrocinada será cumprida, comprometendo-se a cumprir ele próprio, caso o devedor não o faça, ou a indemnizar o banco pelos prejuízos sofridos»5, termos em que o subscritor de uma carta assim caracterizada assume uma obrigação de resultado: o pagamento por parte do patrocinado.
Posto isto, cumpre proceder à interpretação da sobredita declaração de “reconhecimento de crédito”, de acordo com a doutrina da impressão do destinatário razoável consagrada no art.º 236º do C. Civil, para o que terá de ser atendido não só o teor literal do texto do documento, como o contexto global em que foi emitido.
Dispõe o art.º 236º, nº 1, do Código Civil, que a “… declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.6
“A regra estabelecida no nº 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante”.
Deste modo, a interpretação da declaração negocial deve, em princípio, fazer-se no sentido propugnado pela teoria da impressão do destinatário. Na demanda do sentido da declaração, devem avaliar-se todos os elementos e circunstâncias que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário efetivo, teria tomado em conta, ponderados os termos do negócio, os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes (cf., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de outubro de 2014, Proc. 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, acessível em dgsi.pt.).
Diz-nos, ainda, o nº 2, daquele mesmo art.º 236.º, que: “Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
Da conjugação dos nºs 1, e 2, do dito preceito legal, mormente da expressão “sempre que”, resulta a prevalência do n.º 2, tendo aplicação sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante (não estando destinada, apenas, às situações em que se constata que a vontade real do declarante conhecida do declaratário não foi corretamente exteriorizada pelo declarante)
A interpretação conduzirá, pois, ao sentido juridicamente relevante da declaração.
Apoiados no elemento literal do texto documental, e tendo em consideração que as partes não questionam que o mesmo constitui uma carta conforto, partilhamos de tal entendimento, considerando o empenho assumido pela subscritora na satisfação do crédito da autora sobre a sociedade “AA Energie – SARL”, embora relativo a valor que não tivesse, então, sequer como certo, face à existência de divergências entre credora e devedora, que deixou assinalada e cujo apuramento remeteu para momento ulterior.
No mesmo documento, a subscritora, co-Ré “Core Equity, S.A”, “….afirma a sua intenção de investir no Grupo AA um montante de 9.609.166 EUR” e, que, “(…) uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar em qualquer cenário o pagamento das dívidas da AA à KABELPOWER.”
Não se revela desde logo despiciendo o facto de a Autora ter considerado que o dito documento não consubstanciava uma garantia suficiente de pagamento (cf. facto nº 33) e, efetivamente, aquela Ré não se vinculou, desde logo, à realização do dito investimento, manifestou, apenas, a intenção de o fazer, no quadro comercial e financeiro que envolviam as sociedades que integram aquele grupo de empresas e que a matéria emergente da prova produzida em audiência retrata de forma esclarecida.
Acresce que da parte final da dita declaração também não emerge uma obrigação de resultado, isto é, o pagamento do crédito da Autora por parte da Ré. Dela se extrai, apenas, e em primeiro lugar, que em qualquer cenário (de concretização do investimento, ou não, por parte da Ré), a dívida manter-se-ia na esfera jurídica da devedora; em segundo lugar, que a Ré, emitente da carta conforto, limitar-se-ia a desencadear esforços no sentido de o débito vir a ser pago em resultado do investimento/incremento financeiro que visava realizar no grupo de empresas onde se integrava a devedora, e de que esta viesse, consequentemente, a beneficiar, mantendo-se sempre aquela como a responsável pelo resultado obrigacional.
Aderimos, por conseguinte, aos fundamentos da sentença recorrida:
“Por outro lado, do documento aludido (a fls. 23 dos autos), o que a segunda Ré fez constar foi, no essencial, o seguinte:
a) a informação da intenção da Core Equity, S. A. de investir, no Grupo AA, um determinado montante;
b) o reconhecimento, pela Core Equity, S. A., de um conjunto de dívidas a fornecedores essenciais, entre os quais a Autora e a existência de uma dívida perante a demandante, por parte da sociedade AA Energie, de um valor concretamente não apurado mas situado entre cerca de 566.000,00 Euros e cerca de 626.000,00 Euros, a ajustar oportunamente e,
c) o reconhecimento, pela Core Equity, S. A., das dívidas junto da Kabelpower e a sua firme intenção de uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar, em qualquer cenário, o pagamento das dívidas da AA à Kabelpower.
Ora, entre a manifestada firme intenção da Ré Core Equity, S. A. de, realizado o investimento na sociedade AA, procurar assegurar o pagamento das dívidas da AA à Autora e a pretensa assunção, por aquela Ré, das dívidas de qualquer das sociedades do grupo AA perante a Autora vai um passo interpretativo que se não consegue vislumbrar possível de dar.
