Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1503/12.0TBPDL.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
NULIDADE ATÍPICA
EFEITOS
RENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: 1. Nos casos em que é exigível a licença de utilização, o contrato de arrendamento celebrado sem que exista tal licença é nulo, sendo que a nulidade só pode ser declarada enquanto a falta não for suprida mediante a obtenção da necessária licença de utilização, estando em causa uma nulidade atípica, porquanto não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, nem invocada pelo senhorio sempre que o arrendatário, confrontado com a inexistência da licença de utilização (quando a mesma é necessária) e por causa imputável ao senhorio, não quis resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.
2. A invocação da nulidade do contrato, após a cessação do mesmo e depois de ter usado o local durante algum tempo integra uma situação de abuso do direito.
3. Mesmo que se considere nulo o contrato de arrendamento, se houve detenção, ocupação e uso do arrendado, é devido o valor correspondente à utilização da coisa, em geral em montante equivalente à renda acordada.
(Sumário da responsabilidade da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
L, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito de Manuel, intentou contra C, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, pedindo a condenação da R. a pagar à herança de Manuel a quantia de €12.500, correspondente a rendas em dívida e relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2010, Janeiro a Dezembro de 2011, e Janeiro a Maio de 2012, descontado já o valor de €400 pago pela R. em Janeiro de 2012, quantia que deverá ser acrescida de juros de mora, devidos desde a data de vencimento de cada uma das rendas e até integral e efectivo pagamento, que liquidou, na data, em €366,87.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
Manuel faleceu em 6.10.2004, no estado de casado com a A., tendo sido habilitadas como suas herdeiras a A. e a filha Maria, permanecendo indivisa a herança, da qual faz parte o r/c do prédio urbano sito na Rua, em P…, com os nºs ... e ....
Por contrato de 1.10.2008, foi cedido à R. o gozo e fruição dos espaços correspondentes ao referido r/c, mediante o pagamento da renda mensal de € 825 (reduzida em 1.08.2010 para €700 mensais), para neles se dedicar à comercialização de instrumentos musicais, acessórios e artigos de papelaria, o que a R. fez através de loja que aí instalou sob a designação de “M”.
Em 1.04.2012, a R. entregou à A. o espaço correspondente ao nº ... livre e desembaraçado, tendo sido acordado que a renda mensal correspondente ao nº 38º-A seria de €500, e em 1.06.2012, a R. entregou à A. o espaço correspondente ao nº ... livre e desembaraçado, sem que, porém, tivesse pago as rendas em dívida desde Novembro de 2010.
Regularmente citada, a R. contestou, por excepção, invocando ter sido acordado que as rendas devidas seriam compensadas com o valor das obras que a R. fez no local arrendado para o tornar apto ao exercício da actividade comercial, e deduziu reconvenção, alegando, em síntese:
O local arrendado não se encontrava apto ao exercício de qualquer actividade comercial, nem possuía, como não possui, licença de utilização.
Assim, em Outubro de 2008, ficou acordado que a R. efectuaria todas as obras necessárias à abertura e funcionamento do local arrendado como estabelecimento comercial, sendo o custo dessas obras descontado pela R. no valor das rendas a pagar à A.
Nessa sequência, a R. efectuou obras (instalação de sistema eléctrico, pintura, colocação de grades exteriores e reparação e remodelação das casas de banho), no que despendeu a quantia de € 16.974,59, tendo-se, porém, a A. recusado a compensar a R. das despesas efectuadas, como acordado, o que levou esta a deixar de pagar a renda devida a partir de Novembro de 2010, até completo ressarcimento daquelas.
Termina pedindo a sua absolvição do pedido e a condenação da reconvinda a pagar à reconvinte a quantia de €4.974,59, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até efectivo pagamento, solicitando, ainda, que se dê conhecimento à CM de P... do processado, nos termos do art. 5º do DL nº 160/2006 de 8.08.
A A. respondeu, propugnando pela improcedência da excepção invocada e da reconvenção.
Em audiência preliminar, foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador, e seleccionadas matéria de facto assente e B.I., as quais não sofreram reclamações.
