Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1334/18.3TBALM.L1-8
Relator: MARIA CARLOS DUARTE DO VALE CALHEIROS
Descritores: ATROPELAMENTO
PASSADEIRA DE PEÕES
AUSÊNCIA DE CULPA
REPARTIÇÃO DO RISCO
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- No caso de atropelamento de peão por veículo automóvel sem que tenha sido apurada culpa de qualquer deles não há lugar à repartição entre o risco do veículo e o risco do peão, não integrando essa hipótese a previsão do artigo 506º , nº 1 , do C. Civil , sendo-lhe em contrapartida aplicável o regime preconizado pelo artigo 503º , nº 1 , do C. Civil .
II- O que está em causa no âmbito do dano biológico é a violação do direito à integridade física e moral da pessoa, constitucionalmente tutelado , entendido este como o respeito das diversas dimensões ( física, psíquica , mental , afectiva e social ) inerentes a todo o ser humano, cujas repercussões patrimoniais e não patrimoniais geram a obrigação de indemnizar .
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO
K., identificado nos autos, instaurou acção declarativa com processo  comum contra S. , identificada nos autos , pedindo a condenação da Ré:
a) a pagar ao autor a quantia de 2 464 726,06 euros , sendo 31 062,48 euros a título de  despesas que suportou  com tratamentos , 420 000,00 euros a título de tratamentos e cuidados de saúde e do apoio de terceira pessoa que se prolongarão durante, pelo menos, 10 anos, 1 550 194,58 euros a título de indemnização de dano patrimonial futuro decorrente da impossibilidade de continuar a auferir rendimentos do trabalho , 250 000,00 euros a título de indemnização  pelo dano biológico e  250 000,00 euros a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, tudo acrescido do pagamento de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
b) Ser a ré condenada a pagar ao autor a quantia a remeter para liquidação referente a danos futuros e não contemplados no pedido em a).
Para tanto alegou , em síntese , que quando efectuava a travessia da faixa de rodagem, na passadeira de peões, foi atropelado pelo condutor do veículo seguro na ré , que conduzia distraído e sob o efeito de canabinóides, e em consequência sofreu lesões neurológicas irreversíveis e uma  incapacidade permanente de  95%, o que determinou  os danos cuja ressarcimento reclama.
A Ré contestou, impugnando a factualidade invocada pelo Autor , e sustentando ter sido o autor que deu causa ao atropelamento.
Foi deferida a ampliação do pedido inicial em 43 377,59 euros, fundada em despesas de tratamento .
Foi deferida a ampliação do pedido inicial em 589 341,13€ , fundada em despesas atinentes a vários tratamentos, medicação, consultas, transporte e a título de necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa.
Foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente , decidindo-se :
a) condenar a Ré a pagar por danos emergentes a quantia de 161 068,04 €, acrescida de juros contabilizados desde a citação, à taxa legal ; 
b) condenar a Ré a pagar por dano patrimonial futuro na vertente de lucros cessantes a quantia  de 288 426,03 €,  acrescida de juros contabilizados desde a citação, à taxa legal.
c) condenar a Ré a pagar por danos não patrimoniais quantia de 210 000,00 €,  acrescida de juros, à taxa legal, contabilizados desde a data da sentença.
d) O que totaliza 659 494,07 € que reduzido de 1/3 ascende a 439.662,71€ (quatrocentos e trinta e nove mil seiscentos e sessenta e dois euros e setenta e um cêntimos), absolvendo a Ré  do demais peticionado.
Inconformado com a decisão o Autor veio interpor recurso , apresentando as seguintes conclusões , que se transcrevem na íntegra :
I. Existe um erro de cálculo no ponto 3.3.1 da sentença quando considera os factos dos artigos 25º;39º e 52º a 64º dos TP para concluir que aquela quantia totaliza 161.068,04€ quando daquela soma temos 162.328,04€ (O tribunal a quo não somou a quantia do mencionado art.º 54º de 1.260,00€). Vide: 12.580.50 € + €490,52 + €12.000,00 + € 1.260,00 + 268,40€ + 1.641,59€ + €1.121,00 + 2.448,14€ + 49.760,71 € + 11.821.50€ + 4.713,28€ + 60.000,00€ + 1.000,00€ + 3.222,40€.
II. A sentença é nula porquanto dá como provado no ponto 2.1.8 (TP 38) que “Entre Fevereiro e Julho de 2018, o autor manteve-se internado na Clínica do Norte do Instituto Luso-Cubano de Neurologia, a título dos programas de tratamentos de recuperação e consultas de naturopatia/homeopatia, tendo despendido €26.694,48. (art.º 38º dos TP)” e depois no ponto 3.3.1 onde computa os danos emergentes com tratamentos, entre outros, esquece de aditar o Facto Provado 38 e assim somar a quantia despendida com aqueles tratamentos no valor de €26.694,48, o que configura uma nulidade, alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.
III. Os danos emergentes devem assim ser fixados em 189.022,52€, conforme factos provados em 2.1.25; 2.2.38; 2.1.39 e 2.1.53 a 2.1.64.
IV. O acidente dos autos configura uma colisão entre um veículo automóvel e um peão.
V. O tribunal a quo concluiu que não podia ser assacada qualquer culpa ao condutor do veículo nem ao peão.
VI. Nessa sequência o tribunal a quo aplica a responsabilidade pelo risco.
VII. E com suporte legal no art,º 506º do Código Civil (Colisão de Veículos), distribui a responsabilidade pelo risco em 1/3 para o peão e 2/3 para o veículo.
VIII. Não existe divisão de responsabilidade pelo risco para um peão.
IX. Um peão é um utilizador vulnerável e não um veículo, alínea q) do art.º 1º do Código da Estrada.
X. Um peão não emana riscos próprios da sua circulação.
XI. Numa colisão de um veículo com um peão em que não se prova a culpa de qualquer destes intervenientes funciona o risco mas do art,º 503º n.º 1 do Código Civil.
XII. As directivas da união europeia, designadamente a 5ª directiva de 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2005, vão no sentido de conferir uma protecção cada vez maior aos utilizadores vulneráveis como o são os peões.
XIII. A interpretação e aplicação do art.º 506º do C.C ao caso dos autos não encontra o mínimo de correspondência literal porquanto não se trata de uma colisão de veículos, mas sim de um veículo com um peão.
XIV. A interpretação do art.º 506º do C.C no sentido de abranger um eventual risco próprio de um peão é contrário e violador do principio de protecção dos utilizadores vulneráveis da 5ª directiva de 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2005 e do art.º 503º n.º 1 do C.C., o que se invoca.
XV. Assim andou mal o tribunal a quo ao dividir a responsabilidade pelo risco entre um veículo e um peão em que qualquer dos intervenientes não tem culpa, violando os artigos 503º n.º 1, 506º n.º 1 do Código Civil e 1º A da Directiva n.º 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de maio de 2005, o que a não ter acontecido teria conduzido a uma solução conforme preconizada pelo recorrente, a determinação da responsabilidade total da recorrida.
XVI. O tribunal a quo incorreu ainda em erro de análise da prova produzida no que concerne aos rendimentos auferidos pelo recorrente, contrariando pois o que já havia indiciariamente assente nas 2 providências cautelares apensas.
XVII. Com o devido respeito andou mal o tribunal a quo na fixação da matéria de facto do n.º 31, designadamente ao concluir que o recorrente auferia cerca de 1.000,00 $ mensais quando este auferia pelo menos 5.000,00€.
XVIII. Dos documentos n.ºs 17 e 18, juntos com a PI, do ofício junto pela sociedade B., de 03-10-2018, junta aos autos sob a referência Citius 20808512, do depoimento da Testemunha F. V. prestado em 03-11-2020 e 05-11-2020, com inicio em 16:22:24 até às 17:32:56 e de 10:09:43 até às 11:24:26, respectivamente, bem como da prova assente nas 2 providências cautelares, bem assim como da prova considerada no seu conjunto, deve o ponto 31 dos factos provados ser alterado e passar a ter a seguinte redacção: “O autor era trabalhador dependente da empresa “B.” com a categoria profissional de Director Administrativo Financeiro, do que auferia, mensalmente uma retribuição fixa e outra variável, de pelo menos, cerca de 5.000,00€.”
XIX. Atendendo a que o tribunal a quo determinou o dano patrimonial futuro por referência ao salário de cerca de 1.000,00 $ ao invés dos 5.000,00€ que realmente auferia, deve tal facto ser considerado para fixação da compensação.
XX. O recorrente peticionou uma quantia a título de dano patrimonial futuro pela perda de rendimentos futuros (nunca mais poderia trabalhar), uma compensação pelo dano biológico na vertente não patrimonial pela afectação psicossomática e uma indemnização pelos danos não patrimoniais pelo sofrimento físico e psíquico. Porém o tribunal a quo apenas arbitrou uma compensação pelo dano patrimonial futuro e pelos danos não patrimoniais.
XXI. O dano patrimonial futuro pela perda de rendimentos não deve confundir-se com o dano biológico na vertente não patrimonial pela afectação psicossomática, pela perda da qualidade de vida e limitações a nível pessoal e social.
XXII. O valor arbitrado pelo tribunal a quo de 288.426,03€ é uma compensação pela perda de rendimentos futura, não uma indemnização pelo dano biológico na sua vertente não patrimonial e como tal deve considerar-se para efeitos do peticionado pelo recorrente a título de dano patrimonial futuro.
XXIII. Ademais, volvida a fundamentação do tribunal a quo para fixação dos danos não patrimoniais também não podemos concluir que o dano biológico está ali implícito.
XXIV. Por conseguinte andou mal o tribunal a quo ao não se pronunciar sequer sobre o pedido de indemnização a título de dano biológico na vertente não patrimonial, violando os artigos 8º n.º 3, 483º, 496º e 562º, todos do Código Civil.
