Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
179/19.8JDLSB.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENORES
PROTEÇÃO DE BEM JURÍDICO DE NATUREZA PESSOAL
CRIME CONTINUADO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE-NULIDADE
ERRO DE JULGAMENTO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I - A deficiência da fundamentação só constitui nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas, ou dos montantes indemnizatórios;
II – Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
III – Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
IV - Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes;
V - O bem jurídico protegido pela incriminação do abuso sexual de crianças é de natureza pessoal, pelo não lhe são aplicáveis as figuras do crime continuado (art.º 30º/3 do CP), nem do crime de trato sucessivo;
VI – É ajustada a pena única de 5 anos de prisão, com execução suspensa pelo mesmo período, com regime de prova, neste caso, em que o Arg. praticou 9 crimes sexuais contra menor, situando-se os actos praticados no limiar inferior dos que integram o conceito de actos sexuais de relevo, sendo o Arg. primário, social e laboralmente inserido e tendo confessado, parcial, mas substancialmente, os factos;
VII - Embora os tribunais de recurso possam alterar o valor do dano fixado com recurso a critérios de equidade, só o devem fazer quando o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”.
Decisão Texto Parcial:Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Nos presentes autos, que correram termos no Juízo Central Criminal de Cascais, em que é Arg. [1] AA, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 180[3]), em 08/10/2020, foi proferido o acórdão de fls. 287/345, que decidiu nos seguintes termos:
“… Nestes termos, julga-se a acusação parcialmente procedente por provada, e, em consequência:
Absolve-se o arguido da prática de 8 (oito) dos 15 (quinze) crimes de abuso sexual de criança, consumados, previstos e punidos nos art"s.171°., nº.1 e 177°., nº.1, al. b) do CP, que lhe vinham imputados.
Sem custas nesta parte por não serem devidas.
Condena-se AA, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de:
- cinco crimes de abuso sexual de criança, consumados, pps. nos artºs.171°., nº.1 e na al. b) do nº.1 do artº. 177°., do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos e seis meses de prisão, efectiva, por cada um desses cinco crimes, mencionados nos pontos 14 a 17 e 31 a 37 dos factos provados;
- um crime de abuso sexual de criança, consumado, mencionado nos pontos 20, 21 e 41 a 43 dos factos provados, pp. no artº.171°., nº.1 e na al. b) do nº.1 do artº. 177°., do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos de prisão, efectiva;
- um crime de abuso sexual de criança, consumado, mencionado nos pontos 22, 23 e 44 a 46 dos factos provados, pp. no art°.171°., nº.1 e na al. b) do nº.1 do art°. 177°., do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos de prisão, efectiva;
- um crime de abuso sexual de criança, tentado, mencionado nos pontos 18, 19 e 38 a 40 dos factos provados, pp. nos artºs.22°., 23°., 72°., 73°., 171°., nº.1 e na al. b) do nº.1 do artº. 177°., do CP, por que vinha acusado, na pena de nove meses de prisão, efectiva; e
- um crime de abuso sexual de criança, consumado, mencionado nos pontos 24 a 30 e 47 a 49 dos factos provados, pp. no art°.172°., n.º 1, e na al.b) do nº.1 do art°. 177°, do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos e seis meses de prisão, efectiva.
Em cúmulo jurídico condena-se o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos de prisão, efectiva.
Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material, dos apurados  sobreditos nove crimes de abuso sexual de criança agravados, pps. pelos artºs.171°., nº.l,172°, n.º 1 e177°., n.º 1, al.b), do Código Penal, por que vinha acusado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de dez anos, nos termos do art°.69°-B, nº.2, do CP.
Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material, dos apurados sobreditos nove crimes de abuso sexual de criança agravados, pps. pelos artºs.171°., nº.1, 172°, nº.1 e 177°., n.º 1, al.b), do Código Penal, por que vinha acusado na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de dez anos, nos termos do art°.69°-C, nº.2, do CP.
Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material, dos apurados sobreditos nove crimes de abuso sexual de criança agravados, pps. pelos artºs.171°., nº.1, 172°, nº.1 e 177°., n.º 1, al.b), do Código Penal, por que vinha acusado na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período de dez anos, nos termos do artº.69°-C, nº.3, do CP.
A título de reparação indemnizatória à ofendida BB, condena-se o arguido a pagar à ofendida o montante de €- 10.000,00 (dez mil euros), por se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.
Tal montante será entregue ao pai de BB, CC, o qual neste momento tem a menor a seu cargo.
Condena-se, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo (considerando apenas as criminais), com taxa de justiça que se fixa no montante de 3 UCs, nos termos do art".8°., nº.5, do RCP e da tabela III anexa ao mesmo, sem prejuízo de eventual benefício de apoio judiciário. …”.
*
Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o Arg., com os fundamentos constantes da motivação de fls. 355/436, com as seguintes conclusões:
“… 1.  O arguido errou, assumiu e confessou parcialmente os factos. Todavia, foi erradamente responsabilizado por atos que não cometeu.
2. Os atos errados que cometeu foram isolados, são irrepetíveis, não estiveram relacionados com uma intenção libidinosa, mas sim com a ausência do devido (e criminalmente exigível) espírito crítico e imediata reacção.
3. Estes atos devem ser censurados na medida da culpa do arguido, crítica e coerentemente apreciada de acordo com os atos praticados, a sua personalidade e a sua circunstância.
4. Toda a prova recolhida acerca da personalidade do recorrente aponta para o facto de este não ter traços mal adaptativos ou desestruturação da personalidade e ter interiorizado do desvalor da sua conduta.
5. Resulta evidente dos autos que a vítima:
 tinha uma relação de normalidade com o recorrente, a ponto de a vítima o procurar reiteradamente para que este lhe realizasse massagens nas costas a fim de debelar as dores musculares que amiúde sentia;
 tinha uma relação também de normalidade, ainda que algo distante, com a mãe, DD;
 tinha uma relação de confiança com o irmão, EE;
 tinha uma relação especial, de intimidade e proximidade com o pai.
6. São diversas as contradições insanáveis constantes da decisão recorrida (cfr. art. 410.º, n.º2, al. b) do CPP), designadamente, uma contabilização manifestamente incoerente, incompreensível e ininteligível dos factos criminosos, patente nos factos provados e na sua relação com a quantificação dos crimes imputados e pelos quais foi o recorrente condenado, também em contraponto com a acusação.
7. Tais múltiplas contradições insanáveis carecem de resolução material e processual, o que apenas o Tribunal ad quem poderá fazer, dando provimento ao presente recurso e corrigindo os vícios da decisão recorrida.  
8. O texto da decisão recorrida refere por diversas vezes que o arguido não demonstrou arrependimento sincero, o que constitui erro notório de apreciação da prova (cfr. art. 410.º, n.º2, al. c) do CPP). Não apenas o recorrente admitiu o seu arrependimento e lamento pelos danos que causou, como o próprio Ministério Público fez questão de sublinhar e valorizar esse mesmo arrependimento.
9. Tal erro notório na apreciação da prova resultou ainda em manifesta violação do princípio in dubio pro reo, ínsito no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, dado que a persistirem dúvidas sobre a autenticidade do arrependimento do recorrente, sempre essas dúvidas haveriam de resolver-se a seu favor.
10. Entende o recorrente que são os seguintes os factos incorretamente dados como provados (cfr. art. 412.º, n.º3, al. a) do CPP): n.ºs 10 (em particular a expressão “a pretexto de”) a 26 (em particular a expressão “nessas circunstâncias”), 28 a 32 (em particular as expressões “oito ocasiões” e “circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar os seus propósitos libidinosos”) e 33 a 50 (em particular no que concerne ao elemento subjetivo dos tipos criminais em causa).
11. Quanto aos factos incorretamente dados como não provados (cfr. art. 412.º, n.º3, al. a) do CPP), entende o recorrente terem sido incorretamente julgados todos os factos referidos (mas não numerados) na secção relevante da decisão recorrida (p. 17 do Acórdão recorrido).
12. As massagens que o recorrente fazia à menor não eram mero “pretexto” para outra realização de propósitos de gratificação sexual, nem os hábitos (ou rituais comportamentais) praticados foram preliminares de qualquer ato sexual.
13. Resulta claro da prova que a menor sofria de dores musculares. Resulta também claro que esta pedia as massagens em causa. Assim como resulta claro que o recorrente acedia e que o fazia com o propósito de lhe atenuar as dores. Resulta também claro que, nos casos em que não foi a menor a solicitar a massagem, o recorrente nunca a realizou sem antes lhe perguntar se queria, tendo esta anuído.
14. O facto de, em duas circunstâncias (e não em cinco ou em oito, como refere a decisão recorrida) não ter o recorrido reprimido uma reação fisiológica de índole sexual, inadvertida, durante o ato da massagem e não terminado com a prática das referidas massagens é motivo de censura penal.
15. Mas não é justificada a extrapolação realizada pela decisão recorrida, dando, erradamente e sem base probatória, como provados factos enquadradores do recorrente como um predador sexual e não provados factos que afastam esse enquadramento.
16. Tendo em conta a globalidade da prova produzida, devia o Tribunal a quo ter dado como provado que:
 durante vários anos, pelos cinco a seis anos, desde os sete ou oito anos de idade da menor, o recorrente fez massagens regulares à menor, a pedido desta, com a intenção de lhe aliviar as dores nas costas, sem que qualquer problema ou intercorrência se tenha identificado. as massagens eram realizadas, na grande maioria das vezes a pedido da vítima e nunca, em ocasião alguma, foram realizadas sem o seu consentimento.
 o contacto de índole sexual foi pontual e inadvertido, sendo, evidentemente ainda assim censurável.
 as circunstâncias em que o recorrente se colocou por cima da menor, resultam da intenção de lhe massajar os ombros, onde esta apresentava dores e que o toque no fundo das costas se deve a uma tentativa de evitar sujar a roupa da menor, com creme.
 o contacto físico entre o recorrente e a menor decorreu quando ambos se encontravam com as calças vestidas e com a menor deitada de ventre para baixo, isto é, sem exposição da parte frontal do tronco.
 o recorrente demonstrou arrependimento sincero e lamento pelos danos causados nas ocasiões que confessou terem ocorrido.
17. A decisão recorrida fez uma apreciação da prova parcial e desequilibrada e não errou apenas na avaliação dos motivos e encadeamento dos acontecimentos, errou também no seu número. Para além de dar como provados factos (em qualidade) e em número superior àqueles que realmente ocorreram, não foi capaz de estabelecer e fixar um número concreto para tais ocorrências, tanto referindo cinco ocasiões (e dentro destas, duas) como oito ocasiões, tornando absolutamente ininteligível a base condenatória e, por conseguinte, a rigorosa e dirigida sindicância da condenação.
18. A decisão recorrida foi ainda mais longe do que aquilo que a própria menor afirmou, extrapolando as suas declarações para suprir lacunas narrativas, acabando a ficcionar factos (que erradamente deu por provados), o que é inaceitável.
19. A conclusão de que o recorrente teria feito descer as mãos até às nádegas da vítima em cinco (ou oito?) ocasiões distintas não se baseia em prova nenhuma identificável. A única contabilização semelhante realizada pela ofendida (“umas 5 vezes para aí”) diz respeito à posição do recorrente quando fazia as massagens e não ao alegado toque nas suas nádegas.
20. Inexiste prova convincente de que o recorrente teria tocado nos seios da ofendida. A ofendida não conseguiu precisar as ocasiões (em local, em data ou número) do alegado toque nos seus seios.
21. Inexiste prova convincente que o recorrente alguma vez tenha tentado entrar no quarto da ofendida no período noturno para “ato contínuo” tentar colocar as mãos na sua zona vaginal. A ofendida não refere ou identifica local, hora do dia e modus operandi. Mais, refere que não sabe se teria 13 ou 14 anos nessa ocasião. A decisão presume que tinha 13 anos e ficciona o restante, mas não pode presumir, sem prova, in dubio contra reo, nem muito menos pode ficcionar.
22. Inexiste prova convincente que o recorrente alguma vez tenha entrado no quarto da ofendida, à noite, para lhe beijar uma das nádegas quando esta vestia calções e a ofendida refere que uma vez o recorrente o fez, mas, uma vez mais, não identifica local, hora do dia e modus operandi.
23. Inexiste prova convincente que o recorrente alguma vez tenha entrado no quarto da ofendida, no decurso da noite, para se deitar ao seu lado e passar a mão pela lateral do seu corpo e a ofendida refere que uma vez o recorrente se deitou ao seu lado, mas não refere nada mais em concreto e, uma vez mais, não identifica local, hora do dia e modus operandi.
24. Inexiste prova convincente que, quando a vítima tinha 14 anos, o recorrente terá entrado no quarto da ofendida, no decurso da noite, para lhe massajar as costas, tendo-lhe baixado as calças do pijama, expondo as cuecas, deitando-se sobre o seu corpo, ficando com o pénis ereto e pressionando o seu corpo até lograr o orgasmo e a ejaculação. A ofendida não afirma nada do que a este respeito refere, a decisão recorrida, apenas que o recorrente se chegou a colocar em cima dela quando estava a massajar-lhe as costas e que, em duas ocasiões esfregou o corpo no seu, não tendo notado qualquer orgasmo ou ejaculação do recorrente. 
25. Mais a psicóloga que tomou contacto com o caso apenas referiu que a criança lhe relatara “alguns comportamentos que ela julgava impróprios e inadequados na relação do padrasto com ela, na altura”, isto sem alguma vez referir ou concretizar qualquer abuso sexual, como entendeu que entre dia 8 de Maio e dia 13 de Maio não se mostrava necessária qualquer queixa imediata ou urgente o que bem demonstrava não ter entendido a situação como sendo de risco para a criança.
26. O Tribunal a quo não realizou a localização temporal dos factos com o rigor exigível, preferindo extrapolar e tresler as declarações da ofendida que nem sequer apontam para o que foi determinado no acórdão.
27. A ofendida prestou declarações para memória futura em junho de 2019, o que coloca os factos identificados em março/abril de 2019. Nesta data a ofendida tinha 14 anos (feitos em dezembro de 2018) e não 13. Isto não se relevou e foi erradamente decidido na decisão recorrida.
28. Pelo contrário, deu-se especial enfâse a um período temporal (verão de 2018) que a menor não identifica com a menor precisão, e em que é totalmente inverosímil terem ocorrido os factos dados como provados, devido às viagens realizadas e à presença de vários outros familiares na casa dos envolvidos e nos locais identificados, 
29. A decisão recorrida acrescenta aos factos erradamente dados como provados, erros manifestos nos factos dados como não provados ao não atender a prova que impunha decisão diversa, desde logo através de uma intolerável lógica de inversão do ónus da prova.
30. A decisão recorrida não apenas dá erradamente como provado que o recorrente ejaculou, como ainda refere que não se provou que o recorrente não tenha ejaculado, sendo que esta formulação pela negativa (“não se provou que o arguido não tenha ejaculado”) resulta da errada desvalorização das declarações do recorrente, do relatório técnico-científico junto pela defesa, da perícia forense às calças do arguido, das declarações da mãe da ofendida, das próprias declarações da ofendida e do ónus da prova.
31. Repete-se, a ofendida que não notou qualquer orgasmo ou ejaculação do recorrente pelo que devia ter sido dado como provado que o recorrente “não ejaculou”, ou no limite, dado como não provado que o recorrente “ejaculou” (fazendo operar o princípio in dubio pro reo), mas nunca, como foi o caso, formular-se como facto não provado que o recorrente “não ejaculou”, o que constitui uma dupla negativa de prova impossível e sem qualquer sustentação na prova de facto produzida.
32. O Tribunal a quo errou ao dar como não provada a relativa inexperiência sexual do recorrente, bem como a relação com mulheres da sua idade ou mais velhas, nunca mais novas e muito menos menores, fazendo tábua rasa das declarações do recorrente, como se tal não constituísse prova valorável (erro que se repete ao longo da decisão).
33. Apenas inaceitáveis lógicas de inversão do ónus da prova, alheamento da prova produzida e que aponta justamente no sentido inverso (concretamente os relatórios técnico-científicos, o depoimento do recorrente, da mãe da ofendida e do seu irmão) explicam que o Tribunal a quo tenha escolhido nova e errada formulação pela dupla negativa quanto ao elemento subjetivo do tipo (resultou não provado que o recorrente não tivesse intuito de obter gratificação sexual).
34. Os enviesamentos e extrapolações constantes da acusação acabaram, na sua maioria, por ser plasmados na decisão recorrida, sem qualquer base probatória, assentes apenas na sobrevalorização das declarações da ofendida a ponto de se lhe atribuir palavras que não proferiu e na manifesta desvalorização das declarações do recorrente ou de prova testemunhal em sentido semelhante ao seu ou prova testemunhal abonatória.
35. A decisão recorrida ignorou olimpicamente a prova produzida quanto ao verão de 2018, designadamente aos períodos de férias da família e aos habitantes da casa e respetivos quartos. A própria ofendida referiu que esteve o mês de agosto de 2018 quase todo com o pai e com o irmão em Angola; que logo no início das férias em junho se deslocou com os familiares ao Porto; que durante o mês de julho esteve três semanas em casa com os familiares (avós e tia), dormindo no sótão na companhia da tia materna, ficando os avós no seu quarto, o que preenche praticamente na totalidade o período em causa. Novamente, não se escrutinou devidamente a prova, inverteu-se o seu ónus e decidiu-se in dubio contra reo, sobrevalorizando-se o inverosímil.
36. Ao dar como não provado que o recorrente “tenha vindo a penitenciar-se da sua apurada conduta” e que “seja incapaz de reconhecer limites a decisão recorrida entra na esfera da alienação, da prova (declarações do arguido) e da razoabilidade (regras da experiência comum e referência do Ministério Público que valorizou o arrependimento do arguido).
37. Esta conclusão determina a nulidade da sentença, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2 do CPP, uma vez que o acórdão se limitou a concluir sem fundamentar, nulidade que é de conhecimento oficioso.
38. Refere a decisão recorrida que se atendeu ao princípio in dubio pro reo, o que não parece, de todo, ter-se realizado de forma correta. O princípio in dubio pro reo é princípio basilar do Direito Penal que determina que, em caso de dúvida e dúvida razoável, deve adotar-se uma decisão não condenatória. E que decidir-se o contrário é violar o preceito constitucional onde este mesmo princípio se insere, concretamente o art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa que, se encontra, in casu, portanto, violado.
39. Decidiu o Tribunal a quo “ter o arguido por não credível” (p.20 da decisão recorrida), sem que se explicite ou compreenda porquê. Depreende-se, aliás, que o arrependimento expresso pelo recorrente não apenas se não se considerou para o beneficiar, como se valorizou contra reo, para o descredibilizar, o que é intolerável.
40. O próprio Tribunal a quo assume igual valor das declarações do recorrente prestadas no inquérito e no julgamento, mas nada faz para valorizar a coerência entre as mesmas, procurando literalmente “pescar” incoerências artificiais ou meramente semânticas, violando o princípio da livre apreciação da prova (ínsito no art. 127.º do CPP)
41. Também se revelam erros quanto à apreciação das declarações das testemunhas:
 testemunha DD - valorizaram todas as declarações que pudessem sustentar uma decisão condenatória, levando todos os restantes factos, abonatórios ou adensadores da dúvida penalmente valorizável, aos factos não provados. A decisão recorrida, chega ao cúmulo de considerar a testemunha “não credível, nomeadamente ao aventar que nunca se apercebeu de nada, que apenas tomou conhecimento da situação aquando da sua vinda a juízo”, o que constitui evidência de juízo previamente constituído e que roça a suspeição injustificada sobre a boa fé e lisura de uma testemunha idónea. 
 testemunha EE tida por credível e “parcial” e “não credível” ao mesmo tempo
 testemunha FF - nada se diz sobre a valorização das suas declarações e o contraponto com os factos provados e não provados
 testemunha GG - testemunho “no essencial, contribuiu para os factos dados como não provados”, apesar de o seu depoimento ir exatamente no sentido de confirmar os períodos que passou na casa da ofendida.
 testemunha HH - testemunha abonatória, e por isso descredibilizada e etiquetada de “parcial” .
42. A decisão condenatória parece ter sido construída em momento prévio à sua motivação, o que é uma verdadeira perversão do espírito jurídico constitucional e penal, mas também uma violação das suas normas, dos princípios da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), in dubio pro reo (art. 32.º, n.º2 da CRP), da legalidade (art. 29.º, n.º1 da CRP), necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso (art. 18.º, n.º 2, da CRP), o que influiu diretamente a condenação, tanto na natureza, quantum e regime de cumprimento da pena principal, como das penas acessórias, bem como o cálculo da indemnização arbitrada.
43. Razão pela qual se impõe a reversão da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere toda a prova produzida e se cinja à mesma, que não ficcione factos ou narrativas e que respeite os princípios constitucionais e jurídico-penais referidos.
44. o recorrente praticou atos incorretos, inapropriados  e merecedores de censura.  Todavia, julgamos que tais atos se enquadram na esfera penal do art. 170.º do CP (conjugados com o n.º 3 do art. 171.º do mesmo diploma) e não do art. 171º, n.º 1 do CP, isto porque entendemos não estar provado o preenchido o conceito jurídico de “ato sexual de relevo” tipificado neste último preceito.
45. Devem, pois, os factos em causa serem enquadrados no âmbito do art. 170.º do CP e não do n.º 1 do art. 171.º do CP, como erradamente fez a decisão recorrida, incorrendo em violação deste último preceito. Por outro lado, entendemos também que constitui violação do art. 172.º n.º1 do CP, a condenação no crime aí p. e p. operada pela decisão recorrida, quando dever-se-ia recorrer, no caso do crime em causa, à aplicação do n.º2 desse mesmo preceito.
46. Concedemos que constitui fator agravante (p. e p. no art. 177.º, n.º1 al. b) do CP), in casu, o recorrente viver com a sua enteada na mesma habitação, tendo sobre si um pendor de responsabilidade que não soube delimitar e respeitar, não tendo observado e, pelo contrário, tendo claramente ultrapassado os limites aceitáveis da intimidade familiar.
47. Todavia, a idade da ofendida assume essencial relevância in casu, sendo que a prática dos factos, a ter ocorrido após dezembro de 2018 (data em que perfez 14 anos), como achamos mais provável atendendo à globalidade da prova produzida, veda a priori a aplicação do art. 171.º do CP, sendo que sempre teriam que se enquadrar, todos os factos de relevo, factos no âmbito do referido art. 172.º do CP.
48. Há que aferir-se também in casu o impacto que a concreta conduta do recorrente teve na autodeterminação sexual da menor, uma vez que a idade da ofendida, a não ser considerada ser superior a 14 anos de idade (como julgámos que a prova aconselha a fazer), sempre deve ser considerada objetivamente uma idade limítrofe do patamar penal seguinte (e menos gravoso) a considerar (14 a 18 anos de idade, cfr. Art. 172.º do CP). 
49. Nestes termos, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 171.º e 172.º, n.º 1 do CP, no que diz respeito à natureza das condutas em si mesmas consideradas e à afetação do bem jurídico pelas mesmas provocada, impondo a sua substituição por decisão não violadora destes preceitos jurídico-penais.
50. Resulta amplamente provado nos autos (declarações do recorrente, da mãe e irmão da ofendida, interpretadas por recurso às regras da experiência comum) que foi a própria ofendida que, em muitas ocasiões, pediu ao recorrente para lhe realizar as massagens e que confirmam que o aconteceu foi o degenerar de algumas dessas massagens numa conduta de cariz sexual.
51. As massagens, cuja recusa foi sempre pelo recorrente respeitada, não pode ser encarada, atendendo às regras da experiência comum, da mesma forma que a busca ativa de uma prática sexual dirigida.
52. O que o recorrente não teve, de facto, foi controlo e capacidade crítica para perceber que não pode existir determinado tipo de intimidade. Todavia, ter errado por não se coibir de realizar as massagens e não ter sabido controlar-se e interromper as mesmas quando, pontualmente, verificou que tal lhe provocara uma reação de excitação física inadvertida, não é o mesmo que uma realização dolosa da ação típica tal como configurada pelo Tribunal a quo. O grau de culpa do recorrente é manifestamente inferior àquele considerado pelo Tribunal a quo na decisão recorrida.
53. Termos em que se entende que não está plenamente preenchido o elemento subjetivo dos tipos criminais em causa, ou pelo menos não nos termos configurados pela decisão recorrida. Razão pela qual se impõe decisão diversa, que corretamente aprecie o preenchimento do elemento subjetivo do tipo à luz da prova recolhida, concretamente do perfil intelectual, cognitivo e social do recorrente, do seu estado psicológico no contexto das condutas praticadas, incluindo a motivação de diminuir as dores musculares da menor, e, essencialmente, valorando, por recurso às regras da experiência comum e não de um juízo condenatório pré-concebido, a pontual incapacidade de autocontrole e repressão manifestada quando as massagens em causa.
54. São vários os factos dados como provados, que, genericamente, se aplicaram a todas as situações que, na perspetiva do acórdão condenatório, ocorreram, o que sustenta o preenchimento dos pressupostos do artigo 30.º do CP, visto que estamos perante crime continuado (uma ação unitária porque os diversos atos e meios integram uma única resolução de vontade - assumindo, sem conceder, a existência dessa vontade “consciente”), porquanto se verifica unidade de desígnio.
55. Resultando claro que os factos dados como provados dizem respeito a um idêntico contexto situacional, comandado por uma mesma resolução, e traduzindo-se numa mesma lesão do bem jurídico protegido, é um crime continuado que está em causa, devendo aplicar-se o disposto no art. 30.º, n.º2  do Código Penal.
56. Caso não se entenda que a unidade de ilicitude se aplica a todas as situações, sempre se dirá que a união na resolução continuada é patente nos casos temporalmente próximos ou pelo menos naqueles em que, pela proximidade que têm, há uma unidade de dolo numa mesma linha psicológica continuada. Embora defendamos que esta unidade psicológica está, de acordo com os factos dados como provados, presente em todos os casos retratados, estão especificamente nesta situação, pelo menos, os casos tidos por ocorridos no “verão de 2018” (pontos 20 a 23 da matéria de facto provada).
57. Ora, a decisão recorrida exibe uma dualidade com a qual não podemos conformar-nos. Se, por um lado, se cita de forma rigorosa o abstrato padrão aferidor do tipo e medida da pena, por outro aplica de forma absolutamente despropositada e desequilibrada o mesmo, violando dessa forma o disposto nos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
58. Desde logo porque entende serem bastante elevadas as exigências de prevenção geral e especial, quando, na verdade, tais exigências se não revelam, de forma alguma, particularmente elevadas no caso presente.
59. Ao contrário do que transparece do espírito da decisão recorrida, o risco de reincidência do recorrente nas condutas censuráveis que adotou é muitíssimo diminuto, desde logo porque as mesmas resultaram de um contexto muito próprio e irrepetível, mas também porque o recorrente demonstrou claramente ter percebido e interiorizado o desvalor das condutas que adotou.
60. Mais, como se provou (e se denota, ainda que de forma deficiente ou insuficiente na decisão recorrida) existem factos essenciais e circunstanciais que abonam a favor do arguido, como são, designadamente, o seu carácter e personalidade pacífico, respeitador e centrado na família, a relação de proximidade, carinho e respeito que mantinha e mantém com a companheira, mãe da vítima, o dever e o sentido de profissionalismo expressos na atividade profissional que sempre exerceu, a ausência de antecedentes criminais, o acompanhamento clínico que procurou pelos seus meios antes da decisão condenatória e se mantém até hoje, o exímio cumprimento do regime de apresentação periódica às autoridades e de proibição de contactos a que se encontra sujeito à ordem do presente processo. 
61. Impõe-se, em caso de condenação a aplicação de uma pena particularmente atenuada, que considere, em toda a sua expressão, âmbito e alcance passado, presente e futuro, considerando particularmente o projeto de vida do recorrente, apenas assim se respeitando, e não violando como fez a decisão recorrida, o disposto nos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.  
62. O cálculo das penas parcelares, bem como o cúmulo jurídico das mesmas, são manifestamente excessivos, não são de todo compagináveis com o contexto específico do caso, nem com o modo de atuação do recorrente, nem com a sua conduta anterior e posterior à prática dos factos, muito menos atentas as considerações de natureza preventiva que in casu se possam exigir.
63. O acórdão recorrido não fundamenta devidamente (em profundidade ou sentido) qual é o entendimento quanto às necessidades de prevenção geral e especial que se verificam in casu. Esta abstração e ausência de apreciação do caso concreto não podem validar a aplicação de penas com uma severidade acima do padrão legal, concretamente pelos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal, que assim se mostram violados.
64. É certo que o arrependimento pode atenuar as exigências de prevenção especial (e ser inclusive causa justificativa para uma atenuação especial da pena), mas, no limite, a ausência de circunstância atenuante não equivale à existência de circunstância agravante.
65. Tudo isto é ainda mais grave quando o referido arrependimento do arguido existe, foi manifestamente expresso, reiterado e relevado inclusive pelo próprio Ministério Público.
66. Assim, o juízo de prognose foi, em violação daqueles citados preceitos do Código Penal, erradamente emitido.
67. Se colocarmos a situação do recorrente, tal como evidenciada e dada como provada no acórdão recorrido, numa equação comparativa com outros casos de crimes sexuais de “abuso” contra menores (mesmo quando entendemos que a “importunação” é o enquadramento mais correto), com preenchimento de todos os elementos do art. 171.º, n.º 1 e da agravante do art. 177.º, n.º1 al. b) do CP, a situação do recorrente transfigura-se e afasta-se das necessidades associadas ao padrão punitivo de casos comparados.
68. Neste contexto, as penas parcelares terão necessariamente que ser modificadas, tendo como guia todos os parâmetros de facto acima enunciados quanto à violação dos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
69. É também ininteligível o critério interno aplicado e que determinou a aplicação de dois anos e sete meses de prisão para alguns crimes, dois anos e seis meses para outro e dois anos para outros ainda, com nove meses para o crime na forma tentada. 
70. Do mesmo modo, quanto às penas parcelares propriamente ditas, atendendo aos mesmos critérios, todas as penas deverão ser reformuladas para próximo dos mínimos legais, tanto na situação de se verificar concurso de crimes como na de crime continuado.
71. A conduta anterior aos factos e a posterior a estes terão que ser valoradas como positivas.
72. O recorrente não tem antecedentes criminais de crime e, muito menos, da mesma natureza, é primário e está socialmente integrado.
73. O próprio relatório social refere a possível pertinência de consulta médica de acompanhamento, acompanhamento esse que o recorrente procurou por sua iniciativa e pelos próprios meios, junto de dois profissionais distintos e complementares, das áreas da psicologia e psiquiatria clínicas, muito antes da decisão condenatória.
74. Há motivo preponderante para nos afastarmos das decisões do acórdão condenatório e das escassíssimas considerações justificativas no mesmo apresentadas, e considerar violados os 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
75. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade das normas constantes nos artigos 71.º, 72.º e 73.º, em conjugação com o artigo 40.º, todos do C. Penal, na dimensão interpretativa que permita não ter em devida consideração os fundamentos da prevenção especial para determinação da pena concreta privativa da liberdade por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstrato ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
76. Com a reforma das penas a aplicar que se impõe, particularmente a que deriva do concurso de crimes e do crime continuado, e ainda que a matéria quanto a este segmento do recurso não proceda, a pena única resultante do cúmulo deverá, por todas as razões acima apontadas, situar-se nos 5 anos, por forma a poder ser equacionada a suspensão da sua execução, nos termos do artigo 50.º e seguintes do Código Penal.
77. O acórdão recorrido não apresenta a fundamentação concreta devida, em particular para aplicar a pena de prisão efetiva, duríssima, que aplicou. A suspensão da execução da pena não afronta o Direito, mais a mais atendendo à conduta anterior e presente do recorrente, resultando suficientemente provado que é provável que este irá sentir a condenação como uma solene, muito séria e severa advertência, ficando a preocupação da sua reincidência totalmente prevenida com a simples ameaça de aplicação de prisão efetiva.
78. A pena de prisão efetiva não tem qualquer suporte nos autos, violando-se, se à mesma se recorrer, o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.
79. Sem conceder, impondo-se a condenação do recorrente entendemos que o Tribunal a quo, ao aplicar a pena efetiva de 7 anos de prisão, violou, face aos factos apurados em sede de declarações para memória futura da vítima e em julgamento, o disposto nos arts. 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
80. O cálculo da pena foi manifestamente excessivo e desproporcional. Tal excesso retira-se do facto de não serem compagináveis com o contexto específico do caso, nem com o modo de atuação do recorrente, nem com a sua conduta anterior e posterior à prática dos factos, muito menos atentas as considerações de natureza preventiva que in casu se fazem sentir.
81. Nos termos dos artigos 40.º, 71.º, 72.º e 73.º todos do Código Penal, ponderada a ilicitude global do facto, a culpa do recorrente e as exigências de prevenção requeridas, uma pena situada acima no primeiro quarto da moldura penal abstratamente aplicável, ainda realizará, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, considerando-se mais adequada ao caso concreto e à medida da culpa do recorrente, pena igual ou inferior a 5 anos de prisão, devendo, no entanto, a execução da pena de prisão ser suspensa nos termos do artigo 50.º e seguintes do Código Penal, pois é de concluir que a censura do facto, um regime rigoroso de prova e acompanhamento e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
82. Justifica-se, pois, que a pena seja reduzida para pena igual a 5 anos e suspensa na sua execução pelo período máximo permitido pelo artigo 50º, n.º 1 e 5 do CP, se entendendo necessário, porventura com a imposição de regras de conduta também nos termos do referido art. 50.º do CP.
83. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante no artigo 50.º, em conjugação com o artigo 40.º, todos do Código Penal, na dimensão interpretativa que permita não suspender a pena na sua execução por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstrato ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
84. Também o recorrente entende, de acordo com os fundamentos que supra se expenderam, arguir que a aplicação das penas acessórias previstas nos arts. 69.º-B, n.º2, 69.º-C, n.º2 e 69.º-C, n.º 3 não é necessária, nem adequada, nem proporcional.
85. Julgamos não estar, no caso concreto, preenchido requisito material da “especial censurabilidade” que presidiu à aplicação das penas acessórias em causa. Este entendimento baseia-se na fundamentação que acima se expendeu a propósito da pena principal. E tal bastará para sindicar este aspeto da decisão recorrida, uma vez é esta mesma decisão que se limita a fundamentar a decisão da sua aplicação, por mera remissão genérica para os argumentos “atinentes às penas principais aplicadas”, o que em si mesmo constitui uma espécie de para-automaticidade, violadora do art. 65.º, n.º1 do CP.
86. Inexistem in casu quaisquer necessidades justificativas, para coartar direitos civis e profissionais ao recorrente em acréscimo à pena decretada (que já tem impacto na vida profissional e na amplitude de exercício dos direitos civis do recorrente). É acrescentar penas desproporcionadas à pena já de si desproporcionada.
87. Muito menos se compreende que se decida a aplicação das penas acessórias em período relativo ao máximo aplicável superior ao período decidido para a pena de prisão. Não faz sentido, evidentemente, e constitui violação grosseira do disposto nos arts. 65.º, n.º1, 69.º-B, n.º2 e 69.º-C, n.ºs 2 e 3 todos do Código Penal.
88. Justifica-se, pois, que não se apliquem as penas acessórias em causa, ou quaisquer outras, ou que, no limite, as mesmas vejam o seu quantum significativamente reduzido, com base em fundamentação específica e concreta, aplicada de forma necessária, adequada e proporcional.
89. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade das normas constantes nos artigos 69.º-B, n.º2 e 69.º-C, n.ºs 2 e 3, em conjugação com o artigo 65.º, n.º 1, todos do Código Penal, na dimensão interpretativa que permita não ter em devida consideração os fundamentos da prevenção especial para determinação das penas assessórias ali previstas, por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstrato ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
90. Em conjugação do disposto no art. 16.º da Lei 130/2015, de 4 de setembro, do art. 67.º-A do CPP (no que diz respeito à qualificação da ofendida como “vítima especialmente vulnerável”) e do art. 82.º-A do CPP, decidiu o Tribunal a quo arbitrar, a título de reparação, o valor de €10.000,00 (dez mil euros), a entregar ao pai da vítima BB, que exerce no momento as responsabilidades parentais. Estamos em crer que, assim como as penas principal e acessória se mostraram desproporcionadas, também esta reparação o é.
91. Desde logo, não tendo sido observado o necessário contraditório imposto pelo artº 82º-A CPP, vem-se arguir o vício em causa, que determina a anulação da sentença nesta parte.
92. Refere a decisão recorrida estarem plenamente preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, o que determina o arbitramento da quantia indicada. Entendemos que assim não é.
93. A culpa do recorrente deve ser graduada corretamente (nos termos do art. 487.º do Código Civil), algo que não julgamos ter-se verificado. Consubstanciando, por isso mesmo, um erro de interpretação e aplicação da norma (art. 487.º do CC).
94. Os danos sofridos pela vítima carecem de identificação mais rigorosa, assim como o respetivo estabelecimento do nexo de causalidade entre facto e dano.
95. Trata-se, em concreto, de sindicar o entendimento segundo o qual a prova realizada é prova suficiente para que se considere preenchido o pressuposto específico previsto no art. 483.º do Código Civil e, especificamente, no art. 563.º do mesmo Código, a fim de justificar a fixação de uma indemnização. Tal prova direcionada não se fez, nem se fundamentou a decisão neste aspeto, pelo que quedam violados os arts. 483, e 563.º do CC.
96. Já quanto ao quantum indemnizatório, o mesmo não mereceu na decisão recorrida qualquer esforço de fundamentação que permita a sua compreensão ou sindicância judicial informada. Facto que em si mesmo, encerra um erro de aplicação das normas em causa. 
97. A indemnização calculada pelo tribunal a quo é manifestamente incompreensível e, não constituindo uma exorbitância, parece excessiva atendendo aos factos, circunstancialismo e danos sofridos pela vítima. Não se encontram documentados nos autos danos físicos que a vítima tenha sofrido e os danos psicológicos que sofreu tiveram, pela prova produzida, ainda assim, manifestações muito limitadas no tempo e na intensidade. Por outro lado, a vítima foi viver com o pai para Angola, não na busca de subterfúgio do sofrimento de que padecia, mas como concretização de um projeto de vida que há muito mencionava ter, como a própria afirmou e a sua mãe confirmou. Por estas razões julgamos resultar claro que a quantia arbitrada a título de reparação indemnizatória é manifestamente exagerada.
98. Não se conforma o recorrente com a decisão recorrida, onde se entende estarem preenchidos in casu os pressupostos da responsabilidade civil, sem que verdadeiramente se fundamente tal preenchimento, fazendo operar uma reparação quasi-automática que não tem respaldo na lei. 
99. Ao decidir nesse sentido incorreu a decisão recorrida em erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas supra invocadas, mormente o disposto nos arts. 483.º, 484.º, 487.º e 563.º do Código Civil, aos quais se recorre no seguimento da também erada aplicação do art. 16.º da Lei 130/2015, de 4 de setembro e do art. 82.º-A do CPP.  
100. Vem o recorrente, face a tudo o que se deixou dito, requere que o Tribunal ad quem se digne a repor a legalidade da ordem jurídica, alterando a decisão recorrida nos termos que ora se reclamam e decidindo, concretamente, pela improcedência da retribuição indemnizatória arbitrada, ou, assim não se entendendo, pelo arbitramento da mesma em quantia significativamente inferior, em necessidade, relevância e alinhamento com a gravidade dos factos e os danos verdadeiramente provados que vítima terá sofrido. 
Termos em que devidamente apreciados os factos e argumentos do presente recurso, deve ser revogada a decisão recorrida e operada a substituição por acórdão que tenha em conta a possibilidade do arguido ora recorrente cumprir pena em comunidade com o que se respeitará a Lei, cumprirão os ditames do Direito e se fará a devida JUSTIÇA …”.
*
O Exm.º Magistrado do MP respondeu ao recurso a fls. 441/473, concluindo nos seguintes termos:
“… 1) – O acórdão recorrido não padece da nulidade a que alude o art. 379º , nº 1 , alínea a) do C.P.P..
2) - Com efeito , o acórdão recorrido foi elaborado com respeito por todos os requisitos impostos no art. 374º , nº 2 do C.P.P. , tendo , em especial , expressado os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão e as provas que serviram de base para formar a convicção do Tribunal , os quais permitem seguir , de forma segura e inequívoca , o exame do processo lógico ou racional que esteve na base da decisão do tribunal.
3) - Assim, lendo-se a decisão recorrida , é fácil constatar que ela cumpre minimamente os supra citados desideratos legais , sendo claramente perceptível, ao contrário do alegado , o motivo pelo qual os Mmos. Juízes decidiram dar como provados determinados factos e , em simultâneo , dar como não provados outros. – cfr. fls. 17 a 26 do acórdão.
4) – A decisão recorrida também não padece do vício a que alude o art. 410º , nº 1, alínea c) do C.P.P..
5) - O erro notório na apreciação da prova só existe quando esse é de tal forma evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores, ou seja , quando o homem médio facilmente dele se dá conta, devendo o mesmo resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Não é esse, em nosso entendimento, o caso do douto acórdão recorrido.
6) – O facto de não se ter dado como provado o arrependimento sincero do arguido não configura a existência do apontado vício.
7) – Todavia, afigura-se-nos que o acórdão recorrido padece efectivamente das contradições insanáveis enunciadas no recurso interposto pelo arguido –isto é , do vício a que alude o art. 410º , nº 1 , alínea c) do C.P.P..
8) - A contradição em apreço resulta , como refere o recorrente, do número de “ocasiões” referidas indistintamente nos pontos 14 e 15 dos factos dados como provados, resultando assim por apurar se efectivamente são cinco ou oito.
9) – Tal circunstância faz com que os factos descritos nos citados pontos 14 e 15 sejam manifestamente contraditórios.
10) - E tais factos são igualmente contraditórios com a factualidade descrita nos pontos 31 a 33 da matéria de facto dada como provada , e bem assim com os factos dados como não provados , uma vez que se refere , uma vez mais , que são cinco ou oito “ocasiões” , indistintamente , sendo inviável descortinar quantas dessas situações o Tribunal “ a quo” deu como provadas e não provadas.
11) - Ora , tais contradições são insanáveis (inultrapassáveis) , resultam do próprio texto da decisão recorrida , por si só , e são relevantes para efeitos de apuramento do número de condutas criminosas efectivamente praticadas pelo arguido. Seja como for ,
12) - Cumpre referir que o Tribunal “ a quo “ fez um correcto apuramento e valoração da matéria de facto , segundo as regras da experiência , em obediência ao preceituado no art. 127º do C.P.P..
13) - A prova que serviu de base à formação da convicção do Tribunal , designadamente no que concerne ao depoimento das diversas testemunhas arroladas pela acusação (das quais se destaca a ofendida BB) , e demais prova documental junta aos autos , é manifestamente suficiente para fundamentar a decisão de facto que foi proferida.
14) - Em especial , julgamos que essa mencionada prova foi suficiente para que se pudessem dar como assentes , como efectivamente foram , os factos descritos nos pontos 10 a 26 , 28 a 32 , e 33 a 50 da matéria dada como assente , e bem assim todos os factos dados como não provados (pontos concretamente impugnados).
15) - Sendo efectivamente suficiente essa mencionada prova , outra solução não restava ao tribunal que não fosse dar os referidos factos como provados , não existindo , pois , qualquer violação do princípio in dúbio pro reo.
16) - Para além do mais , do teor da decisão recorrida é possível apreender , com precisão e clareza , os motivos pelos quais foi dada credibilidade ao depoimento das testemunhas arroladas pela acusação , sendo perceptível o raciocínio lógico seguido pelo Tribunal , e a razão pela qual , apesar de o arguido os não ter confirmado na sua globalidade , tais factos terem sido dados como provados.
17) - A conclusão que os Mmos. Juízes alcançaram quanto à verificação dos factos dados como provados é logicamente aceitável e , como tal , não nos merece qualquer censura.
18) - Nenhuma censura nos merece , igualmente , o enquadramento jurídico da matéria de facto dada como assente. Com efeito ,
19) - Os factos dados como provados integram os tipos de crime pelos quais o arguido foi condenado – abuso sexual de criança.
20) - Assim , importa ter presente que , para além do mais , ficou provada a prática pelo arguido de acto sexual de relevo ( vários até ) , entre os quais se destaca os referidos nos pontos 15 ,16 , 29 e 30 da matéria de facto dada como provada.
21) - Deste modo , outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal senão a condenação do arguido pela prática dos diversos crimes que lhe eram imputados, tanto mais que resultaram igualmente provados os elementos subjectivos relativos aos aludidos ilícitos penais.
22) - Do mesmo modo , estamos convictos que não existem motivos de facto que possam conduzir à invocada unificação dos seus actos por via da figura do crime de trato sucessivo.
23) - Não se vê , na matéria de facto dada como assente , uma só resolução criminosa a desencadear toda a actividade do agente , mas sim uma actuação heterogénea do recorrente , com alguns episódios intervalados no tempo , e bem assim um critério normativo lógico e coerente a agrupar os actos em cada um dos episódios por que houve condenações ,
24) - E não se encontra motivo que justifique a unificação das condutas num só crime , nem mesmo em razão de uma qualquer ideia do in dubio pro reo , excepcionalmente operante em sede de qualificação jurídica.
25) - Cumpre mencionar , em seguida , que a determinação da medida concreta das penas (parcelares e única) aplicadas ao arguido recorrente também não nos merece qualquer censura. Na verdade ,
26) - Tendo em conta que a escolha da pena a aplicar ao arguido é alcançada pelo julgador com recurso a critérios jurídicos fornecidos pelo legislador , não se tratando , pois , de um poder discricionário.
27) - E que , se o tipo criminal em causa admite a condenação com uma pena privativa ou com uma pena não privativa da liberdade , o art. 70º do mesmo código impõe que se opte por esta última , se tal se mostrar adequado e suficiente às finalidades da punição expressas no art. 40º.
28) - E bem assim que , para a determinação da pena concreta aplicável ao arguido, pesam as orientações fornecidas pelo art. 71º do C.Penal , nomeadamente as circunstâncias que , não fazendo parte do tipo , deponham a favor ou contra ele,
29) - Atendendo ao quadro fáctico apurado nos presentes autos , consideramos acertada a decisão dos Mmos. Juízes a quo no que concerne à opção pelas diversas penas privativas da liberdade aplicadas ao arguido recorrente , assim como a medida concreta destas encontrada.
30) - E , atendendo ainda às orientações legais prescritas nos arts. 77º e 78º do C.Penal , consideramos acertada a decisão dos Mmos. Juízes a quo no que concerne à medida concreta da pena única do concurso que foi aplicada ao recorrente – 7 (sete) anos de prisão.
31) - Também não nos merecem censura as penas acessórias a que o recorrente foi condenado, a saber: proibição de exercer profissão, emprego, função ou actividade pública ou privada que envolva o contacto regular com menores pelo período de 10 (dez) anos; a proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda de menores, pelo período de 10 (dez) anos; e a inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 10 anos.
32) - Com efeito , cumpre ter presente que a vítima BB é menor de idade – nasceu em 14 de Dezembro de 2004 – e desde data não apurada de 2011 , a sua mãe passou a coabitar com o arguido , como se casados um com o outro fossem - cfr. pontos 1 e 5 da matéria de facto dada como assente.
33) - E o arguido foi condenado pela prática , em autoria material , e em concurso real , vários crimes de abuso sexual de criança , p. e p. pelos arts. 171º , nº 1 , 177º , nº 1 , alínea b) , do C.Penal.
34) - Logo , verifica-se que estavam reunidos os pressupostos a que aludem os arts. 69º-B , nº 2 e 69º-C , nº 2 do C.Penal e , em consequência , podiam e deviam ter sido aplicadas ao ora recorrente as penas acessórias requeridas no libelo acusatório.
35) - Mais , tendo em conta a gravidade dos factos em apreço , a culpa do arguido (dolo directo) , os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e a conduta anterior aos factos e posterior a estes , e as consequências que resultaram para a vítima , afigura-se-nos ser justa e adequada a medida concreta das penas acessórias – período de 10 anos.
36) - Por último , tendo em conta que a ofendida não deduziu pedido de indemnização civil e não se opôs à aplicação do regime jurídico consagrado no art. 82º-A , nº 1 do C.P.P. , importava fixar a quantia indemnizatória que lhe era devida por força da condenação do arguido pela prática do crime de abuso sexual de criança ,
37) - Sendo certo que o recorrente , com a notificação da acusação , tomou logo conhecimento da possibilidade de o Tribunal , em caso de eventual condenação , vir a arbitrar à vítima uma quantia a título de reparação pelos eventuais  prejuízos causados - cfr. fls. 129 – isto é , foi cumprido , quanto a este aspecto , o necessário contraditório.
38) - Ora, considerando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório, demonstrado que ficaram todos os pressupostos da responsabilidade civil do arguido (o facto voluntário do agente ; a ilicitude ; a imputação do facto ao lesante , a título de dolo ou mera culpa ; a ocorrência de dano ; e a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano) , ponderando o seu grau de culpabilidade (elevado) e os danos morais sofridos pela ofendida – que sofreu , por um longo período de tempo medo , humilhação , vexame – afigura-se-nos ser justa e adequada a compensação indemnizatória que foi fixada.
39) - Isto é , a atribuição à vítima BB da quantia de €10.000,00.
Somos , pois , de parecer que assiste razão ao recorrente apenas no que concerne à existência das supra enunciadas contradições insanáveis , devendo negar-se provimento ao demais peticionado no recurso interposto. …”.
*
Neste tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 477, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância.
*
O Arg. respondeu a este parecer, a fls. 480/481, para além do mais, nos seguintes termos:
“... tendo sido notificado do parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa que acompanha “a posição do Ministério Público na 1ª instância, nada mais [se] tendo a aditar à correta argumentação exposta na resposta à motivação”,
vem, muito respeitosamente, apresentar a sua RESPOSTA, o que faz nos termos do artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal e com os fundamentos seguintes:
A resposta do Ilustre Magistrado do Ministério Público do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste - Cascais (doravante MPTC) ao Recurso apresentado pelo recorrente, pode desdobrar-se em três segmentos principais:
Num primeiro, aquela Resposta atribui razão ao recorrente quanto à existência de “contradições insanáveis entre os factos dados como assentes” na matéria de facto provada, na consequência do que afirma não poder “pugnar pela integral manutenção do acórdão recorrido” (cfr. p. 5 da Resposta do MPTC).
Prossegue, explicitando por que motivos considera que, efectivamente, o acórdão recorrido “padece dos vícios a que alude o art. 410º , nº 2 , alíneas b) e c) do C.P.P. Não te[ndo] dúvidas em afirmar que o acórdão recorrido padece efectivamente das contradições insanáveis enunciadas no recurso interposto pelo arguido” (sublinhado nosso),
E conclui afirmando que deve “negar-se provimento ao demais peticionado no recurso interposto” (p. 34 da Resposta do MPTC), não chegando a retirar ilações concretas do que considera serem as referidas contradições “insanáveis (inultrapassáveis)” (p. 11 da Resposta do MPTC).
Com efeito, o MPTC identifica com muita clareza que
“a contradição em apreço resulta do número de ‘ocasiões’ referidas indistintamente nos pontos 14 e 15 dos factos dados como provados, resultando por apurar se efectivamente são cinco ou oito. Tais factos são manifestamente contraditórios. E são igualmente contraditórios com a factualidade descrita nos pontos 31 a 33 da matéria de facto dada como provada, e bem assim com os factos dados como não provados, uma vez que se refere, uma vez mais, que são cinco ou oito “ocasiões”, indistintamente, sendo inviável descortinar quantas dessas situações o Tribunal ‘a quo’ deu como provadas e não provadas.
Existe, pois, o vício que o recorrente pretende assacar àquela peça processual, vício este que é relevante até para efeitos de determinação do número de crimes pelos quais o arguido deve ser condenado” (pp. 10 e 11 da Resposta do MPTC, sublinhado nosso).
Ora, é fundamental ter presente que o cabal esclarecimento da quantidade e qualidade dos episódios considerados provados tem, necessariamente, impacto na determinação do número de crimes por que o recorrente deva ser condenado, bem como, por maioria de razão, na medida da pena a atribuir-lhe.
Medida da pena essa, de resto, para cuja aferição teria sido – e é ainda – imperioso poder apreciar efectivamente por que motivo(s) o Tribunal a quo não considerou genuíno que o recorrente se penitenciasse dos seus actos.
Nas palavras da Resposta do MPTC
“a actividade de fiscalização e de controle por parte dos tribunais superiores, relativamente às decisões proferidas em primeira instância, só pode ser válida e eficazmente exercida se em sentença se relacionarem um a um quer os factos provados, quer os não provados, para além de que só uma indicação minuciosa daqueles revela uma apreciação e julgamento completos, isto é, a certeza de que todos os factos objecto do processo foram efectivamente considerados e conhecidos pelo tribunal com o indispensável cuidado e ponderação (Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, pág. 858 e 859)” (p. 7 da Resposta do MPTC, sublinhado nossos).
Não se entende pois, porque e como considerou o MPTC que o mero elencar das provas nas quais baseou a sua convicção negativa, fosse o bastante para satisfazer aquele requisito, bem como para preencher a necessidade de, nas palavras do MPTC, “convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto”, (p. 7 da Resposta).
É que se não for possível ao Tribunal ad quem aferir dos motivos que levaram o Tribunal a quo a não considerar provado o arrependimento do recorrente, muito menos poderá decidir no sentido de corrigir tal julgamento tão fundamental (desde logo para determinar a medida da pena), se caso de corrigi-lo for.
Também não se entende como, na página 16 da sua Resposta, o MPTC afirma que “no caso presente, e contrariamente ao invocado pelo recorrente, não vislumbramos que das declarações do arguido e do depoimento das diversas testemunhas (nestas se incluindo as declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB), conjugada com a demais prova documental e pericial junta aos autos, resultassem outros factos que não aqueles que os Mmos. Juízes deram como assentes (...)
A decisão recorrida, como já tivemos ocasião de referir, mostra-se igualmente bem fundamentada, (...), ressaltando todo o processo lógico de convicção que permitiu dar como provados os factos ora impugnados.” (sublinhado nosso).
É que perante tais apontamentos do MPTC, não podemos deixar de colocar a questão: a que factos dados por assentes se refere? Às cinco ou às oito ocasiões em que o recorrente teria adoptado certa(s) conduta(s) criminosa(s)?
Perante as contradições insanáveis na matéria de facto provada identificadas na sua própria Resposta, como se justifica a confiança também ali depositada pelo MPTC em “todo o processo lógico de convicção que permitiu dar como provados os factos ora impugnados”? O mesmo se diga face à seguinte afirmação da p. 22 da Resposta do MPTC: “No caso que aqui nos ocupa, atendendo às orientações legais descritas e ao quadro fáctico apurado, o tribunal a quo ponderou e decidiu bem (...)”.
Não tinha, páginas antes, o MPTC considerado que “o quadro fáctico apurado” pelo Tribunal a quo padecia de contradições “inultrapassáveis”?
Veja-se, neste sentido, também como, ao apreciar as alegações do recorrente relativamente à medida da pena, o MPTC afirma, e bem, que aquela não pode “em caso algum, (...) ultrapassar a medida da culpa.” (p. 21 da Resposta do MPTC), mas não faz nenhum reparo à pena em concreto aplicada ao recorrente no acórdão recorrido.
E isto, apesar de antes ter expressado claramente que não era possível aferir com cabal certeza de quantas acções criminosas se tinha o Tribunal a quo convencido que o arguido, ora recorrente, tinha praticado, e porquê.
Assim, viemos pronunciar-nos acerca das Respostas que o Ministério Público ofereceu ao recurso apresentado, visando, sobretudo, chamar a atenção para a cautela que é necessário empregar ao apreciar os vícios invocados, não podendo bastar uma apreciação superficial dos mesmos, nem sequer técnico-formalmente correcta e, muito menos, material ou substancialmente adequada ao caso.
Caso contrário, do que é exemplo a Resposta do MPTC, ficará demasiado por escrutinar e corrigir, pelo que em tudo o mais, remetemos integralmente para o recurso apresentado pelo arguido, que mantemos na totalidade. Termina-se, pois, aqui, como se começou no recurso:
O acórdão condena o recorrente por crimes que não praticou. Os crimes que praticou merecem castigo mas não castigo tão severo e que impossibilite quer a reinserção quer a reparação devidamente determinada. A prisão decretada é pena excessiva e injusta face aos factos realmente praticados e à personalidade do arguido. Os factos que ocorreram devem ser censurados e até punidos, mas não com uma sanção que é, quer nas penas concretas aplicadas, quer na pena única, violadora da lei e dos princípios da tipicidade, da ilicitude e, sobretudo, da culpa, como veremos de seguida. Não se tiveram em devida conta factos essenciais e circunstanciais que foram comprovados.
Motivos pelos quais deve ser revogada a decisão recorrida e operada a sua substituição por acórdão que tenha em conta a possibilidade de o arguido ora recorrente cumprir pena em comunidade. ...”.
*
A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, os princípios da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação.
O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“…. FACTOS PROVADOS:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. A vítima BB nasceu em …………… de 2004, sendo filha de DD e de CC.
2. Os pais da vítima casaram em ………… de 2000, vínculo dissolvido por divórcio em ……………… de 2013.
3. Desde tal altura a vítima ficou à guarda e cuidados de sua mãe.
4. DD e de CC são também pais de EE, nascido em …………….. de 2001, que após o divórcio daqueles ficou à guarda e cuidados de sua mãe.
5. Em data não apurada de 2011, quando a vítima BB contava cerca de sete anos de idade, sua mãe DD passou a coabitar com o arguido, como se casados um com o outro fossem.
6. Desde tal altura que o arguido ficou desde logo ciente da data de nascimento da vítima, e por essa via da sua menoridade.
7. A partir de tal data, a vítima, seu irmão EE e a mãe de ambos passaram a coabitar com o arguido, tendo o arguido ficado desde logo ciente da data de nascimento da vítima, e por essa vida da sua menoridade.
8. A partir de data não apurada de 2016, o domicílio comum da vítima, arguido e demais agregado familiar passou a estar fixado na Rua …………………Alcabideche, área deste município.
9. Quando contava cerca de oito anos de idade, a vítima BB passou a frequentar os escuteiros, sendo que, quando tinha cerca de dez, onze anos, passou a, de quando em vez, sofrer dores nas costas, fruto das actividades físicas que tinha de desenvolver nos escuteiros.
10. A partir de tal altura, o arguido passou, de quando em vez, a fazer massagens nas costas da vítima, a pretexto de atenuar as dores que acometiam a vítima.
11. Nesse contexto, o arguido tinha por hábito abordar a vítima pelas 22 ou 23 horas, quando estava se encontrava no respectivo quarto, no primeiro piso do domicílio comum, e a mãe da vítima se encontrava no piso térreo da residência.
12. Nesse contexto, o arguido tinha por hábito dirigir-se ao quarto da vítima envergando pijama, sendo que no quarto da vítima tinha por hábito tirar a camisola, permanecendo com as calças e as cuecas.
13. Nesse contexto, o arguido tinha por hábito perguntar à vítima se queria uma massagem, ao que a vítima tinha por hábito anuir.
14. Nesse contexto, em cinco ocasiões distintas, de datas que não se conseguiu em concreto apurar, compreendidas no ano de 2018, quando a vítima tinha 13 anos de idade e ainda não tinha completado 14 anos, do que o arguido estava ciente, o arguido começou por massajar com as respectivas mãos as costas da vítima, aplicando creme, fazendo suas mãos descer até às nádegas da vítima.
15. Em todas essas oito ocasiões, o arguido colocou suas mãos nas nádegas da vítima, apalpando-a, por baixo da roupa de pijama que esta envergava, baixando-a, em contacto directo com a pele.
16. Em algumas dessas ocasiões, o arguido tocou com as mãos nos seios da vítima.
17. Nesse contexto, em duas das cinco ocasiões distintas mencionadas acima em 14), em datas que não se conseguiu em concreto apurar, quando a vítima tinha 13 anos de idade e ainda não tinha completado 14 anos de idade, do que o arguido estava ciente, o arguido deitou-se sobre o corpo da vítima, ficando com a sua zona pélvica sobre as nádegas da vítima, até ficar com o seu pénis erecto, em estado de excitação sexual, do que a vítima ficou ciente.
18. Nesse contexto, em data que não se conseguiu apurar em concreto, quando a vítima tinha 13 anos de idade e ainda não tinha completado 14 anos de idade, do que o arguido estava ciente, o arguido entrou no quarto da vítima, no decurso do período nocturno.
19. Acto contínuo, o arguido tentou colocar as mãos entre as pernas da vítima, para lhe tocar a zona vaginal, o que não logrou, por a vítima se ter mexido, repelindo o arguido.
20. Nesse contexto, em data não apurada, compreendida no Verão de 2018, à noite, a vítima estava no respectivo quarto, deitada na sua cama, envergando calções.
21. Então, o arguido entrou no quarto da vítima, e beijou-lhe uma das nádegas.
22. Nesse contexto, em data não apurada, compreendida no Verão de 2018, no decurso da noite, a vítima estava no seu quarto, quando o arguido aí se introduziu.
23. O arguido deitou-se então na cama da vítima, e passou a mão pela lateral do corpo da vítima, do que esta ficou ciente.
24. Em data não apurada, compreendida em Maio de 2019, anterior a dia 13, no decurso da noite, o arguido interpelou a vítima quando esta estava no respetivo quarto.
25. Nessas circunstâncias, a vítima já tinha 14 anos de idade, do que o arguido estava ciente.
26. Nessas circunstâncias, a vítima estava deitada de ventre para baixo na sua cama.
27. O arguido começou então a massajar as costas da vitima.
28. O arguido baixou então as calças de pijama que a vítima envergava, expondo as nádegas da vítima, que tinha vestidas umas cuecas.
29. O arguido deitou-se então sobre o corpo da vítima, ficando com a sua zona pélvica sobre as nádegas da vítima, até ficar com o seu pénis erecto, em estado de excitação sexual, do que a vítima ficou ciente.
30. O arguido permaneceu nesse estado, pressionando o seu corpo sobre o da vítima, até lograr o orgasmo e ejaculação.
31. Em cada uma das oito ocasiões em que o arguido actuou da forma descrita nos artigos 14° a 16°, não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade da vítima, e por essa via que a mesma tinha apenas 13 anos de idade.
32. Em cada uma dessas oito ocasiões, não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data, vivia com a mãe da vítima como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano, na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar os seus propósitos libidinosos.
33. Em cada uma das cinco ocasiões em que o arguido actuou da forma descrita nos artigos 14° a 16°, bem sabia e não podia ignorar o arguido que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos.
34. Em cada uma das duas ocasiões em que o arguido actuou da forma descrita no artigo 17º, bem sabia e não podia ignorar o arguido que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos.
35. Em cada uma das duas ocasiões em que o arguido actuou da forma descrita no artigo 17°, não ignorava nem podia ignorar  o arguido a idade da vítima, e por essa via que a mesma tinha apenas 13 anos de idade.
36. Em cada uma das duas ocasiões em que o arguido actuou da forma descrita nos artigo 17°, não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data, vivia com a mãe da vítima como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar o seu propósito libidinoso.
37. Em cada uma das duas ocasiões em que o arguido actuou da forma descrita no artigo 17°, bem sabia e não podia ignorar o arguido que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos.
38. Ao actuar da forma descrita nos artigos 18° e 19°, não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade da vítima, e por essa via que a mesma tinha apenas 13 anos de idade.
39. Ao actuar da forma descrita nos artigos 18° e 19°, não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data, vivia com a mãe da vítima como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano, na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para envidar tocar a zona vaginal da vítima, o que só não logrou por facto exterior à sua vontade.
40. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao actuar da forma descrita nos artigos 18° e 19°, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual.
41. Ao actuar da forma descrita nos artigos 20° e 21°, não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade da vítima, e por essa via que a mesma tinha apenas 13 anos de idade.
42. Ao actuar da forma descrita nos artigos 20° e 21º, não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data, vivia com a mãe da vítima como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano, na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar o seu propósito libidinoso.
43. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao actuar da forma descrita nos artigos 20° e 21°, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual.
44. Ao actuar da forma descrita nos artigos 22° e 23°, não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade da vítima, e por essa via que a mesma tinha apenas 13 anos de idade.
45. Ao actuar da forma descrita nos artigos 22° e 23°, não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data, vivia com a mãe da vítima como se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano, na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar o seu propósito libidinoso.
46. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao actuar da forma descrita nos artigos 22° e 23°, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual.
47. Ao actuar da forma descrita nos artigos 24° a 30, não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade da vítima, e por essa via que a mesma tinha já completado 14 anos de idade, mas que ainda não completara 18 anos.
48. Ao actuar da forma descrita nos artigos 24º e 30º, não ignorava nem podia ignorar o arguido que, à data, vivia com a mãe da vítima corno se casados fossem, e que por essa via participava no quotidiano na educação e no provimento das necessidades da vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de consigo coabitar e de integrar o seu agregado familiar numa posição de dominância, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar o seu propósito libidinoso.
49. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao actuar da forma descrita nos artigos 24° a 30°, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual.
50. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
AA é originário de uma família de classe média, que lhe proporcionou um ambiente familiar securizante e protector, favorável a um desenvolvimento estruturado e orientado para valores sociais normativos.
Do seu processo de sociabilização não foram recolhidos indicadores da vivência de situações problemáticas no plano do relacionamento interpessoal, sugestivas de negligência, maus tratos ou de qualquer tipo de abuso relativamente a si, seja na área da sexualidade ou outras.
AA fez um percurso escolar regular, com aproveitamento mediano, sem registo de problemas significativos com professores ou pares.
Não sendo um jovem popular, em virtude do seu comportamento mais recatado, tinha o seu grupo restrito de amigos.
O arguido completou o 12° ano, num curso profissional de informática.
No plano profissional o arguido começou a trabalhar aos 22 anos em empresa de prestação de serviços, em áreas administrativas, tendo
feito um percurso positivo, sendo reconhecido pelo sua dedicação e competência nas funções atribuídas.
Neste contexto, veio a ser convidado, em 2004, para integrar os quadros da XX, empresa para a qual trabalhava no regime de outsourcing, e na qual se mantém na atualidade.
AA mostra-se realizado com o seu trabalho como ………………. e parece deter uma imagem positiva junto das chefias, empenhando-se em corresponder às expectativas que nele são colocadas.
Com um salário de cerca de €-1.200,00 líquidos o arguido considera ter uma situação económica equilibrada face ao nível de despesas mensal elevado, decorrente sobretudo da aquisição de casa própria e pagamento de dívida de cartões de crédito.
No plano afectivo, o arguido refere duas relações de namoro significativas, a primeira das quais terá durado 6 anos e teve início depois de estar empregado, aos 23 anos.
A ruptura amorosa, em ambas as situações, é descrita pelo arguido como tendo sido muito difícil no plano emocional, mas sem conflitos ou confrontos graves ou violentos.
A relação do arguido com a actual companheira, DD, mãe da vítima do presente processo, teve inicio no local de trabalho onde foram colegas durante algum tempo, e evoluiu mais  tarde para  namoro  e união de facto em 2012.
AA vivia até então sozinho em apartamento próprio, o qual veio a vender para comprar, em conjunto com a companheira, uma
casa maior, com espaço adequado para o casal e os dois filhos de DD, um rapaz e uma rapariga, que à época da união de facto tinham 11 e 8 anos de idade respectivamente.
A dinâmica do casal surge marcada por cumplicidade e entendimento.
AA seria mais exigente na educação e mais rígido, e a companheira mais permissiva.
É referida pelo arguido boa relação do arguido com os enteados, nomeadamente com BB, e bem assim a disponibilidade dele para cooperar na educação e sustento dos menores, nomeadamente numa fase em que o pai daqueles não pagou pensão de alimentos.
Ainda no plano socio afectivo, AA mantém uma relação de proximidade com a irmã e os pais.
A casa dos quais retomou na sequência da medida de coação de afastamento aplicada no presente processo.
No plano social o arguido revela no presente algum isolamento, contactando alguns amigos pelas redes sociais, o que em parte se deve à fase de pandemia pela Covid-19 e distanciamento físico que se regista no país.
Assim, o seu quotidiano centra-se no trabalho e em casa, junto dos pais, que o apoiam aos vários níveis, não tendo tido nunca hábitos de saídas para diversão nocturna nem tão pouco de consumos abusivos de qualquer tipo.
Relativamente ao presente processo judicial, o arguido não se revê
no papel de agressor sexual, atribuindo a emergência dos autos a uma manipulação da vítima para apressar a sua saída da casa materna e ir viver com o pai em Angola, que veio a acontecer pouco tempo depois.
O seu envolvimento no presente processo tem tido um impacto elevado sobre o arguido, mormente no plano afetivo-emocional, tendo procurado apoio junto do seu psiquiatra, que já o seguia devido a perturbações de pânico anteriormente manifestadas, e bem assim apoio psicológico, sendo seguido em consulta da especialidade desde setembro de 2019.
Encontra-se medicado psiquiatricamente e tem consultas de psicologia com frequência mensal, sendo referida na declaração clínica manifestações de "desespero, ansiedade severa sob a forma de ataques de pânico, depressão e somatização do stress a vários níveis... (sic).
A família tem uma atitude de solidariedade com o arguido, considerando a acusação em causa inverosímil, e a companheira, apesar do sentimento de incredulidade, refere nunca ter conseguido abordar a situação com a filha nem com o arguido, para poder fazer a sua própria leitura dos acontecimentos.
Ambos os elementos do casal mantêm a expectativa de poder
retomar a relação, dependendo, contudo, do desfecho do presente processo.
Apesar da atitude de negação de responsabilidades do arguido nos autos, a sua atitude perante a DGRSP é de algum modo de aceitação da sentença que vier a ser proferida.
AA teve um processo de socialização aparentemente normativo, num quadro familiar e social securizante e sem problemáticas de relevo.
O percurso escolar e posteriormente profissional do arguido caracteriza-se pela regularidade, empenhamento  e sentido de responsabilidade, reconhecido nomeadamente pelos  empregadores. AA revela gratificação com a sua situação profissional e remuneratória.
No plano afectivo, AA manteve a união de facto com DD durante cerca de 7 anos, descrita como uma relação consistente, interrompida com a emergência dos presentes autos, sendo certo que existe uma expectativa de ambas as partes de lhe poder dar continuidade quando a situação jurídica penal se encontrar resolvida.
Com a separação da família constituída o arguido tem contado com o apoio dos progenitores, aspecto relevante para a sua estabilidade emocional.
Este suporte tem sido complementado com apoio terapêutico a que AA recorreu quando foi constituído arguido.
No plano funcional o arguido surge como um indivíduo reservado, com fortes vínculos familiares, não havendo indícios de manifestação de comportamentos agressivos nas relações extra ou intrafamiliares ou de história de consumos abusivos de substâncias psicoativas perturbadoras da sua conduta.