Falecida a A., foram habilitados seus sucessores Maria, Luís e José.
Procedeu-se a audiência de julgamento, vindo, oportunamente, a ser proferida sentença que julgou: a) a acção totalmente procedente, por provada, e em consequência condenou a R. C no pagamento à A. L (posição agora ocupada pelos seus herdeiros Maria, Luís e José em razão de habilitação) da quantia global de €12.866,87, referente às rendas não pagas e ainda nos juros de mora vencidos, à taxa legal em vigor; bem como condenou a R. no pagamento de juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, calculados desde o dia 15 de Junho de 2012 sobre o montante de €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros) até efectivo e integral pagamento; e b) totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo a A. do pedido reconvencional.
Inconformada com a decisão, apelou a R., tendo, no final das respectivas alegações, formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1) Em sede de contestação suscitou a apelante a ineficácia do contrato em discussão nos autos em virtude do mesmo não dispor de licença de utilização para comércio;
2) O tribunal recorrido não conheceu dessa matéria devendo, por isso, a decisão recorrida ser considerada nula, à luz do artigo 615º, nº 1, al. d) do CPCivil;
3) Resulta documentalmente provado, por ofício emitido pela edilidade de P... (fls. 101) que o espaço arrendado para o comércio, à data da outorga do contrato, não dispunha da necessária licença de utilização.
4) Esta licença era elemento essencial da outorga desse contrato sob pena de ineficácia (art. 5º do Decreto-Lei nº 160/2006 de 8 de Agosto).
5) Em face deste vício originário deverá a apelante ser absolvida do peticionado.
6) Ao assim não julgar atentou a decisão recorrida contra o preceituado no referido artigo 5º.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a absolvição da apelante do peticionado.
Os AA. contra-alegaram, propugnando pela manutenção da decisão.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC) as questões a decidir são:
a) se a sentença é nula por omissão de pronúncia;
b) da ineficácia do contrato de arrendamento por falta de licença de utilização.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.          
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos, que não foram impugnados:
1. Manuel faleceu em 6 de Outubro de 2004, no estado de casado sob o regime da comunhão geral de bens com a A. L.
2. Foram habilitados como herdeiros de Manuel a ora A. – L -, e a filha, Maria.
3. A herança deixada pelo de cujus permanece indivisa, sendo a A. a cabeça-de-casal da herança indivisa deixada pelo seu falecido marido.
4. Do acervo hereditário fazem parte os espaços correspondentes ao rés-do-chão de um prédio urbano sito na Rua, freguesia de , concelho de P..., com os números … e … de polícia.
5. Por contrato escrito, celebrado em 1 de Outubro de 2008, e com efeitos desde essa data, foi cedido temporariamente à R. o gozo e fruição dos referidos espaços de rés-do-chão com os números ... e ... de polícia, para que neles a R. se dedicasse à comercialização de instrumentos musicais, acessórios e artigos de papelaria.
6. Do contrato mencionado em 5) resulta, entre o mais que:
i) “o segundo contratante [R.] deve fazer uso prudente do arrendado, estando a seu cargo todas as obras no interior, de conservação ou beneficiação, e as de manutenção do bom estado de funcionamento das instalações de rede de distribuição de água, de electricidade e dos esgotos ou saneamento, que sirvam o arrendado;
ii) “o segundo contratante [R.] não pode realizar quaisquer obras que não sejam previamente autorizadas por escrito, pelo primeiro outorgante, e devidamente licenciadas, sendo que se essas forem de beneficiação ou consideradas benfeitorias, ficam a fazer parte do arrendado sem direito a qualquer pagamento ou indemnização seja de que tipo ou natureza for”.
7. A R. instalou nos referidos espaços uma loja, que gira sob a designação de “M” e que se dedicava ao fim delimitado pela cláusula terceira do contrato, ficando acordado entre as partes que a R. pagaria pela utilização dos espaços correspondentes aos números … e … da Rua de … a renda mensal de €825,00.