XXV. Assim e salvo melhor opinião deve ser individualizado o dano biológico na vertente não patrimonial e que se computa em 250.000,00€ atentas as suas graves sequelas com 95% de incapacidade permanente e a sua total dependência de terceiros para todas as actividades da vida diária com estado de consciência mínimo.
XXVI. Neste caso particular releva especialmente a actualização dos capitais mínimos do seguro obrigatório, através de um processo faseado que, atenta a realidade nacional, se pretendeu suave e progressivo, quer seja por um período de transição de cinco anos, quer pelos limites máximos de capital por sinistro. “(Preâmbulo do Dec. Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto)”.
XXVII. Convém relembrar que a actualização dos capitais mínimos obrigatórios de responsabilidade civil no seguro automóvel em Portugal, têm vindo a ocorrer desde 20.10.2007 , sendo que actualmente e desde 01.06.2017 , em virtude do disposto no artº 12º do Dec. Lei 291/ 2007 de 21 de agosto que estabelece a respectiva revisão de cinco em cinco anos a partir de 01.06.2012, sob proposta da Comissão Europeia , em função do índice europeu de preços no consumidor, é de 6 450 000,00€ para acidentes com Danos Corporais e 1 300 000 para Danos Materiais.
Sendo que a última actualização ocorreu precisamente no dia 01-06- 2022 e os prémios que todos ajudamos a pagar estão correspondentemente a aumentar.
XXVIII. Posto isto e considerando que os pagamentos dos prémios de seguro devem (presumivelmente) acautelar o pagamento do risco inerente à circulação rodoviária e responder pelos sinistros que possam ocorrer, está na altura de utilizar a favor dos lesados, os capitais seguros que todos ajudamos a pagar.
XXIX. Estamos no seculo XXI e na altura de prover condignamente pelos direitos dos lesados, motivo da natureza obrigatória do seguro e dos limites mínimos. Numa sociedade em mudança vertiginosa, em que os paradigmas, nomeadamente do mercado de emprego são hoje altamente competitivos, incertos e efémeros.
XXX. Os anos de 2020 e 2021 ficarão marcados historicamente pela Pandemia do COVID 19 e o ano de 2022 pela guerra na Europa, que vieram acrescentar e acelerar factores de incerteza enormes a nível de saúde, emprego, económico e financeiro, quer a nível nacional, quer a nível mundial, reforçando o medo e profundo receio em relação ao futuro que legitimamente se sente.
XXXI. Se assim é para todos nós, mais ainda para quem se viu antecipadamente coarctado em todas as suas aptidões e capacidades físicas, emocionais e psicológicas bem como o agregado que daquele dependia totalmente!
XXXII. A natureza obrigatória do seguro de responsabilidade civil automóvel e os montantes mínimos dos capitais de seguro, para danos corporais e materiais, existem precisamente para dar resposta a situações graves como a dos autos e a que os Venerandos Desembargadores certamente não ficarão alheios.
XXXIII. Pede-se JUSTIÇA!
Nestes termos e nos melhores de Direito que os Venerandos Desembargadores mui sabiamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência deve ser revogada a sentença proferida e substituída por Acórdão que:
a) Fixe a responsabilidade pelo acidente à recorrida seguradora e pelo risco do art.º 503º n.º 1 do Código Civil.
b) Rectifique o erro de cálculo do ponto 3.3.1 da sentença proferida.
c) Fixe o valor dos danos emergentes em 189.022,52€ (Cento e Oitenta e Nove Mil e Vinte e Dois Euros e Cinquenta e Dois Cêntimos), conforme factos provados em 2.1.25; 2.2.38; 2.1.39 e 2.1.53 a 2.1.64.
d) Altere a matéria de facto provada no n.º 31 da sentença, devendo aquele passar a ter a seguinte redacção: “O autor era trabalhador dependente da empresa “B.” com a categoria profissional de Director Administrativo Financeiro, do que auferia, mensalmente uma retribuição fixa e outra variável, de pelo menos, cerca de 5.000,00€.”
e) Fixe o valor da compensação a título de dano biológico na vertente não patrimonial em 250.000,00€ (Duzentos e Cinquenta Mil Euros).
f) Condene assim a recorrida ao pagamento ao recorrente lesado, de 1.033.590,56€ (Um Milhão Trinta e Três Mil Quinhentos e Noventa Euros e Cinquenta e Seis Cêntimos) correspondentes a 189.022,52€ a título de danos emergentes, 288.426,03€ a título de dano patrimonial futuro, 250.000,00€ a título de dano biológico e 210.000,00€ a título de danos não patrimoniais, assim se fazendo a tão costumada e almejada JUSTIÇA!
Inconformada com a decisão a Ré  veio interpor recurso , apresentando as seguintes conclusões , que se transcrevem na íntegra :
“ 1. Por requerimento datado de 08.02.2021, ref.: 28436170, a Ré, ora Recorrente, arguiu a nulidade do relatório de perícia médico-legal efectuado no âmbito dos presentes autos.
2. Tal nulidade não foi decidida, nem até ao encerramento da audiência, nem na douta sentença.
3. Estabelece o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, que é nula a sentença quanto quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
4. A Recorrente vem arguir expressamente a nulidade da sentença, para todos os efeitos legais.
5. A douta sentença deve, por isso, ser revogada e substituída por douto acórdão que declare a nulidade da sentença, com as legais consequências.
6. Atentos os elementos objectivos resultantes dos autos, nomeadamente a prova documental e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento –concretamente, depoimento das testemunhas H. (sessão de 25.11.2020), passagem da gravação 00:09:10 a 01:11:47, D. (sessão de 25.11.2020), passagem da gravação 00:06:50 a 00:21:58 e B. (sessão de 10.12.2020), passagem da gravação 00:00:37 a 00:22:05, foi, salvo melhor entendimento, dada uma resposta errada aos pontos 8, 9, 11, 12, 13, 15 e 16 por referência aos temas da prova (pontos 2.2.2., 2.2.3., 2.2.4., 2.2.5., 2.2.6., 2.2.7. e 2.2.8. por referência à matéria de facto não provada), o que, necessariamente, inquinou a decisão de facto e de direito proferida.
7. A decisão quanto à matéria de facto proferida na sentença apelada deve ser parcialmente revogada, por erro do Tribunal a quo na apreciação da prova produzida e, consequentemente, no seu julgamento, e substituída por douto Acórdão proferido por V. Exas. que dê as seguintes respostas aos seguintes quesitos, por referência aos temas da prova: -
 - ponto 8 dos temas da prova –provado;
 - ponto 9 dos temas da prova – provado;
- ponto 10 dos temas da prova –provado;
 - ponto 11 dos temas da prova – provado;
- ponto 12 dos temas da prova– provado;
 - ponto 13 dos temas da prova – provado;
- ponto 14 dos temas da prova – provado;
- ponto 15 dos temas da prova – provado;
- ponto 16 dos temas da prova – provado.
8. Em face deste julgamento da matéria de facto, que se afigura o mais correcto atenta a prova produzida, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que altere a decisão quanto à matéria de facto nos termos supra referidos e, subsumindo-a ao direito aplicável, absolva a Ré dos pedidos contra si formulado, com as legais consequências.
9. A douta sentença opera uma duplicação dos valores indemnizatórios arbitrados ao Autor relativamente ao item cadeira de rodas com verticalização eléctrica – pontos 2.1.59 e 2.1.64 da matéria de facto provada; pontos 59 e 64 da motivação da douta sentença.
10. O que conduziu a que fosse arbitrado ao Autor, em excesso, o montante de € 3.222,40 (três mil, duzentos e vinte e dois euros e quarenta cêntimos).
11. Deve, nesta parte, a douta sentença ser revogada e substituída por douto acórdão que corrija a duplicação indemnizatória identificada, com as legais consequências.
12. A título de indemnização do dano patrimonial futuro, a douta sentença arbitrou ao Autor o montante de € 288.426,03 (duzentos e oitenta e oito mil, quatrocentos e vinte e seis euros e três cêntimos), com base numa esperança média de vida de 77,8 anos.
13. In casu, considerando que o Autor faleceu em 23.02.2022 - ponto 2.1.68 da matéria de facto provada, o cálculo da indemnização com base nesse pressuposto é errado.
14. Numa decisão em que se apurou quantos anos o sinistrado sobreviveu ao acidente, não faz sentido, para efeitos indemnizatórios, estimar uma esperança de vida de 28,8 anos, que é sabido não se ter verificado.
15. A douta sentença deve ser revogada e substituída por douto acórdão que, no tocante ao dano patrimonial futuro, fixe uma indemnização relativa ao período temporal balizado entre a data do acidente e a data do decesso do Autor, ou seja, reduza o montante indemnizatório fixado a este título na douta sentença para o montante de € 50.073,96 (cinquenta mil e setenta e três euros e noventa e seis cêntimos), com as legais consequências.
16. Atenta a matéria de facto provada, afigura-se excessivo o montante arbitrado pelo  Tribunal a título de dano não patrimonial.
17. A douta sentença deve ser revogada e substituída por douto acórdão que, no tocante aos danos morais, reduza o montante indemnizatório fixado a este título na douta sentença para o montante de € 100.000,00 (cem mil euros), com as legais consequências.
18. Por apenso à presente acção correu termos procedimento cautelar especificado de arbitramento de reparação provisória no âmbito do qual foi fixado o pagamento de rendas ao Autor a título de reparação provisória do dano, o que a recorrente vem fazendo.
19. Resulta do disposto no artigo 388.º, n.º 3, do CPC que a liquidação provisória do dano é a imputar na liquidação definitiva do dano.