Na sequência da emergência do presente processo o arguido viu a sua estabilidade pessoal e familiar abalada, mostrando uma atitude de negação do papel de agressor que lhe é atribuído.
Neste quadro, a DGRSP considera que, caso haja lugar à sua condenação, será pertinente uma intervenção no caso com enfoque na avaliação e acompanhamento em consulta da área da sexualidade.
Provou-se ainda que:
O arguido não tem antecedente criminal. O arguido nasceu em 19…….
Em audiência admitiu parte dos factos imputados, mas negou a prática da generalidade dos factos imputados.
Admitiu ter tido comportamento inapropriado para com a ofendida.
A menor encontra-se actualmente a residir com o pai em Angola. O pai da menor tem residência também em Sintra.
O arguido foi seguido por psiquiatra de janeiro a junho de 2015. Retomou consultas com o mesmo em 3/12/2019.
Em julho de 2020 esse psiquiatra elaborou plano de medicação destinado ao arguido.
É seguido mensalmente por psicóloga desde setembro de 2019.
Esta, a seu pedido, na sequência de consultas en1 3, 4 e 9/9/2020 elaborou documento destinado aos autos.
O arguido actualmente reside na Rua ………………. Alcabideche.
Em consequência da apurada supra conduta do arguido, a menor passou a sofrer ataques de ansiedade e teve de ter acompanhamento psicológico.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa, para além ou em contrário dos supra vertidos, nomeadamente que o arguido tenha actuado da forma supra descrita em 14) em pelo menos oito ocasiões distintas; que o arguido tenha actuado da forma supra descrita em 17) em pelo menos cinco ocasiões distintas; que o arguido não tenha praticado os factos supra apurados; que o arguido não tivesse intenção de actuar da forma apurada; que o arguido não tenha ejaculado; que o arguido seja inexperiente sexualmente; que houvesse discórdia entre o arguido e a mãe da vítima por causa do comportamento  da menor; que o arguido não tivesse intuito libidinoso; que o arguido não tivesse intuito de obter satisfação ou gratificação sexual; que na acusação haja qualquer enviesamento ou extrapolação; que não fosse possível o arguido proceder como apurado no verão de 2018; que o arguido tenha vindo a penitenciar-se da sua apurada conduta; que seja incapaz de reconhecer limites; o teor dos relatórios de psiquiatra e psicóloga não confirmado em audiência; e as demais condições pessoais do arguido. …”.
*
Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[4] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[5].
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:
“… A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada das declarações do arguido e para memória futura da ofendida, com depoimentos prestados e os documentos dos autos, em especial de fls. 1, 1A, 2 a 7, 12 a 13v, 20, 24, 33 a 41, 48 a 54, 72, 81 a 90, 105, 106, 111 a 121, 137v a 139v, 142 a 5, 179 a 180, 186, 193ss (e ainda não numerados e constantes do citius) dos autos principais (de onde constam CRCs, declarações para memória futura, relatório social e documentos juntos pelo arguido, como a transcrição do seu primeiro interrogatório judicial), todos analisados em audiência, tudo face a um juízo de experiência comum e à ponderação (mas não aplicação em concreto no caso vertente) do Princípio “in dubio pro reo", sendo que a prova produzida em audiência se encontra gravada.
Desde logo que se diga que da análise dos vertido nos autos desde logo deriva não uma qualquer extrapolação na acusação, mas sim um lapso nesta, derivado do relato da menor aquando das declarações para memória futura.
Com efeito, a diferença do apurado em 14) e 17) relativamente ao vertido nesses pontos da acusação deriva da leitura mais atenta das declarações para memória futura dos autos.
Do que se afere que houve uma duplicação no imputado relativamente ao declarado pela menor.
Donde tal concatenação contribuiu quer para o factos dados como provados, corno para os dados como não provados (estes últimos com relevo para o inferior número de actos apurado, relativamente ao originariamente imputado).
Tal é manifesto nomeadamente ao ouvir/compulsar as declarações para memória futura (p.7 de 22 da  transcrição), onde se verifica  entre o minuto 4,35 e 4,48 que foram 5 actos (como os aludidos em14), dos quais o arguido ejaculou em dois deles (os vertidos em 17). Tudo para além do apurado tentado e do consumado já depois dos 14 anos da vítima.
Aqui sendo de referir que, ademais por confirmadas pelo confessado pelo arguido, as declarações para memória futura  da ofendida se revelaram integralmente credíveis, contribuindo, pois, as mesmas de forma para os factos dados como provados, bem como para infirmar os aventados em contrário, dados como não provados.
Mais se note que o arguido sustentou ainda a sua defesa na impossibilidade de prática dos factos no verão de 2018, pois então a ofendida ou estaria em Angola, ou no Porto, ou estariam demais familiares em casa. Tal defesa, no entanto, não colheu. Note-se que o verão(/férias escolares de verão) pode ir de junho a setembro. Pelo que mesmo que a ofendida tivesse passado um mês inteiro com o pai em Angola e uma semana com demais família no Porto, sempre sobrou tempo para o arguido proceder como apurado. Ao que não obstou a eventual presença de terceiros, quando regressados à residência do casal e menor. Nesse sentido também as declarações para memória futura da menor, nomeadamente na parte em que mencionou que "passou a ser sempre" (p.6 de 22 da transcrição). No que tais declarações também contribuíram, da sobredita forma, para os factos provados e não provados.
Da mesma forma, embora o arguido tenha negado que ejaculou em audiência,  aventando a sua defesa que  se tratou de líquido seminal, a verdade é que o mesmo não apenas em 1° interrogatório admitiu ter ejaculado, como a ofendida, v.g. a fls.17 da transcrição das suas declarações, menciona que ficou com algo (sémen) nas calças. No que tal concatenação contribuiu para a prova do imputado (de que ejaculou) e não prova do aventado (de que não ejaculou).
Note-se que em audiência o arguido disse que confirmava o antes por si declarado em sede de 1° interrogatório. No que se tornou necessário compulsar/ouvir o mesmo.
No mesmo o arguido foi credível ao mencionar que a companheira se divorciou, passaram a viver juntos; que a menor (inicialmente) se queixava de dores nas costas; que o arguido tinha a iniciativa de a massajar; ao admitir que se punha em cima da menor; que a massajava na zona da nádega; ao admitir as horas e local onde tal ocorria; que tirava a camisola; que tocou no rabo da menor; que lhe tocava nas nádegas directamente na pele; ao admitir que ejaculou; que por vezes ficava sexualmente excitado quando massajava a menor; ao admitir que parou de perguntar à menor se ela queria massagens; ao admitir que ficava excitado na parte genital e ainda assim continuava; que uma vez se deitou em cima da menor; que tocava com o pénis no corpo da menor; que esta sentiu tal pénis erecto tocar no corpo dela; que a mulher sabia das massagens à menor; que está a ter o apurado acompanhamento; no que contribuiu para os factos dados como provados.
No mais, então e em audiência aventado, teve-se o arguido por não credível, ademais por contraditório com o demais inclusivamente por si aventado, sendo infirmado pela demais prova em contrário produzida, no que contribuiu para os factos dados como não provados.
Para estes do sobredito modo contribuiu nomeadamente ao aventar arrependimento; que não forçava; que da cintura para frente nunca fez (apurou-se que tentou); que não era sua intenção; que lhe(s) quer pedir desculpas/perdão; que só queria ajudar na educação; que recusou fazer massagens pedidas pela menor; ao aventar não se recordar de se ter deitado ao lado da menor; que perguntava sempre se esta queria massagem; que se esta respondesse negativamente não a fazia; ao aventar como "desculpa" para a sua actuação o creme ser leitoso e escorrer para parte do corpo da menor que não estaria nas cogitações do arguido; ao negar que lhe tentou pôr a mão entre as pernas na zona vaginal; que não se recorda de ter beijado nádega da menor; ao aventar que não procurava a menor para actos sexuais; que não era intencional; ao negar intenção de obter prazer sexual; que não procurou a menor para ficar erecto e se vir; que procurou evitar.
Mais se note que o aventado arrependimento, no interrogatório como em audiência, nunca se referiu à prática dos factos apurados. Pelo que não se valorou o mesmo como arrependimento juridicamente relevante. No que contribuiu o arguido para os factos dados como não provados.
Voltando ao por si declarado em audiência, mereceu igual apreciação crítica que o por si declarado em sede de primeiro interrogatório.
Assim, diga-se que o arguido foi credível na parte em que confirmou o supra vertido em 1); ao confirmar o casamento e divórcio aludido em 2); que namorou e depois viveu coma mãe da menor; que sabia a idade da menor; que residiram na morada aludida em 8); que tirava a camisola quando a massajava; que massajava nádega da menor, com creme; ao admitir ser verdade o supra em 14); ao admitir as duas ocasiões supra apuradas em 17); ao admitir que "ficou molhado"; ao admitir que afectou psicologicamente a menor, no que contribuiu  para os factos dados como provados.
No mais, dada a supra aludida concatenação, não foi o mesmo credível, nomeadamente ao aventar arrependimento e pedido de desculpas; que não tocou em seios da menor; ao negar o vertido em 18 a 30; ao aventar que é sexualmente inexperiente; que não se soube exprimir em sede de interrogatório; que tem ejaculação precoce; que ficou assustado e saiu imediatamente de cima da menor, no que contribuiu para os factos dados exemplificativamente como não provados.
A mãe da menor, DD, foi credível ao referir viveu com o arguido cerca de 7 anos, desde 2012 até 13/5/2019; que é mãe da menor; que vivia com os filhos e o arguido; que a menor frequentava as guias/ os escuteiros (para meninas); que o arguido fazia massagens nas costas da menor; que esta actualmente está a viver com o pai; que não quis voltar a viver com a mãe, mesmo não estando esta no presente a viver com o arguido; que foram mencionadas calças do arguido com sémen; que a testemunha entretanto as tinha lavado, no que contribuiu para ao factos dados como provados.
No mais, teve-se a mesma por não credível, nomeadamente ao aventar que nunca se apercebeu de nada, que apenas tomou conhecimento da situação aquando da sua vinda a juízo (nomeadamente dada a menção do arguido de que a mãe da menor sabia das massagens e que a mesma deveria pensar que era apenas nos seios da menor); ao aventar deslumbramento da menor com a vida do pai em Angola como fundamento para as imputações e factos apurados; ao mencionar que não acredita nos factos denunciados pela menor; no que contribuiu para os factos dados como não provados.
O irmão da menor, EE, foi credível ao referir que a menor, sua irmã, já não vive consigo e com a mãe, mas sim com o pai; que na data dos factos viviam arguido e mãe dos menores; que a menor contou o sucedido cerca de uma semana antes de o arguido ter deixado de viver com a mãe da vítima e os menores; que viu o arguido fazer massagens na menor, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Já manifestou parcialidade ao assumir a posição da mãe e do arguido, nomeadamente ao aventar que a menor pedia as aludidas massagens (ademais desmentido pelo próprio arguido, que admitiu que a dada altura a menor já não pedia massagem); ao aventar que a menor não manifestava receio do arguido, no que contribuiu para os factos dados como não provados.
A testemunha II, militar da GNR, foi credível ao referir
Que foi chamado à escola da menor em virtude de alegado abuso sexual da mesma; que tal foi comunicado à PJ; que então a menor encontrava­ se muito abatida, com vergonha de falar e com muito medo; que foi elaborado respectivo auto, no que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para os não provados (ao infirmar os em contrário aventados), e bem ainda para a formação da convicção do Tribunal no sentido apontado.
A testemunha FF foi credível ao referir que é psicóloga no agrupamento de escolas de Alcabideche; que acompanhou a menor no serviço de psicologia da escola que a menor frequentava em 2019; que já a conhecia desde 2018, por ter participado na orientação vocacional da menor em turma; que no ano de 2019 lhe fez duas ou três sessões individuais por causa do sucedido (em apreço nestes autos); que então a menor lhe contou de comportamentos do companheiro da mãe (arguido dos autos); ao mencionar que a menor manifestou grande ansiedade causada por comportamentos do arguido que a menor considerava impróprios; ao mencionar que a menor a procurou no recinto escolar, muito aflita, pretendendo falar desses comportamentos; que no serviço de psicologia falou desses comportamentos; que teve a primeira sessão com a menor no dia 8 de Maio (de 2019); que então foi marcada nova consulta para dia 15, mas entretanto reuniram novamente no dia 13 por causa de crise da menor em sala de aula; que a menor foi informada dos procedimentos legais e concordou com os mesmos; que falaram com os pais da menor, foi activada a Escola Segura e a PJ; ao mencionar que a menor tinha ataques de pânico em sala de aula; ao mencionar que a agitação emocional manifestada pela menor podia ser causada pelos comportamentos inadequados do padrasto; ao mencionar que a menor falou por via de WhatsApp com o pai; que a psicóloga falou telefonicamente com a mãe da menor, no que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para os não provados (ao infirmar os em contrário aventados), e bem ainda para a formação da convicção do Tribunal no sentido apontado.
A testemunha JJ, militar da GNR, foi validamente prescindida.
A testemunha GG foi credível ao dizer que é irmã da mãe da menor; que é tia da menor e que conhece o arguido. Também foi credível ao dizer que foram de férias ao Porto e que quando está em Cascais de férias fica em casa da mãe da menor. Mais mencionou que nessa casa dorme no sótão (com a menor) e os pais (avós da menor) dormem no quarto da BB. No mais foi imprecisa quanto a datas. O que levou a que o seu depoimento não afastasse a prova  do imputado. No que, no essencial, contribuiu para os factos dados como não provados.
A testemunha KK foi credível ao dizer que é irmã do arguido. Pretendeu abonar a reputação  do  arguido,  nomeadamente como pessoa cumpridora de regras. Tal, todavia, demonstrou parcialidade e foi infirmado pela prova em contrário produzida. No que, no essencial, contribuiu para os factos dados como não provados.
O arguido confirmou o vertido no relatório social no que contribuiu para as suas apuradas condições pessoais.
No que respeita ao inexistente antecedente criminal, assentou nos CRCs mencionados.
Os factos não provados resultaram assim em síntese da ausência de prova tida por credível e susceptível de os dar como provados. …”.
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É pacífica a jurisprudência do STJ[6] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[7], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a apreciar no presente recurso são as seguintes:
I. Deficiência de fundamentação da decisão recorrida;
II. Impugnação da matéria de facto;
III. Vícios da decisão recorrida: contradição insanável e erro notório na apreciação da prova;
IV. Tipificação da conduta do Arg.;
V. Medidas das penas;
VI. Indemnização.
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Cumpre decidir.
I – A falta de fundamentação da sentença constitui uma nulidade (art.ºs 374º/2 e 379º/1-a) do CPP).
Essa nulidade deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP).
A função da fundamentação é a de “…legitimar a decisão perante as partes e também coram populo, neutralizando as suspeitas de arbítrio; e, por outro lado, de emprestar à decisão os coeficientes indispensáveis de racionalidade e de objectividade, que a tornam objectivamente sindicável e controlável por terceiros, maxime pelos tribunais superiores. O consenso comunica-se também à compreensão normativa da fundamentação: ela deve assegurar a consistência lógico-racional capaz não só de tornar a decisão vinculativa no horizonte subjectivo de quem a proferiu, mas também de lhe emprestar a indispensável plausibilidade intersubjectiva em relação a terceiros. Face aos quais terá de despertar a mesma convicção, a mesma “certeza”.[8].
Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece de deficiência da fundamentação, porque não fundamentou porque deu como não provado que o Arg. “... tenha vindo a penitenciar-se da  sua  apurada  conduta ...” e que “... seja incapaz  de reconhecer limites ...” (conclusões 36 e 37); porque, quanto à determinação da medidas da penas, não explicitou as necessidades de prevenção geral e especial que se verificam no caso (conclusão 63); porque não fundamentou devidamente a necessidade de aplicação de prisão efectiva (conclusão 77) e porque não especificou a verificação dos pressupostos para o arbitramento da indemnização.
Mas, a deficiência da fundamentação só constitui esta nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas, ou dos montantes indemnizatórios.
Ora, na fundamentação da matéria de facto o tribunal recorrido diz expressamente que deu como não provado o arrependimento do Arg. e o seu pedido de desculpas, porque, nessa parte, as suas declarações não foram credíveis.
Quanto à determinação das medidas das penas, na verdade, o tribunal recorrido não explicita as concretas necessidades de prevenção geral e especial que refere, mas os restantes fundamentos são suficientes para exteriorizar as razões da determinação que fez das medidas concretas das penas.
Quanto à questão da suspensão da execução da pena, embora a fundamentação da não suspensão não fosse necessária[9], atentos o art.º 50º do CP e a pena única aplicada (7 anos de prisão), ainda assim, o tribunal recorrido referiu que não conseguiu fazer o indispensável juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do Arg..
Quanto à indemnização, foi a seguinte a fundamentação da decisão recorrida: “... O MP mais requereu a observância do artº.16°, nºs.1 e 2, da Lei 130/2015, de 4 de Setembro, atenta a especial vulnerabilidade da vítima (art.º 67°-A, nº 1, al. b) e n.º 3, e art.º 1º, al. j), ambos do Código de Processo Penal).
O mencionado artigo 16°., da Lei 130/2015, de 4 de Setembro, refere-se nomeadamente ao direito a uma decisão relativa a indemnização e dispõe:
...
Não resta qualquer dúvida que a menor dos autos, face ao supra, é vítima especialmente vulnerável.
E cabe, ao abrigo do disposto no artigo 82°-A do Código de Processo Penal, que lhe seja arbitrada uma quantia, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
O arguido, com a notificação da acusação, foi notificado da possibilidade de o Tribunal, em caso de eventual condenação, vir a arbitrar uma quantia a título de reparação pelos eventuais prejuízos causados, nos termos dos assinalados preceitos.
Mostram-se preenchidos os respectivos requisitos.
Com efeito, o art°.483º., nº.1, do Código Civil dispõe que quem com dolo ou mera culpa violar de forma ilícita o direito de outrem ou norma que vise especificamente a sua tutela, está obrigado a indemnizar o lesado pelos danos decorrentes da sua actuação/ dessa violação.
Nos presentes autos estão provados todos os pressupostos da responsabilidade civil derivada dos crimes de abuso sexual praticados, pelo que se verifica que, "in casu" o Tribunal dispõe de elementos bastantes para fixar a indemnização.
No que respeita aos danos morais (ou não patrimoniais), atender-se-ão àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art.º 496°, n.º 1, do Cód. Civil), sendo que neste campo não há uma indemnização verdadeira e própria, mas antes uma reparação, ou seja, a atribuição de uma soma pecuniária que se julgue adequada a compensar e reparar dores e sofrimentos, através do proporcionar de um certo número de alegrias ou satisfações que as possam minorar ou fazer esquecer.
Ao contrário da indemnização, cujo objectivo é preencher uma lacuna verificada no património do lesado, a reparação destina-se a aumentar um património intacto, para que, com tal aumento, o lesado possa encontrar uma compensação para a dor, para restabelecer um desequilíbrio verificado na esfera incomensurável da felicidade humana. E o valor desta reparação deve ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Provaram-se danos causados pela actuação do arguido. E que esta foi dolosa.
Pelo que se procederá a tal arbitramento. ...”.
Esta fundamentação é parca, mas, apesar de tudo, permite perceber o caminho que o tribunal percorreu para fixar a indemnização, o que fez por recuso a critérios de equidade.
Concluímos, pois, que as deficiências da fundamentação não são suficientemente relevantes para integrarem este tipo de vício.
É certo que o Arg. não concorda com a referida fundamentação, mas isso não a torna inexistente, nem relevantemente deficiente.
Improcede, pois, nesta parte o recurso.
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II - O Arg. entende que “... são os seguintes os factos incorretamente dados como provados (...): n.ºs 10 (em particular a expressão “a pretexto de”) a 26 (em particular a expressão “nessas circunstâncias”), 28 a 32 (em particular as expressões “oito ocasiões” e “circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar os seus propósitos libidinosos”) e 33 a 50 (em particular no que concerne ao elemento subjetivo dos tipos criminais em causa). Quanto aos factos incorretamente dados como não provados (...), entende o recorrente terem sido incorretamente julgados todos os factos referidos (mas não numerados) na secção relevante da decisão recorrida (p. 17 do Acórdão recorrido).  ...” (conclusões 10. e 11.), porque não foi isso que resultou da prova produzida em audiência.
Uma vez que o Recorrente entende que foi mal julgada a matéria de facto, o que invoca é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[10],[11],[12].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[13].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[14].
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.
No presente caso, a Recorrente, fez no corpo da motivação as especificações previstas no art.º 412º/3 do CPP, transcrevendo partes dos depoimentos das testemunhas[15].
Ora, Entendemos que “O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência. …[16], [17], como foi o caso, uma vez que o Recorrente considera que deveria ter dada maior credibilidade às suas declarações.
Para além disso, o Recorrente faz uma interpretação alternativa da prova produzida em audiência, o que sendo compreensível e legítimo, não é relevante como impugnação da matéria de facto, porque, por um lado, nos segmentos de prova por si transcritos no corpo da motivação do seu recurso, nada impõe (embora permita), a alteração da matéria de facto fixada (não imputando à decisão de facto qualquer dos erros de julgamento que supra referimos como capazes de conduzir à modificação da matéria de facto), por outro, essa alteração só poderia decorrer da reapreciação global da prova produzida, o que, como vimos, não é admissível em sede de recurso, e, por outro ainda, corresponde à mera contraposição das suas convicções à do tribunal recorrido.
De qualquer forma, o tribunal recorrido, na fundamentação da matéria de facto explicou o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que é inatacável[18].
Quanto à violação do princípio in dubio pro reo[19], dir-se-á, em síntese que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido, quer na instrução, quer no julgamento[20]. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205)[21].
A violação deste princípio tem sempre que ser aferida em concreto, porque só em concreto pode acontecer que no final da produção da prova no tribunal permaneça alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido. Tal aferição não pode ser feita em abstracto, dizendo-se que a admissão deste ou daquele tipo de prova viola este princípio. Existem provas proibidas e provas cuja valoração é proibida, em determinadas circunstâncias, mas isso é outro problema. Se as provas levadas em conta forem legais, só em concreto se pode aferir se o tribunal ficou, ou devia ter ficado, com dúvidas relevantes.
Ora, não vislumbramos no acórdão recorrido, quer na matéria de facto fixada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica de dar como não provado o arrependimento do Arg., o tribunal recorrido tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão aquela opção, ou seja, não teve qualquer dúvida e também não vemos que devesse ter tido. O tribunal retirou directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio.
É, pois, improcedente, também nesta parte, o recurso.
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III – Imputa o Recorrente à decisão recorrida os vícios de contradição insanável, quanto ao número de crimes imputados, e erro notório na apreciação da prova, porque considerou que o Arg. não demonstrou arrependimento sincero (conclusão 8.) e porque, se teve dúvidas quanto a esse arrependimento, deveria ter aplicado o princípio in dubio pro reo (conclusão 9).
Estes vícios, como todos os previstos no art.º 410º/2 do CPP, são de conhecimento oficioso[22] e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[23].
“… há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou, quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.[24].
No presente caso, existe, na verdade, uma contradição entre os factos provados 14. e 15., 31., 32. e 33., porque nuns se diz que o Arg. praticou aqueles factos em 5 ocasiões e noutros em 8 ocasiões.
No entanto, o próprio texto da decisão recorrida permite dilucidar essa contradição, que terá resultado da transposição da acusação.
Na verdade, as seguintes passagens da decisão recorrida permitem concluir, sem margem para dúvidas, que o que se quis dar como provado, foi que o Arg. praticou aqueles factos em 5 ocasiões diferentes:
- no elenco dos factos não provados afirma-se que não se provou “... que o arguido tenha actuado da forma supra descrita em 14) em pelo menos oito ocasiões distintas ...”;
- na fundamentação da matéria de facto diz-se que “... da análise dos vertido nos autos desde logo deriva não uma qualquer extrapolação na acusação, mas sim um lapso nesta, derivado do relato da menor aquando das declarações para memória futura.
Com efeito, a diferença do apurado em 14) e 17) relativamente ao vertido nesses pontos da acusação deriva da leitura mais atenta das declarações para memória futura dos autos.
Do que se afere que houve uma duplicação no imputado relativamente ao declarado pela menor.
Donde tal concatenação contribuiu quer para o factos dados como provados, como para os dados como não provados (estes últimos com relevo para o inferior número de actos apurado, relativamente ao originariamente imputado).
Tal é manifesto nomeadamente ao ouvir/compulsar as declarações para memória futura (p. 7 de 22 da transcrição), onde se verifica  entre o minuto 4,35 e 4,48 que foram 5 actos (como os aludidos em14), dos quais o arguido ejaculou em dois deles (os vertidos em 17). Tudo para além do apurado tentado e do consumado já depois dos 14 anos da vítima. ...”;
- finalmente, a parte decisória dispõe, para além do mais, que se condena o Arg. pela prática de “... cinco crimes de abuso sexual de criança, consumados, pps. nos artºs.171°., nº.1 e na al.b) do nº.1 do artº. 177°., do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos e seis meses de prisão, efectiva, por cada um desses cinco crimes, mencionados nos pontos 14 a 17 e 31 a 37 dos factos provados; ...”.
Ou seja, as contradições não são insanáveis, porque o próprio texto da decisão recorrida permite, nos termos apontados, dilucidar a aparente “... colisão entre os fundamentos invocados ...” e, portanto, não integram o vício de contradição insanável.
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Erro notório na apreciação da prova é a “… falha grosseira e ostensiva da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.[25].
Não encontramos no texto da decisão recorrida qualquer violação das regras da experiência, ou formulação de juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, ou desrespeito pelas regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, nomeadamente, não vemos que erradamente se tenha deixado de aplicar o princípio in dubio pro reo, como já supra referimos.
Não padece, pois, a decisão recorrida do apontado erro notório na apreciação da prova.
Improcede, pois, também nesta parte, o recurso.
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Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP.
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IV – Levanta o Recorrente três questões quanto à qualificação jurídica da sua conduta:
- os actos que praticou não preenchem o conceito de “actos sexuais de relevo”, mas sim o de “actos de natureza sexual” e, por isso, a sua conduta deve ser tipificada pelo art.º 170º do CP e não pelo 171º do CP[26] (conclusões 44 e 45);
- aquando o Arg. praticou os factos, já a Ofendida tinha 14 anos de idade, pelo que a sua conduta deve ser tipificada pelo art.º 173º do CP e não pelo 172º do CP (conclusão 47);
- em qualquer dos casos, deve a sua conduta ser qualificada como integrando a prática de um só crime continuado ou em trato sucessivo (conclusões 54 a 56).
O tribunal recorrido fundamentou a qualificação jurídica que fez da conduta do Arg., para além do mais, nos seguintes termos:
“... Ao arguido vem imputada a prática, em autoria material, em concurso efectivo, de:
- Quinze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, previstos e punidos pelo disposto no artº.171º., nº.1, do Código Penal, por referência ao art°.177°., n.º 1, al. b), do Código Penal (artigos 31° a 33°, 34º a 37°, 41° a 43°, 44° a 46° da acusação);
- Um crime de abuso sexual de criança, na forma tentada, previsto e punido pelo disposto no artº.171°., nºs.1 e 5, do Código Penal, por referência aos artºs.21°, 22° (72°, 73°) e 177°., n.º 1, al. b), todos do Código Penal (artigos 38° a 40º da acusação);
- Um crime de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada, previsto e punido pelo disposto no artº.172°., nº.1, do Código Penal, por referência aos artºs.171°., nº.1 e 177°., n.º 1, al. b), ambos do Código Penal (artigos 47° a 49° da acusação).
O art. 171º., n.º 1, do Código Penal dispõe que: "Quem praticar acto sexual  de  relevo com ou  em menor  de 14 anos, ou  o levar  a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos." o nº.5 do aludido preceito, prevê que a tentativa é punível.
O artigo 172°., relativo a abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, dispõe que:
...
O circunstancialismo supra mostra-se preenchido nos autos,  a título objectivo e subjectivo, na íntegra, quanto à ofendida.
Os supra mencionados crimes de abuso sexual vêm imputados nos termos do artº.177°., n.º 1, al.b), do CP.
O artigo177°., nº.1, al.b) prevê a agravação dos mencionados crimes nos termos seguintes:" As penas previstas nos artigos 163° a 165º e 167º a 176° são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima se encontrar numa relação familiar ou de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa situação.
Está preenchida essa agravante.
A relação de coabitação resulta cabalmente provada, tal como o facto de o arguido se ter aproveitado dessa situação para praticar os crimes em apreço.
Pelo que o arguido será infra condenado pelo apurado da acusação. Que consiste, no essencial, nos seguintes crimes agravados:
-5 do art".171, do CP, consumados, mencionados nos arts.14 a 17 e 31 a 37 da acusação;
-1 do art".171, do CP, consumado, mencionado nos arts.20, 21 e 41 a 43 da acusação;
-1 do art".171, do CP, consumado, mencionado nos arts.22, 23 e 44 a 46 da acusação;
-1 do artº.171, do CP, tentado, mencionado nos arts.18, 19 e 38 a 40 da acusação;
-1 do artº.172, do CP, consumado, mencionado nos arts.24 a 30 e 47 a 49 da acusação.
Da factualidade assente acima descrita resulta o preenchimento, por prova, dos elementos, objectivos e subjectivos dos crimes de abuso sexual ora mencionados.
Provou-se que houve acto sexual de relevo com a ofendida.
Bem como se provou o elemento subjectivo da infracção necessário para o preenchimento deste tipo de crime, entendendo-se que no caso o dolo abrangeu a pessoa da mencionada vítima.
Estão verificados os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime imputados, pelo que é de concluir pela sua condenação por esses crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo disposto no artº.171°., e 172°., do CP, agravados nos termos do artº.177°., n.º 1, al.b), todos do CP.
Os crimes ora em apreço inserem-se no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
No entanto, como se refere na doutrina, a autodeterminação vai para além da liberdade.
A liberdade será um estado mas a autodeterminação é um caminho ao qual estão subjacentes, não só a existência de obstáculos ou restrições para o exercício da liberdade, mas também a existência de condições que permitam uma livre formação da vontade.1
Assim, a autodeterminação corresponde a uma das concretizações da noção de liberdade em sentido amplo já que, sem autodeterminação, não podemos falar em verdadeira liberdade.
Assim, o bem jurídico protegido pelo crime de abuso sexual de crianças é a autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em razão da tema idade da vítima podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, designadamente na esfera sexual 2•
O bem jurídico protegido é a autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa, a autodeterminação sexual.
A qual é protegida no caso das crianças (menores de 14 anos) mesmo sem coacção por parte do agente do crime.
Visa-se protegê-las de condutas que possam prejudicar o livre
desenvolvimento da sua personalidade.
Devendo-se interpretar os actos (como sexuais ou não, de relevo ou não) face ao bem jurídico, independentemente de referências a conceitos impregnados de referências morais, nomeadamente por referência a uma moralidade sexual socialmente dominante.
Mais se teve em atenção que a tipicidade deste crime não supõe o uso de meios violentos ou análogos, nem é indispensável o mútuo contacto corporal, nem se exige que a vítima compreenda o carácter sexual do acto.
Mas que se excluem actos insignificantes ou bagatelares, tendo em atenção a cláusula da significância.
Como é sabido, sendo os menores naturalmente mais frágeis, quer física, quer psicologicamente, encontram-se mais permeáveis/vulneráveis, justamente com fundamento na sua imaturidade e inexperiência, a formas de pressão, manipulação, engano ou coacção da sua vontade do que os adultos.
Acresce que, encontrando-se os mesmos em processo de formação da sua personalidade, o direito a crescer de uma forma livre e saudável exige que haja maior protecção da livre experiência da sua pessoa e da sua vontade, sexual ou outra.
No crime de abuso sexual pode dizer-se que o fundamento da incriminação é precisamente o aproveitamento da maior vulnerabilidade dos que ainda são menores, o qual consiste num ataque à sua liberdade, enquanto indivíduos, que urge proteger.
Quanto à noção de abuso sexual de crianças, importa referir encontrarmo-nos diante de contactos de natureza sexual com um menor de 14 anos que implicam um aproveitamento por banda do agente de uma circunstância preexistente susceptível de colocar a vítima numa situação de fragilidade, para alcançar um objectivo que, de outra forma, jamais alcançaria.
No seu elemento objectivo, existe uma circunstância que é fonte de desigualdade e na sua vertente subjectiva uma operação de aproveitamento desta circunstância (...)
A desigualdade existente na situação de abuso é manifesta e mais vincada quando o adulto é, em relação à criança, uma figura de autoridade, designadamente e como sucede no caso ora em apreço, o próprio padrasto da vítima, com a menor coabitante, sob o qual impendiam especiais deveres de se abster de praticar condutas como aquelas que se lograram apurar nestes autos.
O que justifica de pleno a mencionada agravação prevista no artº.177°., do CP.
Assim, são elementos constitutivos do tipo legal de abuso sexual de criança em apreço:
- elemento material: praticar com ou em menor de 14 anos de idade, ou levá-lo a praticar consigo ou com outra pessoa, acto sexual de relevo;
- elemento intelectual: o tipo subjectivo do tipo de ilícito ora em apreço implica a realização dolosa da acção típica, com a presença dos elementos cognitivo e volitivo do mesmo.
De notar que agente deste tipo de crime pode ser qualquer pessoa enquanto que a vitima tem que ser menor de 14 anos e, embora a lei não avance com a definição daquilo que entende por acto sexual de relevo, desde logo, só poderá ser como tal considerado todo o acto que tem relação objectiva com o sexo, ou seja, todo aquele acto que do ponto de vista objectivo assume uma natureza, conteúdo ou significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, no caminho, com a liberdade e determinação sexual de quem o sofre ou pratica 4 e que, para além do mais, haja por banda do seu autor, a intenção de satisfazer os seus apetites sexuais.
É então certo que a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares mas que investigue o seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido, analisando se o acto praticado representa um entrave com importância para a autodeterminação sexual da vitima.
Na esteira da noção plasmada no Código Penal Alemão: são actos sexuais aqueles que em função do respectivo bem jurídico protegido, assumam um certo relevo. (...)
No que respeita ao conceito de acto sexual de relevo, remetemos para a anotação de Figueiredo Dias aos artigos 163° e 172°., do C.P., feita no "Comentário Conimbricense do Código Penal".
No que respeita a um eventual erro sobre a idade da vítima, atenta a idade da menor em causa nestes autos, tal erro não é concebível atento o facto de o arguido ser seu padrasto, com a mesma e mãe da menor habitando há anos, mais tendo em atenção a não prova nem alegação de qualquer inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do agente.
Quanto às modalidades de acção do agente, dispõe a lei que o acto sexual de relevo punível o é com ou em menor de 14 anos.
Estamos em presença de condutas de carácter acentuadamente interpessoal, porque relacionada com a sexualidade.
Não é necessário o acompanhamento consciente do acto sexual pela vítima, uma vez que o tipo também abrange os casos em que o acto teve lugar com uma pessoa inconsciente, muito menos se exige a compreensão pela vítima do significado sexual do acto, o que releva especialmente em actos praticados em ou com crianças.
Aqui chegados atenta a factualidade considerada como provada mormente que o arguido praticou acto sexual de relevo com a vítima, forçoso é que se conclua que se mostram preenchidos os elementos típicos dos crimes ora em apreço.
Hoje não é possível considerar a existência de crime continuado, mas sim de concurso efectivo de crimes, em casos como o vertente.
Que constituem crimes a punir em concurso efectivo por terem distintas resoluções criminosas e terem ocorrido em distintas ocasiões.
Assim, no presente caso surgiu um enquadramento exterior de coabitação com o arguido e de relação familiar com o mesmo que veio a facilitar o cometimento da infracção.
Da factualidade provada, verifica-se que estão preenchidos todos
os elementos constitutivos dos tipos de crime de abuso sexual de crianças, pp. nos artºs.171°., e 172°., do CP e a agravante prevista na al.b) do nº.1 do artº.177°., do CP imputados ao arguido, quer a título objectivo, quer subjectivo, na forma consumada, excepto quanto ao mencionado apurado na forma tentada.
Inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou causa de não punibilidade.
Pelo exposto, conclui-se pela condenação do arguido pela prática desses crimes de abuso sexual de que vem acusado, na forma consumada e tentada, agravada e em concurso efectivo de crimes. ...”.
Quanto à distinção entre acto de natureza sexual e contacto sexual de relevo, entendemos que este conceito “... impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido. O que equivale a dizer que dizer que importa que o acto represente um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima (tais como o beijo na boca, a masturbação dos órgãos genitais, o apalpar os seios, pressionar a zona púbica ainda que por cima das cuecas, ejacular ou urinar sobre a vítima, esfregar o pénis no rabo da menor simulando a cópula - exemplos colhidos da doutrina e da jurisprudência enunciada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010, processo n." 42/06.2TAMLG.G 1, relator: Cruz Bucho, www.dgsipt) .
Distinto do acto sexual de relevo, temos o contacto de natureza sexual, a que alude o artigo 170.° do CP. O contacto de natureza sexual consubstanciará a prática, no corpo do sujeito passivo, de um acto com significado sexual, mas que não assume, contudo, a gravidade de acto sexual de relevo, objecto de incriminação distinta e mais gravosa.
Não obstante, não podemos olvidar que tal contacto, de cariz sexual, terá de assumir alguma gravidade, sob pena de injustificada intervenção do Direito Penal. Haverá, pois, que apreciar da respectiva ressonância valorativa em face do bem jurídico que é ofendido, tanto quanto viável numa perspectiva objectiva que não se quede por critérios da vítima, do agente ou de representações meramente morais (neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Maio de 2012, processo n." 37/l1.4GDARL.El, relator: Carlos Berguete Coelho, www.dgsi.pt; PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo - Comentário do Código Penal - à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Universidade Católica Editora, Lisboa, Dezembro de 2008, pág. 468)
Nessa conformidade, o contacto de natureza sexual pode incluir o toque (com objectos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima (considerando como contacto de natureza sexual o acto propositado de fazer deslizar as mãos pelas costas e o roçar com as pernas e a mão nas nádegas, veja-se o supram citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Maio de 2012). ...”[27], [28].
Os concretos actos que o Arg., em diversas ocasiões praticou, foram, essencialmente, os seguintes: Arg. massajou com as respectivas mãos as costas da vítima, aplicando creme, fazendo suas mãos descer até às nádegas da vítima; colocou suas mãos nas nádegas da vítima, apalpando-a, por baixo da roupa de pijama que esta envergava, baixando-a, em contacto directo com a pele; tocou com as mãos nos seios da vítima; se deitou sobre o corpo da vítima, ficando com a sua zona pélvica sobre as nádegas da vítima, até ficar com o seu pénis erecto, em estado de excitação sexual; tentou colocar as mãos entre as pernas da vítima, para lhe tocar a zona vaginal, o que não logrou, por a vítima se ter mexido, repelindo o arguido; beijou uma das nádegas de Ofendida; se deitou na cama da vítima, e passou a mão pela lateral do corpo da mesma; baixou as calças de pijama que a vítima envergava, expondo as nádegas desta, que tinha vestidas umas cuecas, e deitou-se então sobre o seu corpo, ficando com a sua zona pélvica sobre as nádegas da vítima, até ficar com o seu pénis erecto, em estado de excitação sexual, pressionando o seu corpo sobre o da vítima, até lograr o orgasmo e ejaculação.
Tendo em conta a delimitação de conceitos supra citada, não há dúvidas que estes actos integram o de actos sexuais de relevo, porque têm uma carga sexual tão intensa e expressiva, que ultrapassa claramente a menor gravidade dos simples contactos de natureza sexual, nos termos supra expostos e, portanto, a conduta do Arg. tem que ser tipificada pelos art.º 171º e 172º do CP.
*
Quanto à questão da idade da Ofendida, aquando da prática dos crimes, não pode deixar de ser improcedente a pretensão do Arg., uma vez que se manteve inalterada a matéria de facto.
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Quanto à questão da continuação criminosa, não lhe assiste qualquer razão, desde logo, porque o bem jurídico protegido pela incriminação do abuso sexual de crianças é de natureza pessoal[29] e o crime continuado não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais (art.º 30º/3 do CP)[30].
De qualquer forma, o crime continuado pressupõe uma pluralidade criminosa, praticada, além do mais, num quadro de solicitação externa que diminua acentuadamente a culpa do agente[31].
Ora, uma vez que se não apurou, nem na sua contestação foi alegada, qualquer situação exterior que diminuísse consideravelmente a culpa do Recorrente, nunca a sua conduta podia ser tipificada como crime continuado.
E, como vem decidindo maioritariamente o Supremo Tribunal de Justiça, também não pode este tipo de crimes ser punido como de trato sucessivo.
Nesse sentido, vejam-se o acórdão do STJ de 19/06/2019[32], e a importante resenha jurisprudencial nele feita sobre o tema, de cujo sumário citamos:
“... III - A jurisprudência do STJ tem perfilhado, esmagadoramente, o entendimento que afasta, quer a continuação criminosa, quer a figura do crime exaurido, de trato sucessivo, dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como os dos presentes autos. ...”.
Improcede, assim, também nesta parte, o recurso.
*
V - Entende o Recorrente que as medidas das penas, quer principais, quer acessórias, são excessivas e devem ser reduzidas.
O tribunal recorrido determinou a sua medida nos seguintes termos:
“... Em conformidade com o supra, que aqui se dá por reproduzido, os crimes de abuso sexual de criança, consumados, previstos no nº.1 dos artºs.171° e 172°., do CP, são punidos com pena de prisão de um a 8 anos. Tal pena, nos termos do artigo177°., do CP, é agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo.
Donde resulta que nos presentes caso de abuso sexual de criança, agravado, a moldura abstracta de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.
O crime de abuso sexual de crianças, tentado, previsto nos artºs.171° e 177°., do CP, é punido, nos termos dos art°s.22°., 23°., 72° e 73°, do CP.
Donde resulta nomeadamente que a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada.
O artigo 73°, do CP, relativo aos Termos da atenuação especial, dispõe:  ...
Donde resulta que no presente caso de abuso sexual de criança, a moldura abstracta de um mês a 7 anos e 2 meses de prisão.
Também se lhe aplicando as penas acessórias previstas nos mencionados art°s.69-B e 69-C, do CP.
Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem se perder de vista a culpa do agente. Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa "que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto (...) alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada" - cf. Anabela Miranda Rodrigues, "A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570.
"É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que
justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena, que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas  da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica" (mesma obra, pág. 571).
"A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.
Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas; ... sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado" (ob. cit., págs. 575 e 558).
Ter-se-á em conta nomeadamente inexistente condenação criminal do arguido, considerando-se assim o arguido como criminalmente
primário, e as supra mencionadas condições pessoais supra dadas como provadas e que aqui se dão por reproduzidas, com especial atenção à idade do arguido na data dos factos - já não susceptível de beneficiar do regime especial para jovens por ter mais de 21 anos de idade na data dos factos, pelo que infra não se fará aplicação da atenuação especial da pena em virtude da aplicação do regime especial para jovens- e sua negação da generalidade dos factos pertinentes, sem demonstração de real arrependimento.
Assim, ponderadas ainda as demais agravantes e as atenuantes, designadamente o grau de ilicitude dos factos, tendo em atenção a intensidade do dolo directo, reconhecido nos factos, as condições do arguido, pessoais e económicas, a não confissão dos factos, a inexistência de antecedente criminal, a idade do arguido à data dos factos, entendendo-se como inaplicável o regime especial para jovens, a sua actual profissão e afastamento actual das menores, a sua conhecida inserção social, as exigências de prevenção geral e especial e face à moldura penal aplicável entende-se tem-se por adequado fixar as penas concretas em:
- dois anos e seis meses de prisão, para cada um dos cinco apurado crimes de abuso sexual de criança, consumados, pps. nos artºs.171°., nº.1 e na al.b) do nº.1 do art". 177°., do CP, mencionados nos factos provados 14 a 17 e 31 a 37;
- dois anos de prisão, para o apurado crime de abuso sexual de criança, consumado, pp. no art".171°., nº.1 e na al.b) do nº.1 do artº. 177°., do CP, mencionado nos factos provados 20, 21 e 41 a 43;
- dois anos de prisão, para o apurado crime de abuso sexual de criança, consumado, pp. no artº.171°., n.º 1 e na al.b) do nº.1 do art°. 177°., do CP, mencionado nos factos provados 22, 23 e 44 a 46;
- nove meses de prisão, para o apurado crime de abuso sexual de criança, tentado, pp. nos art°s.23°., 23°., 72°., 73°., 171°., n.º 1 e na al.b) do n.º 1 do artº. 177°., do CP, mencionado nos factos provados 18, 19 e 38 a 40;e
- dois anos e seis meses de prisão para o apurado crime de abuso sexual de criança, consumado, pp. no artº.172°., nº.1 e na al.b) do n.º 1 do art°. 177°., do CP, mencionado nos factos provados 24 a 30 e 47 a 49.
Note-se que as mencionadas penas poderiam, em abstracto, serem suspensas na sua execução.
E uma pena única, aplicada no seu mínimo, também seria passível, em abstracto, de tal suspensão, nos termos do art".500., do CPenal.
Mas sempre se diga que, atendendo também a todos os supra mencionados factores, mesmo que não tivesse ultrapassado os cinco anos, também se entenderia agora que a censura do facto e a ameaça de prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que não se suspenderia a execução de qualquer das mencionadas penas de prisão.
No que respeita à não suspensão da execução da pena de prisão ora decidida, cumpre salientar que se teve em atenção que a suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos.
É substitutivo particularmente adequado das penas privativas de liberdade que importa tornar maleável na sua utilização, libertando-a, na medida do possível, de limites formais, de modo a com ele cobrir uma apreciável gama de infracções puníveis com pena de prisão.
A suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por  se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido.
Prognose essa que neste caso não foi feita pelo Tribunal, uma vez que após deliberação não alcançou a esperança de que o arguido sentisse a sua condenação como uma advertência e que não cometesse no futuro nenhum crime, designadamente desta espécie.
São os seguintes os elementos a atender nesse juízo de prognose: a personalidade do réu; as suas condições de vida; a conduta anterior e posterior ao facto punível; e as circunstâncias do facto punível, que ora foram ponderadas, aqui se dando por reproduzida a matéria supra vertida.
Devem atender-se a todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo somente às razões da prevenção especial. E sendo essa conclusão favorável, o tribunal decidirá se a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer as finalidades da punição, caso em que fixará o período de suspensão, o que se fez, no caso concluindo que inexistem elementos que permitam fundamentar suficientemente uma prognose favorável.
Cfr., v.g., nesta matéria, o Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/2002, in www.dgsi.12!. E Leal-Henriques e Simas Santos, "Código Penal", em anotação ao artigo 50°., do CP.
Em cúmulo jurídico, tendo em atenção o limite mínimo de dois anos e seis de prisão e o máximo de 19 anos e 4 meses de prisão, atendendo aos supra mencionados factores, entende-se como justo e adequado aplicar ao arguido a pena única de sete anos de prisão, efectiva.
No caso justifica-se de pleno, por necessário, adequado e proporcional, com idênticos fundamentos que os supra, a aplicação das mencionadas penas acessórias imputadas na acusação.
Das penas acessórias previstas nos artºs.69º-B e 69º-C, do Código Penal:
O MP requereu que, em caso de condenação, ao arguido seja aplicada:
a) a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e vinte anos - art.º 69º-B, nº.2, do Código Penal;
b) a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período a graduar entre cinco e vinte anos -  art.º 69°-C, nº.2, do Código Penal;
c) a pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e 20 anos - art.0   69°-C, nº.3, do Código Penal.
Com efeito, nos termos do artº.69°-B, do CP (atinente a Proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual):
"1 - Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre dois a 20 anos, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido por crime  previsto nos artigos 163.º a 176.º -A, quando a vítima não seja menor.
2 - É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º -A, quando a vítima seja menor".
E, nos termos do art".69°-C, do CP (atinente a proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais), aditado pela Lei nº.103/2015, de 24 de Agosto:
"1 - Pode ser condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre dois e 20 anos, atenta a concreta gravidade do fato e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido por crime  previsto  nos  artigos 163.º a 176.º -A, quando a vítima não seja menor.
2 - É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163º. a 176º. -A, quando a vítima seja menor.
3 - É condenado na inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, praticado contra descendente do agente, do seu cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges.
4 - Aplica-se o disposto nos nºs. 1 e 2 relativamente às relações já constituídas."
A este propósito ponderou-se, nomeadamente o vertido no Acórdão (de Uniformização de Jurisprudência) nº.7/2008, relatado por Oliveira Mendes, in DR 146, SÉRIE I, de 2008-07-30.
E a argumentação aí expendida nomeadamente no sentido de que "As penas acessórias constituem verdadeiras penas. (... ) A sua imposição não pode, pois, nunca assumir carácter automático.
O carácter não automático da pena acessória reside na necessidade de comprovação judicial dos requisitos formal - prévia punição pela prática de um crime - e substancial - «particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a sua aplicação»".
Aí menciona-se (designadamente na nota de rodapé nº.6) a proibição de automaticidade das penas acessórias, propugnada pelo Tribunal Constitucional em vários acórdãos.
A pena acessória é, evidentemente, uma verdadeira pena.
Efectivamente, conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal, "não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30° da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65° do Código Penal, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo uma sanção autónoma."
Especificamente sobre a matéria das penas acessórias ora em apreço se havia pronunciado o Ac. do STJ, de 14-06-2007, ainda inédito, proferido no Proc. Nº.1580/07, da 5.ª Secção, relatado por Costa Mortágua (coadjuvado por Rodrigues da Costa, Arménio Sottomayor e Carmona da Mota), sendo de notar que, pese embora as alterações legislativas entretanto ocorridas, no essencial  o mesmo tem actualidade e pertinência para o caso em apreço.
Diz o seu sumário:
"VII - «À condenação por qualquer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual pode corresponder a inibição do poder paternal (arts. 124.º e 1901.º e ss. do CC), da tutela (arts. 139.º,143.º, 144.º e 1921.º e ss. do CC) ou da curatela (arts. 153.º, 154.º, 1891.º e 2048.º do CC), querendo isto significar que à condenação em pena principal pode acrescer a condenação em pena acessória (cf. art. 65.º-2), tratando-se aqui de um poder-dever para o juiz, uma vez verificados os pressupostos de que depende esta condenação (assim, Maia Gonçalves, art. 179.0)  .
A inibição do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela é, por conseguinte, uma pena acessória, no sentido específico de ser uma pena que só pode ser decretada na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal» - cf. Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial I, págs. 599 e ss.
VIII - Tal pena acessória assenta materialmente num específico conteúdo de censura do facto, que por seu turno permite a necessária ligação à culpa do agente e faz dela uma verdadeira pena vocacionada para uma função preventiva adjuvante da pena principal (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 88 e ss.).
IX - "Pressuposto formal da condenação em pena acessória é que haja uma condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual - crime previsto nos artigos 163.º a 176.º.
Significa isto que o agente pode ser condenado na pena acessória de inibição do poder paternal, da tutela ou da curatela, independentemente  da pena principal que seja imposta independentemente do tipo de pena (prisão ou multa) ou do seu montante, o que mostra a ligação entre a pena acessória e o crime (assim, Actas, 1993, 269); e ainda que a pena principal seja substituída por uma qualquer outra pena legalmente admissível - v.g., a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, nos termos do art. 50.º.
X - O pressuposto material da condenação na pena acessória de inibição do poder paternal, da tutela ou da curatela traduz-se na comprovação, no facto, de um particular conteúdo de ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória" - cf. Figueiredo Dias, ob. cit., § 196.
XI - Um particular conteúdo de ilícito baseado na concreta gravidade do facto e na sua conexão com o exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela - cf. Actas, 1993, pág. 282, e Pedro Caeiro, RPCC, 1993, pág. 566.
XII - Tal significa, porque de uma verdadeira pena se trata, que a condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual não implica necessariamente a inibição do poder paternal (discordam desta solução legislativa, Fernanda Palma, Jornadas 1996, I, pág. 145, e Teresa Beleza, Jornadas, 1996, pág. 1183).
XIII - A decisão que decretar a inibição do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela fixa a duração respectiva, entre um período mínimo de 2 anos e um máximo de 15 anos em função das exigências preventivas que justificam a aplicação desta sanção adicional. XIV - Estamos, pois, perante uma pena acessória, uma sanção adicional do agente da prática de crime, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente e não de uma medida protectora do menor - cf. intervenção do Figueiredo Dias, in
Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Código Penal, MJ, 1963."
Compulsadas as aventadas posições em contrário de Fernanda Palma, Jornadas 1996, I, pág. 145, e Teresa Beleza, Jornadas, 1996, pág. 1183 constata-se que nenhuma delas defende (expressamente) em tais textos uma automaticidade da aplicação de pena acessória
A primeira discorre sobre a tutela da pessoa e a eficácia do sistema face à revisão legislativa então ocorrida.
Mencionando no aludido texto (p.143) nomeadamente que "a especial dependência ou fragilidade da vítima não é acolhida também, expressamente, como indício de maior censurabilidade."
Apontando aparente incongruência na atribuição de natureza semipública a crimes contra a autodeterminação sexual, a mesma então colocou diversas questões (da pág.143 a 145), de entre as quais: "A violação de uma filha menor não implica necessariamente inibição do poder paternal? E essa inibição nunca é definitiva?"
Como bem se afere, questionar é diferente de responder ou de tomar posição definida sobre a matéria.
Sendo certo que a primeira das questões transcritas não tem aplicação ao caso em apreço (a menor não é filha mas enteada e inexiste crime de violação).
E a segunda tem hoje resposta expressa no artº.69º-C, ao fixar limites mínimo e máximo (distintos dos ponderados no mencionado acórdão).
Coisa distinta seria uma inibição das responsabilidades parentais decretada por Juiz ou Tribunal de Família e Menores, essa sim sem limite temporal definido, mas com um prévio processo judicial sujeito a específica tramitação.
Por outro lado, Teresa Beleza, nas mencionadas Jornadas discorre sobre o repensar dos crimes sexuais na revisão legislativa então ocorrida, designadamente entre a página 159 e 183 de tal obra (pelo que a citação de p.1183 padece de manifesto lapso de escrita).
A mesma também questiona (na p.170) se a idade da vitima não deveria estar incluída nas agravantes do art°.132°., do CP.
Apenas se refere a uma das penas acessórias ora em apreço na p.183.
Aí referindo nomeadamente o art°.179°., do CP, que ora se mostra revogado.
Aí refere designadamente que "o art°.179°., do CP95 mantém a possibilidade de inibir um condenado por crime sexual do exercício do poder paternal(...).
Note-se ainda que a Constituição abre excepção ao não funcionamento automático dos efeitos de penas e penas acessórias (artº.30°., nº.4) nos casos de crime de titulares de cargos políticos (artº.120°., nº.3).
Poderia também fazê-lo relativamente aos agressores de crianças
(...).
Ainda aqui se poderá questionar se o nosso legislador (... ) não terá esquecido(... ) os mais vulneráveis..."
Donde se conclui que as mencionadas penas acessórias não são de funcionamento automático (por não excepcionadas como quanto aos titulares de cargos políticos).
Mais sendo de notar que o mencionado artº.179°, do CP de 95 foi precisamente revogado pelo mesmo diploma (a mencionada Lei 103/2015) que aditou o artº.69°.-C, do CP, ora em apreço.
Assim, sem necessidade de mais considerandos, e julgando as penas acessórias ora em apreço como não sendo de funcionamento automático, ponderado o preenchimento dos crimes de abuso sexual, mostra-se preenchido o respectivo pressuposto formal.
Quanto ao pressuposto material, cabe ponderar toda a matéria de facto supra apurada, cujo teor se dá por aqui reproduzido.
De mesma, no essencial, afere-se que o arguido praticou actos sexuais de relevo oral em enteada, então com 13 e 14 anos de idade.
Tais actos foram praticados no seio familiar.
E, feita a apreciação global da sua conduta apurada, não pode deixar de estar preenchida a especial censurabilidade, o especial conteúdo de ilícito previsto como pressuposto material das ora mencionadas e imputadas penas acessórias.
Termos e do art".69°-C, nºs.2 e 3, do CP em que serão aplicadas ao arguido destes autos as penas acessórias aí previstas, dentro dos limites ora vigentes e fazendo apelo a critérios idênticos aos supra vertidos (cujo teor se dá por aqui reproduzido) atinentes às penas principais aplicadas. ...”.
A determinação da medida concreta da pena, nos termos do art.º 71º do CP[33], deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente[34].
Por sua vez, na determinação da medida da pena do cúmulo serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art.º 77º/1 do CP)[35],[36].
Pensamos que a intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada[37],[38], ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares[39].
No presente caso, por um lado, os actos sexuais de relevo que o Arg. infligiu à Ofendida são, dentro do espectro abarcado por este conceito, de gravidade situada no seu limiar inferior.
Por outro, as penas aplicadas pelo tribunal recorrido excedem significativamente as que que vêm sendo aplicadas/mantidas pelos tribunais superiores para casos similares e igualam as penas aplicadas/mantidas, em alguns casos, para actos muito mais graves e/ou mais numerosos[40].
O Arg. é primário, admitiu parcialmente os factos, está social, profissional e familiarmente inserido, está a ser acompanhado psiquiátrica e psicologicamente, por sua própria iniciativa.
As necessidades de prevenção especial não são muito elevadas, uma vez que a vítima já não reside na casa do casal, mas as de prevenção geral são “... muito intensas e prementes, fazendo-se sentir especialmente nos crimes de abuso sexual de crianças tendo em conta o bem jurídico violado e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do alarme social e insegurança que estes crimes causam na comunidade ...”[41].
Tendo em conta os parâmetros e circunstâncias supra referidos, entendemos reduzir as penas em que o Arg. foi condenado pelo tribunal recorrido, aplicando antes as seguintes:
- 2 anos de prisão por cada um dos crimes cinco crimes de abuso sexual de criança, consumados, p. e p. pelos art.ºs171º/1 e 177°/1-b) do CP, (factos provados 14 a 17 e 31 a 37);
- 1 ano e 6 meses de prisão por cada um dos dois crimes de abuso sexual de criança, consumados, p. e p. pelos art.ºs 171º/1 e 177°/1-b) do CP, (factos provados 20, 21, 41 a 43 e 22, 23, 44 a 46);
- 6 meses de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de criança, tentado, p. e p. pelos art.ºs 171º/1, 177°/1-b), 22°, 23°, 72° e 73°. do CP, (factos provados 18, 19 e 38 a 40);
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de criança, consumado, p. e p. pelos art.ºs171º/1 e 177°/1-b) do CP, (factos provados 24 a 30 e 47 a 49);
Em cúmulo jurídico destas penas, fixar a pena única em 5 anos de prisão.
Atentos a pena única que vai aplicada e o disposto no art.º 50º do CP, há que indagar se a execução da mesma deve ser suspensa.
Tal acontecerá se for possível fazer um juízo de prognose positivo quanto comportamento futuro do Arg., e for de concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição[42].
Para se formular um juízo de prognose positivo “... Não é necessário, alcançar uma certeza isenta de dúvidas ou mesmo exigir um alto grau de probabilidade de que a socialização em liberdade pode ser  alcançada; há que aceitar um certo risco ...”[43], “... Pois que o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - digamos: fundado e calculado sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada. Como muito exactamente nota Jescheck, «o princípio in dubio pro reo vale só para os factos que estão na base do juízo de probabilidade, mas desta deve o tribunal estar convencido. ...”[44].
Na decisão quanto à aplicação de uma pena de substituição prevalecem considerações de prevenção especial, funcionando as considerações de prevenção geral como limite mínimo às exigências de prevenção especial[45].
Já vimos que, no presente caso as necessidades de prevenção especial não são muito elevadas, uma vez que a vítima já não reside na casa do casal, mas as de prevenção geral são.
Há que ter conta que o Arg. é primário, “... Em audiência admitiu parte dos factos imputados, mas negou a prática da generalidade dos factos imputados. Admitiu ter tido comportamento inapropriado para com a ofendida. A menor encontra-se actualmente a residir com o pai em Angola. O pai da menor tem residência também em Sintra. O arguido foi seguido por psiquiatra de janeiro a junho de 2015. Retomou consultas com o mesmo em 3/12/2019. Em julho de 2020 esse psiquiatra elaborou plano de medicação destinado ao arguido. É seguido mensalmente por psicóloga desde setembro de 2019. ...”.
Estes elementos apontam para que se possa fazer um juízo de prognose positivo, sobretudo, se a suspensão for acompanhada de regime de prova[46], como entendemos que deve ser, porque os autores deste tipo de crimes têm, em geral, uma forte compulsão[47] interna para a sua prática e, poucas vezes, capacidade para, por si sós, se lhe oporem.
Por isso, do regime de prova deve, necessariamente, fazer parte o diagnóstico e, sendo caso disso, tratamento e prevenção da compulsão do Arg. para a interacção sexual com menores.
Atentas as já referidas necessidades de prevenção geral, a suspensão será pelo período de 5 anos.
*
Entende o Recorrente que se justifica “... que não se apliquem as penas acessórias em causa, ou quaisquer outras, ou que, no limite, as mesmas vejam o seu quantum significativamente reduzido, com base em fundamentação específica e concreta, aplicada de forma necessária, adequada e proporcional. ...” (conclusão 88.).
Tendo em conta a diferença de redacção entre os n.ºs 1 (“Pode ser condenado na proibição ...”), e 2 (“É condenado na proibição ...”) e 3 (“É condenado na inibição ...”) dos art.ºs 69º-B e 69º-C do CP, e a similitude de redacção destes com a do art.º 69º/1 (“É condenado na proibição ...”) do CP, por igualdade de razões[48], entendemos que nos casos em que o Arg. for condenado por crime previsto nos art.ºs 163º a 176º-A do CP, quando a vítima seja menor, aquelas sanções acessórias não podem ser dispensadas, atenuadas especialmente, nem ver a sua execução suspensa[49].
Por isso, entendemos que o acórdão recorrido decidiu correctamente.
Resta, pois, apreciar as respectivas medidas.
Na determinação das medidas das penas acessórias, há que ter em conta os critérios gerais constantes do art. 71º do CP, mas a duração desta pode ser proporcionalmente diferente da concretamente encontrada para a pena principal por via, desde logo, da diversidade dos objectivos de política criminal ligados à aplicação de cada uma delas, maxime o especial peso posto na prevenção especial quanto às penas acessórias[50].
Assim, tendo em conta os factores referidos a propósito das penas principais, sobretudo, que as necessidades de prevenção, no caso, especial não são muito elevadas, entendemos reduzir as medidas de penas acessórias para 6 anos.
Procede, pois, nesta parte, o recurso.
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VI – O Recorrente entende que “... não tendo sido observado o necessário contraditório imposto pelo artº 82º-A CPP, vem-se arguir o vício em causa, que determina a anulação da sentença nesta parte ...” (conclusão 91.) e que “... A indemnização calculada pelo tribunal a quo é manifestamente incompreensível e, não constituindo uma exorbitância, parece excessiva atendendo aos factos, circunstancialismo e danos sofridos pela vítima.  ...” (conclusão 97.).
Discute, ainda, que a Ofendida tenha nos autos o estatuto de vítima especialmente vulnerável.
Quanto à violação do contraditório, cita em abono do que alega o acórdão da RC de 22/01/2014[51]. Mas nesse acórdão, que qualifica a falta de contraditório como uma irregularidade de conhecimento oficioso que acarreta a anulação da sentença nessa parte, quanto a esta matéria, diz-se, para além do mais, o seguinte:
“... Tal como o demandado civil tem que ter conhecimento do pedido de indemnização, quando este seja deduzido, também nos casos em que a condenação em indemnização civil ocorre sem que exista tal pedido o arguido terá que ter conhecimento, previamente à condenação, da possibilidade de lhe vir a ser imposto o pagamento de uma indemnização ao lesado.
E porquê? Naturalmente porque não pode ser surpreendido com uma decisão que não estava no seu horizonte poder acontecer.
Por isso quando o juiz conclua que pode sobrevir a condenação em indemnização, nos termos do nº 1 do art. 82º-A, do C.P.P., terá que informar o arguido dessa possibilidade e dar-lhe, consequentemente, o direito de se pronunciar.
No caso isto não foi feito, pois em momento algum a arguida foi notificada da possibilidade de também vir a ser condenada a indemnizar a ofendida.
Foi violado, pois, o comando do nº 2 do art. 82º-A do C.P.P.  ...”
Ora,  no nosso caso, como já se disse na decisão recorrida, O MP, na acusação, para além do mais, mais requereu a observância do art.º 16/1/2, da Lei 130/2015, de 04/09, atenta a especial vulnerabilidade da vítima (art.ºs 67°-A/1-b)/3 e 1º/j) do CPP), e o recebimento dessa acusação foi devidamente notificado ao Arg., pelo que este foi informado e teve oportunidade de se pronunciar sobre esse possibilidade. O que não fez na contestação.
Não houve, pois, violação do contraditório.
Os crimes pelos quais foi condenado o Arg., porque são crimes contra a autodeterminação sexual e puníveis com prisão de máximo superior a 5 anos, integram a categoria de criminalidade violenta (art. 1º/j) do CPP), e as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis (art.º 67º-A/3 do CPP), independentemente de as autoridades lhes conferirem tal estatuto.
Já vimos, a propósito das deficiências de fundamentação, como fundamentou o tribunal recorrido a decisão de atribuir a indemnização à vítima e determinou o seu montante.
Concordamos com o arbitramento da indemnização.
Na verdade, nos termos do art.º 129º do CP, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. (art.º 483º do CC[52]).
Ou seja, para que haja responsabilidade civil por factos ilícitos, é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos: facto, voluntário, ilícito, imputável ao lesante, causador de um dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O Arg. agiu livre e conscientemente, com dolo e violou o direito à liberdade e autodeterminação sexual, na vertente do livre desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual.
Este direito merece a tutela da lei, como resulta, desde logo e para além do mais, das tutelas penal (art.ºs 171º a 177º do CP) e civil (art.º 70º do CC) que lhe são conferidas. Tanto basta para concluir que estas ofensas àquele bem jurídico, em concreto, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 496º/1/3 do CC.
Os danos foram dados como provados (“... Em consequência da apurada supra conduta do arguido, a menor passou a sofrer ataques de ansiedade e teve de ter acompanhamento psicológico ...”), sendo previsível que esses danos se prolonguem no tempo e até que venham a revelar-se outros danos no futuro, e foram adequadamente causados pelos factos praticados pelo Arg., pelo que se verifica o nexo de causalidade.
Vejamos agora a questão do montante arbitrado.
No presente caso, o tribunal recorrido fixou os danos não patrimoniais (únicos considerados) sofridos pela Ofendida com recurso a critérios de equidade, o que podia fazer, porque previsto legalmente (art.ºs 4º/1-a) e 496º/4 do CC).
A dificuldade em quantificar os danos de natureza não patrimonial anda sempre ligada à sua dimensão imaterial, por atingirem valores de carácter espiritual ou moral e se traduzirem em sofrimento de dor (física e moral ou psicológica), desgosto e angústia.
O montante da indemnização por este tipo de danos deve ser calculado, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, tendo “… uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente. …”[53].
Como se refere no Ac. do STJ de 08/06/1999, in BMJ 488(1999)/323. “A compensação dos danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496° do Código Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.”.
Na fixação da indemnização, diz a lei (art.° 496°/3 do CC), que se devem ter em conta as circunstâncias referidas no art.° 494° do CC.
Isto é, devem ter-se em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem, e ainda as “regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida” - Pires de Lima e Antunes Varela, in ‘Código Civil Anotado”. 4 edição, vol. I, pág. 501, ou, como decidiu o referido Ac. do STJ de 08/06/1999, “O juiz para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniário dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado dos danos não patrimoniais que sofreu.”.
Há também que ter em conta as indemnizações que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares[54],[55].
Embora os tribunais de recurso possam alterar o valor do dano fixado com recurso a critérios de equidade, só o devem fazer quando o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”[56].
No presente caso, entendemos que, tendo em conta os crimes praticados pelo do Arg.; a extensão e consequências dos danos; os rendimentos o Arg., já que nada se sabe sobre a condição económica da Ofendida,  e a dimensão punitiva da indemnização por danos não patrimoniais[57], a indemnização foi fixada com ponderação, equilíbrio e justeza, pelo não pode deixar de improceder, também nesta parte, o recurso.
*
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente provido o recurso e, consequentemente, decidimos alterar as medidas das penas que vinham aplicadas ao Arg., condenando este nos seguintes termos:
a) – Nas penas de 2 (dois) anos de prisão por cada um dos cinco (5) crimes de abuso sexual de criança, consumados, p. e p. pelos art.ºs 171º/1 e 177°/1-b) do CP, (factos provados 14 a 17 e 31 a 37);
b) - Nas penas de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos dois (2) crimes de abuso sexual de criança, consumados, p. e p. pelos art.ºs 171º/1 e 177°/1-b) do CP, (factos provados 20, 21, 41 a 43 e 22, 23, 44 a 46);
c) - Na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, tentado, p. e p. pelos art.ºs 171º/1, 177°/1-b), 22°, 23°, 72° e 73°. do CP, (factos provados 18, 19 e 38 a 40);
d) - Na pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, consumado, p. e p. pelos art.ºs171º/1 e 177°/1-b) do CP, (factos provados 24 a 30 e 47 a 49);
e) Em cúmulo jurídico destas penas, fixar a pena única em 5 (cinco) anos de prisão;
f) Suspender a execução desta pena única, pelo período de 5 (cinco) anos, com regime de prova, do qual deve, necessariamente, fazer parte o diagnóstico e, sendo caso disso, tratamento e prevenção da compulsão do Arg. para a interacção sexual com menores;
g) Nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores; de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores; de inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período de em 6 (seis) anos.
No mais, confirmamos a decisão recorrida.
*
Sem custas.
*
Notifique.
D.N..