8. Em 1 de Agosto de 2010, a A. e a R. reduziram o valor da renda para €700,00 mensais.
9. Em 1 de Abril de 2012 a R. entregou à A. o espaço correspondente ao nº ... de polícia, o que resultou na redução do objecto do contrato até então vigente entre as partes que acordaram que a renda mensal para o espaço correspondente ao nº ... de polícia seria de €500,00.
10. Encontram-se em dívida as rendas relativas aos seguintes meses: a) de Novembro e Dezembro de 2010, à razão de €700,00 por cada mês, o que importa em €1.400,00; b) de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2011, à razão de €700,00 por cada mês, o que ascende em €8.400,00; e de Janeiro, Fevereiro e Março de 2012, à razão de €700,00 por cada mês, o que se cifra em €2.100,00.
11. Por conta das rendas em atraso, em Janeiro de 2012, a R. pagou à A. a quantia de €900,00.
12. Em 1 de Junho de 2012, a R. entregou à A. o espaço correspondente ao n.º ... de polícia livre e desembaraçado.
13. A R. instalou no local arrendado um sistema eléctrico, incluindo montagem do quadro eléctrico, fichas, interruptores e candeeiros; colocou portas exteriores e interiores, com substituição das existentes por se encontrarem danificadas e não ofereceriam qualquer segurança para as pessoas e bens; pintou o local arrendado que apenas possuía uma demão de tinta sendo visíveis as paredes interiores e exteriores; colocou grades no exterior; reparou e remodelou as casas de banho passando, inclusive, pela substituição das loiças que se encontrarem partidas.
14.A A. recusou-se a deduzir na renda o montante despendido pela R.
15. Na última semana do mês de Março de 2012, a A. através de um indivíduo de nome Luís exigiu que a R. abandonasse o espaço com o nº ... de polícia, já que tinha um interessado para o arrendamento do imóvel.
16. Na última semana do mês de Março de 2012 ou início de Abril seguinte o mencionado Luís, diária e insistentemente, colocou-se no exterior e interior da “M” onde em voz alta exigia que a R. desocupasse esse ... apelidando-a de “caloteira”.
17. A R. entregou esse ... em Abril de 2012, passando a ocupar o espaço correspondente ao ....
18. Houve dias em que o local ocupado pela R. (...) ficava privado de energia eléctrica.
19. Os elementos colocados nos espaços locados e referidos em 13. não podem ser  removidos.
Nos termos do disposto no art. 607º, nº 4, 2ª parte do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 663º, nº 2 do mesmo diploma legal, considera-se, ainda, assente:
20. Segundo informação da CM de P..., o estabelecimento sito à Rua de, nº ..., freguesia de … não possui licença de utilização (fls. 101).
21. Segundo informação da mesma CM, foi aí apresentado pela A. requerimento para alteração de utilização datado de 19.05.2008 (fls. 101 e 102).
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Começa a apelante por invocar a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC, por não ter o tribunal recorrido conhecido da questão da ineficácia do contrato de arrendamento objecto dos autos à luz do art. 5º do DL. 160/2006 de 8.08, por si suscitada.
Dispõe o art. 615º, nº1 do CPC que “é nula a sentença quando: … d) o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar …”.
A nulidade referida está em correspondência directa com o 1º período do nº 2 do artigo 608º.
Como referia Alberto dos Reis, in CPC Anotado, Vol. V., pág. 142, a propósito do art. 660º do CPC29, de redacção idêntica, “…  Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. A nulidade que examinamos resulta da infracção do referido dever”.
Sobre a nulidade da sentença em causa, escrevia Antunes Varela, in RLJ, ano 122, pág. 112, que “não pode confundir-se de modo nenhum, na boa interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto e de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão”.