20. A douta sentença proferida é totalmente omissa quanto a isto, o que, no limite, configura uma nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, nulidade essa que, por cautela, se alega expressamente, com as legais consequências.
21. Deve ser proferido douto acórdão que declare a nulidade da douta sentença ou, em alternativa, declare expressamente que ao valor final que a Ré for condenada a pagar ao Autor devem ser deduzidas todas as quantias pagas pela Ré ao Autor a título de reparação provisória do dano, tudo com as legais consequências.
22. A sentença recorrida viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos artigos 388.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC e 494.º, 496.º e 562.º e seguintes do CC.
Cada um dos Recorrentes apresentou contra-alegações , pugnando pela improcedência do recurso interposto pela contraparte .
Entretanto foram julgados habilitados N., M. e E., identificados nos autos ,  para prosseguir a acção, em substituição do falecido autor K..
II – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação , estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas , sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe ( artigos  635º , nº 2 , 639º , nº1 e nº 2 , 663º , nº2 e 608º , nº 2 , do  C.P.C. )
Deste modo , e considerando as conclusões dos recursos interpostos  , as questões que  cumpre apreciar são as seguintes  :
Recurso interposto pelo Autor
- nulidade da sentença;
- rectificação de erro de cálculo ;
- a impugnação  da decisão sobre a matéria de facto no que respeita ao ponto 2.2.31 dos factos provados ;
- a repartição do risco entre o peão e condutor efectuada na decisão recorrida ;
-  a indemnização pelo dano biológico na vertente não patrimonial;
Recurso interposto pela Ré
- nulidade da sentença ;
- a impugnação da decisão sobre a matéria de facto na parte em que julgou não  provados os pontos 2.2.2., 2.2.3., 2.2.4., 2.2.5., 2.2.6., 2.2.7.e 2.2.8. ;
- a alteração da sentença recorrida no sentido de ser a Ré absolvida dos pedidos contra si formulados ;
- a duplicação dos montantes indemnizatórios no que respeita à verba de 3 222,40 euros referente a cadeira especial ;
- o montante fixado a título de dano patrimonial futuro;
- o montante fixado a título de danos morais.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a)
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos :
2.1.1.
No dia 28 de Fevereiro de 2017, cerca das 19h25m, na Avenida …, na União das freguesias do Laranjeiro e Feijó, concelho de Almada, em frente à superfície comercial denominada “…”, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de marca …, do ano de 2013, com a matrícula XX-XX-XX e o autor enquanto peão. (alínea A) dos factos provados)
2.1.2.
Nesse local a artéria é constituída por duas vias, uma para cada sentido de trânsito, sem separador central. (alínea B) dos factos provados)
2.1.3.
O veículo automóvel era conduzido por H., circulando no Sentido Norte-Sul, direcção Almada – Seixal. (alínea C) dos factos provados)
2.1.4.
A velocidade máxima permitida no local era de 50Km/hora. (alínea D) dos factos provados)
2.1.5.
O autor foi colhido pelo veículo automóvel e ficou gravemente ferido, tendo comparecido no local quatro elementos da corporação de bombeiros de Cacilhas, dois elementos dos Bombeiros Voluntários de Almada, um médico e um enfermeiro do Hospital Garcia de Orta. (alínea E) dos factos provados)
2.1.6.
Estes dois últimos prestaram os primeiros socorros ao autor, que foi transportado de urgência para o Hospital Garcia de Orta. (alínea F) dos factos provados)
2.1.7.
No local compareceu, ainda, a Polícia de Segurança Pública de Almada, que lavrou a participação do sinistro. (alínea G) dos factos provados)
2.1.8.
Ao teste de detecção de substâncias psicotrópicas efectuado no local, o condutor do veículo ligeiro acusou a presença de canabinóides, na quantidade de 2,7 ng/ml. (alínea H) dos factos provados)
2.1.9.
A responsabilidade civil inerente à circulação do veículo automóvel com a matrícula XX-XX-XX encontrava-se, à data do sinistro, transferida para a ré através de seguro titulado pela apólice nº .... (alínea I) dos factos provados)
2.1.10.
 O autor nasceu no dia 24 de Abril de 1969 e é casado com N.. (alínea J) dos factos provados)
2.1.11.
O autor efectuava a travessia de peões da faixa de rodagem referida na alínea A), no local sinalizado para o efeito.
2.1.12.
 O mesmo não viu o autor e foi colher este, na passadeira.
2.1.13.
O embate deu-se entre a frente do automóvel, lado direito do veículo (atento o sentido deste) e o corpo do autor, tendo este sido projectado contra o pára-brisas e, de seguida, para o solo, onde embateu com a cabeça.
2.1.14.
No momento desse embate o tempo apresentava-se bom e o local tem boa visibilidade.
2.1.15.
Esses semáforos dispõem de uma botoneira destinada a ser accionada pelos peões que pretendam atravessar a via.
2.1.16.
O autor foi colhido, do lado esquerdo do seu corpo, na zona da perna, braço e cabeça, pela dianteira direita do automóvel.
2.1.17.
O autor ficou de imediato internado no Hospital Garcia de Orta, tendo dado entrada nessa instituição, para a sala de reanimação, com um nível de consciência de 7 (sete) na escala de Glasgow.
2.1.18.
O mesmo apresentava traumatismo crânio-encefálico, fractura do membro superior esquerdo e fractura do membro inferior esquerdo, vomitando abundantemente.
2.1.19.
 Apresentava pupilas iso/iso, sem resposta verbal ou motora, tendo sido sedado.
2.1.20.
Foi encaminhado para o bloco operatório, tendo efectuado no próprio dia, uma intervenção cirúrgica – craniotomia descompressiva esquerda com drenagem de hematoma subdural agudo - e sido imobilizados os membros fracturados.
2.1.21.
 Sofreu novas intervenções cirúrgicas nos dias 1 de Março, 18 de Março, 25 de Março e 7 de Abril de 2017.
2.1.22.
Em 23 de Maio de 2017 mantinha-se internado no Hospital Garcia de Orta, a aguardar colocação na rede de cuidados continuados e com quadro clínico do ponto de vista neurológico sem recuperação.
2.1.23.
Nunca mais voltou a falar ou a mover-se, estando actualmente (à data da instauração da acção) internado na Clínica do Norte do Instituto Luso-Cubano de Neurologia.
2.1.24
Em 30 de Junho de 2017 a Junta Médica do Ministério da Saúde atribui-lhe uma incapacidade de 95% (noventa e cinco por cento).
2.1.25.
O autor encontra-se a efectuar, na clínica mencionada no artº 23º, um programa intensivo de reabilitação com o custo mensal de Euros 6.375,00 (seis mil trezentos e setenta a e cinco euros), tendo já despendido, de Outubro de 2017 a Fevereiro de 2018, a importância de 12.580.50 €.
2.1.26.
O autor continua em estado mínimo de consciência possível, mostrando-se aconselhável a reabilitação neurológica.
2.1.27
Em virtude do seu estado clínico, o autor necessitará para sempre de medicação, fraldas, cuidados permanentes de saúde e de 3ª pessoa, nomeadamente de fisioterapia, psicomotricidade, terapia ocupacional, terapia da fala, neuropsicologia e de internamento em instituição para prestação de cuidados de saúde permanentes, o que demanda um valor mensal não inferior a 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros).
2.1.28.
O autor tem dois filhos de 24 e 21 anos de idade, ainda estudantes e a sua esposa é doméstica.
2.1.29. Vivem todos na mesma residência, salvo o requerente que trabalhava no estrangeiro.
2.1.30.
O autor era o único elemento do agregado familiar a exercer uma actividade remunerada. 2.1.31.
O autor era trabalhador dependente da empresa “B.” com a categoria profissional de Director Administrativo Financeiro, do que auferia, mensalmente a retribuição de 751,47 Kwanzas (equivalente de acordo com os recibos de vencimento a 1.014,67 USD).
2.1.32.
Após o acidente o autor nunca mais auferiu qualquer rendimento do trabalho.
2.1.33.
O mesmo encontra-se em incapacidade total e absoluta desde o sinistro, estando afectado de uma incapacidade parcial permanente de 95% (noventa e cinco por cento).
2.1.34.
O autor apresenta cicatrizes nos membros inferiores.
2.1.35.
Como intercorrências do internamento o autor sofreu pneumonia e pseudomonas aeruginosa.
2.1.36.
O mesmo está completamente dependente de terceiros para todos os actos da vida diária.
2.1.37.
Antes do sinistro o autor tinha com uma vida estável e muita estima pelos filhos.
2.1.38.
Entre Fevereiro e Julho de 2018, o autor manteve-se internado na Clínica do Norte do Instituto Luso-Cubano de Neurologia, a título dos 5 programas de tratamentos de recuperação e consultas de naturopatia/homeopatia, tendo despendido €26.694,48.
2.1.39.
A mulher do autor procurou outro tipo de tratamentos para o autor, tendo este sido consultado em consulta de acupunctura na clínica de acupunctura Oriente Ldª., e uma consulta de serviços especiais de neurofisiologia na Clínica CUF do Porto, de tratamentos quando este ainda estava internado na clínica do Porto, nas quais o autor despendeu a quantia de €490,52.
2.1.40.
Em Julho de 2018, o autor apresentava sequelas de traumatismo craniano severo, estado de consciência mínimo, com respostas na sua maioria espontâneas, mas com carácter reflexivo repetido, completa ausência de funções nervosas superiores, dupla hemiparesia espática com tono muscular aumentando nas extremidades e no pescoço, que mantém numa postura hipertónica permanente, sem resposta verbal, responde a ordens simples com movimento de abrir e fechar os olhos, apresenta momentos de maior reactividade dando a entender estar com compreensão activa respondendo assertivamente sim ou não a perguntas simples, piscando os olhos uma vez para não e duas vezes para sim.
