Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | LÍGIA TROVÃO | ||
| Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA BEM JURÍDICO PROTEGIDO CONCEITO DE MAUS TRATOS PSÍQUICOS INJÚRIAS E CRÍTICAS VEXATÓRIAS PRÁTICA DOS FACTOS NO DOMICÍLIO COMUM DO CASAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | I– Tem sido entendido pela jurisprudência que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é complexo ou multi-facetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvo de tutela penal, como sejam as ofensas à integridade física, difamação ou injúrias, simples ou qualificadas, ameaça simples ou agravada, coação simples, etc. II– Porém, o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, uma vez que o legislador quis tutelar algo mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, devendo entender-se que o bem jurídico a proteger terá de estar relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. III– Na redação do atual art. 152º do CP, para o preenchimento do tipo, não se exige o requisito «intensidade» da ofensa, que constava da Proposta de Lei nº 109/X, que esteve na base da reforma de 2007 do Código Penal, mas que não foi a que vingou na sua redação final. IV– O bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao art. 152º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica; então, nesta linha de pensamento, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica. V– Daí que, uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo. VI– Assim, integra o tipo penal p. e p. pelo art. 152º na vertente de «maus tratos psíquicos», a conduta do agente que, no interior do domicilio comum e aproveitando a ausência da progenitora da menor, sua companheira, dirigindo-se à filha menor desta, sua “enteada”, apelidava-a de “ gorda”, “porca”, “ trezentos quilos”, “és uma baleia”, “és uma gorda”, “ és um cocó “, “não vales nada”, “não te quero aqui em casa”; bem assim ainda quando o agente, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, desde os finais de 2016, cerca de duas a três vezes por mês e a partir do ano de 2019 e até à presente data, com uma frequência quase diária, dirigiu à sua companheira, mãe da dita menor, as seguintes expressões: “ és uma estúpida”, “uma parva”, “ como mãe não prestava”, que “dormia com o chefe”, “ não valia nada como mulher na cama”, na medida em que tais condutas são suscetíveis de pôr em causa esta pacífica convivência, abalar irremediavelmente a confiança da(s) vítima(s) no seu agressor e tal dimensão não encontra proteção em outro tipo legal, à exceção do art. 152º do Código Penal. V– Concorrem para esta conceção do bem jurídico (pluriofensivo ) protegido, a natureza pública do crime de violência doméstica, o agravamento da incriminação quando o crime é praticado no domicílio comum, a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica. VI– Esta interpretação será a tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do art. 9º do Código Civil, do tipo de crime previsto no artigo 152º do Código Penal tendo em conta os princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo, vigentes em Direito Penal; VII–O Estatuto de vitima especialmente vulnerável, permite a inquirição da testemunha à distância com recurso a meios tecnológicos adequados e em tempo real, nos termos do regime especial da violência doméstica, contidos na Lei 130/2015 de 15/10 e na Lei 112/2009 de 16/09, por remissão ao disposto no artº 67-A do Código de Processo Penal. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa: –RELATÓRIO 1.1–Por sentença proferida em 12/05/2021 foi o arguido AA condenado pela prática dos seguintes crimes: a)- um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nº 1 b) e c)-e nº 2 a), 4, 5 e 6 do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão (perpetrado contra a ofendida FM); b)-um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nº 1 d) e nº 2 a), 4, 5 e 6 do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão (perpetrado contra a ofendida RC); c)- em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 4 (quatro) anos (art. 50º nº 5 do C.P.), sujeita a regime de prova, que contemple a sujeição do arguido a consulta de diagnóstico/despiste de consumo de álcool e caso se revele necessário, a sujeição do mesmo ao respetivo tratamento. *** 1.2– Recurso da decisão O arguido interpôs recurso da decisão, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): I.– Há erro notório na apreciação da prova, tendo o Tribunal “ a quo” dados como provados factos que se não podem retirar de modo concludente dos depoimentos prestados em audiência de julgamento. II.–O Tribunal “a quo” considerou como provados factos que entendeu terem acontecido em número e diversidade que os depoimentos prestados pelas Testemunhas contrariam; III.–Há contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão proferida. IV.–O Tribunal “a quo” absteve-se de procurar a verdade material, ignorando e desvalorizando depoimentos de testemunhas presenciais que contrariavam os depoimentos e a construção da vítima, com violação do artigo 1240 do CPP. V.–O Tribunal “a quo” procedeu à livre apreciação da prova, mas em manifesto arrepio das regras e princípios que devem nortear tal livre apreciação, com violação do disposto no artigo 1270 do CPP, como sejam as regras da experiência comum, e bem assim da imediação da prova. VI.–O Tribunal “a quo” valorou de modo excessivo um depoimento parcial que não cumpriu com as regras de imediação da prova, ignorando os depoimentos prestados em obediência a essa mesma regra de imediação; VII.–O Tribunal “ a quo” valorou o depoimento de uma única testemunha, conferindo-lhe credibilidade ao arrepio das próprias contradições do seu depoimento face ao das demais testemunhas, não considerando estas nesse particular, VIII.–Como também as não considerou na expressão que as mesmas manifestaram em Tribunal; IX.–Há insuficiência da matéria de facto provada para o preenchimento do tipo legal, uma vez que da prova produzida não resultam factos que permitam a ondenação do arguido por violência doméstica. X.–Não se demonstrando que o Arguido tenha revelado um qualquer sentimento de superioridade ou domínio sobre as vítimas, com o intuito de anular as suas personalidades e dignidade. XI.–O Tribunal “a quo” considerou verificado o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica sem entrar em linha de conta com o fraco desvalor dos episódios relatados pela acusação no contexto de uma união atribulada e conflituosa de manifesta reciprocidade. XII.–A medida da pena em face da concreta factualidade mostra-se excessiva. *** 1.3–Resposta do Ministério Público O Ministério Público na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência. *** 1.4–Parecer do Ministério Público Nesta Relação, o Exmº Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso, acompanhando a resposta do Ministério Público junto do tribunal recorrido. *** 1.5–Após o cumprimento do art. 417º nº 2 do CPP, o recorrente veio responder nos termos que constam da referência 543832, aqui tidos por especificados, tendo renovado as anteriores alegações e concluído pela procedência do recurso. *** 1.6–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. II–FUNDAMENTAÇÃO O objeto do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o art. 410º CPP (Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 7/95, publicado no D.R. I Série-A de 28/12/95: “ É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito “ ). *** II.1–Questões a decidir: 1–Impugnação dos factos provados descritos nos nºs 12), 15), 16), 18), 19), 20), 22) e 32); nº 5) dos factos não provados; 2–Saber se o acórdão padece do vício do erro notório na apreciação da prova; 3–Saber se o acórdão padece do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão proferida; 4–Saber se o tribunal considerou como provados factos em número e diversidade contrariada por testemunhas; 5–Saber se o tribunal a quo ignorou o depoimento de algumas testemunhas e valorou excessivamente o da ofendida RC, ao arrepio das próprias contradições e violando o princípio da imediação da prova; 6–Saber se a matéria de facto provada é insuficiente para o preenchimento do tipo legal da violência doméstica, não entrando em linha de conta com o fraco desvalor dos episódios relatados pela acusação no contexto de uma união atribulada e conflituosa de manifesta reciprocidade; 7–Saber se a medida da pena é excessiva em face da concreta factualidade. *** II.2–Sentença recorrida “ Factos provados: 1–O arguido e FM iniciaram uma relação de namoro em data não concretamente determinada, situada no ano de 2012 e começaram a viver em comunhão, como se de marido e mulher se tratassem, cerca de um ano depois, primeiro, na localidade de Forte da Casa e depois, em meados de Fevereiro de 2020, fixaram residência na P……….. ……………., Castanheira do Ribatejo. 2–Já anteriormente, há cerca de 26 anos e durante cerca de um ano e meio, o arguido e FM haviam mantido uma outra relação amorosa, fruto da qual tiveram o filho HN, nascido a 03/01/1994, que sempre viveu aos cuidados da avó. 3–Posteriormente, fruto de outro relacionamento de FM, nasceu a filha RC em 07/03/2003 e após a reconciliação, o arguido teve com a mesma o segundo filho em comum, DN, nascido a 03/12/2016. 4–Assim, neste período de reconciliação e até à data da separação em 22/06/2020, além do arguido e de FM, compunham igualmente o agregado familiar RC e DN, ambos menores de idade. 5–Desde o início da relação que o arguido revelou ser uma pessoa implicativa, conflituosa e controladora, com uma personalidade difícil e instável, sendo rude no tracto com FM e com a filha desta, R. 6–O arguido também consome bebidas alcoólicas, em excesso, com uma regularidade diária. 7–A relação sempre foi problemática muito devido aos traços de personalidade do arguido, extremados pelo consumo de bebidas alcoólicas. 8–Quando está embriagado, o arguido torna-se ainda mais implicativo, conflituoso e agressivo, com baixa tolerância à frustração, tudo servindo de pretexto para começar uma discussão. 9–Assim, por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, situadas no período compreendido entre os anos de 2012 e até à presente data, inicialmente, com uma regularidade de duas ou três vezes por ano, posteriormente, após o nascimento do filho D em finais de 2016, cerca de duas a três vezes por mês e a partir do ano de 2019 e até à presente data, com uma frequência quase diária, o arguido, dirigiu a FM as expressões “és uma estúpida”, “uma parva”, que “não valia nada como mulher na cama”, “como mãe não prestava”, que “dormia com o chefe” e que “a relação ia ter um prazo de validade”. 