Também, Alberto dos Reis ensinava, in loc. cit., pág. 143, que “são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Como se escreve no Ac. do STJ de 06.05.04, P. 04B1409, in www. dgsi.pt, “É, antes de mais, de salientar que questão a resolver, para os efeitos do art. 660º do C.Proc.Civil, é coisa diferente de questão jurídica (v.g., determinação de qual a norma legal aplicável e qual a sua correcta interpretação que, como fundamento ou argumento de direito, pudesse - ou até devesse - ser analisada no âmbito da apreciação da questão a resolver). A melhor resolução da questão a resolver deveria, porventura, levar à apreciação de várias questões jurídicas, como válidos argumentos e como fundamentos da decisão sobre tal questão. Se o juiz, porém, não apreciar todas essas questões jurídicas e não invocar todos os argumentos de direito, que cabiam na melhor ou mais desejável fundamentação da sua sentença ou acórdão, mas vier a proferir decisão, favorável ou desfavorável à parte, sobre a questão a resolver, haverá apenas fundamentação pobre ou, no máximo, falta de fundamentação, mas não omissão de pronúncia”.
Deve "o juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, não constituindo nulidade da sentença “a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado" - José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in "Código de Processo Civil Anotado", vol. 2º, Coimbra, 2001, pág. 670.
No caso em apreço, a questão fulcral a apreciar era a das rendas em dívida peticionadas pela A., às quais a R. contrapôs o seu direito à compensação com o montante por si gasto em obras no locado, conforme acordado.
Estas as questões que se colocaram ao tribunal recorrido, em termos de pedido/causa de pedir e excepção invocada, e que o tribunal recorrido apreciou [1].
 É certo que na contestação a R. também fez referência à falta de licença de utilização do locado, mas da mesma não retirou qualquer consequência, nomeadamente para invocar a excepção de não cumprimento, ou a “ineficácia do contrato” que agora, em sede de recurso, vem sustentar, pelo que o tribunal recorrido não omitiu pronúncia sobre qualquer questão que lhe competisse conhecer, tanto mais que a alegada “ineficácia” do contrato não é de conhecimento oficioso como a seguir melhor se explicará.
Não ocorre, pois, a nulidade invocada, improcedendo, nesta parte, a apelação.
E padece o contrato de arrendamento objecto dos autos de ineficácia, como sustenta a apelante ?
O contrato de arrendamento em causa foi celebrado em 1.10.2008, em plena vigência do NRAU, aprovado pela L. 6/2006 de 27.02, em cujo âmbito há-de, pois, ser analisado.
Dispõe o art. 1070º do CC que “1. O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização quando seja exigível. 2. Diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior e define os elementos que o contrato de arrendamento urbano deve conter”.
O artigo em causa dispõe sobre matérias anteriormente reguladas pelos arts. 8º e 9º do RAU, sendo que, agora, remete para legislação avulsa, atento o carácter administrativo e regulamentar das matérias em causa[2], mais concretamente para o DL. 160/2006 de 8.08 (ver art. 1º deste diploma).
Estatui-se no mencionado diploma legal que quando o contrato de arrendamento urbano deva ser celebrado por escrito, do mesmo deve constar “a existência da licença de utilização, o seu número, a data e entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível, nos termos do art. 5º” (art. 2º, al. d) na redacção anterior à introduzida pelo DL. nº 266-C/2012 de 31.12, correspondendo, actualmente, à al. e)).
Por seu turno dispõe o art. 4º do mesmo decreto-lei que “a falta de algum ou alguns dos elementos referidos nos arts. 2º e 3º não determina a invalidade ou ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos”.
No que respeita à licença de utilização, dispõe o art. 5º do mencionado diploma que “1- Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização. 2- O disposto no número anterior não se aplica quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do RGEU, aprovado pelo DL. nº 38382 de 7.08.1951, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data da construção. 3- Quando as partes aleguem urgência na celebração do contrato, a licença referida no nº 1 pode ser substituída por documento comprovativo de a mesma ter sido requerida com a antecedência mínima prevista a lei. 4- A mudança de finalidade e o arrendamento para fim não habitacional de prédios ou fracções não licenciados devem ser sempre previamente autorizados pela câmara municipal. 5- A inobservância do disposto nos nºs 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a uma ano de rendas, observando-se os limites legais estabelecidos no DL nº 433/82, de 27.10, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável. 6- … 7- Na situação prevista no nº 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais. 8- O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo caso disso, da aplicação da sanção prevista no nº 5 e do direito do arrendatário à indemnização. 9- …”.
A exigência da licença de utilização baseia-se na necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer de segurança, salubridade ou estética.
Como se explica no Ac. da RP de 20.06.2011, P. 3321/07.8TBVCD.P1, rel. Desemb. Caimoto Jácome, in www.dgsi.pt, e consta do respectivo sumário, “Há que distinguir entre licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica (v.g., habitação, comércio, profissão liberal, etc.) e a licença de utilização para o exercício de qualquer espécie daquele género (farmácia, consultório médico, restaurante, etc.), sendo diversos os titulares de direitos que podem requerer o licenciamento. Só a primeira é obrigação do senhorio, por se tratar de licenciamento do edifício para necessidades comuns a certo tipo de utilização e conciliá-lo com os direitos dos restantes condóminos e com a própria estrutura e configuração do edifício e suas acessibilidades. Já as licenças, com o respectivo alvará, para o exercício de certo ramo (que podem implicar a realização de obras internas, instalações de água e electricidade próprias e definição de áreas de compartimentos) cumprem ao arrendatário que pretende exercer a actividade específica. O licenciamento dos estabelecimentos comerciais visa assegurar a higiene, a salubridade, a segurança, a comodidade e as condições técnico-funcionais na instalação e laboração dos mesmos”.
No caso, nada se refere no contrato de arrendamento quanto à existência ou não da licença de utilização, e dos factos provados (ora aditados) não se poderia concluir, com segurança, pela inexistência da mesma, uma vez que fica a dúvida se o ofício se refere à licença de utilização para o fim de comércio, ou para o ramo concreto.
Contudo, nos arts. 44º a 46º da contestação, a A. reconheceu não existir licença de utilização, à data da celebração do contrato, por se encontrar, ainda, o respectivo procedimento administrativo em curso.
Assim, admitindo que, à data da celebração do contrato de arrendamento objecto dos autos, não existia a competente licença de utilização (para o fim destinado – comércio), tal não implica, como pretende a apelante, a ineficácia, tout court, do respectivo contrato.
Foi o art. 8º do Decreto-Lei n.º 38.383, de 07.08.1951, que aprovou o RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas), que determinou a exigência de licença de utilização ou habitabilidade [3], “a fim de combater a construção clandestina, impedindo assim que as respectivas construções fossem legalmente transaccionadas” [4].
No que concerne aos arrendamentos comerciais, veio posteriormente o artigo 1º do DL nº 329/91, de 04.12, prescrever requisitos para a celebração das respectivas escrituras públicas, estabelecendo que “Só poderão ser efectuadas escrituras de arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal mediante a apresentação pelo locador de licença camarária donde conste ser essa a finalidade do imóvel ou que autorize a mudança de finalidade, se for outra…”.
Com a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10, passou a exigir-se, no contrato de arrendamento urbano (para arrendamentos comerciais ou habitacionais), a menção da existência da licença de utilização, quando o objecto ou o seu fim o implicasse (artigo 8.º, n.º 2, alínea c) do RAU).
E o nº 1 do art. 9º do RAU estabelecia que “só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido seja atestado pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato”.
Estatuindo o nº 4 do referido artigo que a falta de licença obstava à outorga da escritura, sendo que com a alteração decorrente do Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22.4, passou este normativo a ter a seguinte redacção “a existência de licença de utilização bastante ou, quando isso não seja possível, do documento comprovativo da mesma ter sido requerida, deve ser referida no próprio texto do contrato, nos termos da alínea c), do nº 2, do artigo anterior, não podendo ser celebrado qualquer contrato de arrendamento sem essa menção”.
Ou seja, apesar de licença de utilização surgir como um requisito formal do contrato de arrendamento, só após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22.04, é que a falta da menção da licença de utilização passou a ser impeditiva da celebração do próprio contrato de arrendamento, já que até essa data apenas obstava à realização do contrato de arrendamento urbano mediante escritura pública.