Lisboa, 11-03-2021
João Abrunhosa
Maria do Carmo Ferreira
_______________________________________________________
[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 31/07/2019.
[4] Código de Processo Penal.
[5] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
[6] Supremo Tribunal de Justiça.
[7]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[8] Costa Andrade, em parecer datado de Março de 2009, junto ao, processo n.º 263/06.8JFLSB.L1, por nós relatado na Relação de Lisboa.
[9] Na verdade, entendemos que só após se determinar a pena única do cúmulo jurídico, deve ter apreciada a possibilidade da substituição dessa pena única.
Nesse sentido, ver Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, págs. 285 e 290.
[10] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[11] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[12] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[13] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[14] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.
[15] Nos seguintes termos:
“... Toda a prova recolhida acerca da personalidade do recorrente aponta para o facto de este não ter traços mal adaptativos ou desestruturação da personalidade e ter uma personalidade e circunstância que são de molde ao cumprimento rigoroso das regras que, estamos convictos ser de justiça impor, para poderem ser verdadeira condição para uma pena não efetiva de privação da liberdade.
Vejamos:
Avaliação Psicológica, Prof. Doutora YY, Psicóloga Forense (p. 7)(sublinhados e destacados nossos)
“Conclusão
Do ponto de vista da personalidade, a análise das diferentes provas e informações sugere problemática ansiosa e depressiva (congruente com o referido pelo AA  ao longo da entrevista e com o apresentado nos outros relatórios técnicos), bem como, um sujeito imaturo, sugestionável e amigável, embora rígido, que procura, em relação à sintomatologia ansiosa e depressiva, transmitir uma imagem favorável de si mesmo (provavelmente por uma necessidade de colaborar no processo de avaliação). É ainda, sugestiva de reduzido insight [capacidade de autoconhecimento e compreensão, ibid.] e com uma tendência para negar os problemas psicológicos e conflitos, através de uma imagem muito idealizada de si mesmo e do mundo.”
Ainda em relação à personalidade do recorrente e à relação com o seu núcleo familiar, não deixa de ser essencial atentar no que a seu respeito refere a sua companheira, isto é, que o recorrente é pessoa rigorosa e estruturada e que mantém a expectativa de reatar a relação que se encontra suspensa devido ao afastamento imposto pelos autos:
Depoimento da testemunha DD
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 27:00, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 08:50 a 13:05 e 19:15 a 20h05, gravado no ficheiro 20200910105849_4264188_2871336]
(……………………….)(………….) ………………………..…
***
(………….)19:15 MM Juiz – (………………..)
...
Tal como resulta da seguinte prova (erradamente desconsiderada e imponderada pelo Tribunal a quo):
Depoimento da testemunha DD
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 27:00, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 13:14 a 23:40, gravado no ficheiro 20200910105849_4264188_2871336]