2.1.41.
Mantendo nessa data dificuldade de seguimento ocular de estímulos e ausência de resposta emotiva primária perante estímulos de referência emocional.
2.1.42.
Verificaram-se alterações relacionadas com a saúde intra-oral, ao nível da mucosa das gengivas, língua, palato duro e bochechas, por défices de hidratação e aumento da reactividade resultando em contracção da musculatura oro-facial.
2.1.43.
O autor apresenta ainda aumento significativo do tono ao nível da musculatura dos lábios, língua, mentoniano, perioral, bucinator e zigomáticos e não tem capacidade de realização de praxias bucofaxiais activas.
2.1.44.
 As contracções involuntárias são frequentes, o que dificulta a normalização do tono oro-facial, não realiza praxias activas da mandíbula, lábios e língua.
2.1.46.
 O varrimento ocular e o estabelecimento e manutenção do contacto ocular directo é inexistente.
2.1.47.
Apesar de estar muito reactivo a estímulos externos por aumento do tono, é possível posicionar os membros inferiores de forma correcta, embora por períodos curtos.
2.1.48.
Os membros superiores mobilizam-se com alguma dificuldade mas têm uma resposta muito positiva quando se aplica acupunctura, diminuindo de imediato o tono e permitindo uma mobilização mais facilitada.
2.1.49.
Ao nível da cervical verifica-se muita tensão com rotação para a direita, mostrando igualmente forte diminuição quando se aplicou acupunctura.
2.1.50.
 O autor apresenta uma escara de grau I na zona do cóccix.
2.1.51.
O autor necessita de continuar com a reabilitação neurológica, estimulação neurosensorial e cognitiva para promoção do nível de consciência.
2.1.52.
Necessitando de um programa de reabilitação constituído por consulta de Neuropsicologia. E actos médicos de reabilitação: fisioterapia; hidroterapia; terapia da fala; terapia ocupacional; massagem e acupunctura. E actos de enfermagem e nutrição. 2.1.53.
Estando o autor a suportar desde Agosto de 2018, por estes tratamentos, a quantia mensal de €12.000,00.
2.1.54.
 E em transporte da sua residência na Amora para a Fundação AFID em Amadora- Alfragide, entre 21 de Agosto de 2018 e 12 de Setembro de 2018, o autor despendeu a quantia de € 1.260,00.
2.1.55.
E com serviço de ambulância, no transporte e auxílio a subir e descer as escadas de acesso ao domicílio e quando os familiares não o podem fazer, despendeu 268,40€.
2.1.56.
Em medicação o autor, desde a propositura da acção até 4 de Setembro de 2018, autor despendeu 1.641,59€.
2.1.57.
Dormindo o autor na sua casa, necessitou de uma cama eléctrica e um colchão, que adquiriu em 22 de Julho de 2018, pelo preço de €1.121,00.
2.1.58.
O autor tem suportado, a título de medicação, a quantia de 2.448,14€ .
2.1.59.
Com aquisição de diversos objectos de adaptação à condição do A. (paralisia total), como sejam elevadores, pensos próprios, fraldas, órtotese, esponjas, toalhas, toalhitas, papel, cremes, cinto, cadeira de rodas, cadeira, apoio de cabeça, resguardos, colete de tronco, veículo automóvel próprio com entrada e lugar adaptado da marca Ford modelo Trouneo Connect Titanium 1.5 Tdci, plataforma de mobilidade da marca Stannah Curve, e cadeira especial com verticalização eléctrica até à presente data o A. despendeu a quantia de 49.760,71 € .
2.1.60.
Com deslocações em táxi aos mais variados tipos de tratamentos e consultas, designadamente na Clínica Trevo Dourado, consequentes das lesões sofridas no acidente, até à presente data o autor despendeu a quantia de 11.821.50€.
2.1.61.
Com consultas, exames, serviços de acessibilidade e de transporte, tratamentos de fisioterapia, acupunctura, consequentes do acidente, até à presente data, o autor despendeu a quantia de 4.713,28€.
2.1.62.
Na Clínica Trevo Dourado Acupunctura o autor completou os 6 meses de tratamentos prescritos, despendendo para o efeito, por 5 tratamentos ainda não reclamados, a quantia de 60.000,00€.
2.1.63.
Após aquele programa de tratamentos o autor iniciou ainda naquela clínica um outro programa consistente em neuropsicologia, fisioterapia, hidroterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, medicina tradicional chinesa e fitoterapia, pelo qual despendeu a quantia de 1.000,00€.
2.1.64.
O autor necessita também de uma cadeira especial com verticalização eléctrica e para melhor mobilidade no valor de 3.222,40€ .
2.1.65.
O autor está totalmente dependente de terceiros para todas as actividades da vida diária, com necessidade de uso de fralda por incontinência urinária e fecal.
2.1.66.
Esse acompanhamento é necessário 24 horas por dia até ao resto da vida do autor, que tem sido levado a cabo por familiares, muito embora dado a naturalmente a sua vida e não podem estar sempre com aquele.
2.1.67.
Actualmente o autor está a fazer fisioterapia 3 vezes por semana no domicílio com o fisioterapeuta ….
2.1.68.
O autor faleceu no dia 23 de Fevereiro de 2022.

b)
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos :
2.2.1.
 Nas circunstâncias descritas no art.º 1º, tal como resultou provado, o autor foi surpreendido pelo veículo automóvel que apareceu subitamente (art.º 2ºTP).
2.2.2.
 O condutor desse veículo circulava distraído por causa do efeito dos canabinóides e do volume alto da música no interior do automóvel (art.º 3ºTP).
2.2.3.
O veículo automóvel circulava a uma velocidade de 30/40 Km/hora. (art.º 7ºTP)
2.2.2.
O seu condutor havia imobilizado o mesmo nos semáforos imediatamente anteriores que distam cerca de 100 a 150 metros do local do embate. (art.º 8ºTP).
2.2.3.
Depois de retomar a marcha nesses semáforos o condutor do automóvel aproximou-se de nova sinalização semafórica, que apresentava a cor verde para os veículos que seguiam nesse sentido e a cor vermelha para os peões. (art.º 9ºTP).
2.2.4.
Quando o veículo automóvel se aproximou desse semáforo, surgiu subitamente o autor a circular a pé. (art.º 11ºTP).
2.2.5.
Sem parar ou verificar que o podia fazer em segurança, o autor iniciou a travessia da via, da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do automóvel. (art.º 12ºTP)
2.2.6.
O mesmo ignorou a sinalização de cor vermelha para os peões e, logo no início da travessia, ainda do lado direito da via, interceptou a linha de trânsito do veículo automóvel. (art.º 13ºTP)
2.2.7.
No momento do embate a visibilidade era reduzida, por ser de noite e a via estar ladeada de vegetação arbórea do seu lado direito. (art.º 15ºTP).
2.2.8.
O autor envergava roupa de cor escura. (art.º16ºTP).
2.2.9.
O autor não identifica objectos nem imagens. (art.º 46ºTP).
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidades da sentença
A Ré veio arguir a nulidade da sentença recorrida , invocando a omissão nesta de decisão sobre a nulidade do relatório de perícia médico-legal que arguíra por requerimento de 8.2.2021, fazendo apelo ao disposto no artigo 615º , nº 1 , d) , do C.P.C..
Sentença nula é aquela que padece de algum dos vícios taxativamente enumerados no artigo 615º , nº 1 , do C.P.C.. , que engloba nas alíneas b) e c) “ vícios de estrutura “ , e nas alíneas d) e e) “ vícios de limites ( de pronúncia ou de objecto ) “. (Ferreira de Almeida , Direito Processual Civil , Volume II, 3ª ed. ,  pág. 451  )
No que respeita ao fundamento de recurso em apreciação louva-se a Ré na primeira parte da alínea d) do nº1 do artigo 615º , do C.P.C. , que estatui que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar .
No entanto a omissão da apreciação de nulidade relativa a meios de prova produzidos no decurso da fase de instrução da causa não consubstancia uma nulidade da sentença que integre a previsão do artigo 615º , nº 1 , do C.P.C. , antes configura  uma nulidade processual , à qual é aplicável o regime previsto no artigo 195º , nº 1 , do C.P.C..
Com efeito , “ não há , também que confundir nulidades da sentença ( errores in judicando ) com nulidades processuais ( errores in procedendo )”. (Ferreira de Almeida , Direito Processual Civil , Volume I, 2010. ,  pág. 517  )
Assim “ distinguem-se as nulidades de processo das nulidades da sentença , porquanto , às primeiras , subjazem desvios ao formalismo processual prescrito na lei , quer por se praticar um acto proibido , quer por se omitir um acto prescrito na lei , quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei mas sem o formalismo requerido , enquanto que as segundas se traduzem na violação da lei processual por parte do juiz ( ou do tribunal ) prolator de alguma decisão “.(Ferreira de Almeida , Direito Processual Civil , Volume II, 3ª ed. ,  pág. 449  )
Deste modo as nulidades da sentença “ respeitam a vícios de conteúdo “ , ao passo que “ o vício gerador de nulidade do art. 195º respeita à própria existência do acto ou às suas formalidades”. ( Lebre de Freitas e Isabel Alexandre , Código de Processo Civil Anotado , volume1º , 4ª ed. , pág.404 )
Ora a nulidade arguida pela Ré a 8.2.2021 reporta-se à realização de prova pericial com violação por esta invocada do regime de impedimentos do exercício da função de perito ( artigo 115º , alíneas c) e h) , aplicável ex vi do artigo 470º , nº 1 , todos do C.P.C.) , revestindo natureza de nulidade processual à qual se mostra aplicável o regime preconizado pelo artigo 195º , nº 1 , do C.P.C. , e , por conseguinte , comunga dessa natureza a omissão da apreciação dessa nulidade .