O incumprimento do prescrito no referido artigo 9º quanto à licença de utilização era cominado com uma coima (nº 5), e com a eventual nulidade do contrato de arrendamento, concedendo-se ao arrendatário a faculdade de resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais ou, ainda, a possibilidade do arrendatário requerer a notificação do senhorio para a realização das obras necessárias (nº 6).
Em 27.02.2006 foi publicada Lei nº 6/2006, que aprovou o NRAU, passando a questão da licença de utilização a ser regulada pelo DL. 160/2006 de 8.08, por força da remissão do art. 1070º, nº 2 do CC, como já supra referido.
O art. 5º do Decreto-Lei nº 160/2006, de 8.08, à semelhança do regime anterior, mantém a respectiva exigência (nºs 1 e 3), a sanção pecuniária a cargo do senhorio, na hipótese da sua preterição (nº 5), e o direito do inquilino à resolução do contrato com direito a indemnização nos termos gerais.
Embora com algumas alterações, o artigo corresponde parcialmente ao art. 9º do RAU.
O art. 5º do DL. 160/2006, de 8.08, mais não é do que a concretização da previsão do art. 2º, al. d), como, aliás, do mesmo consta, pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, nenhum sentido tem a alegação da apelante de que o art. 5º, pela sua colocação sistemática, está afastado das consequências descritas no art. 4º.
Ora, estipula este artigo que “a falta de algum ou alguns elementos referidos nos artigos 2º e 3º, não determina a invalidade ou ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos”.
Este artigo corresponde, parcialmente, ao art. 8º, nº 4 do RAU, mas em manifesta inovação, porquanto inclui no seu âmbito a falta de licença ou autorização de utilização, o que aquele não fazia, por força da ressalva inicial que do mesmo constava [5].
Face ao actual regime legal, nos casos em que é exigível a licença de utilização, o contrato de arrendamento celebrado sem que exista tal licença é nulo, sendo que a nulidade só pode ser declarada enquanto a falta não for suprida mediante a obtenção da necessária licença de utilização.
Em todo o caso, em causa está uma nulidade atípica, “…na medida em que não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, nem invocada pelo senhorio sempre que o arrendatário, confrontado com a inexistência da licença de utilização (quando a mesma é necessária) e por causa imputável ao senhorio, não quis resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais – art. 5º, nº 7 do DL 160/2006. Com efeito, o arrendatário pode considerar que a resolução do contrato fundada em incumprimento é-lhe mais vantajosa do que a simples declaração de nulidade” (Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, na ob. e loc. citados na nota 4).
No caso, a arrendatária, com conhecimento do vício apontado, não exerceu o direito à resolução do contrato, utilizando sempre o arrendado para o fim contratado, até à sua entrega, carecendo de justificação a sua invocação, findo o contrato e perante acção com vista ao pagamento de rendas não pagas.
Aliás, ainda que se entendesse estar em causa verdadeira nulidade, nunca poderia proceder a invocação da nulidade do contrato pela R., por actuar em manifesto abuso de direito.
Neste sentido se pronunciou o Ac. da RP de 10.07.2013, P. 1921/11.0TJVNF.P1, rel. Desemb. José Carvalho, in www.dgsi.pt, no qual se escreveu que “A invocação da nulidade do contrato, após a cessação do mesmo e depois de ter usado o local durante algum tempo integra, conforme o decidido na sentença recorrida, uma situação de abuso do direito, por revelar que o inquilino excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé (art. 334.º). Esta exige que as partes adoptem “uma linha de correcção e probidade, tanto na constituição de relações entre elas como no desempenho das relações constituídas. E com o duplo sentido dos direitos e dos correlatos deveres em que as relações jurídicas se analisam: importa que sejam aqueles exercidos e estes cumpridos de boa fé. Mais ainda: tanto sob o ângulo positivo de se agir com lealdade como sob o ângulo negativo de não se agir com deslealdade; quer dizer, impõe-se um comportamento que envolve aspectos activos e omissivos” (M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.ª ed., 1984, p. 80). … A conduta dos Réus (a Ré F… teve intervenção no contrato na qualidade de sócia gerente da 1.ª Ré), ao arguir a nulidade do contrato apenas no decurso da presente acção, sem que tivessem suscitado tal questão enquanto a 1.ª Ré usou efectivamente o locado, opõe-se a uma linha de correcção e probidade na relação entre as partes. Estaremos em presença de uma inalegabilidade formal, caracterizada por Menezes Cordeiro como a situação da pessoa que, por exigências do sistema, não se pode prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma (Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspectivas, in Estudos em Homenagem ao Doutor Castanheira Neves, II, p. 148). Apenas foi suscitada a questão da falta de menção da licença de utilização quando o contrato já tinha cessado e quando os Réus foram demandados na acção. O abuso do direito paralisa a invocação da nulidade do contrato”.
Abuso de direito que é de conhecimento oficioso.
Por último cumpre, ainda, referir que mesmo que se considerasse nulo o contrato de arrendamento em causa, nunca a pretensão da apelante (de ser absolvida do pedido) poderia proceder na totalidade, porquanto, como constitui jurisprudência pacífica do STJ, se houve detenção, ocupação e uso do arrendado (como no caso se verificou, durante um período de mais de 3 anos), é devido o valor correspondente à utilização da coisa, em geral em montante equivalente à renda acordada – entre outros, cfr. os Acs. do STJ de 15.02.2005, P. 4401/04-6, in "Sumários", nº 88, pág. 42, de 6.04.2006, P. 05B4346, rel. Cons. Pereira da Silva, de 19.02.2008, P. 08A194, rel. Cons. Sebastião Póvoas, estes em www.dgsi.pt.
Nos termos do art. 289º, nº 1 do CC, a nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Consequentemente, deve o senhorio, à partida, restituir, em espécie, a totalidade das rendas recebidas, e a locatária restituir ao senhorio o espaço cujo gozo, em arrendamento, recebeu.
Bem como deve, ainda, pagar a parte objectivamente correspondente à sua utilização do prédio, normalmente equivalente à renda acordada.
A este propósito preconizava Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, FDUL, 1979, Vol. III, págs. 690 e 691, que “Anulado o contrato, cada parte deve restituir o que recebeu, em espécie ou em valor. O senhorio restitui em espécie – deve a totalidade das rendas recebidas. Mas o inquilino deve a parte objectivamente correspondente à sua utilização do prédio – é uma extensão que nos parece absolutamente admissível da imposição da restituição em valor, “se a restituição em espécie não for possível” determinada pelo art. 289.º, nº 1. Os dois deveres compensam-se, o que se traduz em o senhorio dever restituir ao inquilino (…) a soma que excede o valor objectivo do uso e fruição do prédio. Esta solução acomoda-se ao princípio geral do enriquecimento sem causa – “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (art. 473.º, nº 1)”.
A R. já restituiu o locado, mas não satisfez parte da retribuição a que estava obrigada durante o período em que o fruiu, e que correspondia ao valor da renda contratualmente fixada, pelo que sempre estava obrigada a pagar o referido valor contratual do uso do locado de que beneficiou.
Por tudo quanto se deixa escrito, improcede, pois, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 2015.01.13
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(Cristina Coelho)
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(Roque Nogueira)
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(Pimentel Marcos)
[1] Não sendo a decisão sobre as mesmas objecto do recurso.
[2] Como expressamente se refere no preâmbulo do DL. 160/2006 de 8.08.
[3] Estipulando que “A utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes nas suas características carece de licença municipal”.
[4] António Paes de Sousa, in Anotações ao RAU, 3ª ed. act., págs. 83 e 84.
[5] Como referem Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, pág. 720, a ressalva inicial contida no nº 4 do art. 8º acabava, no fundo, “por criar um regime sancionatório especial para os casos de omissão da licença e autorização de utilização. Este quadro de excepção levava a que não padecessem de nulidade os contratos de arrendamento concluídos mesmo que não existisse licença de utilização bastante”.