Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
086968
Nº Convencional: JSTJ00027194
Relator: FERNANDO FABIÃO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
LOCATÁRIO
MORTE
TRANSMISSÃO DE DIREITOS
HABILITAÇÃO
HERDEIRO
Nº do Documento: SJ199504040869681
Data do Acordão: 04/04/1995
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4548/A
Data: 05/31/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR CIV - DIR CONTRAT / DIR SUC.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 270 A ARTIGO 276 N3 ARTIGO 371 N1 ARTIGO 373 N1.
CCIV66 ARTIGO 1111 N1 N3 N4 ARTIGO 2024 ARTIGO 2025 N1.
RAU90 ARTIGO 85.
L 63/77 DE 1977/08/25 ARTIGO 1 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RC DE 1985/05/21 IN CJ TIII ANOX PAG75.
ACÓRDÃO STJ DE 1976/01/08 IN BMJ N255 PAG195.
ACÓRDÃO STJ DE 1981/07/28 IN BMJ N309 PAG342.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/06/22 IN CJ TII ANOI PAG161.
ACÓRDÃO STJ DE 1985/04/11 IN BMJ N346 PAG215.
ACÓRDÃO STJ DE 1985/12/17 IN BMJ N352 PAG352.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/05/05 IN BMJ N367 PAG493.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/04/07 IN BMJ N416 PAG626.
Sumário : I - A habilitação-incidente destina-se a colocar no processo onde intervinha o falecido o sucessor dele, precisamente no lugar que ele ocupava, a fim de a causa prosseguir seus termos com ele.
II - Há situações jurídicas que se transmitem, mas não segundo o regime da sucessão propriamente dita, e antes segundo outro regime por lei estabelecido. É o caso do direito ao arrendamento, o qual, para se transmitir, não basta a morte do seu titular (artigo 1111 do Código Civil de 1966 e artigo 85 da RAU90).
III - Se a autora propôs uma acção para lhe ser reconhecido o direito de preferência na alienação por ser arrendatária do prédio alienado e ela falecer no decurso da acção, quem lhe suceder, para se habiliar para prosseguir a a acção em lugar da autora, não precisa de alegar os requisitos de que depende a transmissão do arrendamento e basta-lhe provar a sua qualidade de sucessor porque o que está em causa é a transmissão do direito de preferência e este já se tinha radicado no património da autora falecida. À hora da morte era um bem da sua herança e transmissível aos herdeiros.
IV - A intransmissibilidade da preferência estabelecida no artigo 420 do Código Civil de 1966 respeita apenas
à preferência convencional.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na Relação de Lisboa, A veio requerer contra B e mulher C e
D a sua habilitação e a desta última requerida, para com elas prosseguir o processo principal, onde, estando este pendente de recurso na Relação, faleceu a autora E, à qual os habilitandos sucederam como herdeiros, como consta da escritura de habilitação notarial.
Na sua contestação, os requeridos B e mulher C disseram não se ter transmitido para os habilitandos o direito ao arrendamento do prédio, que dava legitimidade à autora para exercer o direito de preferência, pelo que deve ser indeferido o requerimento em causa.
O senhor Relator indeferiu o requerimento, mas, levado o processo à conferência, a pedido daquela requerente, foi proferido acórdão que declarou habilitadas como sucessoras da falecida autora E a requerente A e a requerida D, embora com voto de vencido do primitivo Relator.
Deste acórdão agravaram os requeridos B e mulher, os quais, na sua alegação, concluíram assim:
I - o que está em causa no processo principal é a discussão sobre o direito de preferência, consequência que é do direito ao arrendamento;
II - estando pendentes do recurso os autos principais a propriedade do prédio em causa não se encontra integrada, mesmo provisoriamente, no património da falecida autora;
III- se é certo que o direito ao arrendamento se transmitiu para a falecida autora por óbito de seu marido, tendo, por isso, ela legitimidade para exercer o direito de preferência;
IV - a requerente A não provou, nem sequer alegou, ter-se transmitido para ela o direito ao arrendamento;
V - a transmissão do direito ao arrendamento é um pressuposto indispensável para o exercício do direito de preferência;
VI - a A e a D não podem ser julgadas habilitadas como herdeiras da falecida E para com elas prosseguirem os autos principais;
VII- o acórdão recorrido violou o artigo 1111 do Código Civil e, hoje, o artigo 85 n. 1 alínea e) do R.A.U.