Considerando que na sessão da audiência de julgamento que teve lugar a 19.1.2022 foi concedida a palavra à  Ré para exercício do contraditório relativamente a elementos fornecidos na sequência de solicitação do tribunal de 1ª instância a fim de ser apreciada a invocada  nulidade do relatório pericial , a omissão de decisão sobre essa nulidade teria de ser arguida perante o tribunal onde foi cometida , e no prazo geral do artigo 149º , nº 1 , do C.P.C..( por todos ver Lebre de Freitas e Isabel Alexandre , obra supra citada , pág.739 , e Acórdão da Relação de Guimarães de 9.7.2020 , rel. Maria João Matos , disponível em www.dgsi.pt )
Deste modo incumbia à Ré arguir nesse acto ou nos dez dias posteriores a nulidade consistente na omissão de decisão  sobre a invocada nulidade do relatório pericial , e não o tendo feito está vedado a este tribunal de recurso a apreciação dessa nulidade por omissão da prática de acto legalmente prescrito.
Mas ainda que assim não sucedesse a verdade é que a arguição da nulidade do relatório pericial ocorreu depois de decorrido o prazo legal para o efeito o que por conseguinte sempre imporia o respectivo indeferimento, já que tendo em conta que com a inquirição realizada à testemunha G. em 5.11.2020 a Ré teve conhecimento dos factos nos quais fundou essa arguição , a mesma dispunha do prazo de dez dias para a invocar  ( artigos 195º , nº1, 199º e 149º , nº 1 , do C.P.C. ).
Improcede assim nesta parte o recurso interposto pela Ré.
O Autor veio arguir a nulidade da sentença com fundamento na previsão do artigo 615º , nº 1 , c) , primeira parte ,  do C.P.C. , invocando que tendo o tribunal a quo dado como provado o facto constante do ponto 2.1.38 todavia não computou a quantia  de 26 694,48 euros que dele consta no valor global referente a danos patrimoniais que arbitrou na sentença recorrida ( ponto 3.3.1. ).
Dispõe o artigo 615º , nº 1 , c) , primeira parte ,  do C.P.C. , que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão .
A nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do nº1 do artigo 615º do C.P.C. “ ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão , ou seja , em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final “. ( Abrantes Geraldes , Luís Pires de Sousa e Paulo Pimenta , Código de Processo Civil Anotado , volume I , 2018. , pág.738)
Nesta hipótese  “ há vício lógico no próprio silogismo judiciário em que se estrutura a fundamentação da decisão , exigido pelos nº 3 e 4 do artigo 607º , porquanto a decisão não é a conclusão lógica daqueles fundamentos , sejam estas as normas aplicadas ( premissa maior ) ou os factos provados ( premissa menor ) .” ( Rui Pinto , Manual do Recurso Civil , volume I , 2020 , pág. 82 )
Não é no entanto isso que sucede no caso em apreciação , antes decorre da leitura da sentença recorrida tratar-se de evidente erro material a não inclusão do valor constante do ponto 2.1.38 dos factos provados no cômputo geral da indemnização arbitrada a título de  danos patrimoniais relativos a despesas com deslocações , tratamentos e outros , suportados pelo Autor , passível de rectificação nos termos preconizados pelos artigos 613º , nº2 e 614º , nº 1 , do C.P.C..
Com efeito , considera-se “ manifesto o erro material que se revele no contexto do teor ou estrutura da decisão “ , e o “ seu objecto não é , pois , o conteúdo do acto decisório mas a sua própria expressão material – o corpus por que se exterioriza a vontade do juiz -podendo distinguir-se entre ( i ) erro de escrita, (ii ) erro de cálculo (iii) quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto “.( Rui Pinto , Manual do Recurso Civil , volume I , 2020 , pág. 74 )
Ora “ os vícios formais não se corrigem pela revogação da decisão , mas por mero acto de rectificação , i.e. de substituição da parte viciada por outra escrita ou cálculo que correspondam à vontade decisória “.(Rui Pinto , Manual do Recurso Civil , volume I , 2020 , pág. 75 )
Há assim lugar à rectificação da sentença recorrida no sentido de ser acrescentado ao valor arbitrado a título de indemnização por danos patrimoniais na vertente de danos emergentes a quantia de 26 694,48 euros.
A Ré veio ainda arguir a nulidade da sentença recorrida com fundamento no disposto no artigo 615º , nº 1 , alínea d) , do C.P.C. , invocando a omissão nesta  da imputação da liquidação provisória do montante que pagou a título de renda fixada no âmbito do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória apenso aos autos.
Estatui o artigo 388º , nº 3 , do C.P.C. , que a liquidação provisória , a imputar na liquidação definitiva do dano , é fixada equitativamente pelo tribunal.
Conforme decidido no Acórdão da Relação de Coimbra de 7.11.2023 , “ ao contrário do que a tal respeito se prevê para o caso de a decisão final não vir a arbitrar qualquer indemnização ou a fixar em montante inferior , o nº 3 do artigo 388º não refere expressamente em que condições é de efectuar tal imputação , se na própria sentença que fixa a indemnização , se numa fase posterior de liquidação dos montantes em dívida “. ( rel. Maria João Areias , disponível em www.dgsi.pt )
Do artigo 388º , nº 3 , do C.P.C. decorre que  que tudo o que foi pago ao abrigo de decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória  “ é imputado  na dívida da indemnização definitiva “. ( Cura Mariano , A providência cautelar de arbitramento de reparação provisória , 2ª ed. , pág. 119 )
No entanto nesta hipótese o legislador não estatuiu a obrigatoriedade dessa imputação ter lugar na sentença proferida na acção principal , ao contrário do que sucede quando essa sentença não arbitrar qualquer indemnização ou a fixar em montante inferior àquele atribuído em sede de procedimento cautelar , caso em que o legislador determina em termos inequívocos a restituição oficiosa nessa sentença daquilo que foi prestado( artigo 390º , nº 2 , do C.P.C. ) .
E nem tinha que o fazer porquanto a imputação dessa liquidação decorre da lei , não carecendo por conseguinte de ser declarada pelo tribunal.
Concorda-se assim com o decidido no Acórdão da Relação de Coimbra de 7.11.2023 , no sentido de que “ a liquidação da quantia em dívida , resultante da dedução dos montantes adiantados no âmbito da providência de arbitramento provisório , ao montante indemnizatório fixado a título definitivo , não tem , necessária e oficiosamente, que ser determinado na sentença final da acção principal que fixa o montante da indemnização “. ( rel. Maria João Areias , disponível em www.dgsi.pt )
Não impondo assim a lei essa a declaração e liquidação dessa imputação na sentença não omitiu o tribunal a quo pronúncia  sobre questões que devesse apreciar , não enfermando por conseguinte a sentença recorrida da nulidade prevista no artigo 615º , nº 1 , d) , do C.P.C..
Improcede assim nesta parte o recurso.
Erros de cálculo
O Autor veio invocar a existência de um erro de cálculo no ponto 3.3.1. da sentença recorrida , que reconduz à circunstância de o tribunal a quo não ter incluído na soma da totalidade dos valores parcelares referidos  a quantia de 1 260,00 euros  relativa ao facto descrito sob o nº 2.1.54 a que aí faz referência.
Dando-se aqui por reproduzido o acima expendido a propósito do erro material resulta evidente da leitura da sentença a verificação do apontado erro de cálculo.
Há assim lugar à rectificação da sentença recorrida no sentido de ser acrescentado ao valor arbitrado a título de indemnização por danos patrimoniais na vertente de danos emergentes a quantia de 1 260,00 euros.
A Ré veio ainda invocar ter o tribunal a quo procedido à duplicação dos montantes indemnizatórios no que respeita à verba de 3 222,40 euros referente a cadeira de rodas com verticalização eléctrica , valor que incluiu em simultâneo nos pontos 2.1.59 e 2.1.64  dos factos provados , e que computou por duas vezes no valor global que arbitrou a título de indemnização por danos patrimoniais na vertente de danos emergentes.
Trata-se erro manifesto , evidenciado sem controvérsia no contexto da sentença recorrida.
Impõe-se assim  a rectificação da sentença recorrida no sentido de ser subtraído  ao valor arbitrado a título de indemnização por danos patrimoniais na vertente de danos emergentes a quantia de 3 222,40 euros .
Por último detectou ainda este tribunal de recurso erro de cálculo na soma das parcelas consideradas no ponto 3.3.1. da sentença recorrida , que se passam a rectificar, tendo igualmente em conta as rectificações agora determinadas, nos seguintes termos:
- 12 580,50 euros ( 2.1.25 );
- 490,52 euros ( 2.1.39 ) ;
- 12 000,00 euros ( 2.1.53 );
- 1 260,00 euros ( 2.1.54 ) ;
- 268,40 euros ( 2.1,55 );
- 1 641,59 euros ( 2.1.56 );
- 1 121,00 euros ( 2.1.57 );
- 2 448,14 euros ( 2.1.58 );
- 11 821,50 euros ( 2.1.60 );
- 4 713,28 euros ( 2.1.61 ) ;
- 60 000,00 euros ( 2.1.62 );
- 1 000,00 euros ( 2.1.63 );
- 43 651,80 euros ( 2.1.59 );
- 3 222,40 euros ( 2.1.64 ) ;
- 26 694,48 euros ( 2.1.38 ) ,
Totalizando a indemnização arbitrada a título de danos patrimoniais nesse ponto 3.3.1. o valor 182 913,61 euros.