13:14 DD – dizia-me sempre “tou farta disto” [das regras impostas pela mãe e pelo recorrente].  Aliás, ela houve um dia… a minha mãe, depois disto tudo acontecer, ela disse-me um dia que ela lhe tinha dito que quando o irmão fizesse dezoito anos que iam os dois viver para casa do pai. O EE a mim disse-me que ela nunca teve essa conversa com ele.
MM Juiz - E a senhora consegue arranjar explicação para isso?
DD – eu acho que o que ela queria na realidade era ir viver com o pai, que é onde ela está atualmente. Porque ela desde o dia 10 de junho do ano passado que ela já não está em casa. Ela foi passar uns dias a casa do pai e nunca mais quis voltar.
MM Juiz - E eu volto a perguntar: e a Sra. consegue arranjar uma explicação para isso?
13:58 DD – não.
(...)
14:42 MMa Juiz - Sim. DD, já referiu que o relacionamento que a sua filha tem com o arguido era bom, apesar de ter aqueles altos e baixos. E o relacionamento da sua filha para com a senhora?
DD – eu sempre considerei que fosse bom.
MMa Juiz - Sempre considerou?
DD – que fosse bom.
MMa Juiz - Já que não havia nada que dissesse que havia, se calhar, aqueles litígios normais entre pais e filhos.
DD – sim.
MMa Juiz - Mas nada de anormal.
DD – o que aconteceu, se eu me zangava com ela, ela ficava amuada e depois passava-lhe.
MMa Juiz - Sim.
DD – agora, fora isso, eu não acho que tivesse um mau relacionamento nem com ela nem com o EEl.
MMa Juiz -  Muito bem. Aliás, a minha colega já lhe fez também esta pergunta: que explicação é que a Sra. encontra para que a sua filha quisesse, por aquilo que a Sra. diz, ela queria era ir viver com o pai. Porquê? Tinha um relacionamento mais próximo com o pai?
DD – é assim, ter um relacionamento mais próximo com o pai, eu não sei se ela tinha. Porque o relacionamento deles passava por… pelo período de férias dele, quando ele vinha cá, porque mesmo já ainda nós estávamos casados, já ele estava no estrangeiro há bastante tempo. Ela tinha sensivelmente 2 anos quando foi para o estrangeiro… quando ele foi para o estrangeiro. Vinha cá 2/3 vezes por ano no… agora, que eles foram no outro… isto foi em 2018, eles foram passar os dois um mês de férias lá em Angola, que ela vinha se calhar deslumbrada com aquilo que viu lá, ou com o estilo de vida do pai, visto que viu lá, isso vinha.
MMa Juiz -  E é isso que a Sra. atribui a vontade de ela querer ir viver com o pai, é isso?
DD – eu acho que sim.
MMa Juiz - Muito bem. Pergunto-lhe também…
16:44 DD – eu acho que deve ser a questão de, pelo menos na minha cabeça, eu vejo isso assim. É ela ver que ele lá tem um estilo de vida completamente diferente, tem motorista, tem empregados, tem tudo e mais alguma coisa que cá ela não tem e quem usufrui disso são os irmãos.
(...)
17:01 MM Juiz - Pergunto-lhe também, ah… que explicação é que a Sra. encontra para que a sua filha nunca tenha falado com a Sra., mãe, em princípio muito mais próxima dela, se calhar, até do que o próprio irmão ou qualquer outra pessoa, nunca tenha desabafado com a Sra. sobre esta situação toda? Que ela veio a relatar, porque a Sra. diz que só tomou conhecimento da situação quando ela própria denunciou o caso.
DD – eu tenho conhecimento do que está escrito. Porque mesmo depois…
MM Juiz - Nunca teve uma conversa com a sua filha sobre isso?
DD – mesmo depois de… de ela ter apresentado denúncia, de agente termos ficado as duas sozinhas em casa, ela nunca me explicou em concreto o que é que houve.
MM Juiz - Sim. E a Sra. chegou a perguntar-lhe em concreto o que é que houve?
DD – cheguei.
MM Juiz - E agora pergunto-lhe…
DD – cheguei a perguntar-lhe. Cheguei a perguntar se ela tinha alguma, se já tinha tido algum tipo de experiência para saber a diferença do que é que é um abuso ou não. Que ela disse-me a mim que não. E a única coisa que ela me dizia é que achava que sim, que achava que sim, que achava que sim.
MM Juiz - Sim.
DD – e em concreto o que é que foi feito nunca mo explicou. Nunca mo disse.
MM Juiz - Sim.
DD – aliás, a gente desde que ela saiu de casa e, aliás, mesmo nos dias que ela passou em casa, ela falava comigo [apenas] quando eu me dirigia a ela.
MM Juiz - Sim.
DD – ela mudou a atitude dela para comigo completamente.
MM Juiz - Mas a partir de quando?
DD – depois da denúncia.
MM Juiz - E a Sra. encontra alguma explicação para isso?
18:15 DD – não.
(...)
23:27 MM Juiz - Eu só gostava de perceber, para além do facto de a sua filha ter ido viver com o pai, há mais algum motivo que justifique a sua animosidade para com ela que tem sido patente nas suas declarações aqui no tribunal?
23:40 DDD – eu gostava que ela me tivesse explicado as coisas, que tivesse falado comigo antes de desenvolver tudo isto.

