Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25/14.9SULSB.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: ROUBO
OMISSÃO DE AUXÍLIO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: 1-Para apreciação da unidade ou pluralidade de resoluções releva conexão temporal em que os actos foram produzidos, a forma como o foram e o fim visado e obtido pelo agente.
2-O perigo para a vida previsto no artº 410º/2, do CP, advém dos meios usados para produzir o roubo. Tal perigo é necessariamente doloso. Mesmo na hipótese em que o perigo advenha de ofensa à integridade física grave (subsumível à previsão do artº 144º/d), do CP) se exige dolo quanto ao perigo para a vida.
3-A previsão do tipo agravado configura uma norma especial, cuja aplicação derroga a aplicação das normas gerais, designadamente do regime do concurso efectivo de crimes.
4-O tipo da omissão de auxílio consagra um dever jurídico de solidariedade social, que se move num campo limitado pelo puro dever moral e pela situação de garante - determinante da verificação da comissão por omissão, nos termos do artº 10º/CP.
5-Tem por limite a comissão de crime por omissão e, por maioria de razão, a comissão por acção – que ocorre sempre que o resultado visado ou o meio utilizado pelo agente implique um maior grau de violação dos bens jurídicos tutelados relativamente àquele que a norma tutela. Significa que, resultando o perigo da realização, pelo agente, de um tipo não omissivo, que vise ou utilize uma lesão dolosa do bem jurídico vida não ocorre concurso de crimes porque, eles se encontram em situação de exclusão.
6-Uma navalha com 10 cm de lâmina não integra a prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º-d), da Lei 5/2006.
7-Contudo, estando em causa a comissão de crime previsto no Código Penal, aplica-se-lhe o regime do artº 4º do DL 48/95, 15/03 que não se mostra revogado pela entrada em vigor da referida Lei.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:


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I – Relatório:


Em processo comum, com intervenção do Tribunal colectivo, o arguido O.M.C., filho de C.C.  e de V.A., nascido na Roménia, a ……., solteiro, agricultor, actualmente desempregado, titular do Bilhete de Identidade nº ………, emitido pela República da Roménia, residente, antes de preso preventivamente, na Rua …………… Torres Vedras foi condenado:

a) Como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 131º/1, 132º/2- e) e 23º, do CP, na pena de sete anos e seis meses de prisão;
b) Como autor material de um crime de roubo, p. e p. pelo artº 210º/1, do CP, na pena de dois anos de prisão;
c) Como autor material de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artº 200º/2, do CP, na pena de dez meses de prisão;
d) Como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º-d), da Lei 5/2006, na pena de quatro meses de prisão;
e) Em cúmulo jurídico, na pena única de oito anos e seis meses de prisão;
 f) A pagar ao Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. indemnização cível, no valor de onze mil e dezasseis euros e noventa e sete cêntimos, acrescido de juros à taxa legal, vencidos desde a notificação do demandado até integral pagamento;
g) A pagar ao demandante J.M.P.F., a indemnização cível global de sessenta mil e cem euros (sendo sessenta mil euros por danos não patrimoniais e cem euros por despesas de transporte), acrescida do valor que venha a ser liquidado, em execução de sentença, relativo a lucros cessantes relativos à perda de ganho que decorra da IPP que lhe venha a ser fixada e às despesas de transporte que o demandante venha a suportar, no futuro, relativas a deslocações a consultas e tratamentos decorrentes das lesões de que sofreu, descritas nos autos.

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O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:

«I. Resulta documentalmente demonstrado nos autos, que efectivamente foi o arguido que surgiu no local cerca de uma hora depois dos factos e voluntariamente se dirigiu e abordou as autoridades que se encontravam no local, como resulta do auto de visionamento de fls. 160.

II. O arguido não só se entregou voluntariamente, como também colaborou com as autoridades policiais e judiciais para a descoberta da verdade.

III. Do teor de fls. 99 dos autos também resulta objectiva e visivelmente demonstrado que a navalha que o arguido utilizou mede 7,5 cm de lâmina.

IV. O arguido afirma uma versão contraditória em relação à versão do ofendido em julgamento, na qual o ofendido reage ao roubo, tentando retirar a navalha ao arguido e da luta resultante pelo controlo dessa navalha é que advêm os ferimentos infligidos ao ofendido, nomeadamente a ferida no pescoço, com perfuração da traqueia.

V. As lesões descritas no ponto n.° 24 da matéria de facto provada, nomeadamente as lesões descritas nas mãos do ofendido, são perfeitamente consonantes com a descrição efectuada pelo arguido, conferindo-lhe credibilidade.

VI. Principalmente, se atendermos à confissão efectuada no demais e à colaboração do arguido.

VII. Para além de serem também consonantes com a descrição inicial do ofendido, que referiu que deixou de “reagir” depois de ter sido esfaqueado no pescoço (fls. 147).

VIII. As regras da experiência também conferem credibilidade e verosimilhança à versão dos factos apresentada pelo arguido.

IX. Não havendo qualquer outro meio directo de prova para além das versões contraditórias do ofendido-demandante e do arguido.

X. E sendo a versão do arguido plausível face aos demais elementos constantes do processo.

XI. Tais elementos de prova, conjuntamente com a aplicação do princípio in dubio pro reo impunha decisão diferente quanto aos referidos factos n.° 5 e n.° 6, bem como quanto aos factos n.° 27 e n.° 28.

XII. Entende o recorrente que a sua actuação não preenche os elementos típicos da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido no art. 131.° n.° 1, art. 132.° n.° 2 alínea g) e art. 23.° do Código Penal, em concurso real com um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210.° n.° 1 do mesmo diploma.

XIII. Antes consubstanciando um crime de roubo agravado, nos termos do art. 310.°, n.° 2, al. a) do CP, visto ter infligido ofensa à integridade física grave, causadora de perigo para a vida do ofendido.

XIV. Sendo o arguido condenado pela prática de crime doloso, não se justificaria a sua condenação pelo crime de omissão de auxílio, porquanto este se consumou naquele, dada a preterintencionalidade do agente na produção desse crime doloso, não lhe sendo exigível cumprir com o dever de solidariedade social, uma vez que o resultado pretendido alcançar seria precisamente atentar contra a vida ou a integridade física do ofendido.

XV. A detenção da navalha pelo arguido, atentas as suas dimensões, é insusceptível de preencher o tipo do crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art. 86°, n° 1, d) da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro.

XVI. Uma devida ponderação das circunstâncias atenuantes permitia e aconselhava uma graduação da(s) pena(s) mais próxima dos mínimos legais do que se verificou no caso concreto, ocorrendo, assim, exagero na condenação do arguido, o que constitui uma errónea aplicação das normas constantes dos artigos 70° e 71° do Código Penal.

Pelo exposto, e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas, deve o presente recurso merecer provimento, com o que se fará a costumada».

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Contra-alegou o Ministério Público admitindo que houve lapso na descrição da navalha, que é aquela que se mostra descrita e fotografada a folhas 99; que o crime de omissão de auxílio não se verifica e que a postura do arguido, após os factos, possa ter sido a de se entregar às autoridades. No demais, demonstrou concordância com o acórdão recorrido e concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

«– O douto acórdão recorrido fixou correctamente a matéria fáctica pertinente, que qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa, não tendo incorrido em qualquer erro que invalide o decidido;
– aceitando-se, porém, que a absolvição pela prática do crime de omissão de auxílio se traduza numa ligeira redução do quantum da pena única».

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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer.

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II- Questões a decidir:

Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).

As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:

-Impugnação do provado sob os pontos de facto 1, 5, 6, 27 e 28 do provado e 2º parágrafo dos não provados;
-Errada subsunção dos factos aos tipos legais pelos quais foi condenado, designadamente quanto aos crimes de homicídio agravado tentado, que o recorrente entende ser um crime de roubo agravado, nos termos do artº 310º/ 2- a), do CP e quanto aos crimes de detenção de arma proibida e de omissão de auxílio, que o recorrente entende que não existem;
-Excesso das penas aplicadas, que o recorrente entende que deveriam ter sido graduadas mais próxima dos mínimos legais.