Da impugnação da decisão de facto
A Ré  veio em sede de recurso impugnar a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo na parte em que este tribunal julgou não provados os factos :
- “O seu condutor havia imobilizado o mesmo nos semáforos imediatamente anteriores que distam cerca de 100 a 150 metros do local do embate. “
- “ Depois de retomar a marcha nesses semáforos o condutor do automóvel aproximou-se de nova sinalização semafórica, que apresentava a cor verde para os veículos que seguiam nesse sentido e a cor vermelha para os peões. “
- “ Quando o veículo automóvel se aproximou desse semáforo, surgiu subitamente o autor a circular a pé. “
- “ Sem parar ou verificar que o podia fazer em segurança, o autor iniciou a travessia da via, da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do automóvel.”
- “ O mesmo ignorou a sinalização de cor vermelha para os peões e, logo no início da travessia, ainda do lado direito da via, interceptou a linha de trânsito do veículo automóvel. “
- “ No momento do embate a visibilidade era reduzida, por ser de noite e a via estar ladeada de vegetação arbórea do seu lado direito. “
- “ O autor envergava roupa de cor escura. “
Sustenta a Recorrente que os depoimentos das testemunhas H., D. e B.,  nos segmentos que indica , impõem decisão divers, pugnando pela alteração da decisão de facto no sentido de os referidos factos serem julgados provados.
Para tanto alega que as referidas testemunhas depuseram de forma clara , isenta e objectiva , não sendo contraditadas por qualquer outra testemunha arrolada nos autos , confirmando os factos que que pretende sejam dados como provados , e os respectivos depoimentos estão em consonância com a prova documental junta aos autos , designadamente o auto de participação policial e as fotografias juntas no processo.
Tendo este tribunal de recurso procedido à audição integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas em sede de recurso pela Recorrente , bem como dos depoimentos das testemunhas A. e J. , assistindo a primeira ao acidente e sendo o segundo o agente da PSP que se deslocou ao local e elaborou a participação relativa a este ,   passa-se à apreciação do invocado erro de julgamento.
Desde logo resulta dessa audição que ao contrário do que defende a Ré as testemunhas B. e D. não assistiram ao atropelamento do peão nem ao que sucedeu antes deste .
Pelo contrário apenas quando ouviram um estrondo estas testemunhas olharam para o local de onde provinha o ruído e mesmo assim não se aperceberam de imediato que tinha ocorrido um atropelamento , antes se dirigiram a esse local a testemunha D. na convicção de se tratar de “ porrada “  , e a testemunha B. na convicção de se tratar de embate entre veículos .
Em contrapartida apenas a testemunha A. , cujo depoimento a Ré convenientemente olvida , assistiu ao atropelamento e ao que sucedeu antes deste ocorrer.
Ora a testemunha A. encontrava-se no estacionamento existente em frente  da loja Good Mart , e estava a olhar para o veículo atropelante antes deste embater no peão por a sua atenção ter sido chamada pelo som elevado da música que emanava desse veículo , reparando que o mesmo arrancou quando os demais veículos que estavam imobilizados junto do semáforo existente no seu sentido de marcha aí permaneceram.
O depoimento da testemunha A. foi muito seguro , consistente e coerente , em consonância com os vestígios observados e as medições efectuadas pelo agente que elaborou a participação junta aos autos , a testemunha  J. , e atento o local em que a testemunha A.  se encontrava , está de acordo com as regras da experiência e as leis da natureza o facto da referida testemunha  não ter visto a cor do semáforo existente junto à passadeira , nem a cor do semáforo para os veículos existente imediatamente antes desta.
Em contrapartida as regras da experiência e as leis da natureza retiram qualquer credibilidade à possibilidade das testemunhas B. e D. terem conseguido visualizar a cor do semáforo dos veículos ou daquele existente na passadeira na altura em que ouviram o estrondo , ou até quando chegaram ao local onde então se aperceberam do peão caído na via , tendo em conta o local em que se encontravam e a distância e a posição desses semáforos relativamente aos mesmos.
Aliás nos depoimentos que prestaram em sede de julgamento é evidente o desconforto e a incomodidade das testemunhas B. e D. quando se pretende que concretizem a reiteração não circunstanciada das afirmações relativas à coloração semafórica ou expliquem as incoerências e contradições dos respectivos depoimentos .
Por outro lado tão pouco se mostra credível a afirmação da testemunha B. que seguia um carro colado ao veículo atropelante quando ouviu o estrondo tendo em conta o croquis elaborado pela testemunha J. e o depoimento prestado pelo mesmo , sendo certo que assim fosse esse veículo com toda a probabilidade e de acordo com as leis da física dificilmente teria evitado embater no segurado da Ré.
Pelo contrário , do depoimento da testemunha H. , o condutor do veículo atropelante , decorre de forma gritante , como bem evidenciou o tribunal a quo , o esforço de se desculpabilizar pelo atropelamento , tentando justificar o não avistamento do peão( em local que reconhece ter visibilidade , alegando seguir atento e com velocidade de cerca 30km/hora) por este lhe surgir inopinadamente já pendurado no pára-brisas do seu veículo.
Ora , e ao contrário do defendido pela Ré em sede de recurso , este depoimento não é confirmado pelo local onde o veículo se veio a imobilizar , nem no local e na posição onde o peão ficou prostrado , ou sequer nos danos visíveis no veículo ou nas medições efectuadas pela testemunha J. e materializadas no auto de participação que elaborou.
Deste modo a discordância  da Ré no que respeita à decisão de facto  de modo algum coloca em crise o juízo efectuado pelo tribunal a quo de considerar que a prova produzida não permitia  concluir pela verificação desses factos , nem infirma a valoração que esse tribunal atribuiu aos depoimentos das testemunhas invocados em sede de recurso.
Efectivamente os depoimentos das referidas testemunhas não são idóneos a afastar o acerto do juízo probatório efectuado pelo tribunal de 1ª instância .
Fazendo-se apelo ao decidido pelo Acórdão da Relação do Porto de 27.4.2020 , “ para que um facto se considere provado é necessário que , à luz de critérios de razoabilidade se crie no espírito do julgador um estado de convicção , assente na certeza relativa do facto “, e essa“ certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto , ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica . Se pelo contrário , existir insuficiência , contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos , ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável e ilógico , então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade de os factos em causa serem certos , obstando a que se considere o facto provado “. ( rel. Jerónimo Freitas , disponível em www.dgsi.pt )
Conforme decidido pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 10.7.2019 , “ importa , porém , não esquecer -porque ( como se referiu supra ) se  mantêm em vigor os princípios da imediação , da oralidade , da concentração e da livre apreciação da prova , e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta - , que o uso , pela Relação , dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância dobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível com a necessária segurança , concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.” ( rel. Maria João Matos , disponível em www.dgsi.pt)
Com efeito , “ quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas , a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado , e só deve o tribunal de 2ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença , com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada , que houve errada decisão na 1ª instância , por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por formal ou materialmente impossível , por não ter qualquer suporte para ela “. ( Acórdão do S.T.J. de 20.5.2010 , rel. Mário Cruz , disponível em www.dgsi.pt ; no mesmo sentido ver Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.1.2023 , rel. Moreira do Carmo , da Relação do Porto de 21.6.2021 , rel. Pedro Damião e Cunha e da Relação de Guimarães de 10.7.2019 , rel. Maria João Matos , todos disponíveis  em www.dgsi.pt)
Deste modo apenas quando os meios de prova indicados pelo recorrente imponham uma decisão diversa ao julgador , i.e. deles decorra categórica e inequivocamente a inadmissibilidade do entendimento exarado na decisão recorrida e o carácter imperativo da assunção probatória defendida pelo recorrente procederá a sua pretensão de alteração da decisão sobre a matéria de  facto.
Não pode olvidar-se que é o tribunal de 1ª instância que se encontra nas melhores condições para exarar um juízo crítico sobre a prova produzida atenta a indesmentível percepção que a imediação e a oralidade lhe conferem.
Acrescenta-se ainda que no caso em análise as testemunhas A. , B. e D. indicaram em sede de julgamento a posição em que se encontravam e o percurso que seguiram, fazendo uma descrição da localização espacial com referência à sala de audiências que não pode ser percepcionada no âmbito da mera gravação sonora .
O que se impunha é que o tribunal a quo justificasse, como o fez,  de forma convincente, compreensível e objectiva, respeitando as regras da experiência e da normalidade da vida e os princípios da razão e do conhecimento científico a valoração que efectuou da prova produzida.
Não merece assim reparo a decisão sobre a matéria de facto no que respeita aos pontos de facto impugnados pela Ré, improcedendo o recurso nesta parte.
Por seu lado o Autor veio impugnar a decisão sobre a matéria de facto no que respeita ao ponto 2.2.31 dos factos provados, pugnando pela alteração desse facto no sentido dele passar a constar que o autor auferia, mensalmente uma retribuição fixa e outra variável, de pelo menos  cerca de 5.000,00€.
Sustenta o Recorrente que da conjugação da declaração junta a fls. 30, dos extractos bancários juntos aos autos e do depoimento da testemunha F. resulta que o Autor auferia mensalmente só em comissões pelo menos 5 000,00 euros por mês.
Sucede que não foram juntos recibos emitidos pela entidade patronal relativos a tais comissões mas apenas referentes à retribuição , e a “declaração” junta a fls. 30 não reveste essa natureza, não sendo idónea a demonstrar a realidade em causa.
Pelo contrário essa declaração mais não é do que a consignação escrita de um depoimento testemunhal fora do condicionalismo preconizado pelo artigo 518º do C.P.C., e como tal não admissível enquanto tal, e, por conseguinte, sem qualquer validade probatória.
Por outro lado a testemunha F. , cunhado do Autor , não demonstrou qualquer conhecimento directo desse facto , não exercendo funções na mesma empresa na qual o Autor era trabalhador , limitando-se a reproduzir o que lhe tinha sido transmitido pelo mesmo, e enquanto trabalhador de empresa angolana a confirmar no seu caso a existência de pagamentos em numerário não reflectidos na contabilidade da sua entidade patronal .