***
Depoimento da testemunha EE
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 11:35, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 06:25 a 10:00, gravado no ficheiro 20200910112735_4264188_2871336]

06:25 Dr. ……………………………..()
Vejamos então as palavras da própria menor:
Declarações para memória futura da criança BB
[cfr. Transcrição fornecida pelo Tribunal a quo, gravadas no ficheiro áudio 20190618094528_4218360_2871337] (sublinhados nossos)

00:27:01: Mm Juiz:... Senhora Doutora, relativamente à relação entre a BB e o padrasto. Como é que ela a descreve?
00:27:11: Ofendida: Nós não nos dávamos bem. Quando eu era mais nova ele às vezes tipo, ele batia-me, mas por coisas insignificantes começava a gritar comigo. Já me fez também, eu estava a tomar o pequeno-almoço e do nada mandou-me ir comer para a rua. Porque acho que eu estava a mastigar de boca aberta porque eu tinha um problema nos dentes e então não conseguia mastigar bem. Então mandou-me ir comer para a rua. Pronto. Coisas assim. E também ainda por exemplo, tinha o meu quarto um bocado ... tinha alguma coisa no chão do meu quarto, ele ia ao sótão pegava-me pelo braço e às vezes estava arrastava-me até lá abaixo. Ao ponto de eu quase cair das escadas.
00:28:01: Mm Juiz: Então relação foi sempre assim, desde o momento em que o padrasto foi viver com a mãe?
00:28:08: Ofendida: Quer dizer, ao início quando ele foi para lá, ou passava lá algumas vezes, ele não era assim, mas depois ele começou a ser mais agressivo. Depois às vezes do nada ele dava-lhe uma coisa de ser simpático para mim e ser agressivo para o meu irmão. Depois voltava a ser simpático para o meu irmão e passava não sei quanto tempo a ser agressivo para mim.
00:28:28: Mm Juiz: E alguma vez a BB transmitiu isto à mãe? Que se sentia desconfortável com esta situação?
00:28:34: Magistrada Judicial: [Inaudível]
00:28:36: Ofendida: A minha mãe sabia. Houve coisas que presenciava, outras vezes não, já tinha ido para o trabalho. Houve até vezes que até o meu irmão viu, como quando me mandou comer na rua, o meu irmão viu. E quando ele me arrastava das escadas abaixo, eu ia falar com a minha mãe, mostrava-lhe que andava como braço todo vermelho à conta disso.
00:28:57: Mm Juiz: E que é que a mãe dizia, como é que a mãe reagia?
00:28:01: Ofendida: A mãe não sabia bem o que dizer.

***
00:29:41: Mm Juiz: A BB alguma vez manifestou vontade de ir viver com o pai?
00:29:45: Ofendida: Sim
00:29:47: Mm Juiz: Quando?
00:29:49: Ofendida: O ano passado. Várias vezes. Eu sempre me dei melhor com o meu pai do que com a minha mãe. Eu e a minha mãe não temos uma relação muito forte e eu com o meu pai falo com ele sempre tudo.
00:30:04: Mm Juiz: No verão passado conheceu também a mulher do seu pai?
00:30:07: Ofendida: Já conhecia desde que eu era pequenina, também porque ela já veio cá várias vezes.
...
Concretizando, a ofendida BB referiu o seguinte:

i.             Que sofria de dores musculares nas costas desde que começou a participar em acampamentos de escuteiros [p. 16 da tradução das declarações para memória futura fornecidas pelo Tribunal a quo];
ii.            Que, por isso, pedia ela própria massagens diretamente ao recorrente [p. 4, 15 e 16, ibid];
iii.           Que o recorrente lhe perguntava se queria massagens [p. 4, ibid];
iv.           Que o recorrente chegou a negar fazer-lhe massagens [p. 15, ibid];
v.             Que o recorrente lhe fez massagens na presença da mãe e do irmão [p. 15, ibid];
vi.           Que as massagens eram sempre realizadas com creme [p. 5, ibid];
vii.          Que a conduta do recorrente de cariz sexual se reporta ao período que vai do verão de 2018 a maio de 2019, sendo que perfez 14 anos em dezembro de 2018 [p. 5 ibid.];
viii.         Que o recorrente chegou a abordá-la pelas 10h-11h da noite, no seu quarto, quando a mãe estava no andar de baixo, na sala [p. 8, ibid];
ix.           Que o recorrente procurava, com sucesso, apalpar o seu rabo e seios, enquanto esta se encontrava deitada de barriga para baixo, por baixo da roupa que vestia [p. 5, 6 e 9, ibid.];
x.             Que uma vez, o recorrente tentou meter a mão entre as suas pernas, não sabendo precisar se nessa ocasião já teria feito 14 anos  [p. 6 e 10, ibid.];
xi.           Que o recorrente, por vezes, concretamente “umas 5 [vezes] para aí” se punha por cima dela  [p. 6 e 7 ibid.];
xii.          Que duas dessas vezes esfregou o seu corpo no dela [p. 7, ibid.];
xiii.         Que, por duas vezes, o recorrente se deitou ao seu lado na cama, começando a “passar as mãos do lado do seu corpo”, não sabendo precisar se nessa ocasião já teria feito 14 anos  [p. 6 e 11 ibid.]
xiv.         Que por essa altura, uma vez, o recorrente lhe beijou o rabo [p. 6 e 10, ibid.];
xv.           Que sentiu que o recorrente tinha uma ereção [p. 11, ibid.];
xvi.         Que não notou que o recorrente alguma vez tenha feito algum gesto ou ejaculado [p.6 ibid.];
xvii.        Que a porta do seu quarto se encontrava aberta, porque essa era a regra que a madrasta e o recorrente tinham definido para si, ao contrário do seu irmão [p.14 ibid.]
xviii.       Que a recorrente passou férias com o irmão, a tia, os avós, a mãe o recorrente no Porto no início do verão de 2018, em junho  [p.12 ibid.];
xix.         Que os avós e a tia ficaram a residir na sua casa em julho de 2018, durante duas a três semanas [p.12 e 13 ibid.].
xx.           Que durante esse período, os avós dormiam no seu quarto e ela dormia com a tia no sótão [p. 13 ibid.];
xxi.         Que a recorrente passou férias com o irmão em Angola no verão de 2018 (de 3 a 26 de agosto) [p.12 ibid.].
Estas declarações devem ser avaliadas, em contraponto com aquelas prestadas pelo recorrente e pelas testemunhas, concretamente:
Depoimento do arguido, AA
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 06:35 a 11:27, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 16:05 a 18:02, gravado no ficheiro 20200910103340_4264188_2871336]

06:35 Mm. Juiz – e a BB tinha dores nas costas, era isso?
AA – sim, ela queixava-se com dores nas costas.
Mm. Juiz – e o que foi dito é que o senhor começou a fazer-lhe massagens, foi isso?
AA – ela pediu-me as massagens.
Mm. Juiz – e essas massagens eram feitas quando?
AA – quando ela pedia. Sempre à noite.
Mm. Juiz – normalmente à noite?
AA – sim.
Mm. Juiz – e fazia… eram feitas em que sítio da casa?
AA – na sala e nos quartos.
Mm. Juiz – não era no quarto dela, por regra?
AA – no dela, no meu.
Mm. Juiz – e, quando lhe fazia massagem, ah…. Estava vestido? Tirava a camisa? Tirava…?
AA – tirava só a parte de cima da camisa. A parte de cima do pijama.
Mm. Juiz – ela tem aqui uma (...impercetível...) em 8 ocasiões, pelo menos, no ano de 2018 quando ela tinha 13 anos de idade. Ah… e fazendo descer até às nádegas. Isto é verdade?
AA – não, Dr. Não foram... Só houve 2… Sim, eu fazia massagens quando ela precisava, quando ela se queixava. A situação na nádega foi só na zona da ciática, que ela queixava-se…
Mm. Juiz – desculpe?
AA – na zona da ciática. Ela queixava-se do fundo das costas, que lhe tava a doer e que lhe prendia um bocado a perna.
Mm. Juiz – ciática numa menina de 13 anos?
AA – ela queixava-se do fundo das costas Dr.
Mm. Juiz – e isso era com creme, então, a massagem?
AA – sim.
Mm. Juiz – e diz que no ponto 16, que em alguma dessas situações tocou nos seios da BB?
AA – não, foi só espalhar o creme de lado.
Mm. Juiz – só de lado?
AA – só de lado.
Mm. Juiz – no ponto 17, ainda com 13 anos, diz que o senhor se (... impercetível...) ter-se-á deitado sobre ela, ficando com (... impercetível...) sobre as dela, até ficar com o pénis ereto. Ela tomou conhecimento dos (... impercetível...)...
AA – não, só foi… só duas situações.
Mm. Juiz – só?
AA – só houve duas situações em que ela pediu massagens aos ombros e ao tocar, toquei com o pénis ereto
Mm. Juiz – hum. Pois, já fiz também no 18, em que tentou, 18 e 19, em que tentou colocar as mãos entre as pernas dela?
AA – nunca.
Mm. Juiz – isto é verdade?
AA – nunca.
Mm. Juiz – sim ou não?
AA – não.
Mm. Juiz – no verão de 2012, diz-se que, numa ocasião em que ela estava deitada na cama vestindo calções, então o Sr. entrou e beijou-lhe uma das nádegas. Isto é verdade?
AA – não Dr.
Mm. Juiz – e no verão de 2012 à noite o Sr. passou no quarto dela e passou a mão pela lateral do corpo dela (... impercetível...). Isto também é verdade ou é mentira?
11:27 AA – mentira.

E:
Depoimento da testemunha DD
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 27:00, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 07:08 a 08:35, gravado no ficheiro 20200910105849_4264188_2871336]

07:08 Sr. Procurador –A BB sofria de alguma doença? Tinha dores?
DD – tirando um joelho que ela se queixava… teve 10 dias internada por causa de um gânglio linfático. Fora isso, ela não tinha doenças.
Sr. Procurador – dores nas costas, ela…
DD – ela, às vezes, queixava-se. Eu, muitas das vezes, dizia-lhe que era da maneira que ela usava a mochila, não era apropriada.
Sr. Procurador – o seu ex-companheiro costumava fazer-lhe massagens nas costas?
DD – às vezes.
Sr. Procurador – às vezes.
DD – quando ela pedia.
Sr. Procurador – era ela sempre que pedia, daquilo que a Sra. se pode aperceber, para ele lhe fazer massagens?
DD – sim, era ela que pedia.
Sr. Procurador – e essas massagens eram feitas em que local da habitação?
DD – na sala, no quarto.
Sr. Procurador – a Sra. estava presente na altura em que isso ocorria?
DD – sim.
Sr. Procurador – estava?
DD – sim. Cheguei eu própria também a fazer-lhe massagens.
Sr. Procurador – portanto, nunca se apercebeu, daquilo que pode ver, nada de anormal se passava?
08:35 DD – não.

E ainda:
Depoimento da testemunha EE
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 11:35, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 05:25 a 06:10, gravado no ficheiro 20200910112735_4264188_2871336]

(………………..)
...
Declarações para memória futura da criança BB
[cfr. Transcrição fornecida pelo Tribunal a quo, gravadas no ficheiro áudio 20190618094528_4218360_2871337] (sublinhados nossos)

00:04:53: Magistrada Judicial: Sim senhora. Mais, o que eu te queria perguntar mais, coisas assim mais importantes que tu te lembres que queiras dizer. Porque é que tu não contaste à mãe, logo da primeira vez, quando é que sentiste que isso era estranho, que havia alguma coisa estranha.
00:05:12: Ofendida: Mesmo no início eu não dava conta, pronto.
00:05:14: Magistrada Judicial: Houve um momento em que tu achaste que não era normal. 00:05:16: Ofendida: Sim.
00:05:17: Magistrada Judicial: Qual é que é esse momento?
00:05:17: Ofendida: Tipo, foi para aí há́ uns 2 meses, 3 para aí. Eu tentava falar com a minha mãe, mas não conseguia porque estava sempre lá ele e depois também eu tinha medo dele e depois a minha mãe ela nunca me..., ela ia achar que eu estava a inventar alguma coisa e eu tipo, ok.
...
Declarações para memória futura da criança BB
[cfr. Transcrição fornecida pelo Tribunal a quo, gravadas no ficheiro áudio 20190618094528_4218360_2871337] (sublinhados nossos)
00:03:59: Magistrada Judicial: Não. Olha, e dessas vezes em que ele se deitou em cima de ti, portanto, tu estavas de barriga para baixo não é? este senhor deita-se em cima de ti e fez alguma pressão no teu corpinho, no teu rabinho, sim, e fez algum gesto, ejaculou?
00:04:20: Ofendida: Não que eu tenha notado.
00:04:21: Magistrada Judicial: Não que tu tenhas notado.
...
Em concreto, referiu o recorrente o seguinte em julgamento:
Depoimento do arguido, AA
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 22:38, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 16:05 a 18:02, gravado no ficheiro 20200910103340_4264188_2871336]
16:05 Dr. CA –A Dra. YY, ao fazer as entrevistas consigo, ao acompanhá-lo e ao fazer o relatório, e chamou-me disso à atenção porque o relatório foi pedido por mim, que o AA não ejaculou. Isto está no relatório e eu agora queria perceber, há bocado até falou no “líquido”…
AA – sim.
(:::::::::::::::::::::::::::::)
Repare-se também nas declarações da mãe da ofendida:
Depoimento da testemunha DD
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 27:00, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 22:25 a 23:20, gravado no ficheiro 20200910105849_4264188_2871336]