Na realidade e desde logo, a única dívida concreta cuja existência a segunda Ré (e apenas esta) reconhece em tal documento é a dívida da AA Energie, SARL perante a Autora e, ainda assim fá-lo referindo ser a mesma de valor não apurado, à data…
Por outro lado, impõe-se não esquecer que o Grupo AA era integrado por várias sociedades, em que a segunda Ré queria investir, que a segunda Ré declarou, no documento ora sob análise e sem certeza do seu valor, reconhecer uma dívida, à data, da AA Energie, SARL perante a Autora e que declarou, ainda, a sua firme intenção de, realizado o seu investimento na sociedade AA, procurar assegurar o pagamento das dívidas da AA à Kabelpower.
Ora, não se crê que um qualquer declaratário normal - colocado na posição da Autora, enquanto destinatária da carta de reconhecimento de crédito ora em causa -, a receber um tal documento, possa extrair outra conclusão interpretativa que não fosse a seguinte:
- a segunda Ré pretendia investir no Grupo AA determinado montante;
- a segunda Ré sabia que havia dívidas a fornecedores essenciais ao desenvolvimento do negócio e que era esse o caso da Kabelpower, credora da AA Energie, SARL, de valor não apurado - mas situado entre os cerca de 566.000,00 Euros e os 627.000,00 Euros e a ajustar - e,
- a segunda Ré reconhecia a existência das dívidas junto da Kabelpower e declarava uma firme intenção de, realizado o seu investimento (necessariamente também na sociedade AA Energie, SARL, por ser a sociedade devedora e a única sociedade em concreto no texto aludida), procurar assegurar o pagamento da dívida ou dívidas de tal sociedade à Autora, ou seja, de exercer influência na sociedade em questão para, face ao plano de recuperação que pretendia implementar e ver aprovado, a sociedade começar a pagar o seu passivo e, em concreto, esse passivo da AA Energie, SARL perante a demandante.
Em suma e do teor literal do documento de fls. 23 dos autos não decorre qualquer assunção, por qualquer das Rés, da referida dívida da AA Energie, SARL perante a Autora e ou de qualquer outra dívida de qualquer sociedade integrante do Grupo AA face à demandante, por ausência de declaração de vontade da segunda Ré de se responsabilizar por dívida alheia.
É que, na realidade, não se pode olvidar que, à data, a da emissão do documento em causa a Ré Core Equity, S. A. ponderava efectuar um investimento nas empresas de tal grupo e recuperar as mesmas - ou parte delas -, se tal se viesse a revelar viável e que, não obstante, tal se não mostrou possível relativamente e em concreto, à AA Energie, SARL, por força da sua liquidação judicial.
Refira-se que a viabilidade do Grupo AA e das sociedades que o integravam dificilmente poderia passar por o investidor interessado na sua recuperação assumir as dívidas das empresas em causa pois, a ser assim, tratar-se-ia de uma situação de transferência de passivo para tal investidor (in casu, a Ré) e o investimento da segunda demandada não seria de cerca de 9/10 milhões de euros e antes em tudo coincidente com o passivo da totalidade das sociedades, ou seja, os 24 milhões de Euros aludidos em III -, A), 19 - supra, acrescido de capital extra para a gestão futura e laboração futura das empresas.
Também se impõe concluir, face ao teor literal do documento e aos factos provados, não ter a segunda Ré, através do documento de fls. 23 dos autos também prestado uma qualquer fiança à Autora relativamente à dívida da AA Energie, SARL, no sentido de se comprometer a pagar a mesma dívida, caso esta o não fizesse mesmo com principal obrigada a tal.
Finalmente e quer no que concerne ao documento de fls. 20 a 21 dos autos, quer ao documento de fls. 23 dos autos, impõe-se, neste momento, aferir se o mesmo se poderá reconduzir a um outro tipo de garantia do crédito da demandante, por CC prestada em nome das Rés ou da Ré Core Equity, S. A. e, concretamente, a cartas de conforto, como suscitado em juízo e, na afirmativa, se dos referidos documentos decorreram obrigações para com a demandante e quais, a concluir-se em tal sentido.
(…)
Ora, atento o supra referido e o teor literal dos documentos constantes de fls. 20 a 21 e 23 dos autos, o que se constata é que:
(…)
2) quanto ao segundo documento (de fls. 23 dos autos), contém o mesmo, por seu turno:
- uma declaração, prestada pela Ré Core Equity, S. A., com prestação da informação, à Autora, da sua intenção de investir no Grupo AA um determinado montante;
- o reconhecimento da existência de dívidas a fornecedores, entre os quais à Autora e de que a mesma era credora da AA Energie, SARL de um valor ainda não apurado, mas situado entre 566.000,00 Euros e 627.000,00, a ajustar e,
- a firme intenção da Core Equity, S. A. de, uma vez realizado o seu investimento na sociedade AA (referência que se tem de entender, como se disse supra, cingir-se à devedora atrás identificada, a AA Energie, S. A.), procurar assegurar em qualquer cenário o pagamento das dívidas daquela entidade à Autora.
Ou seja, face ao teor dos documentos, não se vislumbra, em sede, no essencial, do documento constante de fls. 23 dos autos (único que se entende poder reconduzir-se uma carta de conforto emitida, apenas, pela segunda Ré), a assunção, pela aludida demandada, de qualquer obrigação de prestação de facto por qualquer sociedade do Grupo AA e sim e apenas de que, na concretização do investimento por si pretendido fazer em tais sociedades e a ocorrer, em concreto, quanto à AA Energie, SARL, procurar assegurar o pagamento da(s?) dívida(s?) à demandante por, nessa altura e adquirindo participações sociais no capital social das sociedades, poder influir na sua gestão e aportar capital para tal ou tais pagamentos.
Crê-se, assim, face ao teor literal de tal documento (de fls. 23 dos autos), poder subsumir o documento em causa a uma mera carta de conforto média por, em suma, a Ré Core Equity, S. A. nem sequer ter, à data, qualquer participação no capital social de qualquer das sociedades do Grupo AA e não ter prometido qualquer facto de terceiro e sim uma mera promessa de, futuramente e a concretizar-se o seu investimento nas sociedades do grupo que entendesse, então, serem viáveis, as suas dívidas virem a ser pagas pela devedora (que não pela Ré emitente do documento) mediante a disponibilização de capital à AA Energie, S. A. do valor de tal investimento e da sua influência futura na gestão da sociedade aludida, relativamente à qual pretendia vir, nessa concretização de investimento, vir a tomar participações sociais e, assim, impulsionar a actividade da sociedade.
Assim, torna-se claro que não tendo a Ré Core Equity, S. A. - nem, aliás, a Core Capital, cuja emissão de qualquer declaração similar foi já descartada - assumido qualquer promessa de facto da devedora ou sua, não podendo, por isso, a demandada ser responsabilizada pelo não pagamento da dívida da AA Energie, SARL e não tem a mesma dívida de ser por tal Ré liquidada perante a Autora.
Uma última palavra para esclarecer que nem o depósito referido em III -, A), 32 - a 36 - poderia permitir concluir no sentido de, por força do mesmo, a Core Equity, S. A. ter alegadamente assumido o pagamento da dívida da AA Energie, SARL à Autora.
É que, como decorre dos aludidos factos elencados como provados, tal depósito foi efectuado condicionadamente à entrega dos cabos já pagos pela AA – Energia e Sistemas, S. A. à demandante por aquela deles carecer para conseguir assegurar a execução do projecto Hyperion, em Évora, de que cuja boa execução/cumprimento, por seu turno, a segunda Ré fazia depender a futura aquisição de participação social nas empresas do Grupo AA que viesse a considerar viáveis.
Ou seja, tal depósito feito pela segunda Ré nunca se destinou a satisfazer a dívida da AA Energie, SARL à Autora (nem a Ré o aceitou, como se vê do teor do quarto parágrafo do documento de fls. 20 a 21 dos autos), antes se tendo destinado a lograr obter a efectiva entrega, pela demandante, a quem os pagara, dos cabos necessários ao cumprimento de um contrato de construção de um parque fotovoltaico, em construção pela AA - Energia e Sistemas, S. A..”.
Improcede, assim, a apelação.
Decisão
Pelo exposto, acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante (art.º 527º, nº 1, CPC).
Notifique.

Lisboa, 16 de janeiro de 2025
Cristina Lourenço
Maria do Céu Silva
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
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1. Correção de designação feita por despacho que antecedeu a sentença, proferido em 11 de julho de 2017
2. In, “Recursos em Processo Civil”. 6ª Edição, pág. 181.
3. Obra citada, págs. 196-197.
4. Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição, Coimbra Editora, pág. 611.
5. Pinto Monteiro/Júlio Gomes, in, “Sobre as Cartas de Conforto na Concessão de Crédito, AB VNO AD OMNES- 75 anos da Coimbra Editora”, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág.461.
6. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume I, 4ª Edição, pág. 223.