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III- Fundamentação de facto:

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:

1- No dia 21.04.2014, cerca das 00h03, na Avenida Dom João II, em Lisboa, o arguido munido de uma navalha com o cabo de 11,50 cm e 10,50 cm de lâmina, solicitou a J.M.P.F., motorista da viatura táxi, da marca “Citroen”, modelo 2C-Elysée”, com a matrícula XX, que o transportasse até ao Campo Grande, em Lisboa.
2- Antes de entrar para a viatura, o arguido colocou a sua mochila com os documentos pessoais na bagageira da mesma, após o que ocupou o banco de trás do lado direito da mesma
3- Uma vez na Rua Actor António Silva, o arguido solicitou ao ofendido que parasse o táxi, junto à paragem dos autocarros ali existente, o que aquele fez, apresentando de seguida a conta pelo serviço prestado, no valor de 8,70 €, acrescido de 1,69 € da bagagem.
4- Nesse momento o arguido retirou a navalha que trazia consigo e colocando-se atrás do banco do condutor envolveu um dos braços à volta do pescoço do ofendido e com a outra mão encostou a lâmina da navalha ao pescoço e, gritando, exigiu ao ofendido que lhe entregasse tudo o que tinha consigo.
5- Como o ofendido lhe dissesse que tinha abastecido a viatura e que por esse motivo apenas lhe restavam três notas de 10,00 € no bolso da camisa, o arguido sem nunca desviar a faca do pescoço do ofendido, retirou as referidas notas e exigiu que aquele lhe entregasse mais dinheiro.
6– Seguidamente, em dado momento, o arguido desferiu-lhe um primeiro golpe com a navalha e de seguida, com o mesmo objecto, tentou alcançar-lhe o corpo através de movimentos que fez com aquela, aos quais o ofendido se foi opondo colocando os braços à frente, tentando virar-se para trás, até que num desse movimentos logrou alcançar e perfurar a traqueia do ofendido.
7– Após, verificando que o ofendido encontrava-se ferido, ensanguentado e sem capacidade de se opor aos seus intentos, o arguido retirou de várias partes do interior da viatura os bens e valores assim discriminados:
•    Várias moedas, num valor total de 9,97€
•    Um maço de tabaco da marca SG Filtro;
•    Um carregador de isqueiro, da marca “NOKIA N90”
•    Um canivete de cor verde.
•   Chaves da residência do ofendido, pendentes numa fita azul com um mosquetão.
8- O ofendido sentindo que estava a desfalecer e com a intenção de pedir ajuda disse ao arguido para se ir embora que a polícia estava a chegar, o que aquele fez levando consigo, fazendo seus, os citados os bens e valores.
9- O arguido percorreu a pé o caminho entre Av. Alameda das Linhas de Torres, Azinhaga de Entremuros, Rua José Galhardo, chegando à Rua Agostinho Neto, onde escondeu, no terraço localizado acima do Continente da Quinta do Lambert:
•  Um casaco preto, com vestígios de sangue;
•  Um casaco branco, com vestígios de sangue;
•  A navalha citada em 1, com vestígios de sangue;
•  Um carregador de isqueiro da marca “NOKIA N90”, com vestígios de sangue;
•  ..Um maço de tabaco “SG FILTRO”
10- Por que não recuperara a sua mochila da bagageira da viatura táxi, a qual continha o seu cartão de residência, o arguido cujas roupas estavam sujas de sangue da vítima, passado algum tempo retornou à rua onde aquele veículo se encontrava, vindo a ser abordado e detido pela P.S.P, que entretanto já se encontrava no local.
11- Em consequência da conduta do arguido, J.M.P.F.sofreu múltiplas feridas na face anterior dos antebraços e pescoço, ferida incisa do punho direito e ferida contuso-cortante da cervical profunda com secção da via aérea (perfuração da traqueia).
12- Tais lesões provocaram em concreto, perigo para a vida do ofendido, conforme resulta do exame médico-legal de fls. 255 a 258, que aqui se dá por reproduzido.
13– O ofendido foi socorrido pela VMER do INEM sendo entubado orotraquealmente, sedado e ventilado.
14– O ofendido perdeu os sentidos no local.
15– Posteriormente foi transportado pelo INEM para o serviço de urgências do Hospital de S. João, em Lisboa, onde foi conduzido para o bloco operatório onde foi submetido a sutura da traqueia e controlo da hemorragia local.
16- Foi também intervencionado pela cirurgia plástica e reconstrutiva que tratou ferida incisa do punho direito complicada de secção da artéria cubital, nervo cubital, flexor cubital do carpo e palamris longus, sendo realizada tenoerrafia, neurorrafia do cubital, laqueação da artéria cubital, sutura de feridas e colocado dreno passivo.
17- Foram administradas 3 unidades de concentrado eritrocitário e soros para controlo da hipotensão arterial.
18- Posteriormente foi transferido para a unidade de cuidados intensivos polivalente do hospital de S. José, foi entubado e ventilado.
19– Realizou uma broncofibroscopia para remoção de coágulos da via aérea.
20– O ofendido esteve internado no hospital de São José desde 21/04/2014 a 2/05/2014.
21- No dia 2/05/2014 teve alta hospitalar passando a ser seguido pelos serviços da seguradora de acidentes de trabalho no hospital da CUF.
22– Na data em que foi elaborado o relatório pericial o ofendido ainda não tinha recebido alta dos serviços clínicos da seguradora.
23– Submetido a exame pericial em 29 de Maio de 2014, o ofendido apresentava as seguintes queixas:
- manipulação e preensão: limitações na utilização da mão direita;
- comunicação – alteração da voz;
- fenómenos dolorosos: constantes, na mão direita que agrava com movimentos; outras queixas a nível funcional: falta de sensibilidade na mão direita, mais acentuada na região lateral interna, dificuldade de engolir comprimidos.
24– Como lesões e sequelas a 29/05/2014, apresentava as seguintes:
- Face: cicatriz rosada da região bucal esquerda, linear, com 11 cm de comprimento. Cicatriz rosada na hemiface esquerda do lábio interior, linear com 2,5 cm de comprimento e vestígios de sutura. Cicatriz rosada na face infra mandibular direita, linear, paralelo da linha óssea da mandibula, com 5 cm de comprimento. Cicatriz isocrómica no hélix da orelha esquerda, linear, com 1 cm de comprimento;
- Pescoço: cicatriz hipopigmentada na face lateral direita do pescoço, na região infra auricular, vertical, ligeiramente inclinado para baixo e para a frente, linear, com 3,5 cm de comprimento, com vestígios de sutura. Cicatriz na face anterior do pescoço, multiforme com parte maior oblíqua para baixo e para a esquerda e 2ª, com início no centro da mesma cicatriz, com 5 cm de comprimento;
- Membro superior direito: cicatriz avermelhado na face anterior do punho, linear horizontal com 8,5 cm de comprimento. Cicatriz na face dorsal da mão, linear, horizontal com 4 cm de comprimento. Cicatriz na face palmar da mão, região, tenar, com 5,5 cm de comprimento;
- Membro superior esquerdo: cicatriz azul – avermelhada na face lateral interna do punho, linear com 3 cm de comprimento, 3 cicatrizes na face palmar, com comprimentos entre 2 cm e 4 cm;
- Membro inferior esquerdo: área equimótica azul avermelhada no terço superior da face anterior da perna, com eixo maior vertical com 5 cm x 2 cm de maiores dimensões.
25- Embora ainda não tenha sido possível fixar a data de consolidação das lesões, estas afectarão a vida de relação do ofendido e a sua capacidade para o trabalho.
26- O arguido agiu com o propósito de fazer seus os bens e valores que se encontravam no táxi, bem sabendo que o fazia contra a vontade do ofendido, e que para tal recorria à força física e ao uso de uma faca, o que quis.
27- O arguido actuou com o propósito de tirar a vida de J.M.P.F., desferindo-lhe o golpe em zona do corpo que visou, onde sabia encontrar-se órgão vital, utilizando instrumento idóneo para atingir o seu objectivo, o que quis.
28- O arguido agiu denotando ausência de responsabilização e total desprezo pela vida humana.
29- O arguido conhecia as características da navalha que detinha, bem sabendo que não estava autorizado administrativamente a fazê-lo.
30- O arguido quando abandonou o local onde se encontrava a vítima, agiu com o propósito de não providenciar pela obtenção de auxílio para o ofendido, que sabia estar gravemente ferido.
31- Em todas as condutas o arguido agiu de forma livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo da probabilidade da sua conduta.
32– O demandante aquando dos factos vestia umas calças, meias, um par de sapatos e uma camisola, peças que ficaram inutilizadas, mas cujo eventual valor não se apurou.
33– O demandante com deslocações que efectuou a hospitais, centros de saúde e esquadras de polícia já despendeu cerca de 100€.
34– O demandante continua a frequentar sessões de fisioterapia que necessita, assim com a deslocar-se a médicos, a adquirir produtos medicamentosos.
35– O demandante foi submetido a várias operações cirúrgicas, sofreu e continua a sofrer dores.
36– No momento das agressões e nos instantes que a precederam o ofendido assustou-se e teve consciência que poderia vir a morrer, receando pela vida.
37– O demandante passou a ter medo de sair de casa sozinho.
38– O demandante passou a andar constantemente enervado, angustiado e revoltado.
39– Actualmente é uma pessoa triste, desanimada e apreensiva.
40– Passou a ter perturbações de sono e insónias, tem alterações de humor, ansiedade e stress.
41– O demandante tem angústia de poder voltar a cruzar-se novamente com o arguido.
42– O ofendido recebeu tratamento psicológico.
43– O demandante à data dos factos tinha 64 anos de idade, trabalhando na empresa Auto Táxi Z.
44– O demandante auferia o rendimento mensal de 586,21€, e com esse rendimento fazia face às suas despesas pessoais.
45– Actualmente o demandante encontra-se reformado, auferindo a título de pensão montante não concretamente apurado.
46– O demandante não mais conduziu táxi, sentido receio de o fazer, sentindo-se, por isso, impossibilitado de conduzir.
47– O demandante enquanto esteve internado perdeu vários quilos.
48– O demandante vive amargurado com a memória da agressão que sofreu assim como com os condicionamentos que ainda padece, o que o continuará a atormentar.
49– O arguido encontra-se em Portugal há cerca de um ano, e na apanha de morangos auferia cerca de 600 a 650€ mensais, contudo, há cerca de dois meses que se encontrava desempregado.
50– O arguido por referência ao dia dos factos, pernoitava há várias noites na Gare do Oriente.
51- O arguido é primário.
52- Na sequência dos ferimentos causados no J.M.P.F., o Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, prestou-lhe assistência hospitalar na urgência, internamento, cirurgias, tratamentos e exames.
53- O custo desta assistência orçou em 11.016,97€.

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Factos não provados:

Não está provado que:
- O ofendido quando estava agarrado pelo arguido se virou para trás para tentar acalmar;
- O arguido se haja entregue voluntariamente às autoridades policiais;
- Até à presente data, o lesado já despendeu cerca de 250€ com exames de diagnóstico, consultas médicas e medicamentos;
- O demandante virá a necessitar de equipamentos ortopédicos e próteses médicas;
- O demandante necessita de uma terceira pessoa para o auxiliar;
- O ofendido nunca mais conseguiu conduzir veículos automóveis.

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IV- Fundamentação probatória:

O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
«O Tribunal na formação da sua convicção (atendendo aos critérios enunciados no art.127º do Cód. Proc. Penal), relevaram as declarações do arguido o qual em grande parte confessou os factos de que estava acusado, designadamente que se fez transportar no táxi até à rua em questão e que encostou uma navalha ao pescoço do ofendido, exigindo-lhe os valores que tivesse, referindo, contudo, que, quando este reagiu, feriu-se na navalha e depois de se debater contra si, o declarante entrou em pânico e golpeou aquele, negando que lhe quisesse retirar a vida. Depois colocou-se em fuga. Mais referiu que veio posteriormente a entregar-se às forças policiais que, entretanto, já se encontravam no local. O ofendido, demandante cível com conhecimento directo dos factos, prestou declarações com objectividade e serenidade, descrevendo com detalhe a conduta do arguido, referindo que enquanto tinha a navalha encostada ao pescoço, o tentou dissuadir, dizendo-lhe que não tinha mais dinheiro para além das notas de 10€ de que aquele se apoderou, continuando o arguido a insistir consigo e quando, ainda estava agarrado por trás, pelo arguido, este fere-o com um golpe no pescoço, altura em que o declarante tentou defender-se como pôde, não evitando ser sucessivamente golpeado pelo arguido em várias parte do corpo e membros. Depois de cessar a agressão e enquanto o declarante, sentado no banco do condutor, se esvaia em sangue que de si saia abundantemente, o arguido continuava no táxi procurando entre os vários compartimentos do veículo (porta-luvas; na gaveta da porta do condutor junto ao ofendido) valores para se apoderar, o declarante nesses momentos ainda receando qualquer outra agressão do arguido, com o intuito de o afastar e de, por sua vez, procurar ajuda, disse-lhe que a polícia devia estar a chegar, ao que o arguido atendeu colocando-se em fuga. Esclareceu ainda que o arguido não conseguiu levar a mochila que estava na bagageira do carro porque a mala não se abre pelo fecho exterior, mas apenas através de um botão que o arguido ignorava a sua localização. O Tribunal não se convenceu que o arguido não tivesse intenção de retirar a vida, pois a força expressiva na violência física que empregou, golpeando com extrema gravidade o ofendido que ficou em perigo de vida, cuja perda só se evitou pela pronta intervenção dos meios de socorro, torna inequívoco o seu dolo directo de retirar a vida ao ofendido. Acresce que, embora o arguido também tenha referido que quando se colocou em fuga, abandonando o ofendido no táxi, não se haja apercebido do estado de gravidade deste, o Tribunal não se convenceu desse facto, porquanto os ferimentos do ofendido eram exuberantes, com grandes perdas de sangue, ficando o vestuário do arguido inclusive com vestígios hemáticos evidentes, tornando indisfarçável a gravidade dos ferimentos assim como a situação crítica do ofendido. O Tribunal convenceu-se igualmente que o arguido foi interceptado pelas autoridades policiais não porque se quisesse entregar, mas porque preocupado estava com a mochila que permanecia no interior da bagageira do táxi, pois, como o próprio arguido esclareceu em declarações que prestou, no interior da mochila estava guardado o seu cartão de identificação.
Mais referiu o demandante o estado em que ficou e as afecções de que tem padecido. Sobre os termos do seu sofrimento e sequelas que têm persistido interessaram também os depoimentos de ASB (entidade patronal do demandante) que confirmou o vencimento que este auferia à data dos factos, referindo que o ofendido não quer mais conduzir táxis pelo receio que sente, o seu humor alterou-se, deixando de ser “brincalhão”, perdeu a iniciativa, refugia-se muito em casa, já não indo ao café. O demandante foi-se muito abaixo e perdeu muito peso; e de PM (amigo do ofendido), o qual também referiu que depois da agressão é raro ver o demandante que já não sai de casa e nunca o mais viu sozinho em casa. O demandante anda “acabrunhado” referindo que podia ter ficado no táxi.
Quanto às peças de vestuário do ofendido que ficaram inutilizadas, para além de serem pelas usadas, nada se apurou quanto ao seu valor. Sobre os tratamentos que tem recebido e medicamentos, esclareceu o demandante que é a seguradora que tem suportado essas despesas.
Sobre as lesões e sequelas sofridas pelo demandante para além das sias declarações, interessou o depoimentos de. Assim como os elementos clínicos e autos de exames médicos de fls.184, 185, 216 a 253; relatório pericial de fls.257 e 258.
Interessou o teor das fotografias de fls.23 a 40, 43 a 52. Foram igualmente, tidos em consideração os relatórios periciais de fls.165 a 170, 193 a 212, 262 a 266, 307; o teor dos documentos de fls.437.
Relevou o teor dos documentos de fls.416, que associados aos elementos clínicos hospitalares já referenciados, credenciaram o custo da assistência hospitalar prestada pelo hospital demandante.
Mais interessou o teor da certidão de fls.506; assim como o conteúdo do relatório social de fls.511 a 514».

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V- Fundamentos de direito:

A - Da impugnação do provado sob os pontos de facto 1, 5, 6, 27 e 28 do provado e 2º parágrafo do não provado:
Entende o recorrente que, resumindo-se a prova acerca das circunstâncias em que os seus actos foram praticados às suas declarações e às do ofendido, o Tribunal, em obediência ao princípio do in dubio pro reo, deveria ter dado inteira credibilidade à versão que apresentou, da qual resultaria impugnada a matéria de facto contida nos supra referidos pontos de facto. Isto, na medida em que afirmou que voltou ao local para se entregar voluntariamente às autoridades, com as quais colaborou, que as lesões produzidas no ofendido resultaram do facto de ele ter reagido ao roubo, ter tentado retirar a navalha e da luta em que se envolveram e que não teve intenção de lhe provocar a morte. Mais refere que a navalha media 7,5 cm, conforme folhas 99 dos autos, e que o ofendido corroborou os factos ao ter dito que deixou de reagir depois de ter sido esfaqueado no pescoço, nas declarações de folhas 147.
O recorrente omite, por completo, qualquer referência a norma ou normas jurídicas em que acolha a sua pretensão. A propósito da questão, o recorrente invoca, apenas, a violação do princípio do in dubio pro reo, invocação que nada acrescenta à percepção da sua verdadeira intensão impugnatória.
Ora, a impugnação formulada pelo recorrente só pode resultar de uma das duas formas previstas na lei processual penal para a impugnação da decisão da matéria de facto. A primeira subordina-se à disciplina do artº 410º/2, do CPP, enquanto o pedido de reapreciação se rege pelo artº 412º/3 e 4, do mesmo diploma.
Na impugnação restrita (artº 410º/CPP) a impugnação atem-se, exclusivamente, à letra da decisão, só por si ou conjugada com regras de experiência comum, não interferindo na análise quaisquer outros dados, ainda que resultantes do julgamento ou documentados nos autos; na situação da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artº 412º/CPP, a apreciação pretendida implica uma reapreciação da prova produzida e documentada, dentro dos condicionalismos legais, aí referidos.
No caso, o recorrente estruturou o seu pensamento extravasando do âmbito da literalidade da sentença e alicerçando a impugnação, exclusivamente, em documentos que não foram considerados no acórdão, em depoimentos produzidos no decorrer do julgamento e na sua opinião sobre a valoração que deveria ter sido feita da prova produzida, que é discordante daquela que fez o Tribunal recorrido. Uma vez que os fundamentos invocados são, todos eles, elementos exteriores ao conteúdo do acórdão recorrido conclui-se pela inviabilidade da impugnação ao abrigo do regime dos vícios de sentença. Resta, portanto, a ponderação sobre a viabilidade da impugnação com fundamento em reapreciação da prova, ao abrigo do artº 412º/3, 4 e 6 do CPP, para a qual, aliás, os termos da impugnação apontam, se tivermos em conta a argumentação apresentada.
A formulação válida de um pedido de reapreciação depende do cumprimento de requisitos de forma e de substância. No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um duplo ónus, a saber (artº 412º/3 e 4, do CPP):
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência ou, mais ainda, de todos os factos considerados provados;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artº 412º/CPP).
O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, sobre o objecto do recurso, especificando aquilo que, no âmbito factual, pretende ver reponderado e especificando as provas que devem ser renovadas (artº 412º/3-c), do CPP).
No caso, resulta das conclusões do recurso que os pontos de facto impugnados se relacionam com a medida da navalha (constante do ponto 1 do provado), com a forma como decorreu a contenda durante a qual as navalhadas foram desferidas (contida nos pontos 4 e 5 do provado), com a existência de intenção de morte (contida nos pontos 27 e 28 do provado) e com o facto de se ter dado como não provado que o recorrente se entregou voluntariamente às autoridades. Como fundamento da alteração, o recorrente remeteu para a gravação das declarações que prestou em julgamento, com menção dos pontos de início e fim dos excertos da gravação, e para os documentos juntos aos autos.
Deste modo mostra-se cumpridos os ónus formais de que depende o recurso ao instituto da reapreciação.
Mas, mais do que ónus formais, uma qualquer reapreciação pressupõe que a argumentação aduzida tenha a virtualidade de impor solução distinta daquela que foi acolhida pelo Tribunal recorrido.
O recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico que salvaguarda a possibilidade de erro de apreciação da prova produzida. Dito de outro modo, o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes. A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros no julgamento de factos, descriminados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. A doutrina e jurisprudência penais entendem que a reapreciação da prova, na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão.
Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau vai aferir se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova, e os demais elementos existentes nos autos, demonstram e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de falta desse suporte. Assim, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova disponíveis impõem uma decisão diversa e não apenas quando apenas permitem uma outra decisão.

Vejamos então da viabilidade substancial das questões colocadas.

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i- No que concerne ao tamanho da navalha utilizada, é notório o erro de julgamento, porquanto a mesma se encontra fotografada e descrita no auto de folhas 95 e seguintes, mais propriamente a folhas 99 dos autos e, dessa descrição, resulta que se trata de «uma navalha com cabo castanho medindo 12,5 cm e lâmina de 7,5 cm». Descrição semelhante resulta de folhas 15 relatório do exame pericial da Polícia Científica, a folhas 207 dos autos.
Não havendo motivo para duvidar do conteúdo dos referidos documentos, que gozam do estatuto de documentos autênticos, impõe-se a correcção das medidas da navalha e, consequentemente, a alteração do ponto 1 do provado que passará a conter-se nos seguintes dizeres: «1 - No dia 21.04.2014, cerca das 00h03, na Avenida Dom João II, em Lisboa, o arguido munido de uma navalha com o cabo de 12,50 cm e 7,50 cm de lâmina, solicitou a J.M.P.F., motorista da viatura táxi, da marca “Citroen”, modelo 2C-Elysée”, com a matrícula XX, que o transportasse até ao Campo Grande, em Lisboa».

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ii- No que se refere à forma como terá decorrido a contenda, entende, o recorrente, que as lesões apresentadas resultaram da luta que ocorreu entre assaltante e assaltado, impondo-se o crédito à versão que apresentou em aplicação do princípio do in dubio pro reo.

Vejamos, primeiro, a questão da violação do in dubio.

O princípio in dubio pro reo é uma regra de decisão, que funciona na falta de uma convicção sobre os factos para além da dúvida razoável e tem que ver com o princípio da livre apreciação da prova, p. no artigo 127º/CP, que rege o nosso processo penal. O princípio da livre apreciação da prova «não deve traduzir-se em mais que não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (…) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto» ([3]). É que a apreciação da prova «não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável: Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão» ([4]).

Em processo penal figura, como critério positivo de prova de um facto, o parâmetro da prova além da presunção de inocência ([5]), vindo do direito processual anglo-saxónico, entendido como prova para além de toda a dúvida razoável ([6]). Articula-se com o princípio da livre convicção como se fossem «dois círculos concêntricos de salvaguarda que o sistema processual penal coloca em defesa do cidadão inocente de não correr o risco de ser condenado. Ambos incidem sobre o momento da valoração da prova pelo juiz; (…). O primeiro círculo, com a afirmação do princípio da livre convicção (…) coloca o momento da valoração da prova a coberto dos efeitos devastadores produzidos pelo sistema precedente da prova legal (…). Com o segundo círculo de salvaguarda, procura evitar-se que a livre valoração do juiz se transforme em arbítrio. O juiz não está sujeito a vínculos normativos externos, mas deve chegar à formação da sua convicção através do emprego de critérios racionais, próprios da lógica, da ciência e do conhecimento comum. A certeza probatória que desse modo o juiz alcança (…) [trata-se] naturalmente de uma certeza lógica, aplicada ao caso concreto e modelada segundo um itinerário argumentativo objectivamente susceptível de controlo» ([7]).

O princípio da livre convicção funciona também como base ou pressuposto do princípio in dubio pro reo. «Ao pedir-se ao juiz, para prova dos factos, uma convicção objectivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objectivar e motivar uma dúvida. Espera-se deste modo que a decisão convença. Convença o juiz no seu íntimo, mas contenha em si igualmente a virtualidade de convencer o arguido e, nele, a inteira comunidade jurídica (…). O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último. Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva.» ([8]).

O princípio in dubio é, portanto, uma regra de decisão, que funciona apenas na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos. Assim o impõe o processo penal da presunção de inocência, leal e respeitador da confiança legítima dos cidadãos nas decisões dos Tribunais ([9]).

A sua aplicação desdobra-se em dois momentos: no da avaliação probatória directa, imediata, em primeira instância ou em sede de efectiva reapreciação de prova, na fase de recurso e no da apreciação do processo de aquisição processual da prova fixada, na vertente da avaliação sobre a existência ou não de vício de erro na sua apreciação. Numa primeira fase «o universo fáctico – de acordo com o «pro reo» passar a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para prova dos segundos se exige certeza» ([10]). Numa segunda fase, funciona aquando da sua aplicação em Tribunal de recurso: sempre que resulta do texto da decisão recorrida a existência de dúvida sobre factos desfavoráveis ao arguido, ou ainda que não constando, ocorra que a dúvida se instala, quando apreciado o iter cognitivo do julgador. «Entendidos, assim, objectivamente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, sempre será de considerar este princípio violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta de uma análise e apreciação objectiva da prova produzida à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório (cfr art. 127º do CPP)» ([11]).

O preceituado no artº 127º/CPP deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária).

No caso, avaliando a fundamentação da aquisição probatória, não se denota que o Tribunal recorrido tenha fixado a matéria de facto em situação de dúvida. O Tribunal convenceu-se, nos termos exarados, de que o arguido agiu conforme descrito no provado e não logrou alcançar convencimento sobre o descrito no não provado e nesse precisa medida fixou os factos.

***

Foi ouvida a prova produzida, designadamente, as declarações do arguido e do ofendido, que são aquilo que ao caso releva sobre a forma como se passaram os factos.

Começou o arguido por afirmar que “confirmava quase tudo o que constava da acusação” mas foi ele que se entregou à polícia. Depois disse que:

- Não se recordava dos factos contidos no ponto 5;
- Foi o ofendido quem se feriu na faca porque reagiu;
- Acha que desferiu vários golpes e que depois do “ofendido se ter cortado tentou agredi-lo e aí desferiu mais uns golpes” para se defender;
- Depois do taxista se ter cortado, agarrou-lhe a mão onde tinha a faca, lutaram, entrou em pânico e aí desferiu-lhe mais um ou dois golpes e abandonou o local;
- Não tentou matá-lo;
- Entrou em pânico;
- Apercebeu-se de que o ofendido estava ferido com gravidade;
- Vagueou nas ruas e quando viu um carro da polícia resolveu entregar-se;
- Na mochila, no táxi, ficou um cartão de residência, em Portugal, em seu nome, uns exames médicos, e umas roupas. 

Disse o ofendido que:
- Quando parou o táxi, o arguido colocou a faca ao seu pescoço e pediu-lhe o dinheiro todo;
- O único dinheiro que ele tinha estava dentro do bolso da camisa e foi o arguido quem “sacou” das notas;
- Depois disso o agressor começou a dizer-lhe que queria mais dinheiro;
- Ele, ofendido, disse-lhe que tinha enchido o depósito, pelo que só ficou com 30 euros e que não tinha mais dinheiro;
- Então o arguido começou a “dar-lhe” com a faca e “por isso é que o cortou” e ele a defender-se;
- Na primeira facada ele, ofendido, estava à frente do volante;
- Depois de ter levado o primeiro golpe virou-se para trás, para o arguido, e tentou defender-se cobrindo-se com as mãos e os braços;
- Estava virado para o arguido e estava metido no meio dos bancos e não podia fazer mais nada;
- Tentou proteger a garganta;
- Nessa altura ele cortou-lhe o pulso e a mão;
- Tentou defender-se e não reagir;
- Tentou defender-se depois do primeiro golpe;
- Com a faca ele cortou-o todo;
- Tentou agarrar a mão dele para ver se lhe tirava a faca;
- Antes da “luta” que teve com ele já tinha o sangue a correr;
- Depois das facadas começou a sangrar, perdeu forças e deixou de reagir;
- Então o arguido deixou-o e foi ao porta-luvas, por cima dos bancos, “sacar” aquilo que lá estava;
- Disse-lhe para ele se ir embora porque a polícia estava a chegar pois “ele não saía do carro”;
- O arguido saiu, então, do carro, deu a volta ao carro e abriu, por fora, a porta do condutor de onde tirou tudo o que lá estava – porta-chaves, tabaco, isqueiro. Depois foi-se embora.

***
Ora, perante as declarações de um e de outro cremos que não há prova convincente da versão apresentada pelo arguido de que foi no decurso da luta pela posse da navalha que foi produzida a perfuração da traqueia. É preciso atender a que o arguido abraçou o ofendido pelo pescoço, estando ele de costas para si, sentado no banco da frente, e foi nessa posição que lhe encostou a navalha. Foi nesta posição de perfeito domínio do seu corpo, pelo arguido, que o ofendido se moveu e se gerou a situação a que se referiu, ou seja, em que ele ofereceu resistência aos golpes do ofendido, tentando tirar-lhe a faca e proteger-se, ao mesmo tempo. Não tem cabimento algum a versão de que o próprio ofendido, nesta precisa posição - ou noutra, sequer - tivesse colaborado, ainda que inadvertidamente, na efectivação dos cortes e muito menos do corte na traqueia, porque é uma lesão que exige uma especial persistência de força física e é extremamente dolorosa pois atinge uma zona muito irrigada.

No que concerne à matéria considerada provada sob o ponto 6, entendemos que se impõe a consideração de que o ofendido se virou efectivamente para trás e tentou agarrar a mão em que o arguido segurava a faca ao mesmo tempo que se tentava defender dos golpes desferidos por este (foi o próprio quem o referiu).
Não correspondendo a alteração que se impõe, à efectiva pretensão do recorrente, não deixa de ser a consideração de um menos relativamente a ela, pelo que se entende que não constitui facto novo para o efeito do artº 358º/CPP.

Face ao exposto impõe-se a manutenção do ponto 5 do provado e a alteração do ponto 6, que passará a conter-se na seguinte redacção:

«6 – Seguidamente, em dado momento, o arguido desferiu-lhe um primeiro golpe com a navalha e de seguida, com o mesmo objecto, tentou alcançar-lhe o corpo através de movimentos que fez com aquela, aos quais o ofendido se foi opondo, virando-se para trás, entre os bancos da viatura, colocando os braços à frente e tentando, ao mesmo tempo, agarrar a mão que empunhava a navalha, até que o arguido, num desse movimentos, logrou alcançar e perfurar a traqueia do ofendido».

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iii- Vejamos agora a impugnação dos factos contidos nos pontos 27 e 28 do provado. Entende o recorrente que não agiu com intenção de matar, impondo-se, igualmente, crédito à versão que apresentou em julgamento, em aplicação do princípio do in dubio pro reo.

A prova da intenção, em matéria penal, a não ser no caso de confissão, não é uma prova de aquisição directa. Ela resulta, necessariamente, a apreciação da materialidade dos actos de execução, segundo aquilo que ditam as regras da experiência e do senso comum.

A questão que se nos coloca é saber se, em face da prova produzida, se pode afirmar com a devida segurança, isto é, ultrapassando a barreira do in dubio, que o arguido ao agir, conforme descrito, visou, em algum momento, tirar a vida ao ofendido, ou se se limitou a socorrer-se da violência que decidiu usar para a neutralização da resistência do ofendido aos seus intentos apropriativos (facto provado sob o ponto 26).

Analisados os precisos termos em que se contém o provado sob os pontos 26, por um lado, e 27 e 28 por outro, manifesta-se uma situação de apreciação de contradição e de distorção de ordem lógica entre os fundamentos exarados e o provado que urge reponderar tendo em conta os próprios termos do acórdão e bem assim a prova evidenciada em face da reapreciação.

Do provado resulta que foram duas as intenções do arguido ao agir conforme descrito: «o arguido agiu com o propósito de fazer seus os bens e valores que se encontravam no táxi, bem sabendo que o fazia contra a vontade do ofendido, e que para tal recorria à força física e ao uso de uma faca, o que quis» e «o arguido actuou com o propósito de tirar a vida de J.M.P.F., desferindo-lhe o golpe em zona do corpo que visou, onde sabia encontrar-se órgão vital, utilizando instrumento idóneo para atingir o seu objectivo, o que quis (…) denotando ausência de responsabilização e total desprezo pela vida humana».

Não se tendo distinguido actos de execução de uma e de outra intenção, afigura-se-nos contraditório afirmar que o arguido praticou todos os actos descritos com simultâneo propósito de apropriação (mediante o uso de violência) e de produzir a morte.
O tipo de crime de roubo é complexo. A conduta tipificada consiste em subtrair ou constranger outrem à entrega de coisa móvel, alheia, por meio de violência contra uma pessoa, ameaça com perigo eminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir. Ele tutela, a par e passo e sem autonomia para qualquer dos seus elementos, dois tipos de bens jurídicos distintos: patrimoniais (os direitos de propriedade e posse relativamente a coisas móveis) e pessoais (a liberdade individual e a integridade física que, no limite, abrange a própria vida – artº 210º /2-a) e 3, do CP).

Ou seja, o roubo configura-se como um tipo em que o furto (a subtracção) é conseguido através da violação de direitos pessoais de liberdade (ameaça/colocação na impossibilidade de resistir) ou de integridade física (violência/ colocação na impossibilidade de resistir). A violência (aquilo que ao caso interessa) constitui, na estrutura do crime, um meio para obtenção do fim visado que é, unicamente, a subtracção, ou seja, o furto. 
 
O tipo do crime de homicídio tutela o direito à vida (artº 131º/CP).
Ainda que, teoricamente, se pudesse entender que o dolo directo de morte consumiria o dolo de violência que coexiste no crime de roubo (a par do dolo de apropriação) o facto é que, sendo sempre a violência, no crime de roubo, um meio de lesão dos bens patrimoniais, se demonstra contrário à experiência comum uma acepção que subsuma o elemento subjectivo de toda a acção praticada pelo arguido, em simultâneo, às intencionalidades distintas de apropriação, através da violência, e de morte. É que das duas uma: reportando-se as intenções em análise à totalidade da acção, ou o agente agiu com intenção de matar o ofendido, para se vir a apropriar dos seus bens (e temos actos com dolo de homicídio seguidos de actos com dolo de apropriação) ou agiu com intenção de se apropriar desses mesmos bens, usando de violência (e temos actos e dolo típicos do roubo).

Esclareça-se que estando em causa um dolo de apropriação através do uso de violência, o facto de a violência ser objectivamente excessiva para o fim visado (que foi o fundamento da aquisição probatória do dolo de morte) é matéria do foro da subsunção jurídica dos factos e não questão do foro da apreciação da matéria de facto.

Por outro lado, caso se entendesse que houve uma sucessão de intenções, impunha-se a especificação dos actos que foram praticados segundo uma e outra das intenções. Em tese, é perfeitamente defensável que numa mesma situação ocorra o emprego de violência com intenção de causar a morte e como meio de lograr a apropriação de bens alheios, mas a exposição desse tipo de situação impõe que da matéria do provado fique a constar, discriminadamente, quais os actos que foram executados segundo cada um dos desígnios tomados, o que não é o caso.

Constata-se ainda que a fundamentação para o dolo de morte não se afigura conforme com a experiência comum. Nos termos em que foi exarada em sede de fundamentação da aquisição probatória, resume-se a que «O Tribunal não se convenceu que o arguido não tivesse intenção de retirar a vida, pois a força expressiva na violência física que empregou, golpeando com extrema gravidade o ofendido que ficou em perigo de vida, cuja perda só se evitou pela pronta intervenção dos meios de socorro, torna inequívoco o seu dolo directo de retirar a vida ao ofendido». Ora, estando em curso um roubo - referindo-se no provado que o arguido começou por encostar a navalha ao pescoço do ofendido, exigindo-lhe que lhe entregasse o que tinha consigo, tendo-se apropriado de 30 € (momento em que o roubo já se consumou) mas, exigindo mais, lhe tenha passado a desferir golpes de navalha, altura em que lhe perfura a traqueia - e assumindo-se que a prova produzida foi no sentido de que «depois de cessar a agressão e enquanto o declarante, sentado no banco do condutor, se esvaia em sangue que de si saia abundantemente, o arguido continuava no táxi procurando entre os vários compartimentos do veículo (porta-luvas; na gaveta da porta do condutor junto ao ofendido) valores para se apoderar» fica-se sem perceber em que momento o Tribunal recorrido situa a actuação com dolo de morte.

A existência de dolo de morte em face da actuação descrita (sendo que a intenção só por si não constitui crime) e nos termos contidos na fundamentação da aquisição probatória implicaria uma tripartição da acção. Num primeiro momento o agente teria agido com dolo de roubo (e praticado o roubo dos 30 euros), depois com dolo de morte (e praticado um homicídio tentado, consistente na perfuração da traqueia) e por fim teria voltado ao dolo de apropriação (que não configuraria já um crime de roubo mas um crime de furto, relativamente ao qual o crime de homicídio teria sido o meio de acção, na medida em que teria visado, unicamente, preparar, facilitar ou executar os actos de apropriação - artº 132º/ 2- f), do CP). Dizendo de outro modo: a consideração de que quando desfere a facada na traqueia o arguido agiu com dolo de morte levaria, necessariamente, ao entendimento de que no decurso das agressões, o agente alterou a sua intenção de apropriação para homicídio e depois “voltou” ao dolo de apropriação.

Esta é claramente uma construção inverosímil, contrário áquilo que, em face da experiência comum, se retira dos factos como foram descritos no provado. Com a agravante de que, na tese do acórdão recorrido, nem se diz em que momento os golpes desferidos se teriam revestido da gravidade necessária e adequada à consideração de que foram produzidos com intenção de provocar a morte ao ofendido – aquele ponto de gravidade a que se reporta a fundamentação da aquisição probatória (que refere «golpeando com extrema gravidade o ofendido»), como sendo a justificação para a aquisição da intenção de matar - se bem que se perceba que em causa está a perfuração da traqueia.

No caso, não há elementos nem na descrição dos factos nem na fundamentação da aquisição probatória que permitam considerar uma pluralidade de intenções, pois que os actos do agente se iniciam com manifesta intenção de desapropriação e terminam do mesmo modo, sendo que o que sucede entre um ponto e outro é o emprego da violência que permitiu colocar o lesado na impossibilidade de resistir aos referidos intentos apropriativos. Os factos contidos nos pontos 5 e 6 do provado demonstram uma conduta uniforme, em que o agente, usando sempre de grande de violência – que é potenciada pelo uso do meio que escolheu, ou seja da navalha - vai desferindo golpes no ofendido até lograr deter a resistência deste e conseguir impor-lhe a subtracção dos bens que bem entende.

Sendo o elemento subjectivo (quando não confessado) de um ilícito, apurado, necessariamente, por prova indirecta (resultando esta da conjugação da actuação com aquilo que resulta da experiência comum) ocorre que factualidade descrita nos pontos de facto 26, 27 e 28, relativa ao foro subjectivo do agente, não tem suporte fáctico bastante porque a actuação imputada – contida nos pontos 5, 6 e 7 –  não é apta a revelar uma intenção distinta da de apropriação por meio violento. Os vários actos descritos afiguram-se típicos de um só processo de deliberação, atendendo à conexão temporal em que foram produzidos e à homogeneidade do modo pelo qual foram produzidos.

A pluralidade de intenções subjacente a uma mesma acção implica uma pluralidade de resoluções autónomas, no sentido de determinação a distintos nexos finais da actuação. Essa pluralidade não ocorre quando os vários actos são resultado de um só processo de deliberação, para apreciação do qual revela, de sobremaneira, a consideração da conexão temporal em que os actos foram produzidos, a forma como o foram e até o fim obtido pelo agente.

Atenhamo-nos à dinâmica dos factos: A acção apropriativa do arguido evidenciou-se desde o início da acção delituosa - em que apontando a navalha ao pescoço do ofendido lhe exige dinheiro – e até ao momento em que abandonou o ofendido dentro do veículo. O arguido, não obstante ter logrado obter os 30 € que o ofendido tinha no bolso da camisa, continuou a exigir-lhe mais dinheiro. Não se conformando com a negação do ofendido, que dizia que não tinha mais, desferiu-lhe um primeiro golpe de navalha. Mas, em vez de lograr a obtenção de mais dinheiro, eis que a vítima se virou para si e, ao mesmo tempo que tentou proteger-se dos golpes de navalha, com as mãos e os braços, tentou retirar-lha. Nesta situação o arguido passou a desferir-lhe navalhadas – o ofendido ficou com 14 cicatrizes! – que o atingiram nas mãos, nos braços, na face, no pescoço e até numa perna. Entre esses golpes desferiu um que atingiu a vítima na traqueia e a perfurou. Aniquilada que ficou a resistência do ofendido, o arguido voltou à sua acção apropriativa. 
 
Os actos executados revelam uma estreita conexão temporal, sem interrupção ou possibilidade de delimitação entre os momentos da prática de cada uma das navalhadas desferidas, ou de tipos distintos de navalhadas. A forma de acção foi homogénea – desferimento de golpes de navalha pelo corpo do ofendido. A acção violenta terminou no momento em que o agente conseguiu controlar a resistência da vítima, sendo, aliás, que o próprio ofendido demonstra essa perspectiva dos factos, ao referir que (apenas) deixou de reagir depois de esfaqueado no pescoço. O agente iniciou a terminou o episódio com actos de apropriação.
Em face da dinâmica dos factos entendemos que não há prova que permita, com a necessária segurança, imputar ao agente uma intenção directa morte. A violência usada foi enorme, mas foi enorme desde o princípio da acção. Por regra, quem vai fazer um roubo munido de uma faca e disposto a usá-la na zona do pescoço, num ou em inúmeros golpes (é irrelevante) autodeterminou-se a um grau de violência assustador e, inclusivamente, a colocar em risco a vida da vítima, na medida em que a região visada é vital. Considerando uma predisposição de violência desta natureza não há fundamento que permita seccionar os diversos actos de golpes de navalha por outra motivação que não a do uso da violência que, na perspectiva do agente, garantisse a eficaz colocação da vítima na impossibilidade de resistir. Afigura-se-nos que a toda esta execução presidiu um mesmo fenómeno psicológico do agente (no caso a intenção de colocar a vítima na impossibilidade de resistir aos seus intentos apropriativos) que congregou os diversos actos sob a mesma deliberação e vontade. Contudo, dúvidas não temos de que o agente efectivamente admitiu como possível que da sua actuação pudesse vir a resultar perigo de vida para a vítima, resultado esse com o qual se conformou. A produção de cortes de navalha na zona visada – pescoço da vitima – é, objectivamente e considerando as regras de experiência comum, apta a produzir a morte do lesionado (para tanto bastaria uma incisão na carótida ou, usando da força que se impõe considerar que foi usada, a perfuração da laringe, faringe ou traqueia sem uma pronta assistência). A sua actuação denota, efectivamente, um enorme desprezo sobre o valor da vida humana.

Na conformidade impõe-se a manutenção do ponto 28 e alteração do actual ponto 27, do provado, que se passará a conter nos seguintes termos: «27- O arguido admitiu como possível que dos golpes desferidos com a faca adviessem lesões que causassem perigo para a vida do ofendido, conformando-se com essa possibilidade».

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iv- Vejamos agora a questão da impugnação de que o arguido se haja entregue voluntariamente às autoridades policiais.
Essa foi a versão que apresentou quando das suas declarações, em julgamento.

Contudo, o Tribunal recorrido não a aceitou e, face à prova produzida, não há elementos que imponham uma decisão diferente.

O Tribunal a quo considerou que o arguido regressou ao local do crime porque não recuperara a sua mochila que tinha a sua identificação. Este entendimento não é contrariado pela prova feita, de que a mochila, com os seus pertences e elementos de identificação, tinha ficado no táxi (como aliás ele próprio admitiu em julgamento). O arguido diz que regressou para se entregar às autoridades, mas o facto é pouco verosímil porque não só o local onde o ofendido foi assistido e as autoridades compareceram não foi o da prática dos factos, como ele desconhecia que as autoridades estivessem nesse local, e não é essa uma forma normal de abordagem da autoridade. Se o arguido se tivesse querido entregar o natural é que se tivesse deslocado a uma esquadra de polícia. Impõe-se, na conformidade, a manutenção do ponto de facto em causa.

Ainda a propósito da questão dos documentos, o recorrente impugna que na mochila estivessem os seus documentos pessoais (ponto 2 do provado). Contudo, a questão é inócua porque não foi levada às conclusões do recurso e, mais do que isso, seria improcedente, porque o fundamento da impugnação se prende com matéria claramente não apreciada em sede de julgamento (factos ocorridos com o mandatário depois desse julgamento).

Improcede, na conformidade, a impugnação quer desse ponto do provado quer da factualidade contida no 2º parágrafo do não provado.

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B- Da errada subsunção dos factos aos tipos legais pelos quais foi condenado:

Entende o recorrente que os factos provados não integram o tipo de homicídio agravado tentado, mas sim o de roubo agravado, nos termos do artº 210º/ 2- a), do CP. Mais defende que não foram cometidos os crimes de detenção de arma proibida e de omissão de auxílio, porque a navalha utilizada tinha uma lâmina inferior a 10 cm e porque, sendo o crime praticado um crime doloso, “aquele se consumou neste, dada a preterintencionalidade do agente na produção do roubo”.

a- A questão do concurso entre roubo e homicídio, tem que ter em conta a alteração da redacção ora dada ao ponto 27 do provado. O referido ponto enquadra, agora, uma intenção e vontade de homicídio na forma eventual (artº 14º/3, do CP). Haverá lugar à condenação do agente por homicídio eventual e roubo simples, em situação de concurso real de crimes?

Desde logo impõe-se esclarecer que não ocorre situação alguma de preterintencionalidade, como referido pelo recorrente, porque o que se prova é que o arguido produziu lesões aptas a causar a morte ao ofendido, representando o resultado e admitindo-o como possível. Ou seja, todas as lesões provocadas pela violência que utilizou, como meio de colocação do ofendido na impossibilidade de resistir, foram previstas e aceites pelo agente, o que afasta a aplicação do regime do artº 18º/CP.

O crime de roubo (artº 210º/1, do CP) é um crime de dano e de resultado, quer quanto à subtracção quer quanto ao constrangimento levado a efeito pelos meios descritos no tipo – que ofende bens pessoais. Significa isto que exige um nexo de imputação entre a subtracção e a ameaça/violência/colocação na impossibilidade de resistir. 
  
A violência corresponde a uma força física importante, capaz de vencer a oposição firme do ofendido à acção de subtracção que estava em curso. A finalidade da violência empregue, na economia do crime, é precisamente a de colocar a vítima na impossibilidade de resistir.

O artº 210º/2-a), do CP, configura um tipo de roubo agravado, entre o mais, pela ocorrência de um perigo para a vida, perigo esse adveniente dos meios usados para produzir o roubo que (não sendo o resultado da acção, mas o meio de obtenção desse resultado - que é a subtracção) haverá de ter sido causado dolosamente (mediante qualquer das formulações do dolo, nos termos do artº 14º/CP) ([12]). Mesmo na hipótese em que o perigo advenha de ofensa à integridade física grave (subsumível à previsão do artº 144º/d), do CP) se exige dolo quanto ao perigo para a vida.

Ora, no caso, temos configurada uma situação de roubo, praticado através do desferimento de golpes de navalha no pescoço cara, mãos e braços do ofendido, sendo que um desses golpes atingiu a traqueia, provocando-lhe uma perfuração que colocou em risco a sua vida (pontos 11 e 12 do provado). O agente actuou admitindo como possível que dos golpes que desferia viesse a resultar perigo para a vida do ofendido, facto com o qual se conformou. Esta actuação quadra precisamente no tipo agravado, contido no referido artº 210º/2-a), do CP. Tendo o agente escolhido como meio de exercício dessa violência o uso de uma navalha, necessariamente que se conformou com a produção do tipo de lesões que o objecto oferece ou potencia, e entre elas a de perigo para a vida. Aliás, é exemplo de escola da ofensa à integridade física grave, pela provocação do perigo para a vida «o espetar um punhal afiado na laringe» conforme refere Paula Ribeiro Faria ([13]), situação em tudo semelhante à dos autos.

É que a previsão do tipo agravado configura uma norma especial, cuja aplicação derroga a aplicação das normas gerais. Ou seja, «se o perigo para a vida puder ser imputado ao agente a título doloso, tal situação será enquadrável no preceito em análise, derrogando este preceito a aplicabilidade do concurso efectivo de crimes» ([14]).

Temos, assim, por assente, que a conduta do arguido integra, não uma cumulação de crimes de roubo e de homicídio tentado, mas a prática de um crime de roubo agravado, p. pelo artº 210º/2-a), do CP.

A fundamentação da aquisição probatória coloca a questão da existência de uma especial intensidade na actuação do arguido que, diz-se, golpeou «com extrema gravidade o ofendido que ficou em perigo de vida». No entanto, é precisamente esse perigo de vida, resultante da violência dos meios empregues, que determina a qualificação do crime de roubo, sendo certo que no caso dos autos, em função da resistência e envolvimento gerado entre agressor e agredido, não se pode entender que houve um tal excesso na violência empregue para a substração que permita, com segurança, imputar ao agente uma intencionalidade de acção distinta da de neutralizar a resistência da vitima.

***

b- Vejamos agora a questão da subsunção dos actos do arguido ao crime de omissão de auxílio.
O tipo da omissão de auxílio tem por fonte directa o artº 323º, do CP, da então República Federal da Alemanha. Conforme resulta das actas das sessões da Comissão Revisora, o preceito consagra um dever jurídico de solidariedade social, que se reveste de relevo criminal numa civilização cristã, que elege o amor ao próximo como um dever moral altamente valorado. Contempla um dever de solidariedade social que consiste na prestação de auxílio ao próximo em situações em que se encontram em perigo bens fundamentais com consagração constitucional e reporta-se à tutela da vida, integridade física e liberdade, ou seja, bens jurídicos de ordem pessoal.

Trata-se de um tipo de crime de mera omissão, sem resultado tipicamente relevante e que, por isso mesmo, não coloca o problema da adequação da conduta à produção do resultado.

O dever de agir, consagrado no tipo, não radica numa injunção mas «no dever geral de diligência como regra que preside à relação dos sujeitos no comércio jurídico» ([15]); «na compreensão do homem - do homem socializado - como um ser “com-os-outros” e um “ser-para-os-outros» ([16]).

Esta solidariedade social não se perfila como um dever sem limites, sob pena de violação do princípio penal «nullun crimen sine lege»; ela move-se num campo limitado pelo puro dever moral (de configuração ou intensidade não suficientemente fortes para merecerem a tutela jurídico-penal) e pela situação de garante (derivada de uma especial relação com a situação, de monopólio ou de domínio ou senhorio, de tal modo que o agente exerça uma função de protecção do bem jurídico em perigo, ou por qualquer modo tenha uma função de controlo da fonte do perigo) determinante da verificação da comissão por omissão, nos termos do artº 10º/CP. Nos dizeres de Figueiredo Dias «a omissão de auxílio só entra em questão onde não exista um dever de garante do agente pela não verificação de um resultado típico» ([17]).

Ora, se é limite do tipo a comissão de crime por omissão, por maioria de razão o será a comissão por acção, quando o resultado visado ou o meio utilizado implique maior um grau de violação dos bens jurídicos tutelados relativamente àquele que a norma tutela. Significa isto que resultando o perigo (que se pretende evitar com o tipo da omissão de auxílio) da realização, pelo agente, de um tipo não omissivo, que vise (como resultado) ou utilize (como meio da acção) uma lesão dolosa do bem jurídico vida não ocorre concurso de crimes porque, pura e simplesmente, os crimes se encontram numa situação de exclusão. Não comete omissão de auxílio quem actua de modo a provocar a morte de outrem em qualquer das formas de dolo; comete, sim, um crime de homicídio ou um crime agravado que integre no tipo a produção dolosa de perigo para a vida da vítima.

Entende-se que não pode verdadeiramente falar-se em omissão do dever de auxílio, com autonomia penal, quando o resultado decorrente dessa mesma omissão não é senão o mesmo daquele que foi dolosamente determinado pelo agente. Sempre que o agente procura e cria, por actuação própria e dolosa, o perigo para o bem tutelado - no caso a vida do ofendido - não concorre com ele, como bem jurídico-penalmente tutelado com autonomia (mas apenas como resquício da intenção criminosa da acção) a omissão do dever de afastar tal perigo. Trata-se, no fundo, da velha questão da distinção entre acção e omissão: a ilicitude típica do acto do agente foi a de provocar a morte da vítima, o que abrange necessariamente a omissão dos cuidados necessários a evitar que ela não ocorra. A mais ampla intenção lesiva, determinante da actuação, consome necessariamente a omissão que, a não se verificar, seria normalmente decorrente de uma conduta do agente apta a configurar desistência (artsº 24º e 25º, do CP). Digamos, de outro modo, que no caso de actuação mediante a prática de actos que possam configurar uma qualquer forma de homicídio doloso (como resultado da acção ou como meio de acção) a violação do dever legal preclude a violação do mero dever de solidariedade social. No entendimento do Prof. Figueiredo Dias, o critério da distinção resulta da determinação, numa perspectiva normativo-social, do ponto de gravidade da valoração da ilicitude relativamente à conduta pessoal relevante, o que no caso dos autos se situa na admissão da possibilidade de ocorrência da morte da vítima.

Dos considerandos que se deixam resulta que se entende que a conduta do arguido, ao preencher o tipo do roubo agravado pela produção de perigo para a vida da vítima, exclui a imputação a título de omissão de auxílio.

***
c- Vejamos, por fim, a questão da comissão, ou não, do crime de detenção e uso de arma proibida.
O arguido foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida na pressuposição, errada, de que a lâmina da navalha usada no roubo tinha 10 cm de lâmina.
Reposto o provado de acordo com a perícia de que foi objecto a referida navalha, verifica-se que a navalha utilizada tinha uma lâmina de 7,5 cm de comprimento. A questão que se coloca é saber se o uso da referida navalha consubstancia, ou não, a prática do crime de detenção de arma proibida.
Nos termos do artº 86º/1-d), da Lei 5/2006 quem, sem justificar a sua posse, detiver ou usar armas brancas sem aplicação definida que possam ser usadas como arma de agressão comete o referido crime. Ainda nos termos do artº 86°/3 do NRJAM se determina que «as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

Por força do disposto no artº 2º/m, da referida Lei, arma branca é todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.

Por força do artº 3º/f), da referida lei são armas, munições e acessórios da classe A «as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção».

Considerada a globalidade do sistema imposto pela conjugação das referidas normas temos, então, que para efeitos de subsunção ao tipo contido no referido artº 86º/1-d), da Lei 5/2006 se integram na categoria de armas brancas:

- Os objectos ou instrumentos portáteis, dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm;
- Independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;
- As dissimuladas sob a forma de outro objecto;
- Os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm, que não tenham uma afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção.

Ora, tendo a lâmina da navalha usada menos de 10 cm há que considerar que não se mostra verificado um dos elementos do tipo do crime pelo qual o arguido foi condenado, nem o pressuposto da agravação da pena, decorrente da aplicação do nº 3 do artº 86º da Lei 5/2006, pelo que se impõe a absolvição do crime de uso de arma proibida e a não aplicação da referida agravação.

Contudo, nos termos do artº 4º do DL 48/95, 15/03 «para efeito do disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim». Este preceito mantém actualidade e não se mostra revogado pela entrada em vigor da Lei 5/2006, de 23/02 ([18]).Ou seja, tendo em conta este preceito conclui-se que o crime de roubo praticado é qualificado não só em razão do perigo para a vida como também pelo emprego de arma, nos termos do disposto no artº 210º/2-b), com referência para o artº 204º/2-f), do CP.
   
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C- Da medida da pena:

O recorrente defendeu, no recurso que as penas aplicadas se mostram excessivas e que deveriam, todas elas, ter sido graduadas perto do seu mínimo legal.

Na medida em que se concluiu pela comissão de um único crime de roubo agravado, p. e p. pelo artº 210º/2- a) e b), do CP, a questão mostra-se restrita à pena a aplicar por este crime. É que tendo o recorrente sido condenado pelo crime de roubo simples, impõe-se a revogação dessa pena e a escolha da pena adequada relativamente ao crime cometido, qualificado.

O referido crime é punível com pena de prisão de 3 a 15 anos.

Nos termos do artº 40º/CP, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (nº 1), sendo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2). Com efeito, a partir da revisão do Código Penal, de 1995, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. É este o critério da lei fundamental – artº18º/ 2, da CRP – e que foi assumido pelo legislador penal ([19]).

O limite máximo da pena fixar-se-á, necessariamente, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos. Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para dar resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Refere Claus Roxin, em consonância com os princípios basilares no nosso direito penal, que «a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.
A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.
Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais» ([20]).

Ou seja, a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar. A moldura de prevenção, por sua vez, é definida entre o limiar mínimo - abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias - e a medida máxima e óptima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas. Dentro desses limites relevam as exigências de prevenção especial de socialização, visando atingir a desmotivação adequada para evitar a recidiva por parte do agente, bem como a sua ressocialização ([21]).

Quanto à pena adequada à culpabilidade, isto é, adequada à culpa revelada – que fixa o máximo inultrapassável – ela deve corresponder à sanção que o agente do crime merece, ou seja, à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.

Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral ([22]).

Ao definir a pena o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido, para mais adequadamente determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena. Na sub-moldura da prevenção geral pesa, de sobremaneira, a importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva. Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido. Isto é, abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazem parte do tipo, mas que atenuam ou agravam a responsabilidade do agente – artº 71º/1 e 2 do C. P.

Ora, explicitados os procedimentos próprios da aplicação de uma pena vejamos o que se passa no caso dos autos.

Impõe-se a consideração de que a ilicitude da actuação do arguido é elevada, bem como a culpa manifestada.

Necessariamente, o arguido premeditou o crime. Em execução do plano, utilizou dos serviços profissionais do taxista para melhor adequar as circunstâncias exteriores à facilitação do ilícito, ou seja, apresentou-se à vítima numa situação comum de quem utiliza um táxi (o que permitiu mantê-lo na descontracção própria do exercício dessa profissão), encaminhou-a para onde bem entendeu e aí, utilizando a posição de domínio que o facto de estar no banco de trás e munido de uma navalha lhe concedeu, agarrou-a e foi nessa posição e com esse instrumento de corte que executou os actos necessários à eliminação de qualquer possibilidade de resistência.

Os actos de agressão cometidos foram dolosos, reiterados e abundantes. Não se considerando para efeitos da medida concreta da pena a gravidade da lesão apta a produzir perigo para a vida, que tipifica precisamente o tipo agravado pelo qual o agente será punido (e sob pena de violação do ne bis in idem), impõe-se a ponderação de que o arguido desferiu pelo menos 14 golpes que determinaram cicatrizes valoráveis médico-legalmente, em zonas tão distintas como uma perna, os braços, as mãos a cara e o pescoço do ofendido.

O arguido demonstrou frieza de ânimo na execução do crime, verdadeiramente censurável. Para além das circunstâncias já ponderadas no tipo (aqui não consideráveis, repete-se) o facto é que não se inibiu de manter um elevado nível de violência depois do primeiro acto de apropriação, de modo a vir a rebuscar a viatura do ofendido para lhe retirar ninharias patrimoniais, mantendo-o em risco de vida, a seu lado, numa situação de sangramento efectivamente perturbadora para a moral comum. Não obstante a colaboração da vítima, que logo informou o arguido de onde tinha o dinheiro, ele insistiu na prática delituosa para, a final, levar mais umas moedas e uma série de bens sem valor comercial tais como um maço de tabaco, chaves pessoais, canivete e carregador de isqueiro.

As lesões provocadas implicaram para o ofendido a submissão a uma delicada intervenção cirúrgica, a internamento e tratamentos, às dores e incómodos inerentes e determinaram-lhe sequelas físicas e morais para a vida.

Como atenuantes há que considerar que o arguido é primário e confessou o essencial dos factos e a situação de miséria denotada pelo facto de o arguido, migrante de pouco tempo, estar desempregado e a viver na rua - o que impõe a consideração de que a intenção de apropriação visasse minorar a falta de meios básicos de sobrevivência.

Em face do exposto, considera-se, pelo menos, medianamente elevada quer a ilicitude quer a culpa reveladas nos factos, o que determina que uma pena situada perto da metade da moldura penal se mostre ajustada. Essa pena, que seria de nove anos de prisão, mostra-se superior àquela que foi imposta ao arguido na instância recorrida, pelo que se impõe a sua redução para a medida da pena única já fixada, a fim de não beliscar a proibição de reformatio in pejus. É que não obstante essa pena única ter emergido de um cúmulo jurídico de penas por diversos crimes, os factos punidos por esse concurso criminoso são precisamente os mesmos que se punem agora através da subsunção a um único crime agravado. Ou seja, a pena limite para a proibição da reformatio in pejus encontra-se não numa qualquer pena parcelar imposta pela instância recorrida mas na pena única que a globalidade dos factos aqui considerados determinou.

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VI- Decisão:

Acorda-se, pois, concedendo parcial provimento ao recurso, em:
- Alterar a redacção dos seguintes pontos do provado:
«1 - No dia 21.04.2014, cerca das 00h03, na Avenida Dom João II, em Lisboa, o arguido munido de uma navalha com o cabo de 12,50 cm e 7,50 cm de lâmina, solicitou a J.M.P.F., motorista da viatura táxi, da marca “Citroen”, modelo 2C-Elysée”, com a matrícula XX, que o transportasse até ao Campo Grande, em Lisboa».
«6 – Seguidamente, em dado momento, o arguido desferiu-lhe um primeiro golpe com a navalha e de seguida, com o mesmo objecto, tentou alcançar-lhe o corpo através de movimentos que fez com aquela, aos quais o ofendido se foi opondo, virando-se para trás, entre os bancos da viatura, colocando os braços à frente e tentando, ao mesmo tempo, agarrar a mão que empunhava a navalha, até que o arguido, num desse movimentos, logrou alcançar e perfurar a traqueia do ofendido».
«27- O arguido admitiu como possível que dos golpes desferidos com a faca adviessem lesões que causassem perigo para a vida do ofendido, conformando-se com essa possibilidade».

- Revogar a condenação do arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 131º/1, 132º/2- e) e 23º, do CP, de um crime de roubo, p. e p. pelo artº 210º/1, do CP, na pena de dois anos de prisão, de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artº 200º/2, do CP, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º-d), da Lei 5/2006;
- Revogar as penas parcelares e a pena unitária pelas quais o arguido foi condenado na instância recorrida;
- Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artº 210º/2- a e b), no segundo caso com referência para o artº 204º/2-f), do CP, na pena de prisão por oito anos e seis meses.
- Manter, no demais, o acórdão recorrido.   
  Sem custas.


Lisboa, 03/ 06/2015

Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
                                                                          
(Maria da Graça M. P. dos Santos Silva)                  
(Ana Paula Grandvaux Barbosa)


[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.
[3] Cf. Eduardo Correia, em «Les Preuves en Droit Penal Portugais», na RDES, XIV, Janeiro-Junho/ 1967, 1-2, 29.
[4] Cf. Ac. TC nº 1165/96 e 464/97.
[5] Colhido pela CRP – artº 32º/2- e pelo CEDH – artº 6º§2.
[6] «Proof beyond any reasonable doubt, ou guilt beyond any reasonable doubt».
[7] Cf. Enzo Zappalà, em AAVV, «Il Libero Convincimento Del Giudiuce Penale. Vechie e Nouve Esperienze», Milano – Dott. A. Guiffrè Editore, 2004, 117, citado no AC.RE., nº 2457/06-1, de 30/01/2007, em www.dgsi.pt.
24-Cf. Cristina Líbano Monteiro, em «Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo» Coimbra Editora, 1997, 51-53.
[9] Cf. acs do TC, nº 429/95, 39/2004, 44/2004, 159/2004 e 722/2004.
[10] Cf. Cristina Líbano Monteiro, obra citada, 53.
[11] CF. Ac. da RE., nº 2457/06-1, de 30/01/2007, em www.dgsi.pt.
[12] Tendo em conta a inaplicabilidade do regime da agravação pelo resultado, contida no artº 18º/CP (porque a morte não é o resultado da acção mas o meio) e o princípio da tipicidade ou especificação que rege quanto aos crimes negligentes – artº 13º/CP. Cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, II, 184.
[13] Comentário Conimbricense…, I, pág. 232, em anotação ao artº 144º/d), do CP.
[14] Comentário Conimbricense…, II, pág. 186, em anotação ao artº 210º/2-a), do CP.
[15] Cf Beleza dos Santos, em «Lições de Direito Penal», Coimbra, pág 225.
[16] Cf. Figueiredo Dias, na R.L.J., nº 3706, págs. 18 e ss.
[17]Cf. Figueiredo Dias, na R.L.J., nº 3706, págs. 18 e ss.
[18] Neste sentido se pronunciou o STJ, no ac. de 13/12/2007, proc. 07P3210 e o ac. da R.P., de 05/06/2013, no processo 1091/11.4PJPRT.P1- em www.dgsi.pt.
[19] Cf. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 104/111.
[20] Cf. Derecho Penal- Parte General, I, (tradução da 2ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas),, pág. 99/101 e 103.
[21] Cf. Figueiredo Dias, em As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 238 e ss.
[22] Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevencion En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.