22:25 Sr. Procurador – tem a ver com o episódio relativamente a umas calças de pijama, se a testemunha se recorda de algum problema.
MM Juiz  – recorda-se de alguma coisa relacionada com umas calças de pijama?
DD – houve umas calças de pijama que a polícia levou para fazer testes. Entretanto foram devolvidas. Que ela dizia que tinham sido sujas.
MM Juiz  – hum. Sujas com o quê?
DD – para mim não estavam sujas com nada.
MM Juiz  - hum. Mas o que é que ela dizia que… teria sémen ou líquido seminal?
DD – ela a mim não me disse que era sémen. Disse que ela as sujou a fazer a massagem.
MM Juiz  – hum. Ela ou ele?
DD – eu não vi nada de anormal nas calças.
MM Juiz  – hum?
23: 18 DD – eu quando as pus para lavar não vi nada de anormal nas calças.
...
Quanto à inexperiência sexual do recorrente, o Tribunal a quo se mais não soube foi porque não entendeu, infeliz e erradamente, necessário (ver supra). O que não pode é dar como não provada a relativa inexperiência sexual do recorrente, bem como a relação com mulheres da sua idade ou mais velhas, nunca mais novas e muito menos menores, fazendo tábua rasa das seguintes declarações do recorrente, como se tal não constituísse prova valorável (erro que se repete ao longo da decisão):
Depoimento do arguido, AA
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 22:38, encontrando-se o segmento ora transcrito no minuto 13:32 a 15:55, gravado no ficheiro 20200910103340_4264188_2871336]
13:32 Dr. CA – Primeira questão, AA: gostaria de saber que, embora isso já esteja nos relatórios, mas gostava de saber pela sua voz. O AA é uma pessoa, como é que hei de dizer, sexualmente experiente? A sua primeira… a sua primeira relação foi com que idade?
AA – foi aos 23 anos, Sr. Dr.
Dr. CA – com quem?
AA – com a minha… com a EL, que era a minha namorada na altura.
Dr. CA – muito bem.
AA – foi a… foi a primeira namorada que eu tive.
Dr. CA – foi a primeira namorada que teve?
AA – sim.
Dr. CA – isso eu por acaso eu não sabia, tinha lido aqui… que tinha sido a primeira namorada. Muito bem. E depois teve, no fundo, a relação com a mãe da BB, é isto?
AA – não, tive uma relação… no intermeio.
Dr. CA – no intermeio, pronto. Então foram três que teve…
AA – sim.
(……………………………………….)
Declarações para memória futura da criança AA
[cfr. Transcrição fornecida pelo Tribunal a quo, gravadas no ficheiro áudio 20190618094528_4218360_2871337] (sublinhados nossos)
00:12:42: Mm Juiz: Sim. Relativamente ao ano passado, a AA consegue concretizar onde é que esteve e durante quanto tempo para percebermos quando falamos do verão passado se está a referir a agosto, setembro...
00:12:58: Magistrada Judicial: Olha querida, no verão passado tu foste passar férias fora, passaste sempre aqui?
00:13:03: Ofendida: Fui a Angola visitar o meu pai em agosto, fui dia 3 se não me engano e
voltei dia 26.
00:13:12: Magistrada Judicial: Dia 26. E gostaste de ir para lá?
00:13:14: Ofendida: Gostei.
00:13:15: Magistrada Judicial: Sim? O meu irmão é de lá. [Inaudível].
00:13:19: Ofendida: [Inaudível].
00:13:22: Magistrada Judicial: E já́ agora, depois de Angola foste a mais algum sítio? 00:13:26: Ofendida: Fui ao Porto. Acho que fui só́ ao Porto.
00:13:28: Magistrada Judicial: E recordas-te em que data mais ou menos?
00:13:32: Ofendida: Não sei.
00:13:33: Magistrada Judicial: Mas em agosto, em julho?
00:13:37: Ofendida: Foi mesmo no início das férias, então deve ter sido para aí... 00:13:42: Magistrada Judicial: Em junho. Diga.
00:13:46: Mm Juiz: E foi com o irmão, com a mãe?
00:13:51: Ofendida: Quando fui para Angola fui com o meu irmão, mas quando nos fomos para o Porto fomos fui eu, foi o meu irmão, foi a minha tia, foram os meus avós e foram eles, a minha mãe e o meu padrasto.
00:14:01: Mm Juiz: E durante o mês de Julho se se recorda? Se os avós [Inaudível]. 00:14:13: Ofendida: Os meus avós estiveram cá um tempo, mas, sim, depois estive sozinha. 00:14:17: Mm Juiz: Os avós que vivem fora?
00:14:20: Ofendida: Sim, eles moram em Espanha.
00:14:22: Mm Juiz: E ficam a dormir lá na vossa sala? Sim?
00:14:29: Magistrada Judicial: [Inaudível].
00:14:30: Mm Juiz: Peço desculpa,
00:14:30: Magistrada Judicial: [Inaudível] a mim, está bem? Combinado?
00:14:34: Mm Juiz: Quanto tempo os avós estiveram cá?
00:14:34: Magistrada Judicial: Quanto tempo os avós estiveram cá?
00:14:36: Ofendida: Duas semanas, três para aí.
00:14:41: Magistrada Judicial: Umas duas semanas. Sim senhora.
00:14:44: Mm Juiz: A dormir em casa da AA?
00:14:46: Ofendida: Sim.
00:14:47: Magistrada Judicial: Sim. E vocês têm lá um quarto para eles?
00:14:49: Ofendida: Eles ficam no meu quarto.
00:14:50: Magistrada Judicial: Muito bem.
00:14:51: Mm Juiz: E a AA nessa altura fica a dormir em que sitio?
00:14:54: Ofendida: No sótão.
00:14:56: Magistrada Judicial: Ficas no sótão?
00:14:57: Ofendida: Sim.
00:14:58: Mm Juiz: Com o EE ou sem o EE?
15:00:00: Ofendida: Normalmente fico a dormir com a minha tia ao lado.
15:00:04: Mm Juiz: Com a tia...
15:00:06: Ofendida: sim
15:00:06: Mm Juiz: materna? Quem é?
15:00:09: Ofendida: é irmã̃ da minha mãe
00:15:12: Mm Juiz: e a tia também lá estava Senhora Doutora em Julho durante essas semanas?
00:15:18: Magistrada Judicial: e a tia passou lá algum tempo em Julho? 00:15:20: Ofendida: sim ela passou o mesmo tempo que os meus avós 00:15:23: Magistrada Judicial: Passou o mesmo tempo que os avós
00:15:25: Ofendida: sim
00:15:26: Mm Juiz: Depois de chegar [Inaudível] Lisboa, neste caso [Inaudível] penso que em
Alcabideche, isso, passado quanto tempo é que começaram as aulas? 00:15:42: Magistrada Judicial: Elas começam em Setembro, não é? 00:15:43: Ofendida: sim
00:15:48: Mm Juiz: Para perceber um bocadinho as rotinas desta família, se a AA consegue descrever aqui ao Tribunal, de manhã, quem é que saía quem e que a levava à escola, a que horas regressavam a casa, se a mãe e o padrasto saiam juntos, quem é que ia com quem. [Inaudível]
00:16:13: Magistrada Judicial: Penso que não sejam relevantes [Inaudível] É irrelevante para aqui.
00:16:26 Mm Juiz: Como não ouvi a parte inicial poderia, para além das 10h poderia ter surgido [Inaudível]
00:16:40: Mm Juiz: Relativamente à disposição dos quartos queria só́ que se esclarecesse onde fica o quarto da mãe do padrasto.
00:16:50: Magistrada Judicial: Onde fica o quarto da mãe do padrasto [Inaudível]
15:43: Ofendida: frente [Inaudível]
00:16:55: Mm Juiz: E se as portas costumam ficar abertas ou se costumam estar fechadas
00:17:00: Ofendida: Eu normalmente costumava ou fechar a porta ou encostá-la, mas depois implicavam sempre e obrigavam-me a ter a porta aberta. O meu irmão costuma estar sempre com a porta fechada, mas eu tinha que estar sempre com a porta aberta.
...
Depoimento do arguido, AA
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 22:38, iniciando-se os segmentos ora transcritos no minuto 02:12 e 18:08, gravados no ficheiro 20200910103340_4264188_2871336]
02:12 AA - confirmo integralmente as minhas declarações já prestadas. Sinto um profundo arrependimento por toda a acusação que fui alvo… estou a ser alvo. Ah… quero pedir desculpas formalmente à AA, porque não era de todo e não queria de todo faltar ao respeito da AA. Sinto-me… revoltado com tudo aquilo que aconteceu.
***
18:08 Dr. Carlos Pinto de Abreu – e agora tenho uma última questão, um conjunto de questões. E agora Sr. Dr. só eu que vou para aquelas outras situações (... impercetível...) AAalguma vez olhou para a BB, era sua enteada…
(……………………………….)
...
Depoimento da testemunha FF
[cfr. depoimento prestado em 10 de setembro de 2020, estando consignado na ata de audiência de julgamento realizada nesse mesmo dia, que o mesmo foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, de 00:00 a 09:26, gravado no ficheiro 20200910114422_4264188_2871336]
MM Juiz  – bom dia. Está perante o juiz 3 daqui do Juízo Central Criminal de Cascais. Qual é o seu nome completo, por favor?
FF – FF.
MM Juiz  – muito bem. O seu estado civil?
FF – solteira.
MM Juiz  – idade?
FF – 27 anos.
MM Juiz  – profissão?
FF – psicóloga.
MM Juiz  – a prestar serviço onde?
FF – agrupamento de escolas IBN Mucana, Alcabideche.
MM Juiz  – não é família do aqui arguido neste processo, pois não?
FF – não.
MM Juiz  – conhece a BB?
FF – conheço, sim senhor.
MM Juiz  – em virtude de?
FF – portanto, eu acompanhei a aluna no serviço de psicologia e orientação deste agrupamento de escolas em 2019.
MM Juiz  – muito bem. Esse conhecimento não a impede de dizer a verdade, pois não?
(……………………………)
FF – portanto, eu já conhecia a BB desde 2018. Ah… derivada das sessões que eu fazia em turma de orientação vocacional, portanto, sessões em turma. Depois, posteriormente, em 2019 vim a prestar 2/3 sessões de acompanhamento psicológico individual com a aluna, em 2019. Sendo que, portanto, aí, o contacto foi mais próximo com ela.
Sr. Procurador – sim senhor. Olhe, a BB alguma vez lhe contou que algo se passaria com o ex-companheiro da mãe?
FF – sim. Aliás, esse foi o motivo pelo qual e comecei a ter sessões mais individuais com a aluna em que ela manifestou uma… uma… uma grande aflição, uma grande ansiedade, relativamente a alguns comportamentos que ela julgava impróprios e inadequados na relação do padrasto com ela, na altura.
Sr. Procurador – e quando ela lhe contou o que estava a suceder pela primeira vez, como é que ela estava?
FF – portanto, a aluna procurou-me no recinto escolar. Portanto, fora do gabinete do SPO ah… bastante aflita. Queria falar comigo em relação a esses comportamentos impróprios. E eu na altura lembro-me que me ausentei 45 minutos da escola para uma outra escola do agrupamento, mas combinei que assim que eu voltasse, eu reuniria com ela no SPO, onde ela então me falou desses mesmos comportamentos.
Sr. Procurador – sim senhor. E qual foi depois os passos seguintes que foram dados relativamente à menor?
FF – portanto, dia 8 de maio foi então realizada a primeira sessão de psicologia com a aluna, eu e a aluna. Depois, ah… marcamos uma sessão para dia 15. Mas dia 13 reunimos ah… devido a uma crise que se sucedeu na sala de aula. Nesse mesmo dia ah… e na presença da professora de Ciências que também falou desses comportamentos que a aluna lhe tinha falado também, na relação do padrasto. E com também a Dra. AM, que na altura era a minha orientadora de estágio profissional. Portanto, eu junto com a aluna, as três, foram falados os procedimentos legais a adotar nessa situação caso, portanto, fosse... tivesse de ser feito uma denúncia pronto, com essas mesmas entidades. Entretanto, a aluna tomou consciência dos mesmos e concordou. Falou-se com os pais e depois foi ativada a escola segura e depois seguiu-se o caso para a PJ de Lisboa.
Sr. Procurador – a Dra. tem conhecimento de alguma alteração no comportamento da BB prévia a essa denuncia? Designadamente até em termos de acompanhamento escolar?
FF – aquilo que eu sei é que a BB era uma boa aluna, empenhada. Sei que tinha alguns ataques de pânico, ah… na sala de aula. Que, entretanto, pareceu-me serem consequência, também, de toda a agitação emocional que ela estaria a vivenciar na altura devido aos comportamentos do padrasto, os comportamentos inadequados.
Sr. Procurador – sim senhora. É tudo da minha parte, obrigada.
MM Juiz  – sr. advogado alguma questão?
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[16] Acórdão da RP de 06/10/2010, relatado por Eduarda Lobo, in www.gde.mj.pt, processo 463/09.9JELSB.P1.
[17] No mesmo sentido, cf. o acórdão da RG de 28/06/2004, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1, do qual citamos: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”.
[18] Neste sentido, cf. o acórdão da RP de 10/05/2006, relatado por Paulo Valério, in www.gde.mj.pt, processo 0315948, do qual citamos: “… Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância». Ou, consoante se escreveu no igualmente douto Ac. Rel Coimbra de 3-11-2004 (recurso penal n.º 1417/04) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. no mesmo sentido, entre outros: Ac de 02.06.19 e de 04.02.04, recursos nºs 1770/02 e 3960/03; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos nºs 1770/02 e 3960/03, todos da Relação de Coimbra).
É que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. …”.
Ora, sendo os factos dados como provados na sentença conclusões lógicas da prova produzida produzidas em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007). Na verdade, refere o mesmo acórdão, «a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ». Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe. “…”.
[19]A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).
Ou, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 356, “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória (D. 48.19,5: Satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem dainnare).”.
[20] Neste sentido, ver o acórdão n.º 439/02 do Tribunal Constitucional de 23/10/2002, relatado por Fernanda Palma, do qual citamos: “... 9.  Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no artigo 32º, nº 2, da Constituição. ...”.
No mesmo sentido se pronunciou Maia Costa, in “A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito”, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 92, a pág. 71, donde citamos:
“... Assim, e resumindo, a regra in dubio pro reo é uma das manifestações do princípio da presunção de inocência. Regra esta que tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, evidentemente. Mas que também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação.
Fala o Código de Processo Penal da necessidade de «indícios sufi­ cientes» para a dedução da acusação, definindo-os como aqueles que apontam para a possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado em julgamento (art. 283.º, n.º 1 e 2). Este enunciado normativo demonstra uma inquestionável similitude entre a posição do magistrado do Ministério Público que aprecia a prova do inquérito e a do juiz que analisa a prova da audiência de julgamento: em qualquer dos momentos, cada um daqueles magistrados, caso se confronte com uma dúvida inultrapassável sobre as provas produzidas, deve fazer funcionar a (mesma) regra (in dubio pro reo), arquivando o inquérito o Ministério Público, proferindo sentença absolutória o juiz.
Considerações idênticas são válidas evidentemente para o juiz de instrução, após o debate instrutório,  devendo  portanto  lavrar  despacho de não pronúncia, imposto pela regra in dubio pro reo, no caso de se encontrar perante idêntica situação de dúvida quanto às provas. ...”.
[21] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.
O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).
Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.
Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.
E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.
Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.
Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».
A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.
Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.
Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).
Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.
O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.
Também no sentido de que este princípio não tem aplicação em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias, se pronuncia Benjamim Silva Rodrigues, in “Da Prova Penal”, Tomo I, Rei dos Livros, 3ª ed., 2010, pág. 221.
[22] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado art.º 410.º/2 CPP.
[23] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[24] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 75.
[25] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 77.
[26] Código Penal.
[27] Acórdão da RE de 14/06/2018, relatado por António João Latas, no proc. 95/16.5T9MMN.E1, in www.dgsi.pt.
[28] No mesmo sentido, veja-se o acórdão da RG de 02/05/2016, relatado por João Lee, no proc. 73/12.3GAVNC.G1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... A doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que acto sexual de relevo será o acto dotado de conotação sexual objectiva identificável por um observador externo, que seja abstractamente idóneo à satisfação de instintos sexuais, e que, por isso mesmo, seja susceptível de vir a condicionar a liberdade e autonomia sexual da vítima. Aqui se incluem aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo,, sendo por isso de excluir do âmbito de protecção os actos insignificantes ou bagatelares, e os que não representem entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, v.g. actos que, embora pesados ou em si significantes por impróprios, desonestos, da mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima ... Ferreira Leite, A tutela Penal da Liberdade Sexual, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 1, Janeiro-Março 2011, pp. 71-73, Simas Santos e Leal Henriques in Código Penal, II, pág. 368, Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense, I, pág. 449, Maria do Carmo Silva Dias, “Repercussões da Lei n.º 59/2007, de 4/9 nos crimes contra a liberdade sexual, Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2008, Número 8, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-12-2010 Joaquim Gomes proc. 14/08.2TACDR.P1, na Colectânea de Jurisprudência). ...”.
[29] O que resulta, desde logo e para além do mais, da sua inserção sistemática do Titulo I “Dos crimes contra as pessoas”, do Livro II do CP.
Nesse sentido, cf. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 444/445: “… em todos os tipos da presente secção deve dizer-se que o bem jurídico é o da autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa. …”.
[30] Nesse sentido, cf. os seguintes acórdãos:
- do STJ de 26/10/2006, relatado por Santos Carvalho, no proc. 06P3109, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - A doutrina e a jurisprudência têm sempre entendido que o crime continuado não existe quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima: na 1.ª Comissão Revisora do Código de 1982 foi proposto e aprovado um acrescento ao art. 30.º com uma redacção expressa nesse sentido, mas o Prof. Eduardo Correia referiu que esse acrescentamento era dispensável, uma vez que a conclusão que ele contém já se retiraria da expressão «o mesmo bem jurídico» (BMJ, 144.º, p. 58). II - Estando em causa vários crimes de roubo praticados contra pessoas diversas e outros crimes instrumentais em relação àqueles, não existe um único crime continuado. III - No crime continuado existe uma unificação da pluralidade de resoluções criminosas baseada numa diminuição considerável da culpa; ao contrário, a execução de vários crimes de roubo só aumenta o grau de culpa, já que a reiteração de condutas violentas contra as pessoas indica uma firmeza de intenção e um destemor perante o perigo, de todo incompatível com qualquer diminuição de culpa.…”;
- da RL de 11/10/2007, relatado por Fernando Correia Estrela, no proc. 6800/07-9, in JusNet 6288/2007, com o seguinte sumário: “Quando no crime de roubo o arguido ofendeu bens jurídicos patrimoniais mas também pessoais, cometeu tantos crimes, como vítimas de roubo causou. A nova lei que veio alterar o código penal, reforça a ideia de que nestes casos se afasta a hipótese de crime continuado.”;
- do STJ de 04/12/2008, relatado por Oliveira Mendes, no proc. 08P3275, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…XII - No n.º 3 do art. 30.º do CP excluiu-se a possibilidade de qualificação de uma pluralidade de factos como integrantes de continuação criminosa ou de crime único quando, tutelando aqueles bens eminentemente pessoais, é ofendida mais que uma pessoa. XIII - O crime de roubo, como crime complexo que é, ofende quer bens jurídicos patrimoniais – concretamente o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis – quer bens jurídicos pessoais, designadamente a liberdade individual de decisão e de acção e a integridade física, podendo até ofender, em certos casos de roubo agravado, a própria vida (o texto legal alude a constrangimento de outra pessoa, violência e ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física). XIV - No entanto, havendo que ter presente que o crime de roubo é um crime contra a propriedade, surgindo a ofensa aos bens pessoais como meio de lesão dos bens patrimoniais, será a partir da lesão destes últimos, em ligação com a pessoa ou pessoas ofendidas, que se terá de aferir da ocorrência de um ou mais crimes de roubo. XV - Numa situação em que os recorrentes, com intenção de se apropriarem de bens existentes na residência dos ofendidos NC e JC (pertença de ambos) e de bens que cada um deles ostentava e consigo trazia (pertença de cada um), exerceram violência sobre ambos e ofenderam a integridade física do ofendido NC, tendo-se apoderado daqueles bens, dúvidas não restam de que cometeram dois crimes de roubo (qualificado), posto que os recorrentes, com o comportamento delituoso conscientemente assumido, ofenderam o direito de propriedade de ambos e de cada um dos ofendidos, bem como a sua liberdade e a integridade física do ofendido NC, não sendo a sua conduta subsumível ao n.º 2 do art. 30.º do CP.”;
- da RE de 19/03/2013, relatado por António João Latas, no proc. 460/07, in JusNet 1332/2013, de cujo sumário citamos: “Uma vez que o crime de roubo tutela bens eminentemente pessoais, nomeadamente a liberdade e a integridade física está excluída quanto ao mesmo a possibilidade de punição como crime continuado. …”.
[31] Neste sentido, ver o acórdão da RC de 29/06/2011, relatado por Calvário Antunes, in www.gde.mj.pt, processo 222/08.6SAGRD.C2, do qual citamos: “… Dispõe o art.º 30º, nº 1, do Cód. Penal, que, “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o respectivo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente”, enquanto que o seu nº 2 estipula que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Como ensina Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, II vol., 202, quando diversas condutas violam o mesmo tipo de crime, o número de crimes define-se pelo número de resoluções, sendo o critério temporal fundamental para se apurar se existiu uma ou mais resoluções a presidir aos vários actos.
Porém o crime continuado pressupõe, precisamente, a existência de diversas resoluções, só que todas elas tomadas dentro de um quadro exterior que facilita, de forma considerável, o renovar das sucessivas resoluções.
Talvez convenha ainda reproduzir parcialmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Maio de 1988, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 377, pág. 431, onde se explicita que:
“No artigo 30º do Código Penal perfilha-se o critério teológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime”, ou seja, “haverá tantas violações da mesma quantas vezes ela se tomar ineficaz nessa função determinadora da vontade.
E o que indica quantas vezes se verifica essa ineficácia é a resolução. Quantas vezes o indivíduo resolve agir por modo contrário ao imperativo da norma, tantas vezes se verifica a sua ineficácia, ou seja, a sua violação.
E haverá unidade de resolução quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação.
Temos assim que na sua essência o artº 30º do Código Penal adopta o critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, havendo tantas violações da norma quantas as vezes que esta se tornar se tornar ineficaz pelo que se verifica unidade de resolução quando os actos que violam por diversas vezes o mesmo tipo legal são resultado de um único processo de deliberação.”
Depois, e ainda segundo o mesmo Eduardo Correia, in “Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Colecção Teses, Almedina – p. 207 “aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam”.
Por outro lado, na procura de critérios padrão objectivos com vista à definição de casos-tipo de situações exteriores subsumíveis ao crime continuado, refere-se precisamente à circunstância de se voltar a verificar a mesma oportunidade que já foi aproveitada com êxito pelo agente. Escreve, mais uma vez, Eduardo Correia, ob. cit. “Concurso”, 246: “quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de, sem dúvida, sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa, e só muito dificilmente se manterá no caminho direito”.
Assim, quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
Socorrendo-nos agora do Ac, deste TRCoimbra de 28-04-2010, Processo: Recurso nº 163/07.4PECBR.C1; Relator: ESTEVES MARQUES, in www.dgsi.pt, “Assim temos que os pressupostos do crime continuado são os seguintes:
1º.- Realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.
2º.- A execução por forma essencialmente homogénea.
3º.- Que essa execução seja levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
Face a tal e tendo-se em conta a factualidade provada, poderemos concluir que se verificam os dois primeiros pressupostos, mas já o mesmo não acontece relativamente ao terceiro pressuposto - o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a sua culpa.
Isto porque para que essa solicitação possa relevar terá de ser de um grau considerável, a ponto que constitua quase que um estímulo, face ao sucesso anterior, para a repetição da actividade criminosa, e tornando por isso cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente.
Sucede que, face à facticidade provada, leva-nos, necessariamente, a concluir que a cada uma das condutas do arguido correspondeu uma diversa resolução criminosa, mas que nada exteriormente facilitou a repetição da actividade criminosa. Ou seja, essas resoluções foram entre si autónomas e não estiveram numa relação de continuidade e interdependência, pois não se inseriram numa rotina de procedimentos, facilitada pelo mesmo circunstancialismo externo.
No caso concreto, o percurso criminoso do arguido iniciou-se no final de Maio de 2008 e prolongou-se até Junho de 2009, tendo o seu padrão de comportamento consistido em dirigir á ofendida palavras e expressões ofensivas da sua honra e consideração e que são as que constam dos pontos 3, 4 e 5 da factualidade provada. Além disso a actuação do arguido verificou-se em locais diferentes.
Tendo essa actuação ocorrido locais e datas diferentes, o que lhe conferia a possibilidade do arguido poder avaliar a sua anterior conduta, distanciando-se dela e comportando-se de acordo com o Direito, teremos de concluir que a actuação do arguido teve assim subjacente resoluções criminosas distintas.
Tudo isto a revelar, por um lado a inexistência de culpa sensivelmente diminuída e por outro uma personalidade fortemente inclinada para a prática do crime.
Nem se diga, como pretende o recorrente, que os factos foram motivados devido à situação de ruptura conjugal do arguido e da assistente, (e dados condicionalismos que a determinaram e rodearam), da situação de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais e de todo um clima de conflituosidade que antecedeu os mesmos. Isto porque a existência de tal situação não legitima a actuação do arguido nem de tal se pode concluir que aquela actuação foi levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. Antes pelo contrário, manifesta um elevado grau de culpa por parte do mesmo.
Estamos assim, perante uma pluralidade de resoluções criminosas e uma realização plúrima de um tipo de crime que protegem o mesmo bem jurídico, mas os mesmos não foram executados por forma essencialmente homogénea, no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, pelo que não estão presentes todos pressupostos da tipicidade do crime continuado, tal como vem previsto no nº 2 do artº 30º do C.P. (Neste sentido também se pronunciou este TRC, nomeadamente no Ac. nº 8/06.2IDCTB.C1, de 28/4/2009, em que foi relator o Exm.º Desembargador Dr. Fernando Ventura e Ac. TRC, nº 128/05.0JAAVR.C1, de 26-11-2008, em que foi relator o Exm.º Desembargador Dr. Alberto Mira, in www.dgsi.pt). …”
No mesmo sentido, ver o acórdão do STJ de 19/04/2006, relatado por Soreto de Barros, in www.gde.mj.pt, processo 04P4710, donde citamos: “…3.1 O Professor Eduardo Correia deixou ensinado que (...) "o núcleo do problema reside em que, como já dissemos, se está por vezes perante uma série de actividades que, devendo em regra - segundo os princípios até agora expostos - ser tratada nos quadros da pluralidade de infracções, tudo parece aconselhar - nomeadamente a justiça e a economia processual - que se tomem, unitariamente, como um crime só . Ora, para resolver o problema, duas vias fundamentais de solução podem ser trilhadas : ou, a partir dos princípios gerais da teoria do crime, procurar deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado - e teremos uma construção lógico-jurídica do conceito (...); ou atender antes à gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções e procurar, assim, encontrar no menor grau de culpa do agente a chave do problema - intentando, desta forma, uma construção teleológica do conceito .
Este último é, sem dúvida, o caminho mais legítimo, do ponto de vista metodológico, para a resolução do problema . Pois, quando bem se atente, ver-se-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico -, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente .
E quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito (3) .
Importará agora - uma vez conhecido o fundamento da unidade criminosa da continuação - determinar as situações exteriores típicas que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, diminuem consideravelmente o grau de culpa do agente: a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os seus sujeitos [Assim acontece v. g. com o adultério, que, uma vez cometido, será mais fácil de repetir - daí derivando uma menor culpa dos agentes (quando posta em confronto, como sempre se pressupõe, com a que seria dada ao concurso real)] ;
b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa [Assim v. g. quando se descobriu uma porta falsa que dá acesso a uma casa e que se aproveita várias vezes para furtar objectos lá depositados ] ;
c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa [V.g. o caso do moedeiro falso que, tendo adquirido ou construído a aparelhagem destinada a fabricar notas, se vê sempre de novo solicitado a utilizá-la] ;
d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa [Assim, v. g. o ladrão que entra num quarto para furtar uma joia e, verificando depois que lá se encontra dinheiro, se apropria dele] .
Não deve porém esquecer-se que, com a tipificação de situações que deixamos esquematizada, nem por um lado se esgota o domínio da continuação, nem por outro se fica legitimado a afirmá-lo sem mais : sempre será necessário, para o alargar ou corrigir, recorrer à ideia fundamental que, como começámos por pôr em relevo, em última instância o legitima : a diminuição considerável do grau de culpa do agente ." (4)
3.1.1 O artigo 30.º, do Código Penal, inspirou-se na formulação do Prof. Eduardo Correia (5) :
"1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente."
3.1.2 A jurisprudência, designadamente a do Supremo, tem decidido em consonância com aquelas considerações :
(...) 4 - Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
5 - O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente e o pressuposto da continuação criminosa será assim e verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente.
6 - São, assim, estes, os pressupostos do crime continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de "uma linha psicológica continuada";
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado) ;
- persistência de uma "situação exterior" que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
7 - A circunstância de se verificar a repetição, em alguns casos, do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. "a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa", quando a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, tudo apontando antes para a conclusão de que o esquema de realização do facto teria sido gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agravaria a responsabilidade criminal.
8 - Não ficando provados os elementos de facto pertinentes à referida situação exógena ao agente e diminuidora da culpa concreta do mesmo, é manifestamente improcedente o recurso, pelo que deve ser rejeitado. (Ac. STJ de 09.11.00, proc. 2697/00)
I- Se for o próprio agente a determinar o cenário, que, objectivamente visionado, serviria à perfectibilização do crime continuado, as plúrimas resoluções criminosas que, a final, expressam a 'repetição da sucumbência' fundada esta num conjunto de factores exteriores que a explicam e que, explicando-a, podem levar a concluir por uma culpa menor, não são passíveis de consentirem tal tratamento jurídico menos gravoso .
II- É que, o agente deve ser vencido por vectores exteriores para que a sua culpa se atenue ou para que o juízo de censura se enfraqueça, não podendo, nem devendo, essa culpa atenuar-se ou esse juízo de censura enfraquecer-se, se o agente actuou sucessivamente superando obstáculos e resistências ao longo do 'iter criminis', isto é, aperfeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos, sendo ele a dominá-los, e não esta a dominá-lo . (Ac. STJ de 29.02.00, proc. n.º 176/00)
I- São pressupostos do crime continuado : a homogeneidade da forma de execução, lesão do mesmo bem jurídico, unidade do dolo, persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente . (...)
II- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente .
III- Quem se introduzir num Centro Comercial com o intuito de subtrair bens que lhe não pertencem, por arrombamento, de noite, pratica o crime de furto qualificado e de introdução em lugar vedado ao público e, se a sua conduta atingir várias lojas desse Centro Comercial tantos são os crimes quantas as lojas que forem alvo da sua conduta . (Ac. STJ de 02.02.94, proc. 45248). …”.
E o acórdão do STJ de 19/04/2007, relatado por Maia Costa, in www.gde.mj.pt, processo 06P4701, de cujo sumário citamos: “…I - O crime continuado, que se traduz numa punição mais benévola de uma pluralidade de crimes, fundamenta-se numa considerável diminuição da culpa do agente, que assenta necessariamente numa circunstância exterior à vontade do agente e que de forma relevante o incite ou estimule a repetir uma conduta criminosa homogénea.
II - Só quando o agente se encontra de novo, e sem que ele o tenha procurado ou provocado, perante uma situação anteriormente aproveitada com sucesso para a prática de um crime, se pode dizer que há uma disposição exterior favorável à repetição criminosa suficientemente intensa para unificar as duas condutas num único crime (continuado).
III - Não existe continuação criminosa se a repetição criminosa não resultou de uma renovação de oportunidades para o arguido, que lhe facilitasse a repetição da conduta anterior, mas sim a procura e a criação de novas situações, planeadas e organizadas, para praticar novas infracções. …”.
E o acórdão do STJ de 25/03/2009, relatado por Santos Monteiro, in www.gde.mj.pt, processo 09P0490, donde citamos: “…Como regra o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal( concurso real ) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente ( concurso ideal ) –art.º 30.º n.º 1 , do CP-, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa , ou seja ,tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica é posta em crise , ou seja pelo número de vezes que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente .
A pluralidade de infracções não abdica de uma actividade material do agente, de modificação do mundo exterior , a que corresponde uma afirmação plúrima da volição ou vontade criminosa .
O crime, na definição de Amelung , citado por Karl Prelhaz Natcheradetez , in o Direito Penal Sexual ,Ed Almedina ,1985 , 116 , constitui , apenas , um caso especial de fenómenos disfuncionais , geralmente o mais perigoso .O crime é disfuncional enquanto contradiz uma norma institucionalizada ( deviance ) , necessária para a sobrevivência da sociedade.
Os desvios à regra da determinação legal da pluralidade de infracções estão representados pelo concurso aparente de normas e crime continuado, este já com afloramentos na Idade Média, mas só como processo pragmático de obstar a que o autor do furto em série permanecesse longo tempo privado de liberdade, estando previsto no art.º 30.º n.º 2 , do CP , e , pela sua descrição se vê que o legislador como que , por ficção , ditada por razões de economia , de política criminal e de justiça material , reconduz a verificada pluralidade de infracções à unidade criminosa , a um único delito.
São assim nos termos legais pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na sua forma de execução, a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa –n.º 2 , do art.º 30.º , do CP .
Ao art.º 30.º, foi, pela recente reforma ao CP, introduzida pela Lei n.º 59/07, de 4/9, introduzido o n.º 3 , segundo o qual o disposto no n.º 2 , não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais , salvo tratando-se da mesma pessoa .
Esta alteração, correspondente ao n.º 2, do art.º 33.º no Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções, foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão, em 8.2.64, no sentido de que só, com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
Essa discussão não mereceu consagração na lei por se entender que o legislador reputou tal não necessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado ao preceito citado.
Diferente não é o pensamento de Jescheck para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado porque tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa são distintos com relação a cada acto individual sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos –cfr. Tratado de Derecho Penal, I , Parte General , I , ed. Bosh , pág. 652 e segs e Acs. deste STJ , de 10.9.2007 , in CJ , STJ , Ano XV, TIII, 193 e de 19.4.2006 , in CJ , STJ ,Ano XIV, TII , 169.
A alteração introduzida, à parte a evitável polémica interpretativa que trouxe (cfr. a Circular Interna da PGR n.º 2 /2008-DE, de 9.8.2008, citada pelo Exm.º Magistrado do M.º P.º em 1.ª instância, tendo presente a errada divulgação da notícia pelos mais díspares meios de comunicação social de que a norma do n.º 3 viria permitir uma punição leve dos abusadores sexuais, fez questão de significar que “ as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado de décadas “), que já se deixou expresso, é, pois, pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessário.
Em nada mesmo prejudica a jurisprudência sedimentada a nível deste STJ, ou seja de que quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometido num quadro, em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, integra a prática de crime continuado, sem prescindir-se, como, aliás aquela Circular fez questão de sublinhar, da indagação casuística dos requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não observarem.
De forma alguma a inovação contrariou aquele entendimento jurisprudencial e os melhores ensinamentos doutrinários, os melhores critérios de hermenêutica, a lógica e o bom senso, sequer afirmou, inexoravelmente, automaticamente, sem mais, o crime continuado, excluindo a pluralidade de infracções.
Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzisse ao crime continuado, afastando-se um concurso real (Cfr. Ac. do STJ, de 8.11.2007, P.º n.º 3296 /07 -5.ª Sec., acessível in www. design.), só significa que este deve firmar se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
Interpretação em contrário seria, até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art.º 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais em ofensa ao disposto no art.º 18.º, da CRP.
Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado recentemente levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento, interpretando-se restritivamente o resultado chocante a que levaria, tão errónea se apresenta visão nesse sentido, nos termos do art.º 9.º, do CC.
São circunstâncias exteriores, retratadas in Unidade e Pluralidade de Infracções, autor cit., págs. 246 a 250, que apontam para aquela redução de culpa:
Desde logo a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos, veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido;
A circunstância de voltar a registar-se outra oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele;
A perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa;
O facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa….”.
[32] Relatado por Vinício Ribeiro, no proc. 98/17.2GAPTL.S1, in www.dgsi.pt.
Veja-se a importante resenha jurisprudencial feita neste acórdão: “... Com as alterações de 2010 (L 40/2010) ao artigo 30.º do CP[...] afastou-se a continuação criminosa nos crimes eminentemente pessoais mesmo estando em causa a mesma vítima. 
As alterações de 2007 já tinham dado brado pela sua controvérsia[3].
Todavia se antes da mencionada alteração de 2010, ao art. 30.º do CP, ainda havia quem defendesse a continuação criminosa (caso de Figueiredo Dias na 1.ª edição do Comentário Conimbricense do Código Penal e na edição de 2007 do seu Direito Penal—Parte Geral, o qual alterou a posição, em face da referida alteração operada pela L 40/2010, na 2.ª edição de 2012 do referido Comentário[4]) quando estivesse em causa a mesma vítima, após a mesma deve considerar-se verificado o concurso de crimes, dado estarmos perante bens eminentemente pessoais, sempre que o agente pratique vários actos sexuais de relevo, quer estejamos, ou não, perante a mesma vítima.
O crime continuado tem o seu fundamento na menor culpa do agente e em circunstâncias exógenas que facilitam a execução do crime.
Ora nos crimes dos presentes autos estão em causa bens eminentemente pessoais e, além da repetição da conduta criminosa não se dever a qualquer circunstância exógena, não há qualquer diminuição da culpa do agente, mas antes um acentuado agravamento da mesma, pelo que aquela figura tem que ser arredada.
Mas mesmo antes da cit. alteração de 2010, a esmagadora maioria da jurisprudência afastava a continuação criminosa no crime de abuso sexual de criança quer a vítima fosse, ou não, a mesma.
Porém não é só a continuação criminosa que se deve afastar dos crimes eminentemente pessoais.
Do mesmo modo se deve afastar a figura do crime exaurido, que a jurisprudência tem considerado verificar-se, por exemplo, no crime de tráfico de estupefacientes[5].
A propósito dos crimes sexuais, escreve Helena Moniz no referido artigo sobre Crime de trato sucessivo”(?)[6], publicado na Revista Julgar que:
«Ora, o entendimento dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo pretende abarcar uma multiplicidade de atos, a que corresponde uma multiplicidade de resoluções, num único ato globalmente unificado a partir de uma unidade resolutiva, todavia salientando que não estamos perante uma única resolução, mas perante uma “unidade resolutiva”, querendo com isto apenas evidenciar uma homogeneidade resolutiva. Mas, este entendimento que agrega múltiplos atos típicos e ilícitos numa globalidade de comportamento ilícito com uma unificação resolutiva aproxima-nos, contra a lei, da figura do crime continuado, pese embora a jurisprudência expressamente afirme não haver uma menor culpa do agente, ou uma situação de menor exigibilidade.»
Na jurisprudência das Relações a clivagem ainda se manifesta:
-- defendendo a figura do crime de trato sucessivo, cfr., v.g., Ac. RE de 20/10/2015, Proc. 290/14.1T3STC.E1, Rel. Proença da Costa (em causa crime de abuso sexual de menor-art. 171 n.º 1 e 2 CP; apoia-se no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho); Ac. RE de 20/10/2015, Proc. 290/14.1T3STC.E1, Rel. Felisberto Proença da Costa (em causa crimes de abuso sexual -arts. 171 n.º 1 e 2 e 172.º n.º 1 do CP); Ac. RE de 11/10/2016, Proc. 14/14.3GAVVC.E1, Rel. Carlos Berguete Coelho (em causa crime de abuso sexual de menor-art. 171 n.º 1 e 2 CP); Ac. RE de 16/3/2017, Proc. 72/15.3 JASTB.E1, Rel. António Condesso (em causa crime de pornografia de menores- art. 176 n.º 4 CP); Ac. RE de 24/5/2018, Proc. 1010/16.1PBEVR.E1, Rel. Martins Simão (em causa crime de abuso sexual- art. 171.º n.º 1 e 2 e 173.º, n.º 1 e 2 do CP); no Ac. RL de 15/12/2015, Proc. 3147/08.JFLSB.L1-5, Rel. Ana Sebastião aceita-se o trato sucessivo no crime de pornografia de menores (art. 176.º, n.º 4 do CP em que se discutia a aplicação das alíneas c) e d)[7] do n.º 1 do mesmo artigo); Ac. RP de 6/2/2019, Proc. 966/14.3JAPRT.P1, Rel. Horácio Correia Pinto (tem voto de vencido do Adjunto que não adere «á fase do crime de tese sucessiva»; apoia-se no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho; em causa crimes de abuso sexual- art. 171.º n.º 1 e 2 e 173.º, n.º 1 e 2 do CP; pornografia agravada- art.ºs 176º, nº 1, alínea b) e 177º, nº 6 e 7 do CP; actos sexuais com adolescente-art. 173.º, n.º 1 e 2 CP); Ac. RP de 13/3/2019, Proc. 3908/16.8JAPRT.P2, Rel. Maria Dolores Silva e Sousa; Ac. RL de 2/5/2019, Proc. 6/17.0JDLSB.L1-9, Rel. Almeida Cabral (refere que segue o entendimento dos Conselheiros Mouraz Lopes e Santos Carvalho; em causa crime de abuso sexual- art. 171.º n.º 2 do CP);
--afastando tal figura, cfr., v.g., Ac. RP de 29/1/2014, Proc. 7446/08.4TAVNG.S1.P1, Rel. Donas Botto (referencia jurisprudência do STJ a favor e contra a figura do trato sucessivo nos crimes de abuso sexual de crianças; em causa os crimes de abuso sexual de criança agravado- arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a) do CP; de abuso sexual de menor agravado- arts. 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do CP; de coacção agravada-arts. 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea b) do CP); Ac. RC de 9/4/2014, Proc. 2/11.1GDCNT.C1, Rel. Alcina da Costa Ribeiro[8] (em causa os crimes de violação agravada- arts. 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 5 e 6 e de sequestro-art. 158.º, n.º 1 do CP) ; Ac. RP de 9/7/2014, Proc. 2060/12.2JAPRT.S1.P1, Rel. Alves Duarte (em causa o crime do art. 171.º, n.º 2 do CP); Acs. RE de 12/7/2016, Proc. 87/10.8GGODM.E1, (em causa crimes de abuso sexual de crianças, p.p. no artº 171º, nº 3, alínea b) do Código Penal; crimes de pornografia de menores agravados, p.p. nos art.ºs 176º, nº 1, alínea b) e 177º, nº 6 do Código Penal; crimes de pornografia de menores agravados, p.p. nos art.ºs 176º, nº 1, alínea b) e 177º, nº 5 do Código Penal; crimes de pornografia de menores, p.p. no art.ºs 176º, nº 1, alínea b) e nº 4, do Código Penal; crimes de coacção agravada, p.p. nos art.ºs 154º, nºs 1 e 2, 155º, nº 1, alíneas a) e b), tendo por referência o artº 176º, nº 1, alínea c), todos do Código Penal) e de 14/6/2018, Proc. 95/16.5T9MMN.E1 (em causa crimes de abuso sexual de crianças agravado, p.p. nos artsº 171º, nº 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea b) e 179.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal), ambos relatados por António João Latas; Ac. RL de 12/1/2017, Proc. 763/15.9PBAMD.L1-9, Rel. Maria Guilhermina Freitas (em causa o crime de abuso sexual dos arts. 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 4 do CP).
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[...] tem perfilhado, esmagadoramente, o entendimento que afasta, quer a continuação criminosa, quer a figura do crime exaurido, de trato sucessivo, dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como os dos presentes autos.
Depois das alterações de 2010 ao art. 30.º do CPP, só divisámos, na base da DGSI, divergência no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho (tem voto de vencido), abaixo sumariado, que optou, inequivocamente, pela figura do crime de trato sucessivo, e que é normalmente invocado nas motivações dos recursos, bem assim como nos arestos que defendem o trato sucessivo no âmbito dos crimes em causa nestes autos.
O aresto recorrido invoca precisamente, como se vê pela transcrição atrás feita, para fundamentar a sua posição pelo crime de trato sucessivo, o cit. Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho, o Ac. STJ de 22/1/2013, Proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1, Rel. Santos Cabral, o Ac. STJ de 23/1/2008, Proc. 07P4830, Rel. Maia Costa e o Ac. STJ de 4/2/2016, CJACSTJ, T. I, pág. 247 e ss. (este aresto foi relatado pelo Conselheiro Francisco Caetano).
Por seu turno, o invocado aresto do STJ de 4/2/2016 apoia-se, expressamente, nos cit. Acs. do STJ de 29/11/2012 e de 23/1/2008.
Todavia, o mesmo Conselheiro (Francisco Caetano) parece ter, entretanto, alterado a sua posição; na verdade, o Ac. STJ de 12/4/2018, Proc. 104/17.0JACBR.S1 (encontra-se sumariado no site do STJ), que a Ex.ma PGA, junto deste STJ, refere e transcreve no seu Parecer (supra transcrito) para alicerçar a sua posição de afastamento do trato sucessivo dos crimes de abuso sexual, é relatado, precisamente, pelo mencionado Conselheiro. 
A seguir sumariam-se, por fornecerem uma sólida panorâmica sobre a questão, as decisões mais recentes e de maior relevo deste Supremo Tribunal:
• Ac. STJ de 26/2/2009, Proc. 08P2873, Rel. Arménio Sottomayor
I - Pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelo disposto nos arts. 172.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, cometidos na forma continuada, com duas menores entre os 7 anos e os 9 anos, foi o arguido condenado, na 1.ª instância, nas penas parcelares de 9 anos e 8 anos de prisão, penas cujo processo de determinação não apresenta reparos, e que não se mostram desproporcionadas à gravidade dos factos, às exigências de prevenção ou à culpa do arguido, não podendo, assim, ser consideradas injustas e ilegais, antes merecendo ser confirmadas.
II - Para a determinação da pena única, que fixou em 13 anos, o tribunal colectivo utilizou um método que não corresponde às regras da experiência que o Supremo vem adoptando, havendo que corrigir aquela pena a bem da uniformidade da jurisprudência.
III - Atendendo à globalidade dos factos praticados e à personalidade do arguido, compreendendo naqueles a circunstância de cada uma das menores ofendidas ter sido constrangida a assistir aos actos libidinosos praticados com a outra, circunstância que eleva a culpa do agente, que “tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações provocavam na formação e estruturação da personalidade das menores, prejudicando-as no seu normal desenvolvimento físico e psíquico”, mostra-se adequado fixar a pena única em 12 anos de prisão.
• Ac. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0490, Rel. Armindo Monteiro
I - A alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ao art. 30.º do CP, acrescentando-lhe o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa, corresponde ao n.º 2 do art. 33.º do Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, e foi discutida na 13.ª sessão da comissão de revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
II - Essa discussão não mereceu consagração na lei por se entender que seria desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, na natureza das coisas – cf. Maia Gonçalves, in Código Penal anotado.
III - A alteração introduzida é, pois, pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ, ou seja, a de que, quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, integra a prática de crime continuado, sem prescindir-se da indagação casuística dos requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não observarem.
IV - Esse aditamento não permite, assim, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
V - Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP.
(Neste aresto estava em causa uma só vítima e o arguido foi condenado pela prática de 7 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, e não um único crime, na forma continuada).
• Ac. STJ de 10/10/2012, Proc. 617/08.5PALGS.E2.S1, Rel. Armindo Monteiro
XXI - Com a incriminação pela prática de crime de abuso sexual de criança propõe-se o legislador proteger a autodeterminação sexual, enquanto manifestação da liberdade individual, de um modo muito particular, não pela presença da prática de actos sexuais a coberto da extorsão ou situação análoga, mas pela pouca idade da vítima, ainda que naquela prática consinta, por poder prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma, por lhe falhar a maturidade, o desenvolvimento intelectual, capaz de poder determinar-se com liberdade, responsabilidade, com pleno conhecimento dos efeitos e alcance do acto sexual de relevo, se consentido.
XXII - Inscreve-se o crime nos crimes de perigo abstracto, pois praticado o acto sexual de relevo, está criado o risco, a possibilidade, de lesão daquele valor a tutelar, portanto, à margem da possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento físico ou psíquico do menor ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique arredada. (…)
XXV - De repudiar a prática de crime continuado (art. 30.º, n. 2, do CP) (…).
XXVI - A solicitação criminosa partiu do arguido, foi ele que, sendo vizinho e tendo ascendente sobre as crianças, a criou, atraindo e encaminhando as suas vítimas para a prática de reiterados actos libidinosos, num quadro de elevada censura penal, sem diminuição considerável da sua culpa, incompatível, aliás, num quadro de ofensividade de bens de cunho eminentemente pessoal, como fez questão de realçar o n.º 3 do art. 30.º do CP, na redacção conferida pela Lei 40/2010, de 03-09.
XXVII - Sendo bens eminentemente pessoais, o conceito de crime continuado está afastado. O crime continuado é de excluir, igualmente, sempre que a reiteração criminosa, menos que a uma disposição exterior, se deva a uma certa tendência da personalidade do criminoso, pois que não pode falar-se aí de atenuação de culpa.
(Ac. STJ de 21/1/2016, Proc. 8/12.3JALRA.C1. S1, do mesmo Relator, afasta a figura do trato sucessivo do crime de abuso sexual de crianças)
• Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho (tem voto de vencido de Manuel Brás)
I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.
II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.
III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. (…)
VIII - Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.
IX - Caso se seguisse a lógica subjacente à decisão do acórdão recorrido, ter-se-ia de fazer uma decomposição de cada um dos crimes de trato sucessivo de que foi vítima a menor B em dois crimes agravados de abuso sexual de criança, acrescidos de dois crimes de coação, e, quanto à menor C, de um crime agravado de abuso sexual de criança e de outro de coação. Todavia, o Código Penal configura um tipo específico (o de violação) que tem como elemento típico a cópula vaginal ou oral forçada pelo agente através da coação grave, penalmente agravado, nos seus limites mínimo e máximo, quando a vítima seja menor de 16 ou de 14 anos de idade.
X - A questão que agora se põe é a de saber se a punição, em relação a cada um dos crimes de trato sucessivo em causa, se há-de fazer como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças em concurso efetivo com um crime de coação ou como um crime agravado de violação, pois as molduras penais não são as mesmas, para além de que o tipo de crime de violação protege a liberdade sexual da vítima enquanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças a sua autodeterminação sexual.
XI - Como se vê pelo “Comentário Conimbricense” (Tomo I, págs. 551 e 552), a questão tem sido muito controversa na doutrina e refletiu-se na elaboração do projeto do CP e depois na redação final, tendo o legislador optado pela punição pelo “crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele».
XII - Atentas estas considerações e atendendo a que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave, considera-se, em suma, que o arguido cometeu três crimes de violação agravada, de trato sucessivo, ps. ps. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP (cujas redações atuais foram conferidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, anterior, portanto, aos factos em apreço), a cada um dos quais corresponde a pena abstrata de 4 anos e seis meses a 15 anos de prisão.
• Ac. STJ de 12/6/2013, Proc. 1291/10.4JDLSB.S1, Rel. Isabel Pais Martins
I - O art. 30.º, n.º 2, do CP, reconduz a um crime continuado uma pluralidade de actos susceptíveis de integrar várias vezes o mesmo tipo legal de crime ou tipos diferentes (…).
II - Na vertente subjectiva do crime continuado, o ponto decisivo a que a lei confere relevo é a exigência de que o crime seja dominado por uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente ou, nas palavras de Eduardo Correia, o “pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”.
III -Com base no entendimento de que, no caso, não se verifica uma diminuição sensível da culpa do arguido, a 1.ª instância rejeitou a subsunção dos comportamentos à figura do crime continuado e sustentou a tese do crime de trato sucessivo ─ um crime de abuso sexual de criança de trato sucessivo, um crime de gravações e de fotografias ilícitas de trato sucessivo e um crime de pornografia de menores de trato sucessivo.
IV - O crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes, mas cuja prática conforma uma actividade, prolongada no tempo, em que se torna tarefa difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram. No entanto, diferentemente do que é requerido na figura do crime continuado, não se verifica uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.
V - Não ocorre um circunstancialismo exterior que, de maneira considerável, tenha facilitado a repetição da actividade criminosa, tornando menos exigível ao agente que se comportasse de acordo com o direito, quando a prática criminosa reiterada radica no desvio da personalidade do arguido no plano sexual e quando as condições favoráveis à sua concretização foram, por si, procuradas, aliciando os menores para que frequentassem a sua casa e criando relações de confiança com os pais deles.
VI -Aliás, a Lei 40/2010, de 03-09, ao alterar a redacção do n.º 3 do art. 30.º do CP que foi introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ditou a sentença de morte do crime continuado nos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
(Escreve-se neste aresto que: «A subsunção das condutas a crimes de trato sucessivo não é objecto de recurso não podendo a decisão, nesse ponto, embora passível de gerar controvérsia, deixar de ser mantida.
Sustenta-se, com efeito, que, se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também “é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador.»).
• Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 67/12.9JAPDL.L1.S1, Rel. Santos Cabral
III -O recorrente coloca a questão da existência de uma unidade resolutiva e consequentemente de um único crime, uma vez que entende que actuou sempre a coberto de uma mesma resolução criminosa, que abrangeu sempre a mesma ofendida, que não ocorreu qualquer ruptura ou fractura temporal e que se verifica uma circunstância espacial contínua.
IV -O índice da unidade (ou da pluralidade) de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente.
V - A experiência e as leis da psicologia referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que inicialmente os abrangia a todo se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo.
VI -Deve considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que não se verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência e as leis psicológicas, se deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.
VII - A concretização da pena conjunta tem de assentar num juízo que revele o significado do ilícito global em termos da sua relevância para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente pelo conjunto das infracções praticadas (conteúdo da culpa).
VIII - O abuso sexual representa uma catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica, que implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afecta o núcleo mais pessoal e básico da identidade: o corpo.
IX -Como consequências, tanto imediatas como tardias, do abuso sofrido, surgem a culpa, a ansiedade, a depressão, a vergonha e a baixa auto-estima que deriva da ideia de que o abuso foi merecido. Frequentemente, os abusados são autodestrutivos, colocando-se em situações de risco ou apresentando atitudes suicidas concretas.
X - Tendo o arguido sido condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, nas penas de 6 e de 7 anos de prisão, não merece reparo a aplicação ao arguido da pena conjunta de 9 anos de prisão.
• Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 595/12.6TASLV.E1.S1, Rel. Pires da Graça
I - O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado de forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.
II -Inexiste o crime de trato sucessivo quando, embora exista homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal.
III - O crime de trato sucessivo afasta-se da figura do crime continuado, porque não pressupõe, a característica deste, de ser praticado “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
IV - Inexistem os pressupostos do crime continuado quando a culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente da relação que tinha de natureza idêntica à familiar, com a menor e a sua mãe, sendo-lhe especialmente exigível, na ausência da mãe da mesma, que zelasse pela defesa da menor, de forma a dela cuidar e proteger.
V - Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, o abuso sexual repetido de um criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador, o que se mostra incompatível com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. (…)
• Ac. STJ de 22/4/2015, Proc. 45/13.0JASTB.L1.S1, Rel. Sousa Fonte
III -Não se afigura como correcta a qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo, pelo que se considera que o arguido cometeu, em concurso real, os crimes especificadas na decisão da 1.ª instância.
IV - Todavia, a alteração da qualificação no sentido que entendemos ser o correcto reclamaria penas parcelares, pelo menos em bem maior número do que as consideradas pelo Tribunal da Relação, como se viu, e, por via do agravamento do correspondente somatório, uma pena conjunta mais elevada do que a cominada no acórdão recorrido, o que, traduzindo-se em reformatio in pejus, nos estaria vedado pela proibição estabelecida no art. 409.º, n.º 1, do CPP. Por isso, no julgamento do recurso, não podemos senão atender às penas parcelares (não impugnadas) e conjunta cominadas no acórdão recorrido em função das quais será julgado o mérito do recurso.
V - Ao nível da determinação da medida concreta da pena, há que ponderar que se o «pedófilo» sofre de uma «parafilia», uma perversão, no sentido de que se sente eroticamente atraído de forma compulsiva e exclusiva por crianças, o que, sem lhe retirar lucidez, poderá atenuar a sua responsabilidade, são justamente os delinquentes onerados por qualquer tendência para o crime os mais perigosos, os mais necessitados de socialização e aqueles de que a sociedade tem de se defender mais fortemente.
VI -Assim, face aos factos provados, designadamente a tendência do arguido para este tipo de crimes, o elevado grau de culpa que, aliás, não contesta, as exigências de prevenção geral, muito elevadas, as fortes exigências de prevenção especial, tanto de socialização como de dissuasão, a pena aplicada é a adequada e proporcional à sua repetida conduta criminosa, insistentemente executada ao longo dos anos de 2011/2012, mas com episódios em 2007 (quando um dos ofendidos tinha 6 anos de idade), em 2009 e início de 2013, e exercida sobre 13 ofendidos. Por isso, confirmamos a pena cominada no acórdão recorrido.
(Ac. STJ de 13/7/2016, Proc. 154/15.1JDLSB.E1.S1, do mesmo Relator, afasta a figura do trato sucessivo do crime de abuso sexual de crianças)
• Ac. STJ de 30/9/2015, Proc. 2430/13.9JAPRT.P1.S1, Rel. Raul Borges
V - O STJ tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, no plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como seja o crime continuado, o crime único ou o crime de trato sucessivo.
VI - Não obstante tal entendimento jurisprudencial maioritário, é de proceder à unificação num único crime, quando estejam em causa condutas sem a mínima determinação, ou seja, quando esteja em causa uma imputação genérica, sem a mínima concretização factual/temporal para além da única ocasião que é de ter por assente. Com efeito, tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente pronunciar-se sobre uma afirmação genérica, pelo que a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo, isto é, optando pela condenação pela prática de um único crime (que não crime único).
VII - Já nos outros casos em que não se verifica tal imputação genérica, tendo sido dada como por assente a ocorrência de abusos sexuais em pelo menos 4 vezes, não será de aceitar a unificação realizada pelo acórdão recorrido, estando em causa, em cada caso, a prática pelo recorrente de 4 crimes, em concurso efectivo. Sendo certo que, face ao princípio da reformatio in pejus, tal correcção não terá qualquer influência na medida das penas.
VIII - Com efeito, os comportamentos do recorrente não integraram apenas uma resolução criminosa, antes existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o recorrente em dias e épocas diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo. Ou seja, o arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades de contacto, renovando o desígnio criminoso, estando-se, pois, perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores. (…)
(sublinhado nosso)
• Ac. STJ de 14/1/2016, Proc. 414/12.3TAMCN.S1, Rel. Manuel A. Matos
I - Os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles.
II - Alguma jurisprudência do STJ tem vindo a enquadrar as condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo. Porém, a maioria da jurisprudência do STJ é no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes.
III - Considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.
IV - A eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP realizada pela Lei 40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.
V -Pelo que, merece a concordância a conclusão do acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico do acervo factual, fixado em 329 crimes de abuso sexual de crianças, enquadramento juridicamente correcto, não sendo aplicável, in casu, a figura do crime de trato sucessivo, invocada pelo recorrente. (…)
VIII - A nível jurisprudencial não se surpreenderam situações em que estivessem em causa a prática de um tão elevado número de crimes, como no caso em apreço, pelo que, uma qualquer tentativa de análise comparativa das penas únicas aplicadas, em casos idênticos, resulta gorada.
IX - No caso é evidente a conexão entre os vários crimes de abuso sexual de crianças cometidos pelo recorrente, estando em causa condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto, inclusive ao nível do concreto modo como os crimes foram praticados, designadamente no que diz respeito aos específicos actos sexuais praticados. A culpa, face ao período de 6 anos em causa, ao número de vítimas envolvidas (9), as respectivas idades, e à relação de ascendência que o recorrente tinha sobre as mesmas (padrinho, professor e treinador de futebol), é elevada, sendo também elevadas as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
X - Contudo, não obstante o elevado número de crimes em causa, todas as penas parcelares aplicadas se encontram muito distantes, quer das suas respectivas molduras abstractas, quer do limite máximo da moldura do concurso. O recorrente não tem antecedentes criminais registados e, apesar de tudo, sempre teve hábitos de trabalho, sendo que a pena aplicada pelo tribunal colectivo de 25 anos de prisão constitui o limite máximo permitido no nosso ordenamento jurídico-penal, correspondendo à pena prevista para a tutela do bem jurídico mais elevado, ou seja, a vida. Pelo que, ponderados todos os elementos se considera como adequada a pena única de 20 anos de prisão.
• Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 19/15.7JAPDL.S1, Rel. Santos Cabral
I - A conduta do arguido que, desde Julho de 2014 e até Janeiro de 2015, altura em que a vítima era menor de 13 e 14 anos, respectivamente, manteve com esta, relações sexuais, com cópula completa, com uma regularidade de 1 vez por semana, nos dois primeiros meses, e de 2 a 3 vezes por semana, nos meses subsequentes até à data da detenção do arguido, em Janeiro de 2015, é demonstrativa de uma renovação de vontade, que tem na sua génese a satisfação dos instintos sexuais, evidenciando-se pelo facto de entre a prática das mesmas relações mediar um lapso temporal mais do que suficientemente para que emergisse uma ponderação da conduta do recorrente à face daquilo que lhe era exigível no cumprimento de regras básicas de convivência e de conduta de vida e impostas legalmente.
II - Mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com a do crime habitual, pois que somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-de supor a reiteração.
III - Em face de tipos de crime como os imputados no caso vertente - crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP - não nos encontramos perante uma «multiplicidade de actos semelhantes» realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
IV - Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos existe, pluralidade de crimes.
V - Se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador.
VI - É evidente que o apelo à figura de trato sucessivo permite ultrapassar uma outra questão que é o da determinação concreta do número de actos ilícitos que devem ser imputados. Porém, esse é um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal.
VII - Perante a realização repetida do mesmo tipo de crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP, num espaço temporal de 6 meses, encontramo-nos perante uma situação de pluralidade de crimes, sendo certo que tal dessintonia não pode assumir relevância jurídica no caso concreto (em que o arguido recorrente foi condenado pela prática de um único crime) face ao princípio da proibição da "reformatio in pejus" na medida em que o recurso foi interposto unicamente pelo arguido.
VIII - A existência, ou não, de consentimento da vítima menor, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal, poderá assumir um significado mais, ou menos, intenso consoante a idade da vítima, ou seja, em equação com a maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.
IX - Ponderando que o arguido agiu com dolo directo, sendo a ilicitude das suas condutas muito elevada tendo em consideração não só a forma de actuação mas também o resultado, mas por outro lado, considerando a inexistência de coacção e considerando, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento da menor, relevando uma pequena diminuição da ilicitude de que revestem os actos praticados, entende-se por adequada a pena de oito anos de prisão (em detrimento da pena de 10 anos e 6 meses prisão aplicada pelas instâncias), pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP.
• Ac. STJ de 14/7/2016, Proc. 677/13.7TAAGH.L1.S1, Rel. Souto de Moura
V - É inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais - como sucede com os crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. no art. 171.º, n.ºs e 177.º, n.º 1, al. a), do CP - como um único crime de trato sucessivo, ficcionando o julgado um dolo inicial que engloba todas as acções.
VI - Se o n.º 3 do art. 30.º do CP proíbe o tratamento de unidade criminosa em termos de crime continuado estando em causa a violação de bens eminentemente pessoais, sendo o legislador insensível a uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente, por maioria de razão terá que ser da mesma maneira, se nem sequer estão preenchidos os pressupostos do crime continuado.
VII - Perante o comportamento do arguido que em cinco ocasiões esfregou o seu pénis erecto no ânus do seu filho de 12 anos, durante o período de um mês, nunca seria possível considerar haver diminuição sensível da culpa se a situação de facilitação de atuação do agente resultar, como é o caso, da fragilidade da vítima, à guarda do agente, que a devia por lei proteger e nunca maltratar.
VIII - A ilicitude global do comportamento do arguido que praticou os cinco crimes em menos de um mês, de forma igual, quatro deles durante o período em que a mãe da vítima e mulher do arguido estava internada no hospital aponta para que seja só uma parte reduzida das quatro penas a acrescer a uma delas. (…).
XI - O tipo de criminalidade aqui em questão desaconselha claramente, no caso, a suspensão da execução da pena, já que numa perspectiva de prevenção especial, os contornos do caso reclamam um tempo de reclusão que permita uma interiorização individual do mal que o arguido fez ao filho, e por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão como sinal de impunidade, que não veja nela como que um perdão judicial, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
• Ac. STJ de 30/11/2016, Proc. 444/15.3JAPRT.G1.S1, Rel. Pires da Graça
I - O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.
II - No caso, estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado. Pelo que, in casu, a renovação da acção criminosa reiterada desenvolvida, produz o consequente e adequado resultado. Embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade da resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal. Inexiste, pois, o crime de trato sucessivo.
III - Inexistem, de igual forma, os pressupostos do crime continuado, uma vez que o ilícito de abuso sexual de crianças atenta contra bem jurídico eminentemente pessoal, qual seja a autodeterminação sexual da vítima, pelo que está legalmente afastada a possibilidade de o arguido ter praticado um só crime continuado, atento o disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP.
IV - Tendo em conta que a situação delituosa ocorreu não menos de 20 vezes, mediante o aproveitamento da ausência da residência da companheira do arguido, sendo que em algumas das ocasiões o arguido procurou penetrar o ânus da ofendida, não tendo nunca usado preservativo e em algumas das situações ejaculado na zona da vagina da ofendida, o grau de ilicitude é muito elevado. (…)
V - Analisado o ilícito global, verifica-se a natureza homogénea e gravidade dos crimes, reflectida nas penas parcelares ora aplicadas. Os factos encontram-se interligados, por resoluções e meio de actuação idênticos. O arguido não possui antecedentes criminais e à data dos factos mantinha uma vida familiar estruturada, estando integrado familiar e socialmente. O ilícito global foi perpetrado sobre uma única pessoa menor, pelo que verifica-se que os factos resultaram de actuação pluriocasional e não de tendência para delinquir. Pelo que, tudo ponderado se conclui ser adequada a pena única de 8 anos de prisão.
• Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. 3/15.0T9CLB.C1.S1, Rel. Sousa Fonte
I - Resultando dos factos provados que, pelo menos, desde meados do mês de Setembro de 2013 e até Dezembro de 2014, a arguida, em comum acordo e em união de esforços com o arguido, decidiu sujeitar a sua filha menor de 14 anos, à prática de relações sexuais com o arguido de cópula completa, com frequência quinzenal, em troca de géneros alimentícios, aproveitando a relação de proximidade e confiança que aquele detinha junto da menor, em resultado das quais a menor veio a engravidar, forçoso é considerar que a referida conduta preenche não a prática, em co-autoria, de um crime de abuso sexual de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.ºs 1, al. a), e 4, do CP, mas antes a prática, em co-autoria e concurso real, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.ºs 1, al. a), e 4, e tantos crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.ºs 1, al. a), todos do CP quanto os actos sexuais praticados.
II - A reiteração criminosa é resultado do acordo estabelecido entre os dois arguidos, no sentido da sujeição da vítima à prática de relações sexuais com ele, daí que a resolução criminosa de um e de outro, se renovassem, em todas as manhãs ou tardes de domingo, normalmente em cada quinzena, durante aquele período temporal de não menos de 11 meses.
III - Devendo os factos ser entendidos como constituindo o concurso de um elevado número de crimes - não será exagero pensar em 10/11 crimes daquele segundo tipo, tantos os meses que durou a situação - e não devendo as penas parcelares a aplicar por qualquer deles ser muito diferentes das cominadas pela 1.ª instância, ou mesmo que, por meras razões argumentativas, se devessem fixar no limite mínimo (4 anos e 6 meses de prisão), a pena conjunta por que cada um dos arguidos viria a ser condenado seria necessariamente mais elevada do que a de 10 e 11 anos que foi imposta à arguida e ao arguido, respectivamente, pelo Tribunal da Relação.
IV - Tais penas conjuntas são inatendíveis por violarem o princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no n.º 1 do art. 409.º do CPP, dado que o recurso foi interposto unicamente pelos arguidos, mas evidenciam, ainda assim, a improcedência do recurso quanto à medida das penas aplicadas.
V - A doença de que o arguido padece (por ter sofrido a extracção de um pulmão, vários enfartes, é insulinodependente, sofreu vários acidentes vasculares cerebrais que lhe determinaram alguma confusão mental e conversas incoerentes, confusão mental), bem como, a confissão por este formulada, com valor atenuativo algo esbatido, como simples corroboração dos indícios fornecidos pela prova documental produzida, não tem a virtualidade de diminuir de forma acentuada a ilicitude da conduta do arguido, a sua culpa ou a necessidade da pena, por forma a justificar uma atenuação especial da pena.
VI - As dificuldades económicas da arguida e o seu analfabetismo, por si, não diminui, nem pode diminuir, a consciência do desvalor da sua conduta, nem podem justificar ou ajudar a compreender o acordo com o arguido, sendo que, a circunstância de a ofendida já não se encontrar a seu cargo, que de maneira nenhuma diminui o mal que lhe causou, pelo que, tais factores não são motivo de atenuação da ilicitude dos factos provados que justifiquem uma atenuação especial da pena.
(Com referência de abundante jurisprudência do STJ).
• Ac. STJ de 4/5/2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, Rel. Helena Moniz
II - No acórdão recorrido, considerou-se expressamente que terá havido uma pluralidade de resoluções criminosas, concluindo-se, no entanto, pela punição de apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente, com o argumento de que não foi possível proceder à quantificação do número de vezes que ocorreram os atos de abuso, ou seja, considerou-se que não havendo prova do número exato de atos realizados, apenas se condena por um, isto apesar de ter sido dado como provado que o “arguido manteve as descritas práticas sexuais com o ofendido RC, reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana, mesmo depois do mesmo ter atingido a maioridade, mais concretamente, até ao dia ...05/2014” (facto provado 7).
III - Tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança e do menor dependente logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado, ainda que o argumento utlizado para chegar a esta conclusão tenha sido tão-só o da existência de uma pluralidade de resoluções criminosas.
IV - Devemos concluir que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual do ofendido praticados ao longo de um período excessivamente longo de tempo, cerca de mais de 10 anos — entre 2002/2003 (cf. facto provado 3) e até ....05.2014 (cf. facto provado 7).
V - Porém, é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”, e por isso o acórdão recorrido acabou por condenar o arguido em apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente. Ou seja, a jurisprudência portuguesa, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.
VI - É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetido inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º e 172.º, ambos do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos, tem entendido alguma jurisprudência, como integrando um mesmo crime de abuso sexual.
VII - Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem.
VIII - Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.
IX - E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.
X - O “crime de trato sucessivo” tal como tem sido caracterizado pela jurisprudência corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias). No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na lei.
XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP.
XII - Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.
XIII - Casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.
(Com orientação similar, e da mesma relatora, cfr. Ac. STJ de 20/4/2016, Proc. 657/13.2JAPRT.P1.S1).
• Ac. STJ de 13/7/2017, Proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, Rel. Rosa Tching
I - É de afastar a figura do chamado "crime de trato sucessivo", no crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, ambos do CP, dado que não nos encontramos perante uma "multiplicidade de actos semelhantes" realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
II - Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos existe, pluralidade de crimes.
• Ac. STJ de 18/1/2018, Proc. 239/11.3TALRS.L1, Rel. Lopes da Mota
IV - Alguma jurisprudência, nomeadamente o acórdão deste STJ de 29-11-2012, proferido no proc. 862/11.6TAPFR.S1, seguido no acórdão recorrido, tem vindo a considerar que, nos casos em que os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, tornando difícil e quase arbitrária qualquer contagem, se deve recorrer às figuras dos crimes “prolongados”, “protelados”, “protraídos”, “exauridos” ou “de trato sucessivo”, em que se convenciona que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime, tanto mais grave, no quadro da sua moldura penal, quanto mais repetido.
V - Seguindo outra jurisprudência do STJ, nomeadamente o acórdão de 06-04-2016, proferido no proc.19/15.7JAPDL.S1, não é possível concluir, perante a matéria de facto provada, que a conduta do recorrente se reconduz ao preenchimento, por uma única vez, do tipo de crime da previsão do art. 171.º, n.º 2, do CP.
VI - Os factos praticados, repetidos com regularidade, integram reiteradamente os elementos do tipo de ilícito consistentes em cópula, coito anal e coito oral, introdução vaginal e anal de partes de corpo, conferindo, assim, por si só, na sua enumeração cumulativa, concreta expressão ao elevadíssimo grau de ilicitude da conduta do recorrente. (…)
VIII - Porém, por virtude da limitação imposta pelo princípio da proibição de reformatio in pejus, nos termos do disposto no artigo 409.º do CPP, uma vez que o recurso foi interposto somente pelo arguido, não pode este tribunal, modificar, na sua espécie ou medida, a sanção constante da decisão recorrida, o que significa que, no caso concreto, não poderá ser agravada a pena de 7 anos de prisão aplicada pelo tribunal da Relação, que assim se mantém.
• Ac. STJ de 22/3/2018, Proc. 467/16.5PALSB.L1-S1, Rel. Souto de Moura
I - A jurisprudência do STJ, já antes maioritária, é presentemente praticamente unânime, ao afastar a figura de «trato sucessivo» dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual do art. 171.º e 172.º, ambos do CPP.
II - O crime de «trato sucessivo» trata-se de uma criação da doutrina e também da jurisprudência, fundamentalmente para abarcar as situações de reiteração de crimes iguais ou próximos, em que se não pode falar de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2, do CP). No art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP alude-se aos “crimes habituais” e, ao nível processual, o art. 19.º, n.º 3, do CPP, ao falar de crime que se consuma por actos reiterados, pode estar a referir-se não só ao crime continuado como ao crime habitual. Assim a designação de «crime habitual» será preferível a «crime de unidade de valoração», «de trato sucessivo» ou de «actividade» ou «exaurido».
III - No crime habitual a consumação prolonga-se no tempo por força de uma multiplicidade de actos reiterados, sendo cada um estritamente unitário. Certo que a reiteração se analisa numa pluralidade de actos homogéneos intervalados temporalmente. Ao contrário do crime permanente a persistência no tempo da consumação não decorre de um só acto mas de uma pluralidade deles, e ao invés do crime contínuo os actos reiterados não são seguidos.
IV - A redacção dos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP, não revela nada de que se possa retirar que se está perante um crime habitual. Caracterizar o comportamento delituoso como uma unidade criminosa, contraria a configuração que o tipo assumiu entre nós. Este não engloba, logo à partida, tanto a prática de um, como de mais actos criminosos. Mas além disso, essa seria uma postura que iria contra a vontade do legislador, claramente patente na nova redacção do art. 30.º, n.º 3, do CP.
(Aresto com referências ao crime continuado e “de trato sucessivo”, bem como à jurisprudência e ao CP alemão).
• Ac. STJ de 6/12/2018, Proc. 2201/17.3JAPRT-S1, Rel. Isabel São Marcos
Afasta a figura do crime de trato sucessivo num caso em que estavam em causa vários crimes de abuso sexual de criança agravado.
• Ac. STJ de 20/2/2019, Proc. 234/15.3JAAVR.S1, Rel. Júlio Pereira
I - O chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2 do CP).
II - A categoria de crime de trato sucessivo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [art. 119.º, n.º 2, al. a), do CP], o crime continuado [arts. 119.º, n.º 2, al. b), 30.º, n.ºs 2 e 3, e 79.º] e o crime habitual [art. 119.º, n.º 2, al. b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [art° 19°, n° 2, do CPP].
III - Dado que os crimes praticados pelo arguido [1 crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP e de 9 crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 5, do CP (na redacção dada pela Lei 59/2007, de 04-09)], protegem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoa e, para além disso, cada um dos crimes ofendeu uma diferente vítima, e porque a conduta do arguido não se enquadra em qualquer das designações supra mencionadas tem a mesma que ser punida de acordo com as regras do concurso efectivo constantes do art. 30.º, n.º 1 do CP.
IV - Dado que o acórdão recorrido considerou o grau de violação dos deveres que se impunham ao arguido e a forma insidiosa da sua conduta, traduzida em se fazer passar no Facebook por jovem adolescente, umas vezes de sexo feminino, outras de sexo masculino, para desta forma persuadir os menores ofendidos a exibirem-se nus ou em plena manipulação dos órgãos genitais perante a webcam ou a filmarem-se e fotografarem-se nestes termos e enviar-lhe os respectivos ficheiros,  (…), considera-se que as penas de prisão aplicadas que variaram entre 1 ano e 8 meses, 1 ano e 10 meses e 2 anos e 2 anos e 6 meses de prisão que foram fixadas dentro de uma moldura entre um mínimo de 1 ano e 6 meses e 7 anos e 6 meses de prisão, de forma alguma se podem considerar desproporcionadas ou excessivas.
V - O facto de o arguido não ter contactado pessoalmente com os ofendidos compreende-se à luz do anteriormente considerado, já que em tais circunstâncias não seria possível utilizar um falso perfil. Em qualquer caso a ausência de contactos pessoais com os menores nada significa de per se, sendo irrelevante no contexto da medida da pena.
VI - Irrelevante é também a não transmissão a terceiros de filmes, vídeos ou fotografias, o que constituiria uma outra modalidade de realização do crime «art. 176.º, n.º 1 alínea c)». O nosso direito penal é direito penal do facto. A medida da pena é determinada em função daquilo que o arguido fez e não do que não fez, ainda que o pudesse ter feito. (…)
VIII - Perante uma moldura penal abstracta de cúmulo entre 4 anos e 21 anos e 4 meses de prisão, ponderando o facto de a conduta do arguido se ter desenvolvido ao longo de pelo menos seis anos sem que se tenha confrontado a si próprio com a anomalia da sua conduta, dado tratar-se comprovadamente de pessoa com formação acima da média, elevado funcionamento cognitivo (acima da média), não se ignorando o empenho que ele tem revelado no tratamento a que se tem sujeitado face ao diagnóstico de perturbação de pedofilia e voyeurismo, (…) não merece censura a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão aplicada em 1.ª instância.
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Se em certos crimes se pune uma conduta, uma actividade, que se estende no tempo, de que é exemplo o tráfico de estupefacientes (a leitura do tipo de crime base consagrada no n.º 1 do art. 21.º do DL 15/93, com múltiplos vocábulos verbais—cultivar, produzir, fabrica, extrair, preparar, oferecer, etc.--, é sintomática), noutros, como nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, não se pune uma actividade ou empreendimento, mas um acto em si, conforme ressalta, por exemplo, dos arts. 163.º, 164.º, 165.º, 166.º, 167.º, 171.º, 172.º, 173.º, 174.º do CP.
O crime de trato sucessivo, englobando embora a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, executado de forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando para a sua consumação a prática de qualquer das condutas constantes do tipo legal de crime.
Mas, se o legislador afastou a continuação criminosa dos crimes que protegem bens eminentemente pessoais (n.º 3 do art. 30.º do CP, redacção de 2010), ainda que esteja em causa a mesma vítima, punir, como um único crime, infracções como as destes autos—em que estão em causa, também, bens eminentemente pessoais--redundaria numa ficção traduzida num resultado que o legislador quis afastar, ou mesmo numa fraude ao propósito do legislador, como bem se frisa nos Acs. deste STJ de 14/1/2016, Rel. Manuel A. Matos e de 6/4/2016, Rel. Santos Cabral, atrás sumariados.
Os que defendem o trato sucessivo, como o cit. Ac. STJ de 29/11/2012, Rel. Santos Carvalho, costumam fazê-lo nos casos em que é difícil e arbitrária a contagem de crimes.
Mas a indeterminação relativamente ao número de crimes, cometidos em determinado período de tempo, não deve ser colmatada com o recurso à figura do trato sucessivo. ...”.
[33] Código Penal.
[34] A este respeito, porque sintetiza e expõe de forma exemplar a doutrina e a jurisprudência dominantes quanto à determinação das medidas das penas, citamos o Ac. do STJ de 09/12/1998, relatado por Leonardo Dias, in BMJ 482/77: “Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre e tanto quanto for possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.
A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela protecção.
Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.
[Poderia objectar-se que esta concepção abre, perigosamente, caminho ao terror penal. Uma tal objecção, porém, ignoraria, para além do papel decisivo reservado à culpa, que, do que se trata, é do direito penal de um estado de direito social e democrático, onde quer a limitação do jus puniendi estatal, por efeito da missão de exclusiva protecção de bens jurídicos, àquele atribuída (a determinação do conceito material de bem jurídico capaz de se opor à vocação totalitária do Estado continua sendo uma das preocupações prioritárias da doutrina; entre nós Figueiredo Dias – que, como outros prestigiados autores, entende que na delimitação dos bens jurídicos carecidos de tutela penal haverá que tomar-se, como referência, a própria Lei Fundamental – propõe a seguinte definição: «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», cfr. «Os novos rumos da política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43º, 1983, pág. 15) e os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer, da pena, uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade. Depois, prevenção geral, no Estado de que falamos, não é a prevenção estritamente negativa ou de pura intimidação. Um direito penal democrático que, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, tem de, pela mesma razão, colocar a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Assim, subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.]
Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura geral – a moldura penal aplicável ao caso concreto («moldura de prevenção») há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.”.
Quanto à determinação da medida da pena, cf. também o Ac. do STJ de 09/03/2006, relatado por Arménio Sottomayor, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss..
Ver ainda o Ac. do STJ de 29/05/2008, processo 08P1145, in www.dgsi.pt, relatado por Souto de Moura, do qual citamos: “ … É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197). Importa então recordar os critérios a que deve obedecer a determinação da pena concreta. Assinale-se que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, quando tiver lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Quando pois o art.º 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. O nº 2 do art.º 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. …”.
[35] A este propósito escreve Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, págs. 290 a 292: “…§ 420 estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á finalmente da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito, a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.°-1, um critério especial: «na determinação concreta da pena [do concurso] serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 78.°-1, 2.a parte).
A existência deste critério especial obriga logo (circunstância de que a nossa jurisprudência não parece dar-se conta…) a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indis­pensável conexão entre o disposto nos arts. 78.°-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo — da «arte» do juiz uma vez mais — ou puramente mecânico e portanto arbitrário…. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72.° (tanto mais quanto os factores por este enumerados podem servir de «guia» para a medida da pena do concurso, sem violação da proibição de dupla valoração: cf. Infra § 422), nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável.
§ 421 tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade — unitária — do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (…).