Na sua contra-alegação, a recorrida concluiu:
I' - o direito legal de preferência ingressa no património do preferente no momento da alienação;
II' - como tal, transmite-se mortis causa aos seus herdeiros, com abstracção da situação locatícia que originou;
III'- só o direito convencional de preferência se extingue pela morte do preferente, por força de preceito expresso da lei, o qual, dado o seu carácter excepcional, não consente aplicação analógica;
IV' - deve ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
A Relação deu como provados os factos seguintes:
1 - E intentou, em 2 de Março de 1987, uma acção de preferência com processo ordinário contra C e B e mulher, na qual, com fundamento na sua qualidade de arrendatária do 1. andar do prédio sito na Rua
Conde das Antas, n. 69, Lisboa, e pelas demais razões articuladas na petição inicial, pediu que lhe seja reconhecido a ela, autora, o direito de preferência na venda do mesmo prédio celebrada entre os réus F e B, por escritura de 18 de Setembro de 1986, e de haver para si o mesmo imóvel, substituindo-se nela ao comprador, pelo preço de 2000000 escudos, ou, quando assim se não entenda, pelo de 2234363 escudos, com, cancelamento do registo da aquisição a favor dos réus B e C;
2 - proferido o despacho de citação, a autora juntou documento comprovativo do depósito à ordem do Excelentíssimo Juiz do processo da importância de
2234363 escudos;
3 - os réus contestaram arguindo a ilegitimidade do réu Fernando e dever ter sido depositada a quantia de 2238003 escudos (faltando assim 3640 escudos, sendo 3180 escudos do selo do contrato-promessa e
460 escudos de custo da fotocópia notarial da escritura de compra e venda para efeito do registo da transmissão) e pronunciando-se ainda pela improcedência da acção, em essência por a autora, pela sua conduta, ter demonstrado desinteressar-se da compra do prédio;
4 - sem mais articulados e após tentativa de conciliação, que se gorou, foi proferido o saneador-sentença, que julgou improcedentes as arguidas excepções da ilegitimidade do réu
Fernando e da insuficiência da quantia depositada, e, passando a conhecer do mérito, julgue a acção procedente, reconhecendo à autora o direito de haver para si o prédio alienado, nos precisos termos peticionados, e autorizando o 2. réu a levantar a quantia depositada;
5 - em recurso de apelação interposto pelos três réus, o acórdão da Relação de 26 de Janeiro de 1989, transitado em julgado, veio a considerar o réu
Fernando parte ilegítima e a absolvê-lo da instância e a revogar o saneador-sentença para que a acção prosseguisse termos com prolação no saneador de especificação e questionário;
6- baixados os autos à 1. instância, foram elaborados especificação e questionário, de que reclamaram, com êxito parcial, os réus B e mulher, e, tendo ambas as partes arrolado prova testemunhal e os réus requerido depoimento de parte da autora, não foi, por despacho lavrado em acta de julgamento do qual agravaram os réus, permitida a protecção de prova por as partes não terem efectuado preparos para julgamento e veio, em 16 de Maio de 1990, a ser proferida sentença, que de novo julgou a acção procedente e reconheceu à autora o direito a haver para si o prédio alienado, em conformidade com os termos por ela peticionados, e ficando os réus B e mulher autorizados a levantar a quantia depositada, sentença esta da qual estes réus uma vez mais apelaram;
7 - por acórdão da Relação de 18 de Abril de 1991, transitado em julgado, foi dado provimento ao agravo e anulado todo o processado posterior ao despacho de folha 128, incluindo o julgamento, para que se proceda de forma correcta ao cumprimento dos ns. 1 e 6 do artigo 107 do C.C.
Judiciais, seguindo-se a partir daí os subsequentes termos regulares do processo, e, em consequência, foi declarado prejudicado pela decisão do agravo o conhecimento da apelação;
8 - de novo o processo na 1. instância, seguiu regulares termos, vindo a ser proferida sentença em 18 de Novembro de 1991, que julgou a acção procedente e, em consequência, reconheceu à autora o direito de haver para si o prédio alienado por C, através da escritura referida, nela substituindo como adquirente o réu B e mulher, ficando estes réus autorizados a levantar a quantia depositada e cancelando-se o registo de aquisição de tal prédio a favor dos referidos B e mulher;
9 - desta sentença de 18 de Novembro de 1991, recorreram os réus B e mulher, recurso que foi admitido no tribunal a quo e recebido no
Tribunal da Relação como de apelação e com efeito suspensivo;
10 - em 3 de Setembro de 1993, depois de feitas as alegações e corridos os "vistos", os apelantes requereram a suspensão da instância (artigo 277 n. 1 do Código de Processo Civil) com fundamento no óbito da dita E, ocorrido em 9 de Julho de 1993;
11 - em 9 de Novembro de 1993, foi proferido despacho a declarar a instância suspensa;
12 - em 1 de Março de 1994, a requerente A requereu o mencionado incidente de habilitação já referido acima no relatório;
13 - em tal escritura de habilitação notarial, as referidas D e A
são reconhecidas como únicas sucessoras da falecida E, respectivamente, como irmã e como sobrinha, filha única de irmão pré-defunto;
14 - os requeridos B e C contestaram a habilitação, nos termos acima referidos;
15 - como também já se referiu, o Relator, julgou a habilitação improcedente.
O termo "sucessão" empregado na alínea a) do artigo
270, do Código de Processo Civil, como um dos meios que leva à substituição de alguma das partes, deve ser entendido em sentido amplo, mais amplo que o de sucessão propriamente dita, e por isso abrange a transmissão mortis causa mesmo que esta transmissão não derive de sucessão.
Por outro lado, o n. 1 do artigo 373 do mesmo Código de Processo Civil prevê explicitamente que a qualidade "que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida" seja diversa da "qualidade de herdeiro", do que resulta que o objecto do incidente de habilitação é determinar quem tem qualidade que o legitime "para substituir a parte falecida", e averiguar se o habilitando tem as condições legalmente exigidas para a substituição da parte falecida (Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, edição de 1965, páginas 288 e 289).
Aliás, a mesma ideia ressalta do n. 1 do artigo 371 ainda do Código de Processo Civil, quando se refere à habilitação dos sucessores da parte falecida para com eles prosseguirem os termos da demanda.
Temos, assim, que a habilitação-incidente se destina a colocar no processo onde intervinha a parte falecida o sucessor ou sucessores da falecida precisamente no lugar que esta ocupava, a fim de a causa prosseguir com ela (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil
Anotado, volume I, 3. edição, páginas 573 e seguintes;
Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, edição de 1964, página 623; Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, edição de 1980, página 234).
Significa isto que a morte de uma das partes pode dispensar a sua substituição e por isso a habilitação dos sucessores, como expressamente resulta do disposto no n. 3 do artigo 276 do Código de Processo Civil, segundo o qual a morte ou a extinção de alguma das partes não dá lugar à suspensão mas à extinção da instância, quando torne impossível ou inútil a continuação da lide (Lopes Cardoso, obra citada, páginas 290, 291); na mesma ordem de ideias, já se decidiu não bastar que o habilitando seja herdeiro da parte falecida para que proceda o pedido de habilitação, sendo indispensável demonstrar que, segundo o direito substantivo, ele lhe sucedeu na relação jurídica em litígio (acórdão da Relação de Coimbra, de 21 de Maio de 1985, C.J. 1985 Tomo 3, 79; acórdão do S.T.A. de 8 de Janeiro de 1976, Boletim do Ministério da Justiça 255, 195).
E, na verdade, se há casos de situações jurídicas que se extinguem com a morte e não são objecto de sucessão
(por exemplo, as situações de natureza pessoal e as situações que a lei declara intransmissíveis), há outras que se transmitem, mas não segundo o regime da sucessão e antes segundo outro regime por lei estabelecido. É o caso do direito ao arrendamento (artigo 1111 do Código Civil e artigo 85 do R.A.U.), como decorre do facto de alguns dos beneficiários não serem sucessíveis legais e se exigir que eles satisfaçam determinados requisitos (J. de Oliveira Ascensão, Direito Civil Sucessões, 50 e seguintes;
Gomes da Silva, Curso de Direito das Sucessões, edição de 1959, 67).
E isto mesmo resulta do disposto no artigo 2025 n. 1 do
Código Civil, que dispõe: "Não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei".
No presente caso, atento os factos dados como provados
(as habilitandas D e A são irmã e sobrinha, respectivamente, da falecida autora do processo principal, E, a qual intentou a acção para lhe ser reconhecido o direito de preferência na alienação do prédio por ser arrendatária deste, arrendamento que se transmitiu para ela por óbito do seu falecido marido) e visto o preceituado no artigo 1111 ns. 1, 3 e 4 do
Código Civil (apesar de a E já não ser a primitiva arrendatária, ainda se verifica a transmissão de arrendamento, de que ela, cônjuge sobrevivo, é titular, a favor dos parentes e afins, uma vez que o citado n. 4 do artigo 1111 permite, excepcionalmente, uma segunda transmissão do direito ao arrendamento, quando o beneficiário da primeira tenha sido o cônjuge sobrevivo), acontece precisamente o caso a que aludimos: o direito ao arrendamento transmitiu-se por morte da E, mas não é um direito hereditável, isto é, não basta ser herdeiro para suceder nesse direito e torna-se necessário, para a transmissão do direito, provar os requisitos estabelecidos no artigo 1111 (além do parentesco, o próprio direito ao arrendamento e a convivência de pelo menos há 1 ano, sendo que, como vem sendo entendido, só é arrendatário quem habita efectivamente o prédio, de acordo com o preceituado no artigo 1 n. 1 da Lei 63/77, de 25 de Agosto) (Pires de Lima e Antunes Varela, C.C.
Anotado, volume II, 1. edição, 400; M. Januário C.
Gomes, Arrendamento para Habitação, 161 e seguintes; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Julho de 1981, 22 de Junho de 1993, respectivamente, Boletim do Ministério da Justiça 309, 342, C.J. do Supremo 1993, Tomo II, 161, o primeiro deles com comentário favorável de Antunes Varela na R.L.J. 116, página 223).
Ora, no caso sub-júdice, a requerente apenas alegou a qualidade de herdeiras das habilitandas e nada disse quanto aos factos de que dependia a transmissão do arrendamento para as mesmas habilitandas.
Simplesmente, o que está em causa não é a transmissão do direito ao arrendamento da falecida Maria Idalina
Ribeiro para as habilitandas mas a transmissão do direito de preferência, daquela para estas, por via sucessória.
Ora, não sofrem dúvida as conclusões seguintes: o direito de preferência, existindo embora antes de efectuada a alienação da coisa, só no momento desta alienação é que se radica no seu titular e ingressa no património deste; a procedência da acção de preferência tem como resultado a substituição, com eficácia ex-tunc, do adquirente pelo preferente, tudo se passando como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com este último, muito embora o contrato de alienação entre o alienante e o adquirente produzisse a sua eficácia translativa normal mas ficando a posição jurídica do adquirente sujeita, por força do direito de opção, a uma condição resolutiva (Pires de Lima e
Antunes Varela, C.C. Anotado, volume III, 2. edição,
380 e 381, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7. edição, volume I, 368; Galvão Teles, Direito Das Obrigações, 6. edição, 153; Ab. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 220 M. Baptista Lopes,
Do Contrato De Compre e Venda, 368: acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 1985, 17 de
Dezembro de 1985, 5 de Maio de 1987, 7 de Abril de
1992, respectivamente, Boletim do Ministério da Justiça
346, página 215, 352, página 352, 367, página 493, 415, página 626).
Sendo assim, é indiscutível que o direito de preferência da falecida autora E, se vier a ser reconhecido por sentença transitada em julgado, já existia no património dela à data em que faleceu e por isso é um bem constitutivo da sua herança e transmissível para as habilitandas, suas herdeiras
(artigos 2024 e 2025 do Código Civil).
Daí que não seja preciso mais nada para as habilitandas poderem ser consideradas habilitadas como sucessoras da falecida autora E.
Resta advertir que a intransmissibilidade da preferência estabelecida no artigo 420 do Código Civil respeita apenas à preferência convencional.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 4 de Abril de 1995
Fernando Fabião,
César Marques,
Martins da Costa.