10–Também por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, situadas a partir do ano de 2016 e até à presente data, o arguido, aproveitando sempre as ausências da progenitora e, por vezes, também na presença desta, apodou a enteada R de “gorda”, “porca” e “trezentos quilos” e dirigiu à mesma as expressões “és uma baleia”, “és uma gorda”, “és um cocó”, “não vales nada” e “não te quero aqui em casa”. 11–Sucede que, logo após o nascimento do filho D em finais do ano de 2016, o arguido tornou-se ainda mais agressivo em relação à companheira FM e enteada R, direccionando tal agressividade para ambas em simultâneo. 12–Assim, por diversas vezes, em datas não concretamente determinadas, mas com uma regularidade crescente, no início cerca de duas a três vezes por mês e no final, quase diariamente, a pretexto de uma qualquer discussão, o arguido começou a ter por hábito encostar a sua testa junto à cabeça de FM, bem como agarrar os braços da mesma, com força, após o que também desferiu murros e bofetadas, com que atingiu o corpo da mesma na zona da cabeça. 13–Em consequência directa e necessária dessas condutas, FM sentiu dor e sofreu hematomas em diversas partes do corpo, mas nunca recebeu assistência médica. 14–Em data não concretamente apurada, situada no ano de 2017, R encontrava-se no interior da habitação, juntamente com o arguido e o irmão D, enquanto FM se encontrava ausente a trabalhar. 15–Nessas circunstâncias de tempo e de lugar, a R estava a passar a ferro a roupa, enquanto tomava conta do irmão, momento em que saiu da sala na companhia deste, deixando o ferro ligado, o que levou a que o arguido a confrontasse com essa situação e não conformado com a explicação, o arguido aproximou-se desta e desferiu uma bofetada, seguidas de vários murros, com que a atingiu em ambas as faces, orelhas e toda a zona da cabeça. 16–Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, R sentiu dor em toda a zona da cabeça durante vários dias e sofreu hematomas, designadamente no olho direito, mas não recebeu assistência médica, apesar da necessidade de tomar analgésicos para as dores durante vários dias. 17–Em data não concretamente apurada, situada em finais do ano de 2019, quando ainda moravam na localidade de F…………, o arguido, aproveitando a ausência de FM, quando esta se encontrava a trabalhar até às 00h00, começou a implicar com a enteada R, tendo-se gerado uma discussão entre ambos. 18–Em data não concretamente apurada, situada em Novembro de 2019, no interior da mesma habitação, na sequência de uma outra discussão, o arguido, ao mesmo tempo que dirigiu a FM as expressões supra descritas, desferiu diversos murros com que a atingiu em várias partes do corpo, até que a enteada R saiu do quarto em auxilio da mãe. 19–Nessa ocasião, FM desfaleceu e foi conduzida por R até ao quarto, momento em que esta pediu ao arguido que ajudasse, ao que este retorquiu “dá-lhe vinho, que isso passa”. 20–Em consequência directa e necessária dessa conduta do arguido, FM sentiu dor e sofreu hematomas no pescoço e nos braços, mas não recebeu assistência médica. 21–No dia 02/06/2020, cerca das 23h30m, no interior da habitação, o arguido já se encontrava ébrio, quando começou uma discussão com FM a pretexto desta lhe ter pedido para baixar o volume do telemóvel. 22–Nessa ocasião, o arguido dirigiu-se a FM e fazendo uso de ambas as mãos, desferiu diversos murros com que a atingiu na cabeça, momento em que esta sentiu tonturas e gritou por ajuda. 23–Foi então que R saiu do interior do quarto onde se encontrava resguardada, na companhia do irmão D e se dirigiu à cozinha para auxiliar a mãe, momento em que o arguido investiu na sua direcção e FM colocou-se entre ambos, ordenando ao suspeito que saísse de casa, o que este fez à chegada ao local dos agentes da PSP. 24–Em consequência directa e necessária dessa conduta, FM sentiu dor e sofreu hematomas na zona da cabeça e dos braços, mas não recebeu assistência médica. 25–Nessa mesma noite, o arguido ainda regressou a casa, mas FM não lhe abriu a porta, com receio do que este pudesse fazer. 26–Alguns dias mais tarde, o arguido tornou a regressar a casa visivelmente ébrio e FM trancou a porta, de modo a impedir que este entrasse novamente na habitação. 27–Nessa ocasião, o arguido ainda tentou forçar a entrada na habitação, através da janela do quarto das crianças, exercendo pressão nos estores da janela, até os desencaixar da calha, mas sem êxito. 28–No período compreendido entre os dias 02/06/2020 e 22/06/2020, a situação agudizou, com o arguido a recusar-se a abandonar a habitação. 29–FM acabou por abandonar a sua casa, juntamente com os filhos R e D, tendo ido viver provisoriamente para casa da sua mãe, sita na Rua ………………………., Póvoa de Santa Iria, com receio do que o arguido pudesse fazer. 30–Posteriormente, FM regressou à sua casa, encontrando-se o arguido a residir noutra habitação, sita na Rua …………………………….., Alverca do Ribatejo. 31–Entretanto, o arguido e FM reconciliaram-se, encontrando-se outra vez a viver em comunhão de vida. 32–Os factos descritos ocorreram sempre no interior da habitação, quando o arguido se encontrava ébrio e, muitas vezes, na presença dos menores R e D. 33–O arguido actuou com o propósito concretizado de maltratar FM e R, molestando-as no seu corpo, ofendendo-as e atemorizando-as, bem sabendo que aquela é sua companheira e mãe dos seus filhos e esta, sua enteada menor de idade, pelo que devia assumir perante as mesmas um comportamento compatível com a relação que mantiveram e mantêm, ao invés, atingiu-as na sua dignidade, causando nelas humilhação e uma permanente sensação de medo e insegurança, o que quis, não se coibindo de o fazer no interior da residência comum e na presença do filho menor de idade. 34–Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal. Provou-se ainda que: 35–O arguido prestou consentimento para submeter-se a consulta de despiste da existência de dependência de álcool e caso se revele necessário sujeitar-se a tratamento médico adequado. 36–O arguido reside com companheira, auxiliar em lar, sendo que na sua actividade profissional aufere a quantia de € 850,00, sendo que despende a quantia de € 600,00 a titulo de renda de habitação e € 150,00 para pagamento de despesas de educação. 37–O arguido não possui despesas de educação. *** Factos Não provados 1–Que em data não concretamente apurada, situada no início do ano de 2017, na anterior habitação situada na localidade de F………., o arguido, notoriamente embriagado, começou uma discussão com FM. 2–Que nessa ocasião, o arguido aproximou-se de FM e desferiu diversos murros com que atingiu diversas partes do corpo da mesma, na zona da cabeça e dos braços, enquanto lhe dirigia as mesmas expressões “és mesmo estúpida”, “és mesmo parva” e “não vales nada” e que de seguida, fazendo uso da mão direita, o arguido agarrou o pescoço de FM, apertando-o, com força, impedindo-a de respirar, até lhe provocar o desmaio, momento em que R intercedeu em auxílio desta, abanando-a e chamando-a até que recuperasse os sentidos. 3–Que em consequência directa e necessária dessa conduta do arguido, FM sentiu dor e sofreu hematomas e equimoses na zona do pescoço, braços e cabeça, mas não recebeu assistência médica. 4–Que aquando da factualidade descrita em 15), o arguido desferiu duas bofetadas na ofendida. 5–Que aquando os factos descritos em 17) o arguido quis vasculhar o telemóvel de R e como esta se recusou, o arguido aproximou-se da mesma e desferiu diversos murros e bofetadas, com que atingiu o corpo desta na zona da cabeça e cara. Em consequência directa e necessária dessa conduta, R sentiu dor e sofreu hematomas e equimoses na cabeça, mas não recebeu assistência médica. 6–Que actualmente, FM pretende a separação, decisão que o arguido não aceita. 7–Que aquando os factos descritos em 28), nesse mesmo período de tempo, a fim de dissuadi-la da separação, o arguido, por diversas vezes, se dirigiu a FM, dizendo que se alguém saísse de casa ia haver consequências, mas também não permitindo que FM saísse da mesma, juntamente com os seus filhos, ainda que temporariamente. 8–Que no dia 21/06/2020 (domingo), no interior da referida habitação, o arguido, já ébrio, dirigiu-se a FM, que se encontrava com o filho mais novo de ambos, dizendo que a partir daquele dia, faziam tudo o que ele dissesse, senão ele ia comprar uma arma e matava-os a todos, mesmo que desse cabo da vida toda, que fazia como os casos que se vêem na televisão. 9–Que não obstante, o arguido não aceitou essa decisão de FM, pois que persistiu com o envio de mensagens dirigidas à mesma atinentes à relação de ambos, através do seu telefone número 9……………., para o telemóvel número 9……………., utilizado por esta, bem como, continua a fazer publicações nas redes sociais, dizendo coisas como “vais ter de sair à rua” e “não sabes no que te estás a meter”. *** Motivação da decisão de facto (que se transcreve na parte com relevo) “ (...) No apuramento da factualidade valorou-se positivamente as declarações prestadas pelas testemunhas RC, DL, JF, MV e EM, entrecruzadas e conjugadas com a prova documental constante dos autos, a saber de fls. 52/53, 54/55, 180 e CRC constante dos autos. De salientar que os depoimentos das referidas testemunhas mereceram credibilidade junto do Tribunal atenta a forma isenta e objectiva com que depuseram. Essencial no apuramento da factualidade e na formação da convicção pelo Tribunal valorou-se positivamente as declarações prestadas pela ofendida, RC, a qual referiu expressamente o modo de execução dos factos, por recurso às expressões e comportamento do arguido nas ocasiões mencionadas na acusação. Na formação da convicção, salienta-se, no essencial, as declarações prestadas pela referida testemunha, que pese embora realizado de forma doída e sentida, foi realizado de forma clara, coerente e em clara consonância com a demais prova produzida, nos termos em que a mesma abaixo se explanará e desde logo, de acordo com as regras de experiência comum. Tal testemunha, após ter descrito os contornos do relacionamento do casal e referido que residiu com o casal cerca de 8 anos, confirmou cada um dos factos constantes dos factos provados. Por esta testemunha foi relatado, com precisão, toda a dinâmica dos factos ocorridos nos dias descritos na factualidade dada como provada, tendo ainda relatado as consequências psicológicas que resultaram destes episódios, tendo levado a que saísse de casa e fosse residir com a sua avó. De realçar que, não obstante a juventude da ora testemunha, esta soube descrever com precisão e segurança a factualidade dada como provada, e daí ter assumido relevância no apuramento da factualidade. Apesar do intenso envolvimento desta nos factos, esta depôs de forma segura e coerente, merecendo credibilidade para o Tribunal. O depoimento desta testemunha encontrou suporte nos depoimentos das testemunhas MV e EM, respectivamente professora e avó da ofendida RC. Pela testemunha MV, antiga professora da ofendida, foi referido que não obstante nunca ter visto RC com marcas físicas de agressão, sempre a considerou uma jovem triste, reservada, mas muito ponderada e apaziguadora, o que foi corroborado pelo depoimento da testemunha EM, avó da ofendida, que não obstante a ligação familiar com as ofendidas depôs de forma isenta e objectiva. Por esta testemunha foi referido que não obstante não ter uma relação próxima com a ofendida F, foi tendo conhecimento dos factos através do que lhe foi relatado pela ofendida RC, que lhe descreveu episódios de agressão física para com esta e também do arguido para com a sua filha FM. Mais referiu que a sua neta, RC, foi viver consigo em Dezembro de 2020, tendo alegado para o efeito que já não suportava a pressão exercida pelo arguido, as expressões injuriosas proferidas pelo arguido e que não gostava da forma com este lidava com a sua mãe. Na formação da convicção, atendeu-se, igualmente, ao depoimento da testemunha JF, antigo vizinho do casal e que referiu que, não obstante não ter assistido a agressões físicas, referiu ser frequente ouvir discussões entre o casal, em que era perceptível injurias mútuas. Mais referiu ter assistido à factualidade descrita em 27). Mais se atendeu ao depoimento da testemunha DL, agente da PSP, que confirmou a diligência em que interveio e que o levou a deslocar-se à residência do casal, tendo a este propósito confirmado o teor de fls. 4/10 dos autos. Por sua vez, o arguido confrontado com os factos que lhe são imputados, admitiu parcialmente a pratica dos factos, tendo nesta sede confirmado a factualidade descrita em 10 a 40, bem como admitiu como possível ter proferido as expressões dadas como provadas dirigidas a ambas as ofendidas, em contexto de discussões, tendo negado a demais factualidade, nomeadamente as agressões físicas imputadas. A este propósito referiu que a maioria das discussões com a ofendida F tinham por base desentendimentos com a ofendida R, pois que não se entendiam quanto à educação desta, o que foi corroborado pela testemunha F. O arguido prestou ainda declarações quanto à sua condição sócio económica. Por aquela testemunha foi referido que o principal motivo das discussões entre o casal seria a sua filha, a ofendida RC, bem como, questões relacionadas com desemprego e falta de dinheiro. Por esta testemunha foram confirmadas as expressões proferidas pelo arguido dadas como provadas, tendo negado por sua vez que o arguido a tenha agredido a si ou à sua filha. Confrontada com as declarações prestadas em sede de inquérito, atentas as manifestas discrepâncias, por esta testemunha foi referido que na altura mentiu pois que apenas queria que o arguido parasse com as discussões e que não tinha a noção de que o processo chegasse a esta fase. Confrontada, ainda com o teor do depoimento prestado pela sua filha, RC, referiu que esta terá eventualmente exagerado na descrição dos factos, pois que agiu apenas com o intuito de se vingar do ora arguido, pois que nunca terá aceite a relação do casal. Por último, salientam-se os depoimentos das testemunhas MM e EM, tias do arguido, cujos depoimentos assumiram relevância na descrição da personalidade do arguido, tendo a este propósito referido os contornos do relacionamento deste com a ofendida RC, e que seria esta o ponto de conflito entre o casal. Mais referiram que não presenciaram qualquer discussão entre o casal, nem agressões físicas ou verbais, contudo, referiram terem conhecimento de que as discussões tornavam-se frequentes em contexto de consumo de álcool pelo casal e sempre que existiam dificuldades financeiras no agregado familiar. Ora atenta a prova produzida, e que teve por base essencialmente o depoimento da testemunha RC, que foi merecedor de total credibilidade, dúvidas não restam a este Tribunal de que os factos ocorreram e da forma dada como provada. Não obstante a versão do arguido e da ofendida FM, o certo é que o arguido mesmo procura justificar os factos descrevendo circunstâncias que apenas demonstram uma forte tensão e conflito entre arguido e as vítimas, chegando mesmo a colocar-se na posição de vítima, em contraposição com a versão apresentada pela ofendida RC pois que coerente com a demais prova, pelo que obteve total credibilidade junto do Tribunal. Quanto ao dolo e consciência da ilicitude conjugou o Tribunal os meios de prova supra expendidos com as regras da experiência comum, o que permite concluir que o arguido actuou com o propósito alcançado de atacar e enxovalhar o bom nome a auto-estima das ofendidas e de a vexar e, bem assim, com o desígnio concretizado de molestar o bem estar psíquico das ofendidas. Ora da prova produzida, dúvidas não existem para este Tribunal de que o arguido praticou os factos descritos nos factos provados. Não obstante a versão dos factos apresentada pelo arguido, a mesma não foi merecedora de qualquer credibilidade, não tendo encontrado apoio em mais nenhum meio de prova, em contraposição com a forma espontânea com que a testemunha RC inquirida prestou depoimento e cuja credibilidade não foi abalada em momento nenhum. Refira-se, ainda que, no que respeita às condições económicas, sociais e familiares do arguido, o Tribunal firmou a sua convicção nas declarações do próprio. No que concerne aos demais factos constantes da acusação e que foram considerados como não provados, tal deveu-se a prova bastante e segura sobre os mesmos ter sido realizada. A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directa ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto “. *** 3–Apreciação do recurso 3.1–Impugnação da decisão sobre a matéria de facto – art. 412º nºs 3 e 4 do CPP. Veio o arguido recorrente impugnar a matéria de facto fixada na sentença proferida em 12/05/2021 invocando os vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 a), b) e c) do CPP (revista ampliada ou alargada) e ainda nos termos previstos no art. 412º nºs 3 e 4 do mesmo Código, visando o reexame dos erros de julgamento e a consequente modificação da matéria de facto, nos termos do art. 4310 b) do referido diploma, com vista à sua absolvição pelos dois crimes de violência doméstica pelos quais foi condenado. “ As relações conhecem de facto e de direito “ (art. 4280 do CPP ) e a modificabilidade da decisão recorrida vem prevista no art. 4310 que dispõe que “Sem prejuízo do disposto no art. 4100, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n0 3 do art. 4120; (...) “ – cfr. art. 4310 do CPP Neste último caso exige-se porém que o recorrente observe os requisitos formais previstos nesse n0 3 do art. 4120. Assim, “ Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-(...). De acordo com o seu n0 4, “ Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n0 3 do artigo 3640, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação “. O artigo 3640 n0 3 impõe que deve ser consignado na ata o início e o termo da gravação de cada declaração, tendo em vista, por certo, facilitar a procura e a deteção da gravação desses atos – cfr. Oliveira Mendes no Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, pág. 1097 e 1098. E esta especificação deve ser feita tanto na motivação como nas conclusões da motivação. Como refere P. Pinto de Albuquerque(1) em anotação ao art. 412º do CPP, a motivação do recurso sobre a matéria de facto deve especificar os concretos pontos de facto que que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. A especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado. A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida...mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento. Para além da observância destes requisitos formais, a possibilidade de sindicância de matéria de facto, sofre ainda outras limitações: - a nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações; - à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento integral, mas antes um reexame necessariamente segmentado, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo(2); ( a este propósito, pronunciou-se o T.C. nº Ac. nº 98/06 dizendo que “ O verdadeiro julgamento da causa é aquele que é efetuado na 1ª instância, em que imperam os princípios da imediação e da oralidade e são produzidas todas as provas e as testemunhas, o arguido e o ofendido são ouvidos em pessoa. O recurso para a Relação, mesmo da matéria de facto, não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada ...é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido julgamento em 1ª instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim validaria ou não a factualidade anteriormente assente )(3); - e a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão – cfr. Ac. do STJ de 25/03/2010(4) aqui seguido. No caso destes autos, da leitura da ata da audiência de julgamento constata-se que houve registo áudio e que se encontram consignados o início e o termo de cada um dos depoimentos prestados bem como das declarações do arguido. Contudo, nas conclusões da motivação o recorrente não faz a especificação das concretas passagens dos depoimentos em que baseia a impugnação e que em seu entender impõem decisão diversa da recorrida, o que só por si justificaria o não conhecimento do recurso nesta parte. No entanto, porque em relação a alguns pontos de facto que impugna, o recorrente concretiza na motivação as respetivas passagens e identifica os depoimentos (das testemunhas RC e MV que em seu entender são contraditórios); (da testemunha JF que quanto à ocorrência de 02/06/2020, afirmou que ouviu discussão de boa a boca, palavras só, nunca viu violência); (da testemunha DL, agente da PSP, que em 02/06/2020 foi chamado ao local dos factos e afirmou que não eram visíveis sinais de agressão ou outros, na vítima FM); (e da testemunha FM que contraria a versão dos factos apresentada pela sua filha R) irá apreciar-se o recurso quanto a estas concretas provas. *** 3.2–Dos vícios decisórios (revista alargada) – art. 410º nº 2 do CPP Nos termos do nº 2 do art. 410º do C.P.P., “ (...) o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c)- Erro notório na apreciação da prova “. Estes vícios, de conhecimento oficioso (Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/95 de 19/10/1995), são vícios substanciais, respeitantes ao conteúdo da sentença; traduzem erros de julgamento, a partir dos quais se conclui que o juiz julgou mal ou decidiu mal e interferem com a justiça da decisão; o juiz errou ao julgar os factos ou a determinar o direito a eles aplicável e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum; consiste numa atividade puramente jurídica, porque se cinge ao texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra, e não um reexame da causa, pois este poria em causa o princípio da imediação com que foi apreciada a prova na primeira instância e cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso. Os referidos vícios, que se traduzem em nulidades da decisão, irão conduzir, nuns casos, à anulação integral do julgamento e noutros, apenas à anulação da decisão, impondo a reformulação desta, pela primeira instância por via do reenvio parcial ou total, ou pelo tribunal de recurso, se este puder decidir da causa, eliminando ele o próprio vício, o que poderá acontecer por duas vias: a primeira, pelo art. 380º do CPP; a segunda pelos arts. 412º nºs 3 e 4 e 6 e 430º nº 1 do CPP(5). Por último e antes de se entrar na análise de cada um destes indicados vícios do art. 410º nº 2 do CPP, cumpre assinalar que não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127ºdoCP(6). *** 3.2.1–Vício de insuficiência para a decisão ( justa ) da matéria de facto provada – art. 410º nº 2 a) do CPP Como se referiu acima, a indagação deste vício está confinada à leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a quaisquer elementos que lhe sejam externos. Existe insuficiência da matéria de facto quando, do texto da decisão, faltam factos provados que autorizem a ilação jurídica tirada(7), há uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher; por outras palavras, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final (por imposição do art. 340º do CPP), seja ela de condenação ou de absolvição (8). A insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, pois esta questão respeita ao recurso da matéria de facto ( art. 412º nºs 3 e 4 do CPP )(9). Passando a apreciá-lo em concreto, resulta da sentença recorrida que ao arguido JN vem imputada, pelo Ministério Público, a autoria material, em concurso real e na forma consumada, de 2 ( dois) crimes de violência doméstica, sendo um deles dirigido contra a sua companheira FM, com a qual o arguido coabita, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 b) e c), 2 a), 4, 5 e 6 do Cód. Penal e o outro crime, perpetrado contra pessoa particularmente indefesa (a filha apenas da companheira, RC) que coabitava com o casal, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 d) e 2 a), 4, 5, e 6 do Cód. Penal. Da leitura dos factos provados e não provados elencados na decisão recorrida, constata-se que os factos que tribunal investigou são os que constituem o objeto do processo, os necessários ao preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo dos tipos legais de crime imputados ao arguido e ainda os pertinentes para a determinação/decisão das penas acessórias previstas nos nºs 4, 5 e 6 do Cód. Penal. Fica por isso, afastado o invocado vício. *** 3.2.2–Vício da contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão – art. 410º nº 2 b) do CPP Existirá contradição insanável da fundamentação, quando ocorrer uma incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados ou entre estes e os não provados. A contradição entre os factos ocorre quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente(10). Na definição do Ac. do STJ de 08/05/96(11), “ Por contradição entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas; proposições contraditórias são as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e em qualidade “, ou como se diz no Ac. do STJ de 25/09/96(12), “ Para haver contradição insanável é necessário que haja oposição entre factos que mutuamente se excluem por impossibilidade lógica ou de outra ordem por versarem a mesma realidade. (...) “ *** Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada(13) (14)(15). No caso destes autos, da leitura da decisão recorrida, em lado nenhum se descortina qualquer destes vícios, não se mostrando incompatíveis entre si os factos objetivos e subjetivos provados e não provados, relevantes para a decisão da causa, nem qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão de condenação do arguido pela prática dos crimes que lhe vêm imputados. Improcede por isso, o invocado vício. *** 3.2.3–Vício do erro notório na apreciação da prova – art. 410º nº2 c) do CPP O vício do erro notório na apreciação da prova só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados ou não provados; é um erro que é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, de que todos se apercebem diretamente, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada(16). Na definição de Leal-Henriques e Simas Santos(17), haverá um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis ( por ex., como se decidiu no Ac. da R.G. de 06/02/2017(18), “ I) A menção nos factos provados do valor apurado no exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado e realizado mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, sem o desconto do erro máximo admissível (EMA) constante do quadro anexo à Portaria 1556/2007 de 10.12, integra desrespeito por uma regra legal de valoração da prova. II) Por via do que a sentença contém, nesse ponto, uma contradição lógica intrínseca, que ressalta da sua mera leitura para qualquer jurista médio“; ou no Ac. da R.C. 13/06/2018(19) de “ O princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, determina que, salvo existência de prova vinculada ou tarifada (como é o caso da pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163.º, n.º 1, do CPP), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a livre convicção “ ). Diz-se a propósito no Ac. da R.C. de 10/07/2018(20) que “ I- O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. II- Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. III- Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) “. Como se disse acima, repete-se, é um erro que nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta, face à sua avaliação da prova produzida; ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respetiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida(21). Do texto da decisão recorrida, também não se descortina em lado nenhum o invocado vício. Improcede, pois, também nesta parte, o recurso interposto. *** 4.–Da impugnação da matéria de facto (impugnação ampla) – art. 412º nºs 3 e 4 do CPP (erro de julgamento): factos provados nºs 12), 15), 16), 18), 19), 20), 22) e 32) e facto não provado nº 5). No entender do recorrente, o tribunal a quo deu como provados nos nºs 12), 15), 16), 18), 19), 20), 22) e 32), factos que não podem ter acontecido e que claramente resultam do depoimento das testemunhas constantes da prova gravada; que ao dar como provado o facto nº 16) o Tribunal a quo cai num manifesto erro de contradição atendendo ao descrito no nº 5) dos factos não provados; que a sentença ao referir-se aos factos descritos em 17) quis referir-se aos factos descritos em 16) considerando o episódio descrito em 15), procedendo a uma errónea apreciação da prova; que quanto à demais factualidade provada, é manifesto que o tribunal a quo desconsiderou em absoluto todos os depoimentos prestados pelas testemunhas DL, JF e FM, que são manifestamente contraditórios, em particular o de FM com o da testemunha RC. Vejamos se assim é. Começando pelo depoimento da testemunha RC, a cuja audição procedemos, ao contrário do alegado pelo recorrente na motivação, não se encontra eivado de respostas alegadamente induzidas pelo interrogatório levado a cabo pelo MP; antes a inquirição da testemunha obedeceu integralmente ao disposto no art. 1380 n0 2 do C.P.P. que dispõe que “ Às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas(22)...nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas “. Concretamente à testemunha R foram colocadas apenas questões abertas (as que são construídas sem qualquer fornecimento de informação por parte do entrevistador sobre as condutas imputadas ao arguido); o recurso a esta técnica, permite a transferência do controlo da entrevista para a testemunha, privilegiando assim um relato livre e espontâneo, o que ocorreu; foram respeitadas as pausas da testemunha sem que esta tivesse sido interrompida por forma a não prejudicar a concentração e a recordação; seguiu-se o questionamento direto/focalizado com o discurso da testemunha aproveitando afirmações e expressões por esta produzidas, para obter detalhes adicionais mencionados por aquela emparelhado de novo com questões abertas e sem acrescentar pormenores de que o MP já tivesse conhecimento; a dada altura e após a descrição dos episódios, o MP cedeu informação à testemunha fazendo-lhe perguntas fechadas de confrontação com a versão dos factos apresentada pelo arguido e pela sua progenitora FM, não coincidentes com a descrição efetuada pela testemunha. Exemplificando o que se disse, foi perguntado à RC se viveu com a mãe e o padrasto? A testemunha iniciou o seu relato por dizer ( 03.34 ) que viveu com a mãe e o arguido praticamente durante 8 anos, mas nem sempre, havia mudanças porque havia alturas em que “não se sentia bem” , “não se sentia confortável e andava sempre cá e lá” referindo-se à residência da avó para onde se mudou definitivamente em 22/12/2021. Foi então dirigida à testemunha uma questão direta para obter detalhes em simultâneo com uma questão aberta: “porque razão havia essas mudanças? “ Respondeu a testemunha que “às vezes não se sentia bem lá“; Seguiu-se nova pergunta focalizada do MP acompanhada de questão aberta: “ E porque razão não se sentia bem em casa da sua mãe e do seu padrasto ? ( 04.48 ). Respondeu a testemunha (04.48 ) “que a partir de certa altura começaram as agressões físicas ....já não bastava eu na escola sofrer bullyng(23), ele também começou a fazê-lo em casa....e eu não me sentia bem ...começava a ficar muito magoada... então andava sempre de um lado para o outro... “( 04.55 a 05.11 ); Segue-se nova pergunta focalizada do MºPº utilizando a afirmação da testemunha de que “começaram as agressões físicas “, formulada outra vez de forma aberta: “ Disse aí duas coisas...começaram as ofensas físicas ? “ Respondeu a testemunha: “ sim...eu tenho excesso de peso...sou obesa...a e então...a partir de certo momento, hum...sempre que eu fazia alguma coisa errada, que é normal...não é ?...eu era uma criança ainda... ...hum...ele refilava comigo mas ofendia também e isso acabava por me magoar muito....porque eu passava por isso na escola... comecei a passar em casa... “; Nova questão focalizada e aberta do MP: “ mas então, lembra-se de algum episódio em concreto ? “ Resposta: “sim”. A partir daí, a RC descreve como se desenrolaram os factos descritos no nº 15 dos factos provados, de novo sem quaisquer interrupções, esclarecendo que o arguido começou a disparatar consigo (por causa de ter ido ao wc e deixado o ferro ligado), começando a chamar-lhe nomes e só porque ela lhe respondeu...ele começou a tentar “ir para cima de mim...“, a testemunha pegou no D ao colo....mesmo nesse episódio ele conseguiu assapar-me um estaladão na cara que eu fiquei com o meu olho esquerdo roxo durante quase duas semanas “; O MP de novo utiliza uma afirmação da testemunha para obter esclarecimento livre, perguntando de modo aberto: “ disse que ele conseguiu conseguiu-me acertar, mas não disse o quê...? A R disse ...o que é que o Sr,. J fez ao seu rosto, não conseguimos perceber ?