§ 422 A doutrina alemã discute muito a questão de saber se factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição de dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta (…).Em princípio impõe-se uma resposta negativa; mas deve notar-se que aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração (…). …”.
[36] E, como se disse no sumário do acórdão do STJ de 27/02/2013, relatado por Henriques Gaspar, no proc. 455/08.5GDPTM, in www.gde.mj.pt,: “…I - Nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP, o agente do concurso de crimes («quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles») é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
II - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. Na consideração da personalidade deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.
III -A aplicação e a interacção das regras do art. 77.º, n.º 1, do CP (avaliação em conjunto dos factos e da personalidade), convocam critérios de proporcionalidade material na fixação da pena única dentro da moldura do cúmulo, por vezes de grande amplitude; proporcionalidade e proibição de excesso em relação aos fins na equação entre a gravidade do ilícito global e a amplitude dos limites da moldura da pena conjunta.
IV -Concretizando estes critérios, a homogeneidade e a (relativa) proximidade temporal dos crimes contra o património praticados pelo arguido, e a menor ressonância externa e comunitária da prevenção geral no que respeita à indocumentação na condução automóvel, a importância do conjunto dos factos, designadamente pela reiteração, aconselharia na perspectiva das exigências de prevenção geral a fixação de uma pena no limite próximo da metade inferior da escala da moldura da pena do cúmulo.
V - Porém, o percurso de vida do recorrente e a personalidade que por aí também vem revelada, com contacto frequente com o sistema penal e sem aproveitamento do juízo de prognose favorável de que beneficiou, aconselham – e impõem – a intervenção exigente das finalidades de prevenção especial; como revelam os factos provados, as sanções penais de natureza e medida que então foram consideradas adequadas em função de juízos favoráveis sobre o comportamento futuro do recorrente, não constituíram meio idóneo de ressocialização e de reencaminhamento para os valores. As finalidades de prevenção especial são, assim, muito acentuadas, condicionando a justa medida da pena única: a sanção indispensável, tanto na natureza como na medida.
VI - Há, pois, que fixar a pena respeitando a proporcionalidade entre os crimes e a reacção penal. Nestes termos, dentro da moldura do cúmulo, que vai de 4 anos e 8 meses de prisão até 20 anos e 4 meses de prisão, mostra-se adequada a pena única de 12 anos de prisão [em substituição da pena única de 18 anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido]. …”.
[37] Entendemos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência exposta, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do mesmo Tribunal de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, que passamos a citar: “… A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 15-07-2008, processo n.º 818/08 - 5.ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª … .”.
No mesmo sentido se pronunciou, antes, o acórdão do STJ de 29/01/2004, relatado por Pereira Madeira, no processo 03P1874, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Estas considerações levam a que o Supremo Tribunal entenda não interferir na medida concreta encontrada, justamente porque não encontra qualquer assomo de ilegalidade no procedimento seguido para apuramento das penas concretas aplicadas - parcelares e única - sendo certo que, como se sabe, os recursos são meio de corrigir ilegalidades mas não de refinar decisões judiciais.
Neste sentido se vem aqui reiteradamente entendendo (Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram) que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.) …”.
No mesmo sentido, cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197, e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis: “A doutrina (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255) mostra-se de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, e a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. A questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.”.
[38] Neste sentido, ver ainda o acórdão de RP de 02/10/2013, relatado por Joaquim Gomes, no proc. 180/11.0GAVLP.P1, in www.dgsi.pt, cujo sumário citamos: “O recurso dirigido à medida da pena visa o controlo da (des)proporcionalidade da sua fixação ou a correção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, e não a concretização do quantum exato da pena aplicada.”.
[39] Relevantes nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.
[40] Nesse sentido, tenhamos em conta os seguintes acórdãos, relativos a crime de abuso sexual de crianças/menores:

STJ de 22/04/2017
Rel. Gabriel Catarino
Proc. 53/10.3PAVFX
In www.dgsi.pt
Conversas “on line” de teor sexual8 crimes; penas parcelares de 1 ano de prisão; pena única (em cúmulo com outros crimes) de 5 anos de prisão, suspensaArg. primário; confissão parcial
STJ de 22/02/2018
Rel. Francisco Caetano
Proc. 351/16.2JAPRT
in www.dgsi.pt
Arg. roçava o pénis na vítima e ejaculava; coito  vaginal 7 crimes; penas parcelares entre 2 e 4 anos de prisão; pena única de 5 anos e 3 meses de prisão Arg. primário; confessou
STJ de 13/03/2019
Rel. Lopes da Mota
Proc. 610/16.4JAAVR
in www.dgsi.pt
Menor de 11 anos; filho do Arg.;
Exibição de nudez completa e coito anal
16 crimes; penas parcelares de a anos de prisão; pena única de 12 anos de prisãoArg. primário,
Sem arrependimento
STJ de 27/11/2019
Rel. Manuel Augusto de Matos
Proc. 784/18.0JAPRT
in www.dgsi.pt
Apalpões, masturbação e coito anal38 crimes; penas parcelares entre 2 e 5 anos de prisão; pena única de 14 anos de prisão
STJ de 27/11/2019
Rel. Nuno Gonçalves
Proc. 1257/18.6SFLSB
in www.dgsi.pt
Beijos; coito vaginal e coito anal6 crimes; penas parcelares de 3 anos de prisão; pena única de 6 anos e 10 meses de prisãoArg. primário; confissão parcial
STJ de 19/02/2020
Rel. Manuel Augusto de Matos
Proc. 155/16.2JALRA
in JusNet 1944/2020
Menor de 6 anos; toques no pénis, beijos na boca, exibição de pornografia, toques na vagina e apalpões nas mamas da vítima,8 crimes;
Penas parcelares de 2 anos de prisão; pena única de 5 anos de prisão, suspensa
Arg. tem antecedentes e confessou os factos
STJ de 02/07/2020
Rel. Clemente Lima
Proc. 989/17.0PZLSB
in www.dgsi.pt
Menor neta do Arg.; coito vaginalMais de 300 crimes; penas parcelares entre 6 meses de prisão e 4 anos e 6 meses de prisão; pena única de 14 anos de prisão
RL de 10/09/2020
Rel. Cristina Santana
Proc. 948/18.6T9LSB
in www.dgsi.pt
Menor de 12 anos; carícias nas mamas e lamber a vagina da menor3 crimes; penas parcelares de 1 ano e 6 meses de prisão; pena única de 3 anos e 10 meses de prisãoArg. com antecedentes


[41] Do sumário do acórdão do STJ de 27/11/2019, relatado por Manuel Augusto de Matos, no proc. 784/18.0JAPRT, in www.dgsi.pt.
[42] Quando à suspensão da execução da pena de prisão, seguimos a lição de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 342 e ss.: “… Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (art.º 49.º-1) - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade» (art.º 48.º-1). Para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
A lei torna deste modo claro que, na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração - na medida possível: supra § 355 ss. - em sede de medida da pena: com isto não deve dizer-se violada a proibição de dupla valoração. Não pode deixar de ser valorada para este efeito, v. g., a circunstância de o condenado por um crime relacionado com o consumo de álcool ou de estupefacientes se ter submetido com êxito posteriormente ao crime, mas anteriormente à condenação, a uma cura de desintoxicação (cf. de resto os arts. 41.º e ss. do DL n.º 15/9.1. de JAN22).
§ 519 A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
Por isso, um prognóstico favorável fundante da suspensão não está excluído - embora se devam colocar-lhe exigências acrescidas - mesmo relativamente a agentes por convicção ou por decisão de consciência (nos casos, naturalmente. em que também estes últimos sejam puníveis). Mas já o está decerto naqueles outros casos em que o comportamento posterior ao crime, mas anterior à condenação, conduziria obrigatoriamente, se ocorresse durante o período de suspensão, à revogação desta (art. 51.º-1 e infra § 546). Por outro lado, a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão: mas compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável - mesmo que os crimes em causa sejam de diferente natureza - e se exija para a concessão uma particular fundamentação (fundamentação, aliás, sempre necessária: infra § 523).
§ 520 Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (art. 48.º-2 in fine). Já determinámos (supra § 502) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise. …”.
[43] M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio, in “CP - Parte Geral e Especial – Com notas e comentários”, Almedina, 2ª Ed., 2015, pág. 334.
[44] Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, págs. 344/345.
[45] Neste sentido, cf. Figueiredo Dias, ainda in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, p. 333, e Anabela Rodrigues, in “Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Eduardo Correia”, I, BFDUC, Coimbra 1984, pp. 50 e 51.
[46] O regime de prova, previsto nos art.ºs 53º e 54º do CP, tem um sentido marcadamente educativo e correctivo “… que sempre o distinguiu da simples suspensão da execução da pena é, por um lado, a existência de um plano de readaptação social e, por outro, a submissão do delinquente à especial vigilância e controlo de assistência social especializada, o que representa uma intervenção do Estado na vida do delinquente após a condenação, no sentido de desenvolver o seu sentido de responsabilidade. …”.
Como se afirma no acórdão do STJ de 03/11/2004, relatado por Henriques Gaspar, in JusNet 7769/2004, “…Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.
A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão. …”.
Assim, o regime de prova, para além dos casos de aplicação obrigatória (delinquente com idade do inferior a 21 anos ou seja condenado pela prática de crime previsto nos art.ºs 163.º a 176.º-A do CP, cuja vítima seja menor – art.º 53º/3/4 do CP), deve ser imposto quando a execução da prisão ainda se não mostra necessária, mas a sua mera suspensão já não é suficiente, porque o delinquente mostra especiais dificuldades em interiorizar a ilegalidade da sua conduta ou apresenta forte tendência para a prática de determinados crimes, necessitando de ajuda profissional para ultrapassar aquelas dificuldades ou combater estas tendências.
[47] “... A perturbação obsessivo-compulsiva é caracterizada pela presença de obsessões e/ou compulsões. Obsessões são pensamentos, ânsias ou imagens recorrentes e persistentes experienciados como intrusivos e indesejados, enquanto compulsões são comportamentos repetitivos ou actos mentais que o indivíduo se sente levado a realizar em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras que têm de ser aplicadas rigidamente. ...” (sublinhado nosso), in “Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais”, “DSM-5”,  da American Psychiatric Association, Climepsi Editores, 2014.
[48] Quando a essas razões, vejam-se os seguintes acórdãos, cuja jurisprudência, ainda que tirada a propósito da proibição de conduzir, tem aplicação mutatis mutandis às sanções acessórias aqui em causa:
- da RP de 16/05/2012, relatado por Alves Duarte, in JusNet 3264/2012, do qual citamos: “…
A imposição de penas aos agentes de crimes obedece ao princípio da legalidade, o que significa que se lhes não pode impor penas que previamente não estejam previstas por lei. (…) Esse princípio normativo, que comummente é designado por nulla pæna sine lege prævia, mereceu acolhimento constitucional, (…) inclui na sua dimensão, além do mais, o regime da suspensão da execução das penas. (…) Pelo que só pode ser suspensa a execução de pena dentro do quadro normativo fixado para esse instituto.
Assim, para que o tribunal possa suspender a execução da pena é desde logo forçoso que esta seja de prisão e aplicada em medida não superior a cinco anos. As demais penas já não podem, portanto, ser suspensas na sua execução. (…) Acrescendo no caso da pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis a circunstância dela visar prevenir a perigosidade do agente, sendo-lhe indiferente a finalidade de reintegração do agente na sociedade, (…) que necessariamente está presente na suspensão da execução das penas de prisão. (…)  …”;
- da RC de 11/11/2011, relatado por Paulo Guerra, in www.dgsi.pt, processo 87/11.0GTCTB.C1, do qual citamos: “…Ora, a suspensão da execução da pena acessória está totalmente fora de cogitação in casu.
E está-o, também porque tal tem sido uniformemente decidido pelos nossos tribunais superiores (vejam-se os acórdãos invocados pelo Exm.º PGA a fls. 73, a título meramente exemplificativo -. designadamente, Ac. R. C. de 17/01/01, Col. Jur. 1-50, Ac. R. C. de 29/11/00, Col. Jur. V - 50; Ac. R.C. de 14/06/2000, Col. Jur. III - 53; e ainda Ac. R. P. de 28/01/04, Col. Jur. 1-206)
Mas a improcedência do recurso radica desde logo no facto de se entender não estar prevista na nossa lei tal requerida suspensão
...
Neste ponto, entendemos que a lei penal não prevê qualquer pena substitutiva da pena de proibição de conduzir de veículos motorizados.
De facto, esta sanção acessória, de natureza penal, não pode ser dispensada, nem atenuada especialmente, suspensa ou substituída por caução de boa conduta ou por trabalho a favor da comunidade, sob pena de violação do princípio da legalidade e da tipicidade.
Ora, enquanto a pena principal tem em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal), a pena acessória visa tão só prevenir a perigosidade desse agente (muito embora se lhe assinale também um efeito de prevenção geral).
Se a pena acessória apenas visa prevenir a perigosidade imanente na própria norma incriminadora, que a justifica e a impõe, sendo-lhe indiferente quaisquer outras finalidades, é evidente que tal desiderato só poderá ser conseguido mediante a execução efectiva da correspondente pena.
Só através da proibição efectiva da conduta tal é alcançável, pois que o perigo que aqui subjaz é abstracto, no sentido de que, praticado o evento previsto na norma incriminadora, o perigo se presume invariavelmente.
Em conclusão, e sem necessidades de mais considerações, concluímos no sentido de que a condução de veículos motorizados em estado de embriaguez desencadeia e gera, só é prevenível com a execução efectiva da sanção inibitória imposta ao respectivo agente.
Daí que se tenha de concluir também que esta pena acessória não é passível de (qualquer tipo de) substituição, nem sequer de atenuação especial prevista no artigo 72º do CP, só aplicável a penas principais. …”;
- da RC de 08/03/2017, relatado por Jorge França, no proc. 183/16.8GATBU.C1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “… O regime jurídico das penas acessórias está regulado nos art.ºs 65.º a 69.º do CP, não se prevendo aí a possibilidade da suspensão da sua execução ou do seu cumprimento em regime descontínuo. Aliás, a pretensa analogia com o regime das penas de prisão não ocorre, já que nestas está em causa a liberdade das pessoas, que beneficia de protecção constitucional, enquanto que na inibição de conduzir está em causa a privação temporária de uma faculdade legal acessória que nem todos os cidadãos detêm. Se é verdade que o direito à liberdade integra o cerne dos direitos, liberdades e garantias que beneficiam de protecção constitucional directa (artº 27º, CRP), o mesmo já não acontece com a faculdade de conduzir. Por outro lado, não está directamente em causa o direito à segurança no emprego (artº 53º, CRP), pois que não estamos perante um despedimento, nem sequer perante uma privação de um direito secundário, como pena acessória, que possa conduzir, inexoravelmente, a esse mesmo resultado. Existem alternativas que o arguido deverá procurar, constituindo as mesmas uma consequência da pena aplicada. Assim sendo, e não estando em causa qualquer direito, liberdade ou garantia com garantia constitucional directa, não se mostra violado o artº 18º da CRP. Aliás, mesmo relativamente aos direitos fundamentais, como o direito à liberdade, pode acontecer a sua privação por força de sentença penal condenatória ou de aplicação de medida de coacção (artº 27º, CRP).
Aliás, o recorrente não desconhece que a jurisprudência praticamente unânime dos nossos tribunais superiores aponta no sentido da não possibilidade de alteração dos pressupostos do cumprimento da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, seja através do seu cumprimento em regime descontínuo ou da suspensão da sua execução. Aliás, ele expressamente o refere.
«Vide nesse sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2013 (relator Senhor Juiz Desembargador Eduardo Martins), 24-04-2013 (relator Senhor Juiz Desembargador Orlando Gonçalves), 07-04-2010 (relator Senhor Juiz Desembargador Brízida Martins), 16-11-2011 (relator Senhor Juiz Desembargador Paulo Guerra), 27-04-2011 (relator Senhor Juiz Desembargador Orlando Gonçalves).
Também Paulo Pinto de Albuquerque ([1]) refere “a proibição tem um efeito contínuo (…). Por isso, a proibição não pode ser limitada a certos períodos do dia, nem a certos veículos. (…). Por outro lado, não é admissível a suspensão da pena de proibição de conduzir nem a sua substituição por caução no processo penal (…) uma vez que aquela suspensão e esta substituição só estão previstas no CE no âmbito do direito contraordenacional (…).”»
Relativamente à possibilidade da suspensão da pena acessória, existe um outro argumento que torna manifesta a sua inaplicabilidade aos casos como o presente. Com efeito, a norma do artº 141º, 1, do CE, prevendo a possibilidade de suspensão da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves, verificados os demais pressupostos referidos, afasta, de modo peremptório, a possibilidade de suspensão das sanções acessórias aplicada a contra-ordenações muito graves; se assim é relativamente às sanções acessórias aplicadas a este tipo de contra-ordenações, por maioria de razão o há-de ser relativamente às penas acessórias aplicadas a crimes.  …”.
[49] Também essa parece ser a posição de M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio, in “CP - Parte Geral e Especial – Com notas e comentários”, Almedina, 2ª Ed., 2015, que a págs. 384 e 385, respectivamente, escrevem: “... O agente será efetiva e acessoriamente condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, nos termos já indicados, por um período mínimo de cinco e máximo de 20 anos. ...” e “... O agente é efectivamente condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores ...” (sublinhados nossos).
[50] Nesse sentido, ver a seguinte jurisprudência, que, ainda que tirada a propósito da inibição de conduzir, tem aplicação, mutatis mutandis, à determinação da medida das outras penas acessórias:
- ;da RP de 20/09/1995, relatado por Pereira Madeira, no proc. 410/95, in CJ, IV, com o seguinte sumário: “I - Podem ser distintos os objectivos de política criminal ligados à aplicação das penas principal e acessória. II - Consequentemente, a duração desta última também pode ser proporcionalmente diferente da encontrada em concreto para a da pena principal.”;
- da RE de 29/05/2001, relatado por Clemente Lima, no proc. 2387/00, in CJ, III, de cujo sumário Citamos: “I - A determinação da pena acessória obedece aos mesmos factores da pena principal, estabelecidos no artigo 71º do CP. …”
- Ac. da RC de 25/03/2009, in JusNet 1641/2009, relatado por Gonçalves Andrade, “A determinação da medida concreta da pena acessória é efectuada de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação da pena principal, enunciados no art. 71º do C. Penal - cfr. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Universidade Católica, p. 28 e Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 15ª ed., p. 237.
No entanto apesar da identidade de critérios (para a pena principal e a pena acessória) tratando-se de realidades complementares e distintas, não pode deixar de se ter conta a natureza e finalidades próprias da pena acessória por forma a que a pena acessória aplicada em concreto se mostre ajustada às suas finalidades específicas dentro do programa político-criminal em matéria dos fins das penas enunciado pelo art. 40º do CP.
Sendo certo que a pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Aequitas/Editorial Notícias., § 88 e § 232.
Daí que a determinação da pena acessória deva operar-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art. 71º do CP com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita, na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral - cfr., entre outros, Ac. RC de 07.11.1996, na CJ/1996, t. 5, p. 47; Ac. RC de 18.12.1996, na CJ/1996, t. 5, p. 62; e Ac. RC de 17.01.2001, CJ/2001, t. 1, p. 51. ...”;
- da RE de 01/10/2013, relatado por Gilberto Cunha, no proc. 126/13.0GALGS.E1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “A proibição de conduzir veículos com motor - pena acessória - constitui uma censura adicional pelo facto cometido pelo agente, podendo a duração desta pena ser proporcionalmente diferente da concretamente encontrada para a pena principal, por via da diversidade dos objectivos da política criminal ligados à aplicação de cada uma delas.”.
No mesmo sentido, ver M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio, in “CP - Parte Geral e Especial – Com notas e comentários”, Almedina, 2ª Ed., 2015, págs. 372, 385/386.
[51] Relatado por Olga Maurício, no proc. 73/12.3PBCBR.C1.
[52] Código Civil.
[53] Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I, 4ª ed., Almedina, 1982, pág. 534.
[54] Relevantes nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.
[55] Quanto aos montantes das indemnizações por crimes de abuso sexual de menores, que vêm sendo fixados/mantidos pelos tribunais superiores, vejam-se os seguintes acórdão:

RC de 10/05/2017
Rel. Inácio Monteiro
Proc. 73/12.3GAMGL
In www.dgsi.pt
Coito vaginal2 crimesIndemnização de €6.000,00
STJ de 28/06/2017 Rel Gabriel CatarinoProc. 23/14.2GCCNT.S1Coito vaginal1 crimeIndemnização de €22.000,00
STJ de 22/02/2018
Rel. Francisco Caetano
Proc. 351/16.2JAPRT
in www.dgsi.pt
Arg. roçava o pénis na vítima e ejaculava; coito  vaginal 7 crimes Indemnização de €20.000,00
STJ de 13/03/2019
Rel. Lopes da Mota
Proc. 610/16.4JAAVR
in www.dgsi.pt
Menor de 11 anos; filho do Arg.;
Exibição de nudez completa e coito anal
16 crimesIndemnização de €16.000,00
STJ de 27/11/2019
Rel. Nuno Gonçalves
Proc. 1257/18.6SFLSB
in www.dgsi.pt
Beijos; coito vaginal e coito anal6 crimesIndemnização de €5.000,00
STJ de 02/07/2020
Rel. Clemente Lima
Proc. 989/17.0PZLSB
in www.dgsi.pt
Menor neta do Arg.; coito vaginalMais de 300 crimesIndemnização de €20.000,00
RL de 10/09/2020
Rel. Cristina Santana
Proc. 948/18.6T9LSB
in www.dgsi.pt
Menor de 12 anos; carícias nas mamas e lamber a vagina da menor3 crimesIndemnização de €8.000,00

[56] Neste sentido, veja-se a seguinte jurisprudência:
- Acórdão do STJ de 09/06/2010, relatado por Fernando Frois no proc. 562/08.4GBMTS.P1.S1, do qual citamos: “…Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais com apelo a um julgamento segundo a equidade, em que os critérios que «os tribunais devem seguir não são fixos» – Antunes Varela/Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, 1.º vol., anotação ao art. 494.º - «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”» – só se justificando uma intervenção correctiva se a indemnização se mostrar exagerada por desconforme a esses elementos.
Neste sentido podem ver-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2000, processo n.º 2747/00-5ª; de 29-11-2001, processo n.º 3434/01-5ª; de 16-05-2002, processo n.º 585/02-5ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5ª; de 08-05-2003, processo n.º 4520/02-5ª; de 17-06-2004, processo n.º 2364/04-5ª; de 09-12-2004, processo n.º 4118/04-5ª; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 13-07-2006, processo n.º 2172/06-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3053/06-5ª; de 27-11-2007, processo n.º 3310/07 -5ª; de 06-12-2007, processo n.º 3160/07-5ª; de13-12-2007, processo n.º 2307/07-5ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5ª; de 03-07-2008, processo n.º 1226/08-5ª; de 11-09-2008, processo n.º 587/08-5ª; de 11-02-2009, processo n.º 313/09-3ª; de 25-02-2009, processo n.º 390/09-3ª; de 12-03-2009, processo n.º 611/09-3ª; de 15-04-2009, processo n.º 3704/08-3ª.
No acórdão de 11-07-2006, revista n.º 1749/06-6ª, consignou-se que salvo caso de manifesto arbítrio na fixação da indemnização, o STJ não pode sobrepor-se ao Tribunal da Relação na apreciação do quantum indemnizatório por esta julgado equitativo.
O juízo equitativo é critério primordial e sempre corrector de outros critérios. …”;
- Acórdão do STJ de 28/10/2010, relatado por Lopes do Rego no proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1, do qual citamos: “…Temos entendido que – quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, - ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub juditio».
Como se afirma, por ex., no ac. de 5/11/09, proferido no p. 381-2002.S1:
Finalmente – e no nosso entendimento – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá , em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que generalizadamente vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e , em última análise, o princípio da igualdade. …”;
- Acórdão do STJ de 07/12/2011, relatado por Santos Carvalho no proc. 461/06.4GBVLG.P1.S1, do qual citamos: “…Além de que não só «escapam à admissibilidade de recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal”» como, em caso de julgamento segundo a equidade, «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses [que não é a dos autos] em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”» (STJ 16-10-2000, recurso n.º 2747/00-5, 17-06-2004, recurso n.º 2364/04-5 e STJ 27-11-2007, recurso n.º 3310/07-5). …”;
- Acórdão da RC de 01/02/2012, relatado por Maria Pilar de Oliveira, no proc. 6/06.6PTLRA.C1, do qual citamos: “…Como o dano não patrimonial consiste num prejuízo que atinge bens imateriais, insusceptível de avaliação pecuniária, é irreparável mas susceptível de ser compensado por um equivalente monetário, residindo a dificuldade em encontrá-lo, por apelo, sempre imperfeito, ao que o dinheiro pode propiciar e que constitua um lenitivo no sentido de encontrar um equilíbrio entre a dor psicológica e física e o que o dinheiro em substituição pode propiciar. No encontro desse ponto de equilíbrio reside o exercício da equidade, critério para que a lei aponta.
E nesta matéria, ao invés de buscar exemplos que possam servir de comparação, entende-se mais significativo salientar que o Supremo Tribunal de Justiça vem acentuando que estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida (cfr. entre outros o Acórdão de 7.12.2011 proferido no processo 461/06.4GBVLG.P1.S1 publicado em www.dgsi.pt), como igualmente acentua que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica (cfr. entre outros o Acórdão proferido no processo 526/08.4TMS.P1.S1 de 8.6.2010). …”.
[57] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos:
- do STJ de 14/11/2006, relatado por Faria Antunes, no proc. 06A2899, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 15/04/2009, relatado por Raul Borges, no proc. 08P3704, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 13/01/2010, relatado por Santos Carvalho, no proc. 476/09.0PBBGC.P1.S1, in www.dgsi.pt;
Decisão Texto Integral: