Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6473/22.3T8ALM-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Se A, embora diga agir como gestor de negócios da mãe, propõe a acção em nome próprio, é ele o autor e não a sua mãe, e, portanto, não há lugar à habilitação de herdeiros por morte dela, nem há lugar a qualquer ratificação.
II - Se no caso houvesse uma gestão de negócios representativa, isto é, se o A tivesse proposto a acção em nome da mãe [a mãe como autora, ele como seu representante sem poderes], a mãe só se tornaria autora com a ratificação da gestão de negócios (isto é, com a ratificação da propositura da acção em seu nome).
III – Admite-se que, neste último caso, se tivesse sido tentada a notificação da mãe para a ratificação da gestão e havendo notícia do seu falecimento, poderia haver lugar à habilitação dos herdeiros da mesma, por aplicação analógica do artigo 351/2 do CPC, mas seria uma habilitação de herdeiros de parte a notificar para a ratificação, não da parte autora, sendo que a divergência entre os herdeiros sobre a ratificação daria lugar à aplicação analógica do disposto no artigo 18/2-5 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Em 23/09/2022, A, “na qualidade de gestor de negócios da sua mãe” M intentou uma acção contra os compradores [irmã e cunhado dele, A] e o vendedor de uma fracção autónoma de que a mãe dele (dele, A) era arrendatária, para exercer direito de preferência naquela compra e venda, pedindo que fosse reconhecido tal direito de preferência da sua mãe e fosse transmitido a esta o direito de propriedade da fracção mediante o pagamento do valor da compra e venda, substituindo-se a mesma aos réus na escritura de compra e venda. Entre o mais dizia, no artigo 39, que “deverá o autor na sua qualidade de gestor de negócios considerar-se como parte legítima nos presentes autos.”
Já depois de os réus terem sido citados e contestado, a mãe de A faleceu (a 12/12/2022 – facto dado a conhecer pelos réus a 26/12/2022).
A 27/01/2023, A veio deduzir incidente de habilitação de herdeiros da sua mãe.
A secção só abriu conclusão no incidente a 28/02/2023 e a 01/03/2023 o mesmo foi liminarmente indeferido, porque, em síntese, a mãe de A não era parte/autora na acção.
A recorre deste despacho, alegando, em suma, que estava a agir, na acção, como gestor de negócios em nome da sua mãe, gestão representativa, pelo que esta era autora na acção; também diz que, mesmo que se entendesse que se estava perante uma gestão não representativa, a mãe sempre teria de ter sido notificada para aprovar [embora termine a dizer que seria para ratificar – penúltimo § da página 14, em contraposição às páginas 13 e 14 em que fala de aprovação] ou não a gestão de negócios e, para esse efeito, teria de haver habilitação de herdeiros.
Os réus não contra-alegaram.
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O recurso foi remetido a este TRL sem que os requeridos tivessem sido notificados quer do recurso quer do indeferimento liminar, pelo que o apenso teve de ser devolvido; em 11/10/2023 o apenso foi de novo remetido a este TRL, sem ter ainda decorrido o prazo de contra-alegações; só em 17/10/2023 o recurso ficou em condições de ser decidido.

Questão que importa decidir: se devia ter sido dado seguimento ao incidente de habilitação por morte da mãe de A.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que resultam do relatório supra, importando apenas salientar que, como resulta da transcrição feita acima, A nunca disse, na petição inicial, estar a agir em nome da sua mãe, ao contrário do que pretende no recurso. Disse apenas que estava a agir na qualidade de gestor de negócios da sua mãe.
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Apreciação:
A gestão de negócios pode ser não representativa (se se diz gerir negócio alheio em nome próprio), ou representativa (se se diz gerir negócio alheio em nome desse outem) (veja-se Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 9.ª edição. Almedina, 1998, páginas 468-469; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 1997, páginas 186 e 191; Júlio Gomes, no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCP/FD/UCE, 2018, páginas 242-243; Rui Ataíde, Direito das Obrigações, vol. I, Gestlegal, 2022, página 265; Ribeiro Faria / Miguel Pestana de Vasconcelos / Rute Teixeira Pedro, Direito das Obrigações, vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2020, pág. 349; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, Almedina, pág. 69; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2010, 9.ª edição, pág. 521; e Vaz Serra, anotação ao ac. do STJ de 29/03/1976, RLJ 111, pág. 303).
Ao intentar a acção, A não disse estar a fazê-lo em nome da sua mãe, antes invocou o seu próprio nome: autor, ele, A, em gestão de negócios da sua mãe (e está-se a considerar, tal como a decisão recorrida, a própria petição inicial e não o formulário da petição inicial, pelo que toda a argumentação do recorrente à volta do que colocou no formulário e das razões porque o fez, é irrelevante).
Logo, não se está perante uma gestão representativa.
Logo, o autor era A e não a mãe (a “dona do negócio”, ou melhor, a titular do interesse gerido).
Veja-se, por exemplo e para confirmação: se A, numa escritura de compra e venda, diz comprar, em gestão de negócios de B, o prédio X, o prédio passa a ser de A (artigos 471, 2.ª parte, e 1180 de CC). Com a simples referência à gestão de negócios de B, ele só está a dizer que está a gerir os interesses de B, não está a dizer que o está a fazer em nome de B.  
No acórdão do STJ de 29/03/1976, anotado por Vaz Serra, citado abaixo, um dos outorgantes celebra um contrato de arrendamento declarando intervir como gestor e em representação [sem poderes - TRL] dos seus proprietários (vê-se isso logo no sumário do acórdão publicado na mesma RLJ, páginas 297 a 301).
Assim, Antunes Varela, obra citada, págs. 483-484; Galvão Telles, obra citada, págs.191-193; Júlio Gomes, obra citada, págs. 242-243; Rui Ataíde, obra citada, págs. 265 e 280-281; Ribeiro Faria e outros, obra citada, págs. 359 a 362; Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 116-117; Menezes Leitão, obra citada, págs. 521-523; e Vaz Serra, anotação citada, pág. 303).
Por isso, a decisão recorrida está certa: a mãe não era a autora, pelo que não podia haver lugar a incidente de habilitação pela sua morte.
E, tendo em conta a ambiguidade dos termos utilizados pelo  autor no recurso, esclareça-se que nestes casos não há lugar a ratificação da gestão (que só tem sentido em relação a actos praticados em nome do titular do interesse – assim, expressamente, apenas por exemplo, Antunes Varela, obra citada, pág. 482) e que esta não se confunde com a aprovação (sendo que não há lugar a qualquer notificação processual para aprovação).
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A benefício da discussão, admita-se a hipótese contrária (até porque a acção continuou a correr os seus termos, já tendo decisão com recurso interposto, e neste pode vir a julgar-se, ou já se pode ter julgado, que a gestão era representativa), isto é, que A dizia estar a agir em nome da sua mãe (propunha a acção indicando a mãe como autora, agindo ele como seu representante sem poderes e em gestão de negócios). Isto é, admita-se que havia uma gestão representativa.
Se assim fosse, a sua mãe devia ter sido notificada (artigos 471, 1.ª parte, e 268/3, ambos do CC) – notificação determinada oficiosamente (neste sentido, expressamente Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 139), pelo juiz, “normalmente no despacho pré-saneador (artigo 590-2-a do CPC)”, dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre no CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2017, pág. 126, para uma situação paralela do artigo 49 do CPC, tanto mais que, por natureza, na hipótese que tratam, a gestão é sempre representativa: um advogado propõe a acção ou contesta-a em nome de alguém; não diz que propõe a acção ele próprio ou que é ele o autor, nem diz ser ele próprio o contestante (Alberto dos Reis, obra citada, páginas 137-139, vai insistindo na ideia de que o advogado actuou em nome de outrem; também assim no Comentário ao CPC, vol. 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1960, páginas 55-57; o mesmo se diga de Anselmo de Castro, DPCD, vol. II, Almedina, 1982, páginas 147-148; ou seja, a situação normal, nestes casos, é o advogado propor a acção em nome do titular do interesse e assinar a petição como advogado em gestão de negócios – e, sendo assim, é esta mais uma razão, a contrario, para dizer que o autor, nestes autos, agiu em nome próprio e não em nome da sua mãe, como acima se concluiu) -, para vir aos autos ratificar, querendo, o acto da propositura da acção pelo filho em seu (dela, mãe) nome.
Se o fizesse (ratificasse), a gestão do filho em seu nome tornar-se-ia, então (artigos 471, 1.ª parte, e 268/1, ambos do CC) eficaz, isto é, a mãe tornar-se-ia, por isso, autora (com efeitos retroactivos à data da acção - artigo 268/2 do CC).
A comparação com a actuação de um mandatário representativo ajuda a compreender o regime. Se A, mandatário com poderes representativos de B, celebrar, em nome de B, uma compra de X, B torna-se proprietário com a celebração dessa compra e venda (artigo 258 do CC). Mas se A agir como gestor de negócios de e em nome de B (naturalmente que sem poderes representativos – se os tivesse não haveria gestão de negócios), B só se tornará proprietário de X depois de ter ratificado o negócio (artigos 471/1 e 268/1 ambos do CC).
Daí que Antunes Varela (obra citada, páginas 481-482) explique que “pode haver aprovação sem ratificação, se o dono não quiser contestar os direitos atribuído por lei ao gestor, mas não se dispuser a chamar a si algum ou alguns dos negócios que este celebrou em seu nome […]”. Ou, mais à frente (págs. 483-484), no estudo de “em que termos se repercutem tais actos [os actos jurídicos praticados pelo gestor] na esfera jurídica do titular dos interesses atingidos”, diga que “a resposta, depende, em primeira linha, da qualidade em que o gestor tiver intervindo. Se agiu em nome de outrem (gestão representativa) aplicar-se-ão os princípios da representação sem poderes (artigos 471 e 268). O negócio será eficaz, se for ratificado pela pessoa em cujo nome foi celebrado, considerando-se a ratificação recusada, se não for feita dentro do prazo que a outra parte do negócio eventualmente fixar para o efeito. Não sendo ratificado, o negócio é ineficaz em relação ao dominus.”
No mesmo sentido, os outros autores, obras e locais citados acima.
Assim, nesta hipótese – que se considera não ser a dos autos – a mãe de A só poderia passar a ser considerada autora se e quando tivesse sido ratificado a actuação do filho.
O artigo 49/2-3 do CPC chama parte [autora] ao titular do interesse gerido, mesmo antes da ratificação, mas isso apenas como reflexo do princípio da tutela provisória da aparência (Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. I, AAFDL, 1978-1979, página 237-238: “a aparência vale como realidade para o efeito de determinar se o é ou não”); se ele (no caso, ela, a mãe) já fosse realmente parte antes da ratificação, as consequências tiradas pela falta de ratificação – a acção tinha-se como não proposta e o processo findava (Alberto dos Reis, nas obras e locais citados) - não fariam sentido; considerar como parte a mãe, desde logo, sem aquela ressalva, era a mesma coisa que considerar que a mãe seria logo a compradora de X no caso de o filho ter decidido comprar uma coisa como seu gestor de negócios e em seu nome, apesar de ela não ter sido sequer chamada à ratificação desse acto de gestão.
Sendo que, tendo, entretanto, falecido a mãe, o gestor, como filho, poderia vir a ser colocado na situação de poder ratificar a gestão - a hipótese é lembrada por Ribeiro Faria e outros, obra citada, página 362, nota 873, com referência a Vaz Serra, RLJ 111, página 306 (em anotação ao acórdão do STJ de 29/03/1976; Vaz Serra defende que o direito de ratificação pode ser transmitido nos termos gerais aos sucessores do seu titular (páginas 303 e 306-307) - o acórdão e a anotação de Vaz Serra foram obtidos através do GAJD do TRL)).
Aqueles autores fazem, na mesma nota, a ressalva seguinte: “Ponto é que ela [a ratificação] não tenha um carácter estritamente pessoal.” Esta ressalva é explicada assim pelo Prof. Vaz Serra naquele local: “tal poder de ratificação transmite-se, nos termos gerais, aos sucessores do seu titular, a não ser que tenha carácter simplesmente pessoal, isto é, que da interpretação do acto resulte haver sido constituído no exclusivo interesse pessoal do dominus negotii de modo a não ser transmissível aos seus sucessores. Ora, no caso do acórdão, não parece que tenha sido intenção das partes limitar aos então proprietários do prédio a faculdade de ratificação do contrato. Portanto, essa faculdade ter-se-ia transmitido à afirmada gestora por efeito da aquisição […]” [sem distinguir, crê-se, pelo que antecede, sem razão, Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não cumprimento das obrigações, UCE/Porto, 2017, páginas 512-513, no âmbito da acção sub-rogatória, dá como exemplo de um direito que compete pessoalmente ao devedor, e que, por isso, não pode ser exercido pelo credor, o da ratificação de um negócio realizado por um representante sem poderes].
“[…O] direito potestativo de, por via judicial – através de uma acção de preferência – se substituir ou subrogar ao adquirente da coisa, no contrato por este celebrado com o obrigado à prelação”, surgido quando “o obrigado à prelação alienar a coisa sem proporcionar ao preferente, de acordo com o regime legal, a possibilidade de, em igualdade de condições, a adquirir por si” (Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina,1990, págs. 226-227) é transmissível por morte (veja-se, por exemplo, o ac. do STJ de 04/04/1995, proc. 086968; Pinto Furtado, Comentário ao RAU, 3.ª edição, Almedina, páginas 591-592, trata só da hipótese de o direito já ter sido exercido pelo arrendatário, isto é, de este já ter feito a declaração de preferência, mas não há razão para não estender a transmissibilidade também ao direito potestativo constituído com a venda em violação da preferência legal), pelo que esta ressalva não tem aplicação ao caso (seria diferente no caso da preferência convencional, face ao disposto no artigo 420 do CC, excepto se tivesse sido convencionada a transmissibilidade - Agostinho Cardoso Guedes, Comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCP/FD/UCE, 2018, páginas 108-109). Reconhecendo o carácter patrimonial – e não pessoal – do direito de preferência e admitindo por isso a impugnação pauliana em relação à renúncia ao exercício desse direito, veja-se o acórdão do TRC de 05/06/2007, proc. 2222-L/1996.C1.
Admite-se, por isso, para estes efeitos, que o modo de colocar o filho no lugar da mãe, para a ratificação da gestão, no caso de, tentada a notificação da mãe para a ratificação da gestão haver notícia do seu falecimento, poderia passar por uma habilitação de herdeiros da mesma, por aplicação analógica do artigo 351/2 do CPC, mas seria uma habilitação de herdeiros de pessoa [que, nesta medida, era uma parte, uma terceira parte, no caso provisória] que se estivesse a tentar notificar para a ratificação, não da habilitação de autora; se houvesse então ratificação, os herdeiros passariam a estar na acção, como autores, no lugar da sua mãe, por força da habilitação na ratificação seguida da ratificação (fonte do que antecede vem do caso da necessidade de citação do devedor na sequência da propositura da acção em sub-rogação pelo credor, prevista no artigo 608 do CC, do estudo que Margarida Lima Rego faz desta acção, publicado na revista Themis, ano VII, n.º 13, 2006, As partes processuais numa acção em sub-rogação, págs. 63-108, e da consideração, por esta autora, de que o devedor é uma terceira parte naquela acção; em termos sintéticos, veja-se a anotação da autora ao artigo 608 do CC, no CC anotado CEDIS/Almedina, 2019, vol. I, 2.ª edição, páginas 823-825). A divergência entre os herdeiros (as inúmeras dificuldades a que a regra da transmissibilidade pode dar lugar entre os herdeiros, de que fala Antunes Varela, CC anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 371), resolver-se-ia nos termos do artigo 18/2-5 do CPC, por aplicação analógica.
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Em suma, na primeira hipótese, que é a que se verifica no caso dos autos, não havia lugar a habilitação de herdeiros, porque autor era A e não a sua falecida mãe. Na segunda hipótese, que se considera não ser a dos autos, poderia haver lugar a uma habilitação de herdeiros da mãe, mas enquanto pessoa que se estivesse a procurar notificar para ratificar a gestão de negócios, o que também não era o que se passava na acção, pelo que também não havia lugar à habilitação.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pelo autor (A).

Lisboa, 26/10/2023                                       
Pedro Martins
Orlando Nascimento
Laurinda Gemas