“; A testemunha esclarece que o arguido “ lhe deu um estaladão com força do lado esquerdo e o olho ficou roxo ...mas depois pronto...depois essa situação acalmou (esclarecendo que com a intervenção da mãe que estava a descansar no quarto) mas depois sempre que havia alguma coisa ou que eu tentasse pegar em alguma coisa era sempre ofensas físicas(24)...chamava-me sempre de baleia, de gorda, trezentos quilos... e isso magoava-me muito... “. Nesta altura o MP confronta a testemunha com a versão dos factos apresentada pelo arguido e pela progenitora, de que foi a testemunha “ que cresceu para cima do arguido” e que este ao tentar acalmá-la, bateu-lhe com a mão na cara (mais uma vez transferindo para a RC o controlo da entrevista acerca do episódio relacionado por causa do ferro); a testemunha logo respondeu que o arguido “não a tentou acalmar”, quem o fez foi a sua progenitora(25) – FM – e foi ela que os foi tentar separar “ porque ele cresceu para cima de mim e começou a gritar cada vez mais alto...”. De novo a testemunha foi confrontada com o relato contraditório da mãe e perguntado porque razão isso sucedeu ? a testemunha respondeu “ não sei “ ). É de novo colocada à testemunha outra questão aberta: “ como é o relacionamento com a sua mãe ? “. A RC começa por explicar que ultimamente não tem falado muito com ela por razões técnicas do seu telemóvel e porque a mãe se lhe telefonar tem que pagar a chamada; mas que falando com ela pelo telefone fixo, “ que fala bem com ela”, “ que estão bem “. Ouvidas estas explicações, foi colocada de novo questão aberta à RC: “ se se lembra de mais algum episódio com o Sr. J em que a tenha agredido ou chamado nomes em concreto?“ A testemunha esclarece que o episódio descrito em 15) foi o único em que o arguido exerceu sobre ela violência física; após isso, só foi alvo de ofensas verbais por parte dele. Novamente, o MP coloca nova pergunta aberta repetindo os epítetos que a testemunha disse serem usados pelo arguido - trezentos quilos, baleia e gorda - perguntando-se se se recorda de mais algum episódio e que expressões ele lhe dizia ? A testemunha responde que “ esses nomes foram os que a marcaram mais...outros nomes era só de vez em quando”. Surge nova pergunta aberta: em que contexto o arguido lhe dizia estas coisas ? A testemunha explica. Perguntado quando é que começaram estes episódios, a RC responde que “começaram depois que o meu irmão nasceu “. Perguntado à testemunha se se lembrava de alguma situação ocorrida entre si e o arguido que tivesse a ver com ele querer ver o seu telemóvel, esta responde, que foi na situação descrita no nº 15) dos factos provados, na ocasião em que a deixou com o olho negro, porque, depois, o arguido quis ver o seu telemóvel porque ele jurava que ela tinha levado o telemóvel para o wc (deixando o ferro ligado) estando a enviar mensagens; mas isso não corresponde à verdade, porque o telemóvel estava no quarto dela em cima da secretária e ela foi buscá-lo e deu-lho e o arguido em vez de o ver, foi buscar um martelo e partiu-o todo. Questionada sobre se se recordava de o arguido a ter agredido mais alguma vez, por ter dito que o episódio descrito em 15), ou seja, quando a ofendida estava a passar a ferro a roupa enquanto tomava conta do irmão, foi o único em que foi alvo de agressões físicas por parte do arguido, a RC afirmou que foi nessa mesma ocasião em que o arguido cresceu para cima dela, deu-lhe murros com as mãos fechadas na zona da cabeça, em cima; só depois, lhe deu um estaladão na parte esquerda, que a deixou com um olho negro “. Assim, em face do depoimento produzido pela RC, no texto da decisão recorrida não há qualquer erro de contradição ou ocorreu errónea apreciação da prova; pelo contrário, a descrição dos factos provados e não provados vertida na sentença mostra-se conforme ao depoimento prestado por RC e sobre os esclarecimentos que lhe foram solicitados perante as versões diferentes dos factos apresentadas pelo arguido e pela progenitora da ofendida (também ela ofendida) que não foi contrariada pelo depoimento da professora e diretora de turma desde 2017 a 2020, MV (a cuja audição também procedemos) que com contactava com a aluna 8 horas por semana por lecionar à turma da R mais do que 1 disciplina; concretamente à pergunta sobre se alguma vez viu a R com alguma marca física? Respondeu que “nunca viu” mas notou que a R era triste, calada e muito reservada e por isso perguntava-lhe se estava tudo bem? o que é que se passava ?; porém a R respondia “ que estava tudo bem, nunca confessava...”; que a R nunca falava de nada sobre a sua vida; nunca explicou por que razão estava a viver com a avó; que a testemunha foi surpreendida com a alteração da morada da aluna; e também estranhou que o seu encarregado de educação fosse o tio; que o único desabafo que fez, ocorreu em 2020 dizendo que a polícia tinha sido chamada a casa dela; descreve a R como uma miúda triste, muito low profile, muito apaziguadora e ponderada; que apesar do seu excesso de peso nunca notou e, teria notado, se existissem conflitos entre a R e os colegas da turma por causa da sua aparência física, mas tal não sucedia, antes pelo contrário, até tinha amigos na turma. Confrontada a testemunha R sobre a afirmação da Professora MV, de que nunca lhe viu marcas de agressão, respondeu que na altura a viram com o olho negro os colegas da turma e a Professora e que esta perguntou-lhe “ o que se passa ? “, mas a R “afirmou que “ não lhe disse nada”, que não lhe respondeu porque não tinha confiança com ela e depois ficou com medo de falar” (24.39 a 24.58 ...então disse à Professora “que tinha sido uma confusão, um conflito que tinha tido, mas que depois passava“ ( 44.30) afirmando, a instâncias do advogado do arguido, que não esclareceu a Professora sobre quem era a outra parte com quem teve o conflito. O facto de a Professora ter dito que nunca viu marcas de agressão na ofendida R não significa que este facto relatado pela vítima, ( andou com o olho esquerdo “roxo”/”negro” durante quase duas semanas em consequência “do estaladão“ desferido pelo arguido no seu rosto) não tivesse ocorrido, em face da conduta apaziguadora da ofendida que desvalorizou o episódio ao ser interpelada pela Professora, desviando as atenções sobre si, e poderá explicar que a Professora não se lembrasse de lhe ter visto essa marca indiciadora de agressão. No entanto, o depoimento da Professora sobre o estado de alma da RC coincide com o típico de quem experimenta episódios de violência física e verbal exercida sobre si, quer presenciando a violência física e verbal exercida sobre a progenitora. Com base nos referidos depoimentos, mostram-se corretamente apreciados os factos descritos nos nºs 15), 16) e 17) dos factos provados, que não se mostram contraditórios com o facto não provado vertido no nº 5). Efetivamente, não foi em data não apurada de finais do ano de 2019, ocasião em que aproveitando a ausência de FM, que o arguido quis vasculhar o telemóvel da RC tendo-se gerado uma discussão entre ambos, mas antes nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 15) dos factos provados. Improcedem por isso, nesta parte, os argumentos do recorrente. Inexiste ainda o manifesto erro de apreciação de prova por ter o tribunal dado como provado no nº 32) que ” os factos imputados ao arguido ocorreram sempre no interior da habitação ...e muitas vezes, na presença dos menores R e muito em particular D “; ao contrário, essa conclusão extrai-se do depoimento das testemunhas RC e FM. Com efeito, da audição do depoimento, a testemunha RC, afirma que quando o arguido lhe “acertou com um estaladão no lado esquerdo da cara”, a testemunha tinha pegado no seu irmão D ao colo (06.46), de onde se infere, por consequência, que este menor presenciou a dita agressão sobre a irmã bem como os murros com a mão fechada na sua cabeça, em cima, antes “de lhe ter acertado o estaladão “ na parte esquerda da cara; quando relata os episódios descritos em 18) e 19), a R afirma ter visto o arguido por duas vezes, com as mãos à volta do pescoço da mãe (que, na primeira ocasião em que isso sucedeu, ela também tinha os braços negros), na sequência de ter ouvido gritos, sendo que na segunda ocasião em que foi acudir, ouviu a mãe dizer para o arguido parar. Mais afirmou a R que relativamente à sua mãe, o episódio “que mais a marcou” foi quando a testemunha estava no seu quarto com o irmão e ouviu gritos, que inicialmente não soube identificar se era a rir ou a pedir ajuda e foi à sala e... viu o arguido sobre a sua mãe, que tinha os braços todos negros e ele tinha as mãos no pescoço dela (18.47 a 20.15) e que o arguido saiu; descreveu ainda os factos descritos em 19) da matéria de facto provada. Por sua vez a testemunha FM, progenitora da RC, ao ser confrontada pelo tribunal sobre os factos da acusação, respondeu que “ algumas coisas são verdade, sim “; confirmou as agressões físicas de que foi alvo por parte do arguido (para além das injúrias que o arguido lhe dirigia : “gorda”, “porca“, “não vales nada”, que “ não valia nada na cama” e que a testemunha retribuía, dizendo-lhe que ele também “ não prestava”, “ que era um cabrão” e que “a continuar assim não dava”; que estas agressões verbais aconteceram na mesma época (02/06/2020), por duas ou três vezes, ou seja, uns dias antes), afirmando que algumas vezes, o arguido a agarrava nos braços, que lhe dava apertões, que agarrou-a na zona do pescoço, que houve um estalo ou outro de ambas as partes e empurrões; que “agressão” só ocorreu da última vez quando foi apresentar queixa; admitiu que o arguido chamou “baleia” e “porca” à R, que lhe chamava à atenção para o físico dela e que qualquer dia ela seria mulher; mais afirmou que o arguido nunca bateu à sua filha; que no episódio do ferro, a R avançou para cima dele e o arguido, para se defender, pôs a mão a frente e encostou a mão à cara da R e que esta ficou marcada na cara. Este último facto afirmado pela testemunha F, contraria as regras da lógica da vida e da experiência comum, não se mostrando verosímil que uma pessoa ao “encostar“ a mão na cara de outra, para se defender, a deixe marcada ( recorde-se que segundo a RC, em consequência do estaladão que o arguido lhe “acertou” na parte esquerda do rosto deixou-a com o olho esquerdo roxo durante cerca de duas semanas ); ou seja, apesar de a testemunha F ter querido contrariar o depoimento da filha, acabou por fazer afirmações que, em pequenos detalhes, acabam por conferir credibilidade ao depoimento de RC. Mostra-se assim correta, a afirmação contida no nº 32) dos factos provados por corresponder àquilo que foi afirmado pelas referidas testemunhas. A única contradição que se encontra na decisão recorrida, por manifesto lapso, consta do n0 16) da matéria de facto provada quando aí se descreve que a R sofreu hematomas...designadamente no olho direito em vez de se ter dito «olho esquerdo» mas a correção deste lapso não importa modificação essencial quer quanto à decisão proferida quer no que concerne à fundamentação, nos termos do art. 380º nº 1 b) parte final do CPP. Quanto às contradições entre os depoimentos prestados pelas ofendidas R e F, foi a testemunha F confrontada com o depoimento que prestou no inquérito, respondendo “ que exagerou um bocado”, que só queria que ele (arguido) parasse com as discussões e com o mau ambiente e que o processo “ficava por aí “; afirmou que a R lhe dizia que não gostava dele; mais afirmou que mentiu quando prestou depoimento na fase do inquérito. Em face destas afirmações produzidas pela testemunha foi requerido pelo MP que fosse extraída certidão deste depoimento na fase do inquérito, da acusação e do depoimento prestado em julgamento, para ser remetido ao DIAP para investigação, o que foi deferido pela Sra. Juiz. Entendemos que um depoimento desta natureza, em que a testemunha contradiz os próprios depoimentos em momentos processuais distintos, afigura-se menos credível do que o prestado pela sua filha RC, e mais interessado na ilibação do arguido por ter afirmado que no momento estavam reconciliados, a residir juntos e se davam bem ( note-se que a ofendida R nesta ocasião já se encontrava a residir em casa da avó materna ). Quanto ao mais declarado por esta testemunha, do registo áudio constata-se que corresponde totalmente ao que foi vertido pela Sra. Juiz a quo na motivação da decisão de facto, considerando-se correta a avaliação da prova e os factos julgados como provados. No que respeita ao depoimento da testemunha DL, agente da PSP que se deslocou ao local dos factos, sobre as memórias da ocorrência do dia 02/06/2020 foi por este afirmado que o arguido e a testemunha FM lhe pareceram ambos embriagados, mas não tinha a certeza porque logo na altura não o pode comprovar, não se recordando qual foi o facto de onde retirou tal conclusão, nomeadamente se sentiu cheiro a álcool ou outro; ao ser interpelado sobre se a vítima F apresentava sinais de agressão ou alguma coisa visível o Sr. Agente da PSP afirmou “que fosse visível, não “, caso contrário teria que ser acionada uma equipa especializada para serem captadas fotografias sobre as referidas marcas, o que não sucedeu, esclarecendo que “o facto de naquele momento não serem visíveis marcas, não significava que posteriormente não pudessem aparecer hematomas” e que de qualquer forma a vítima F foi notificada para se apresentar no Instituto de Medicina Legal; a testemunha revelou ainda não se recordar da maioria dos factos relacionados com a sua ida ao local não lhe sendo possível responder às questões colocadas pelo MP e pela defesa do arguido, consultando o auto de ocorrência, dele constando identificadas mais vítimas que na altura deveriam estar dentro de casa e que não viu – R e D - mas nada mais adiantou. Este depoimento em nada contraria o depoimento prestado pela vítima RC, ou os factos descritos como provados na sentença recorrida; de tal depoimento também não é possível retirar a conclusão pretendida pelo recorrente, de que aqueles factos não poderiam ter sido dados como provados. Por último, do depoimento produzido pela testemunha JF, que apesar de ter afirmado que nunca viu o arguido a bater em alguém, extrai-se a personalidade conflituosa do arguido e a relação conturbada com FM, pautada por discussões, sendo que assistiu/ouviu uma delas que ocorreu em Junho ou Julho de 2020 no terraço dividido apenas por um muro entre as duas habitações – da testemunha e da residência do arguido - (tendo uma concreta discussão pelo facto de o arguido ter perguntado à F “ se a filha já fode” ), noutras onde ouvia gritos (e a F a dizer ao arguido “ sai daqui”, “ sai daqui” ou “sai da minha vida”), injúrias de parte a parte ( embora não se recorde das concretas injúrias) e som de garrafas a bater no chão e a partir; ouviu também a F a gritar e a pedir ajuda e que a testemunha chamou a polícia; ouviu a vizinha a dizer diversas vezes “não me batas” e o arguido a responder “estás parva, não te estou a bater “; que gritos e vozes alteradas foram também audíveis pelos vizinhos do último andar; mais descreveu os factos descritos em 27), esclarecendo que o arguido dava pontapés ao estore e que supôs que estivesse alcoolizado dado o descrito comportamento do arguido, tendo em conta saber que tinha dentro de casa o filho menor D. Mais disse que por três vezes chamou a polícia; noutra ocasião chegou a ouvir correr dentro de casa de um lado para o outro, a R a gritar e a mãe desta também a gritar, e ouviu bater portas; referiu ainda que as discussões ocorriam mais vezes à noite e aos fins-de-semana. Em suma, dos depoimentos das referidas testemunhas (F, DL e JF ) a cuja audição se procedeu, não é possível extrair o efeito pretendido pelo arguido, dando como não provados parte dos factos que o tribunal deu como assentes na matéria de facto provada. Cumpre salientar ainda a prova testemunhal é o campo de eleição do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP, sendo as declarações da testemunha apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente para as colher. No que se refere às declarações do arguido sobre os factos que lhe são imputados, às que acerca deles prestar e às que incidem sobre os seus antecedentes criminais, há que considerar em concreto o comportamento deste sujeito processual; se o arguido negar os factos que lhe são imputados ou se confessar de forma parcial ou com reservas tais factos, vale por inteiro o princípio da livre apreciação da prova(26). Como ensina G. Marques da Silva(27), a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão. Ensina ainda o Prof. Figueiredo Dias(28) que a liberdade de apreciação da prova é no fundo uma liberdade de acordo com um dever, o dever de perseguir a verdade material, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos capaz de se impor aos outros e suscetível de motivação e de controlo. Uma tal convicção quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (note-se que decorre do art. 32º nº 2 da CRP, que a dúvida inultrapassável sobre a verificação de qualquer facto relevante para a decisão, deve ser decidida a favor do arguido). Sempre se dirá que como refere no Ac. da R.C. de 03/06/2015(29) “ I– Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. II - Quando a prova pessoal produzida aponta em dois sentidos ou direções completamente distintas, o tribunal deve recorrer às regras de experiência e apreciar a prova de forma objetiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos constante da acusação e a não dar credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, permitindo aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador “, o que ocorre no caso destes autos. Concluindo, dos depoimentos acima referidos não resulta que o tribunal recorrido tenha dado como provados factos que não se podem retirar de modo concludente dos depoimentos prestados em audiência de julgamento nem que tenha dado como provados factos que entendeu terem acontecido em número e diversidade que os depoimentos das testemunhas contrariam ou que se tenha abstido de procurar a verdade material, ignorando e desvalorizando depoimentos de testemunhas presenciais que contrariavam os depoimentos e a construção da vítima. Pelo contrário, na inquirição das testemunhas o tribunal procurou alcançar a verdade material, pedindo diversos esclarecimentos, confrontando as testemunhas com o depoimento de outras e/ou com o depoimento prestado pela testemunha F na fase processual do inquérito para avaliar as razões das discrepâncias, a credibilidade dos depoimentos e o apuramento dos factos necessários ao preenchimento dos elementos constitutivos dos tipos de crime imputados ao arguido. Improcede por isso, o recurso do arguido na parte em que impugna a matéria de facto julgada como provada e não provada pelo tribunal. *** 5.– Da violação das regras da imediação da prova No entender do arguido o tribunal violou as regras da imediação da prova ao aceitar que a ofendida RC prestasse depoimento, como diz, via WhatsApp, através de ligação telefónica. A imediação está relacionada com a concentração espacial, o que significa que os sujeitos processuais oferecem as suas provas e elas são produzidas diante do tribunal, em contacto direto e imediato com o juiz; e tem que ver com o valor da espontaneidade na produção da prova, sobretudo porque na maior parte das vezes, a prova testemunhal é a mais importante e acaba por ser decisiva para o desfecho do processo. Todas as demais provas, tenham o suporte que tiverem ( fotografias, filmagens, escutas telefónicas, reconhecimentos presenciais, etc ), pela sua natureza, estão sujeitas a critérios muito apertados, quanto aos meios de obtenção, pelo que correm o risco de não serem lícitas, logo inadmissíveis. Por isso é que a prova testemunhal, documental e pericial acabam por ser as mais utilizadas, com realce para a prova testemunhal. Daí que seja muito importante que a declaração da testemunha seja espontânea e prestada o mais próximo possível do juiz, para que este possa mais facilmente avaliar a própria veracidade do depoimento(30). É consabido que a aplicação whatsapp permite que os respetivos usuários interajam instantaneamente não somente por áudio, como na função ligar, mas também por vídeo. No caso dos autos, conforme consta da audição do depoimento não presencial prestado pela vítima RC, através da plataforma whatsapp e com recurso a um computador que a mesma tinha no seu quarto ( local do depoimento ), o tribunal pode ouvir e visualizar a testemunha em tempo real, pedindo-lhe antes de iniciar o depoimento, que baixasse a tampa do computador, para verificar se estava mais alguém na companhia dela, dentro do quarto e que pudesse orientar o relato da testemunha, determinação que a RC cumpriu, dizendo porém que, pela sua parte, não conseguia ver o tribunal; tendo-se por certo que em qualquer comunicação verbal os sinais não verbais são 12 a 13 vezes mais impactantes do que as palavras, que valem apenas 7%, o comportamento vocal 38% e os sinais não verbais 55%(31), com o recurso ao meio tecnológico utilizado, pôde o tribunal ouvir e visualizar a testemunha durante o depoimento e observar a mímica, as micro expressões, os gestos, as hesitações, as pausas e outras manifestações da linguagem corporal, avaliar as congruências ou eventuais incongruências para formular um juízo sobre a veracidade e credibilidade deste depoimento em conjugação com a demais prova produzida. No nosso ordenamento jurídico vem prevista a possibilidade de prestação de depoimentos por meio adequado de comunicação em simultâneo com a audiência de julgamento com recurso a equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real. No CPP, o art. 3810 n0 1 dispõe que “Excecionalmente, a tomada de declarações (..) às testemunhas (..) pode, oficiosamente ou a requerimento, não ser prestada presencialmente, podendo ser solicitada ao juiz de outro tribunal ou juízo, por meio adequado de comunicação, nos termos do art. 1110“, nas hipóteses referidas nas suas alíneas a) a c). Diz-se no seu n0 5 que “ A tomada de declarações realiza-se em simultâneo com a audiência de julgamento, com recurso a meios de telecomunicação em tempo real “. Tal possibilidade também vem prevista no Estatuto da Vítima – cfr. arts. 150 n0 2(32) 210 n0 1 c)(33) da Lei n0 130/2015 de 04 de Setembro - aplicável subsidiariamente às vítimas de violência doméstica em tudo o que não estiver especificamente previsto na Lei n0 112/2009 de 16/09 – cfr. art. 670-A n0 4 do CPP. Repare-se que, no caso concreto, a testemunha RC beneficia da presunção inilidível de vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto no art. 670-A n0 3, inserindo-se o crime de violência doméstica imputado ao arguido contra ela perpetrado, no conceito de criminalidade violenta previsto no art. 10 j) do CPP. O art. 670-A no 1 alínea b) define o conceito de vítima especialmente vulnerável: a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade(34),...bem como do facto de o tipo, grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico (...); definição idêntica encontra-se plasmada no art. 2º a) da Lei nº 112/2009 de 16/09 ( RJVD ). E entre as medidas especiais de proteção elencadas no art. 21º nº 1 do Estatuto da Vítima, figura o previsto na alínea c): “ Medidas para evitar o contacto visual entre as vítimas e os arguidos, nomeadamente durante a prestação de depoimento, através do recurso a meios tecnológicos adequados “. Por outro lado, a Lei nº 112/2009 de 16/09 ( RJVD ) estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e à assistência das suas vítimas – cfr. art. 1º. Entre as medidas de proteção à vítima elencadas no seu art. 20º figuram as previstas nos seus nºs 2 e 3: “ 2- O contacto entre vítimas e arguidos em todos os locais que impliquem a presença em diligências conjuntas, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras processuais estabelecidas no Código de Processo Penal . 3-Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública “. A mesma medida de proteção vem ainda prevista na Lei nº 93/99 de 14/07 que, no seu art. 10 n0 1 dispõe: “ A presente lei regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo “. No n0 3 prescreve-se que “ São também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n0 1 “. O art. 20 n0 1 define o conceito de testemunha: “ Para os efeitos da presente lei considera-se: a) Testemunha: qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, perceção ou apreciação de factos que constituam objeto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem, nos termos dos n0s 1 e 2 do artigo anterior; “. E as medidas de proteção vêm previstas nos arts. 40, 50 e 70 da referida Lei, nomeadamente a inquirição com recurso a meios tecnológicos, teleconferência, e com ocultação de imagem ou com distorção da voz, ou ambas; contudo, no caso concreto, não é o regime desta Lei n0 93/99 de 14/07 de proteção de testemunhas, o aplicável, mas o regime especial dos crimes de violência doméstica acima referido ( Lei n0 112/2009 de 16/09 ) e o previsto na Lei n0 130/2015 de 15/10, tendo-se em consideração o que se encontra prescrito no art. 670-A do CPP. De modo que o tribunal recorrido ao ter decidido pela inquirição da testemunha RC por meio tecnológico adequado e em tempo real, no caso, por meio da aplicação whatsapp, conforme consta da Ata de Audiência de julgamento de 06/04/2021, não só não violou o(s) princípio(s)( da oralidade e ) da imediação, como deu ainda cumprimento ao determinado nas Leis nºs 130/2015 de 15/10 e 112/2009 de 16/09 por remissão do disposto no nº 4 do art. 67º-A do CPP. Por último e a propósito, decidiu-se no Ac. da R.G. de 28/02/2019, no proc. n0 2281/17.1T8VRL.G1, que consideramos aplicável com as necessárias adaptações, “O recurso a outros meios tecnológicos fiáveis, designadamente por Skype, não afeta os direitos das partes que continuam a poder formular a instância perante a testemunha e a deduzir todos os incidentes que entendam pertinentes para a defesa dos seus interesses “ . Improcede, por isso, também nesta parte, o recurso interposto pelo arguido. *** 6.–Da insuficiência da matéria de facto provada para o preenchimento do(s) tipo(s) legal(ais) Entende o arguido que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para o preenchimento do tipo legal ( leia-se, dos tipos legais, pois o arguido vem acusado da prática de dois(35) crimes de violência doméstica perpetrados sobre a vítima RC e sobre a vítima FM, progenitora daquela ), porque em seu entender, “...da prova produzida não resultam factos que permitam a condenação do arguido por (crimes) de violência doméstica, por ser manifestamente pouco intensa essa factualidade para que encontre tutela à luz do conceito de violência doméstica...o fraco desvalor dos episódios relatados pela acusação...” (sic). Todavia, carece de razão o arguido, como se passará a demonstrar. A resposta a esta questão resolve-se a partir do teor literal do texto art. 1520 do Cód. Penal e do bem jurídico protegido pelo referido tipo legal: complexo, pluriofensivo, que abrange a saúde a título principal e, reflexamente, uma especial relação de confiança, a convivência familiar, para-familiar ou doméstica, uma confiança relacional posta em perigo ou efetivamente lesada com a prática da conduta típica. Do crime de violência doméstica perpetrado contra FM, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 b), ( e já não também pela alínea c), como se lhe imputa na sentença recorrida, que se aplica apenas às situações em que não existe coabitação entre o infrator e a vítima, mas há um filho comum(36) ), 2 a), 4 e 5 do Cód. Penal: Incorre na prática do referido tipo de crime “ 1– Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, (...): b) A pessoa de outro sexo...com quem o agente mantenha...uma relação análoga à dos cônjuges....é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2– No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto...no domicílio comum...é punido com pena de prisão de dois a cinco anos “ – cfr. art. 1520 do CP. Do crime de violência doméstica perpetrado contra RC p. e p. pelo art. 152º nº 1 d) e nº 2 a), 4, 5 e 6 do Cód. Penal: “1– Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, (...): d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade(37), ...., que com ele coabite, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2– No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum...é punido com pena de prisão de dois a cinco anos “ – cfr. art. 152º do CP. *** Os «maus tratos físicos», correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples, ou seja o uso da força física sobre a vítima, com o objetivo de ferir/causa dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes e engloba atos como empurrar(38), puxar o cabelo, dar estaladas(39), murros(40), pontapés, apertar os braços com força(41), apertar o pescoço(42), bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, em qualquer parte do corpo, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, etc., tudo ações que integram outra tutela também prevista no Código Penal enquanto bem jurídico isolado como é o caso do crime de ofensa à integridade física(43). Entende-se por « maus tratos psíquicos» as condutas integradoras de crimes de (ameaça simples ou agravada, coação simples, difamação e) injúrias, traduzindo-se condutas que visem desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos, criticar negativamente as suas ações, ou atributos físicos ( ex. apelidar a vítima R de “baleia”, “gorda”, “trezentos quilos”, “porca”, afirmar “ és um cócó”, ou “ não vales nada “ ou apelidar a vítima FM de “estúpida”, “parva” , “ como mãe não prestava” – cfr. nºs 9) e 10) dos factos provados ); destruir objetos com valor afetivo para ela (por ex., partir o telemóvel todo da vítima com um martelo, que não consta dos factos provados), acusá-la de ter amantes (afirmar à vítima F que ela “dormia com o chefe “ – facto nº 9), perpetrar condutas de intimidação como por ex., o agressor, por hábito, encostar a sua testa junto à cabeça da vítima F ( facto nº 12 ) entre outras estratégias e comportamentos(44). No caso destes autos, resultou provado que o arguido usou de violência física e psicológica para com as duas vítimas (RC e FM), mas, ainda que só tivessem resultado como provados os factos descritos nos nºs 9) e 10) – violência psicológica/maus tratos psíquicos - pois o arguido nega as agressões físicas sobre as duas identificadas vítimas e considera que ” há insuficiência da matéria de facto provada e que é fraco o desvalor dos episódios relatados na acusação...que permitam a condenação do arguido por violência doméstica ”, ainda assim, a conduta aí descrita (nºs 9 e 10) na vertente de «maus tratos psíquicos» é integradora dos tipos de crime que lhe vêm imputados pois é o que resulta expressamente do corpo do nº 1 do art. 152º do Cód. Penal. Conforme ensina Maria Elisabete Ferreira(45), “ Da Proposta de Lei nº 109/X, que esteve na base da reforma de 2007 do Cód. Penal, da qual resultou no essencial a atual letra da lei do artigo 152º, constava a referência à criminalização, em alternativa, dos maus tratos reiterados ou intensos, mas tal expressão não vingou na redação da Lei nº 59/2007. (...). Resultava assim da Proposta que os maus tratos não reiterados só teriam cabimento na incriminação do art. 152º, caso preenchessem o pressuposto da intensidade, mas esta não foi a redação final que vingou. (...) consideramos que a interpretação literal que pugna pela inexigibilidade da intensidade da ofensa, que subscrevemos, salvaguarda de forma mais adequada a tutela do princípio da legalidade penal (...) “ – sublinhado e negrito nossos. (...) Mais acrescenta a referida Autora, “ É indubitável que, pelo menos do ponto de vista formal, as condutas típicas ínsitas na previsão do art. 152º do Código Penal são os maus tratos físicos e psíquicos, incluindo castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais, comportamentos que, à partida, pressupõem reiteração. Quando estas ações ou omissões não forem reiteradas, entendemos que o que ditará o seu enquadramento no art. 152º, com o consequente afastamento dos tipos legais simples respetivos, será não apenas a gravidade intrínseca da conduta praticada, e bem assim, o resultado produzido, na perspetiva das consequências materiais para a saúde da vítima, mas também o juízo que, em concreto, se venha a fazer, sobre se aquela conduta se traduziu, ou não, na colocação em causa da pacífica convivência familiar ou doméstica. Defendemos, por isso, que o bem jurídico protegido pelo art. 152º é um bem jurídico complexo que tutela, ainda que de forma reflexa ou secundária, esta dimensão relacional característica de uma relação de convivência, ainda digna de tutela após a cessação desta relação particular de proximidade existencial. Uma conduta isolada, que até nem assuma especial intensidade do ponto de vista matéria da saúde da vítima, pode comprometer a pacífica convivência familiar ou doméstica, pode corromper toda a relação de confiança pré-existente e, logo, ser enquadrável no art. 152º. (...) se o legislador decidiu punir as violências exercidas no âmbito familiar e similares, (...) de forma mais grave, o que nos leva a concluir que o bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao art. 152º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica “. Por essa razão, uma conduta materialmente não grave, como por exemplo uma simples bofetada, poderá afrontar o bem jurídico protegido, porque poderá abalar as bases de confiança em que se funda aquela relação familiar ou a convivência doméstica, mas também porque uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico(46) (considere-se por exemplo um soco desferido pelo espectador de um jogo de futebol, que se desentende com um adepto da equipa contrária ); no exemplo do jogo de futebol, os adeptos seguirão o seu caminho e com alguma sorte nunca mais se cruzarão; o mesmo soco desferido em contexto familiar ou doméstico já semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo(47) – negrito e sublinhado nossos. Considera a referida Autora que uma ofensa simples atento o contexto em que foi praticada, pode pôr em causa esta pacífica convivência, abalar irremediavelmente a confiança da vítima no seu agressor e tal dimensão não encontra proteção em outro tipo legal, à exceção do art. 152º do Código Penal(48). Concorrem para esta conceção do bem jurídico ( pluriofensivo ) protegido, a natureza pública do crime de violência doméstica, o agravamento da incriminação quando o crime é praticado no domicílio comum, a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica(49). No mesmo sentido, cfr. Susana Figueiredo(50) sobre a tese de Maria Elisabete Ferreira quanto à interpretação do texto do art. 152º que se acabou de expor diz que “ ...a nosso ver, constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do art. 9º do C.C., do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal “. Em face do que ficou dito, ao contrário do afirmado pelo arguido, a medida da pena em face da concreta factualidade, integradora dos crimes imputados ao arguido, não se mostra excessiva. Improcede por isso, na totalidade, o recurso interposto pelo arguido. *** III–DISPOSITIVO Pelo exposto, o Tribunal da Relação de Lisboa, decide: A)-Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida, com a correção da qualificação jurídica da conduta do arguido perpetrada sobre FM, nos termos que acima ficaram expostos; B)-Nos termos do disposto no art. 380º nº 1 b) do CPP, corrigir o lapso de escrita contido no facto provado nº 16), que deverá passar a ler-se: “ Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, R sentiu dor em toda a zona da cabeça durante vários dias e sofreu hematomas, designadamente no olho esquerdo, mas não recebeu assistência médica, apesar de tomar analgésicos para as dores durante vários dias “; C)-Condenar o recorrente no pagamento das custas, fixando-se em 5 ( cinco ) UC a taxa de justiça – cfr. art. 513º nº 1 do Cód. De Processo Penal. *** (Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º nº 2 do CPP) Lisboa, 28 de Outubro de 2021 (Lígia Maria da Nova Araújo Sá Trovão) (Maria Margarida de Andrade Vieira de Almeida) 1Cfr. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, pág. 1144. 2Cfr. AC. do STJ de 25/03/2010, no proc. nº 427/08.0T13ST13.E1.S1, in www.dgsi.pt 3Apud, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, no Código de Processo Penal, com Notas e Comentários, Coimbra Editora, pág. 1038. 4Cfr. proc. nº 427/08.0T13ST13.E1.S1, acessível in www.dgsi.pt 5Cfr. Francisco da Mota Ribeiro, Vícios das sentenças e vícios do julgamento, CEJ, Novembro de 2019, págs. 38 e 39. 6Cfr. Ac. do STJ de 19/11/2008, no proc. nº 3453/08-3, Apud, Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª Edição, pág. 76. 7Cfr. Acs. do STJ de 12/03/2009 no proc. nº 3173/08-5 e de 19/03/2009 no proc. nº 164/09-5, Apud, Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª Edição, pág. 76. 8Cfr. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª Edição, pág. 75. 9Cfr. P. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal...4ª edição atualizada, pág. 1081. 10Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques in ob. cit. pág. 78. 11Cfr. proc. nº 327/96, Apud, Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª Edição, pág. 79. 12Cfr. proc. nº 48731, Apud, Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª Edição, pág. 79. 13Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos in ob. cit. pág. 78 14Cfr. Ac. da R.C. de 13/05/2020, proc. nº 9/19.0GBMDA.C1, www.dgsi.pt 15Cfr. ainda, Pereira Madeira in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição Revista, págs.1274 e 1275. 16Cfr. Francisco da Mota Ribeiro, in ob cit. págs. 49 e 50 e ainda Ac. do STJ de 06/04/1994, publicado na CJ, Acs. do STJ, II, Tomo 2, pág. 186. 17Cfr ob. cit. pág. 81. 18Cfr. proc. nº 101/16.3GDGMR. G1, acessível in www.dgsi.pt 19Cfr. proc. nº 771/15.0PAMGR.C1, acessível in www.dgsi.pt 20Cfr. proc. nº 26/16.2GESRT.C1, acessível in www.dgsi.pt 21Cfr. Ac. da R.E. de 27/03/2012 no proc. nº 49/08.5GCFAR.E1, acessível in www.dgsi.pt 22São aquelas que sugerem uma determinada resposta ou detalhes não mencionados pela testemunha. 23Comportamentos violentos, de carácter físico e/ou psicológico praticados intencionalmente e em geral repetidos, perpetrados por um ou mais estudantes contra outro(s) estudante(s), intimidando e controlando a vítima – cfr. Teresa Magalhães, in Violência e Abuso, Estado da Arte, pág. 58. 24testemunha identifica mal o que sejam agressões “físicas”, referindo-se apenas às verbais, sendo mais adiante esclarecida sobre o significado de agressões “físicas “. 25Que se encontrava no quarto a descansar. 26Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2ª edição, págs. 176 a 178. 27Cfr. Curso de Processo Penal, II, pág. 126. 28Cfr. Direito Processual Penal, Primeiro volume, págs. 198 a 207. 29Cfr. proc. nº 12/14.7GBSRT.C1, acessível in www.dgsi.pt 30Cfr. Direito Processual Penal ( Roteiro de aulas ), Mário Ferreira Monte e Flávia Noversa Loureiro, Associação de Estudantes da Universidade do Minho, págs. 175 e 176. 31Cfr. António Sacavém in “Curso Avançado de Entrevista Forense, Entrevista Forense I: análise de microexpressões e da linguagem corporal em entrevista “, 2020. 32 “ O contacto entre vítimas e ... os suspeitos ou arguidos em todos os locais que impliquem a presença de uns e de outros no âmbito da realização de diligências processuais, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras estabelecidas no Código de Processo Penal “. 33Epigrafado “Direitos das vítimas especialmente vulneráveis “, “ 21º nº 2 c) “ Medidas para evitar o contacto visual entre as vítimas e os arguidos, nomeadamente durante a prestação de depoimento, através do recurso a meios tecnológicos adequados “; 34Na altura da prática dos factos esta ofendida ainda era menor de idade. 35Pese embora o facto descrito no art. 32º da matéria de facto provada, abstratamente considerado, preencha o elemento objetivo de um crime de violência doméstica perpetrado também contra este menor, p. e p. pelo art. 152º nº nºs 1 d) e 2 a) do Cód. Penal na redação que se encontrava em vigor na data da sua prática, na modalidade de inflição de maus tratos psíquicos, sendo tal conduta passível de afetar o seu bem-estar físico e emocional, integrando esta vítima invisível e silenciosa, o conceito de vítima especialmente vulnerável previsto no art. 67º-A nº 1 b) e d) do C.P.P.; porém, este terceiro crime não foi pelo MP imputado ao arguido na acusação pública ( onde não se descrevem os factos integradores do tipo subjetivo ), encontrando-se o tribunal tematicamente vinculado ao objeto da acusação – cfr. arts. 283º nº 3, 311º, 358º e 359º do CPP. 36Cfr. P. Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal...”, 3ª edição atualizada, pág. 591. 37O art. 122º do Cód. Civil estipula que “ É menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade “; o art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe que “ Nos termos da presente Convenção, Criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo “; o art. 672-A nº 1 d) do C.P.P. define criança ou jovem, a pessoa singular com idade inferior a 18 anos “. 38Depoimento da vítima F. 39Conforme afirmou a vítima R. 40Conforme depoimento da R sobre os murros desferidos elo arguido com a mão fechada, sobre a sua cabeça, antes de lhe “acertar com um estaladão...que a deixou com um olho roxo” 41Tal como foi referido pela vítima F no seu depoimento. 42Depoimentos coincidentes das vítimas R e F sobre estes atos praticados pelo arguido sobre a F. 43Cfr. Ac. R.L. de 10/02/2020, no proc. nº 689/19.7PCRGR.L1-3, acessível in www.dgsi.pt 44Cfr. Violência Doméstica, Implicações Sociológicas, Psicológicas e Jurídicas do Fenómeno, 2ª edição, CEJ, Dezembro de 2020, págs. 40 e 41. 45Cfr. Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica, Julgar online, maio de 2017, págs. 4 a 7. 46De forma que e no que respeita às injúrias proferidas pelo agente em contexto familiar, no domicílio comum, dirigidas à companheira e à filha menor desta – condutas estas já tuteladas pelo tipo penal de injúria do art. 181º do CP – encerram a dita danosidade social distinta das injurias proferidas entre vizinhos, ou entre pessoas que compõem uma fila num supermercado, precisamente por violarem o bem jurídico protegido pelo art. 152º por ser distinto daquele tutelado pelo art. 181º do Código Penal. Por isso, e apenas nesta parte, perfilhamos do decidido no Ac. da RL de 05/07/2016, quando diz que “ No conceito de maus tratos psíquicos está contemplado um leque variado de condutas, que podem manifestar-se mediante humilhações, provocações, ameaças, tanto de natureza física ou verbal, insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, etc “ – sublinhado e negrito nossos. 47Cfr. Julgar online, maio de 2017, págs. 9 e 10. 48Cfr. Maria Elisabete Ferreira, Julgar online, maio de 2017, págs. 4 a 14. 49Citação da Autora na mesma obra. 50Cfr. Violência Doméstica, Implicações Sociológicas, Psicológicas e Jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar, 2ª edição, dezembro 2020, pág. 110. |