Ora a eventual existência de práticas ilegais no âmbito de empresas angolanas, de violação de normas contabilísticas e de prevenção de branqueamento de capitais e de evasão fiscal que recaem sobre sociedades comerciais e pessoas singulares não permite a extrapolação para concluir pela verificação do facto nos termos pretendidos pelo Autor.
Por último da análise dos extractos bancários juntos aos autos não resulta a demonstração do facto em causa, não permitindo reconstituir os fluxos financeiros entre o Autor e a sua entidade patronal, nem a natureza dos mesmos.
Deste modo a decisão proferida pelo tribunal a quo no que respeita ao facto objecto de impugnação é sustentada pela prova produzida, não merecendo censura, e como tal improcede nesta parte o recurso interposto pelo Autor.
Em face do exposto mantém-se  inalterável a decisão recorrida na parte relativa à matéria de facto apurada pelo tribunal a quo.
A alteração da sentença recorrida no sentido de ser a Ré absolvida dos pedidos contra si formulados
Em função da alteração da decisão da matéria de facto que reclamava em sede de recurso pretendia  a Ré  a alteração da decisão recorrida no sentido da  improcedência da acção e da consequente absolvição do  pedido .
No entanto a pretendida alteração da matéria de facto considerada pelo tribunal a quo não chegou a ocorrer, e por conseguinte, improcede nesta parte o recurso.
 A repartição do risco entre o peão e condutor efectuada na decisão recorrida
Insurge-se o Autor por o tribunal a quo , depois de afastar a culpa quer do peão quer do condutor do veículo segurado , enquadrando o acidente na responsabilidade pelo risco , ter decidido repartir a essa responsabilidade na razão  de 1/3 para o Autor e de 2/3 para o veículo segurado da Ré , proporção  que entendeu corresponder à medida do risco com que cada um deles contribuiu para os danos.
Não suscita dúvida  que a matéria de facto apurada não permite imputar a responsabilidade a título de  culpa ao condutor do veículo segurado da Ré na produção do acidente , nem ao peão que por ele foi atropelado.
Impõe-se por conseguinte recorrer à responsabilidade pelo risco , sendo pacífico o entendimento segundo o qual “ quando o autor formula o pedido de indemnização com base na culpa do lesante , implicitamente  está a formulá-lo com base no risco , visto este estar englobado na causa de pedir invocada”. ( Acórdão da Relação de Lisboa de 9.6.2022 , rel. Pedro Martins , disponível em www.dgsi,pt )
Dispõe o artigo 503º , nº 1 , do C. Civil , que aquele que tiver a direcção efectiva de um veículo de circulação terrestre e a utilizar no próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
Consagra esta norma a responsabilidade objectiva de quem tem o poder de facto ou exerce o controle sobre o veículo automóvel.
Deste modo o legislador não exige nas hipóteses que integram a previsão da norma do artigo 503º, nº 1, do Código Civil, a ilicitude do facto lesivo, nem a culpa do agente, constituindo por conseguinte pressupostos da obrigação de indemnizar fundada no risco, a verificação desse risco, a ocorrência do dano, e o nexo de causalidade entre ambos.
Na verdade , a “responsabilidade pelo risco relativamente a veículos terrestres assenta na ideia básica de que estes , enquanto massas em movimento que não podem ser detidas instantaneamente , acarretam um risco acrescido de acidentes de forma que se deve impor o ónus de suportar esse risco àquele que tira proveito da circulação do veículo” , não podendo olvidar-se que “ o fundamento para a responsabilidade objectiva do detentor do veículo não é apenas o perigo do mau funcionamento da máquina ( risco agravado ) mas também o perigo da simples circulação da máquina ( risco comum ) “. ( Acórdão do S.T.J. de 24.9.2020 , rel. Rijo Ferreira , disponível em www.dgsi,pt )
Como tal  “ trata-se de pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas , tomar as providências para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros “. ( A. Varela , Das Obrigações em Geral , vol. II , 6ª ed., pág. 625 )
Não oferecendo dúvida que o condutor do veículo segurado da Ré tinha a direcção efectiva desse veículo , e o utilizava no próprio interesse , mostram-se preenchidos relativamente a este os pressupostos da responsabilidade pelo risco decorrente do referido veiculo.
Com efeito , “ um dos riscos próprios dos veículos é atropelarem pessoas quando estas estão a atravessar as estradas , pelo que se está no âmbito da responsabilidade objectiva prevista no art.503/1 do CC”. ( Acórdão da Relação de Lisboa de 9.6.2022 , rel. Pedro Martins , disponível em www.dgsi,pt )
Considerou o tribunal a quo que o risco do peão contribuiu na proporção de 1/3 para a produção dos danos decorrentes do atropelamento que sofreu , sendo a contribuição do veículo segurado da Ré de 2/3 , louvando-se para o efeito na previsão do artigo 506º , nº 1 , do C. Civil .
Dispõe o artigo 506º , nº 1 , do C. Civil . que se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação a um deles , e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos .
Decorre inequivocamente da letra deste preceito que o mesmo tem como escopo regular em sede de responsabilidade pelo risco os casos de colisão entre veículos automóveis .
Deste modo apenas quando ocorra colisão entre diversos veículos , sem culpa dos respectivos condutores , se averiguará “ se algum dos veículos causou mais danos que o outro – o que naturalmente acontecerá se um dos veículos for mais pesado do que o outro ou circular a uma velocidade superior à deste – atribuindo-se ao seu detentor a proporção correspondente na repartição do risco “. ( Menezes Leitão , Direito das Obrigações vol. I , pág. 381 )
A hipótese dos autos – atropelamento de peão por veículo automóvel sem culpa de qualquer deles – não  integra no entanto a previsão do artigo 506º , nº 1 , do C. Civil , sendo-lhe em contrapartida aplicável o regime preconizado pelo artigo 503º , nº 1 , do C. Civil .
Com efeito , “ no caso de um acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão , sem que se prove a culpa do peão ou de terceiro ou que o acidente se deu por caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo , a responsabilidade pelo acidente corre por conta do risco do proprietário do veículo “.  ( Acórdão da Relação de Lisboa de 9.6.2022 , rel. Pedro Martins , disponível em www.dgsi,pt )
Fazendo-se apelo ao decidido pelo Acórdão do S.T.J. de 23.3.2000 , “ num acidente de viação entre um peão e um veículo automóvel, se não se tiver apurado culpa de qualquer interveniente, há que, porque o peão não produz risco algum , o atribuir na íntegra ao condutor da viatura “. ( disponível em www.dgsi,pt ; no mesmo sentido ver  Acórdão do S.T.J de 19.11.1998, disponível em www.dgsi,pt )
Não se trata aqui assim de concorrência entre o risco do veículo e  conduta do lesado, i.e. entre responsabilidade pelo risco e responsabilidade pela culpa, admitida pelo jurisprudência com base numa interpretação actualista e à luz do direito comunitário da norma do artigo 505º , do C. Civil, cuja aplicação é afastada pela matéria de facto julgada provada.
Deste modo não há lugar à imputação ao peão de 1/3 do risco na produção do dano , nem por conseguinte da redução de 1/3 dos valores fixados a título de indemnização, revogando-se neste ponto a sentença recorrida.
Procede assim nesta parte o recurso interposto pelo Autor.
Das indemnizações arbitradas
Insurge-se o Autor contra a circunstância de tendo peticionado a atribuição de indemnização a título de dano patrimonial pela perda de rendimentos futuros , a compensação pelo dano biológico na vertente não patrimonial e ainda indemnização por danos morais pelo sofrimento físico e psíquico , o tribunal a quo não ter arbitrado indemnização pelo invocado  dano biológico.
Em contrapartida a Ré insurge-se por o tribunal a quo não ter considerado na indemnização do dano patrimonial futuro decorrente da perda de rendimentos futuros o falecimento do Autor entretanto ocorrido , computando no cálculo dessa indemnização uma esperança de vida de 28,8 anos que não se veio a concretizar , pugnando pela redução do valor atribuído a esse título para 50 073,96 euros  , quantia obtida pela correcção da premissa relativa à esperança de vida .
Por último a Ré defende ser excessivo o montante de 210 000,00 euros arbitrado pelo tribunal a quo a título de indemnização por danos morais , pugnando pela sua redução para 100 000,00 euros , valor que sustenta estar conforme com as indemnizações atribuídas pela jurisprudência em caso de morte ( e que se situam entre os 50 000,00 e 100 000,00 euros) , e o facto de em resultado do atropelamento o Autor ter ficado num estado de consciência mínima.
Conforme estatuído nos artigos 562º e 564º, nº 1, do C. Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, compreendendo o dever de indemnização não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de auferir em consequência da lesão.
Por outro lado, na fixação da indemnização os danos futuros são atendíveis desde que sejam previsíveis - art. 564º, nº 2, do C. Civil.
Aquilo que o A. apelidou de dano futuro por lucros cessantes decorrente da incapacidade para o trabalho de que passou a padecer em consequência do  acidente , e de dano decorrente das repercussões das lesões que sofreu  na sua vida, reporta-se a diversos parâmetros da mesma realidade objecto de indemnização, que corresponde àquilo que tem vindo a ser designado pela jurisprudência  de dano biológico .
O que está aqui em causa é a violação direito do direito à integridade física e moral da pessoa , constitucionalmente tutelado , entendido este como o respeito das diversas dimensões ( física, psíquica , mental , afectiva e social ) inerentes a todo o ser humano, cujas repercussões patrimoniais e não patrimoniais geram  a obrigação de indemnizar  ( artigos 25º da C.R.P. , e 562º e 564º, nº 1, do C. Civil)
Efectivamente é de considerar o dano biológico “ autonomizável , devendo ser contabilizado um prejuízo futuro de componente mista , patrimonial e não patrimonial , enquadrado como dano biológico , e que contemple para além do resto , a maior penosidade e esforço no exercício da actividade corrente e profissional do lesado “. ( Acórdão do S.T.J. de 20.1.2011 , rel. Souto de Moura , disponível em www.dgsi.pt )
Deste modo “ quando o dano biológico não determine perda ou diminuição dos proventos profissionais ( isto é a lesão traduz apenas uma afectação da potencialidade física , psíquica ou intelectual da vítima , para além do agravamento natural resultante da idade , mas que não originará no futuro – durante o período activo do lesado ou da sua vida – e só por si , uma perda da capacidade de ganho ) , o mesmo será indemnizável autonomamente em sede de danos não patrimoniais “ ,  e ” quando pelo contrário , o dano corporal se repercuta na capacidade de produzir rendimentos ( existindo um nexo de causalidade entre a afectação da integridade físico-psíquica e a redução da capacidade laboral ) “ « deverá aditar-se ao lucro  cessante , decorrente da previsível perda de remunerações , calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado , uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico , consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais precludidas irremediavelmente pela capitis diminutio de que passou a padecer ( o lesado ) , bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal» “ ( Acórdão da Relação de Guimarães de 9.11.2023 , rel. Maria João Matos , disponível em www.dgsi.pt , e Acórdão da Relação de Guimarães de 2.11.2017  , rel. António Penha, aí citado )
Efectivamente “ entende-se que as lesões corporais que se repercutem na saúde e capacidade da pessoa têm consequências nefastas , em regra , quer no seu património , nomeadamente na perda patrimonial , por diminuição da sua capacidade de trabalho ( mais ou menos imediatamente ) , quando o lesado se dedicava ou podia dedicar a desenvolver actividade com vista a obter rendimentos , quer noutros bens e direitos , sem conteúdo imediatamente económico”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 19.6.2019, rel. Sandra Melo  , disponível em www.dgsi.pt )
Tem assim considerado a jurisprudência que  “ a compensação do dano do dano biológico tem como base e fundamento quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança , desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado , implicando flagrante perda de oportunidades , geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais , frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar , quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente , de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas  “ .  ( Acórdão do S.T.J. de 11.4.2019, rel. Bernardo Domingos , disponível in www.dgsi.pt )
Como tal , “ mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho  , esta não comtempla a compensação do dano biológico, consubstanciado este na diminuição psico-somática e funcional do lesado , com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional , pois estamos perante dois danos de natureza diferente”. ( Acórdão da Relação do Porto  de 13.3.2013  , rel. Fernanda Almeida , disponível in www.dgsi.pt )
Impõe-se o recurso à equidade para determinar a indemnização do dano biológico - artigo 566º, nº 3, do C. Civil (neste sentido ver Acórdãos do S.T.J. de 11.4.2019, rel. Bernardo Domingos, de 2.6.2017 , rel. Tomé Gomes, de 11/9/2012 , rel. Fernandes do Vale,  de 26/1/2013,  rel. João Bernardo ,  de 2/5/2012, rel. Fonseca Ramos ,  de 19.6.2019 , rel. Oliveira Abreu  , da Relação de Lisboa de 28.1.2014, rel. Maria do Rosário Domingues , da Relação de Coimbra de 14.3.2017, rel. Vítor Amaral, da Relação de Guimarães de 9.11.2023, rel. Maria João Matos, e da Relação do Porto de 13.3.2023, rel. Fernanda Almeida, disponíveis em www.dgsi.pts).
Na verdade não existem formas matemáticas irrefutáveis que permitam quantificar com exactidão a medida do prejuízo correspondente ao já descrito dano biológico , até pela não consideração nessas fórmulas de elementos não determináveis bem como de outros imponderáveis que têm repercussão na quantificação dessa perda patrimonial e na compensação da ofensa à integridade física e à dignidade da pessoa humana.
Concluindo-se que o dano biológico é indemnizável de forma autónoma , podendo contemplar uma vertente patrimonial e não patrimonial , não merece censura a circunstância do tribunal a quo não ter distinguido na indemnização essas duas vertentes , mas já não se pode concordar com este tribunal quando  no cálculo da mesma considerou apenas a componente relativa ao lucro cessante correspondente à  perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade para o trabalho que adveio ao Autor .
Por outro lado , no que concerne à referida perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade para o trabalho que adveio ao Autor aqui não pode deixar de se  concordar com a Ré no sentido de nessa ponderação ter de ser levado em conta o falecimento do Autor entretanto ocorrido , não considerando para o efeito uma esperança de vida de 28,8 anos , mas aquela correspondente à realidade , face ao disposto no artigo 611º , nº 1 , do C.P.C..
Deste modo concordando-se com a redução da compensação da vertente patrimonial do dano biológico para os 50 073,96 euros referidos pela Ré , não pode este tribunal de recurso no entanto deixar sem compensação o dano biológico na vertente que não é reconduzível ao lucro cessante correspondente à  perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade para o trabalho que adveio ao Autor.
Ora tendo em conta a indesmentível gravidade do dano biológico , a idade do Autor – 49 anos – quando sofreu essas lesões , a decorrente impossibilidade do mesmo em consequência destas fruir das dimensões intelectual , afectiva , sexual , de parentalidade e interacção social , e de actividades lúdicas e de desenvolvimento pessoal , realizando em pleno o seu potencial enquanto ser humano , afigura-se adequado fixar para o efeito a quantia de 200 000,00 euros , totalizando assim a indemnização pelo dano biológico o valor global de 250 073,96 euros.
Este valor está em consonância com as mais recentes orientações da jurisprudência a este propósito , que vão no sentido da “ cada vez maior valorização social dos danos infligidos à integridade física e psíquica “.( Acórdão da Relação de Guimarães de 9.11.2023 , rel. Maria João Matos , disponível em www.dgsi.pt , e jurisprudência aí citada na nota de rodapé 25 )
A título de exemplo refira-se o  Acórdão da Relação do Porto de 13.3.2013,  que considerou “ justa e adequada a indemnização pelo dano biológico , na parte não indemnizada pela jurisdição laboral , na quantia de € 140 000,00 , ao lesado que , durante mais de um ano , não conseguia realizar tarefas básicas , como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal , sofreu 81 pontos de afectação da sua integridade físico-psíquica que se repercutem nas actividades da vida diária, incluindo familiares e sociais (…) carece permanentemente do auxílio de terceira pessoa ; não poderá mais exercer qualquer actividade profissional “. (rel. Fernanda Almeida, disponível in www.dgsi.pt )
Por último , no que respeita à indemnização por danos morais ( que não inclui o dano biológico ) defende a Ré a sua redução para 100 000,00 euros.
Não estando aqui em causa o dano biológico , que já foi objecto de ponderação em sede própria  , não suscita dúvida a gravidade dos danos morais , e por conseguinte a respectiva ressarcibilidade .
De acordo com o disposto pelo artigo 496º, nº 1, do C. Civil, na fixação da indemnização deve entender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Na verdade não se visou com o estabelecimento da indemnização por danos não patrimoniais reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o dano, mas antes atribuir ao lesado uma compensação com expressão monetária para minorar ou atenuar o sofrimento causado.
Na fixação da indemnização por danos morais o julgador deve recorrer a juízos de equidade, ponderando ainda a culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (artigos 496º, nº 3 e 494º do Cód. Civil).
Não merece reparo a ponderação a este respeito efectuada pelo tribunal a quo nos seguintes termos :
“ O quadro factual com relevo para a apreciação deste item da obrigação de indemnização é o seguinte:
O autor ficou de imediato internado no Hospital Garcia de Orta, tendo dado entrada nessa instituição, para a sala de reanimação, com um nível de consciência de 7 (sete) na escala de Glasgow. O mesmo apresentava traumatismo crânio-encefálico, fractura do membro superior esquerdo e fractura do membro inferior esquerdo, vomitando abundantemente. Apresentava pupilas iso/iso, sem resposta verbal ou motora, tendo sido sedado. Foi encaminhado para o bloco operatório, tendo efectuado no próprio dia, uma intervenção cirúrgica – craniotomia descompressiva esquerda com drenagem de hematoma subdural agudo - e sido imobilizados os membros fracturados. Sofreu novas intervenções cirúrgicas nos dias 1 de Março, 18 de Março, 25 de Março e 7 de Abril de 2017. Em 23 de Maio de 2017 mantinha-se internado no Hospital Garcia de Orta, a aguardar colocação na rede de cuidados continuados e com quadro clínico do ponto de vista neurológico sem recuperação. Nunca mais voltou a falar ou a mover-se, estando actualmente (à data da instauração da acção) internado na Clínica do Norte do Instituto Luso-Cubano de Neurologia. Em 30 de Junho de 2017 a Junta Médica do Ministério da Saúde atribui-lhe uma incapacidade de 95% (noventa e cinco por cento). O autor continua em estado mínimo de consciência possível, mostrando-se aconselhável a reabilitação neurológica. O mesmo encontra-se em incapacidade total e absoluta desde o sinistro, estando afectado de uma incapacidade parcial permanente de 95% (noventa e cinco por cento). O autor apresenta cicatrizes nos membros inferiores. Como intercorrências do internamento o autor sofreu pneumonia e pseudomonas aeruginosa. O mesmo está completamente dependente de terceiros para todos os actos da vida diária. Antes do sinistro o autor tinha com uma vida estável e muita estima pelos filhos.
Em Julho de 2018, o autor apresentava sequelas de traumatismo craniano severo, estado de consciência mínimo, com respostas na sua maioria espontâneas, mas com carácter reflexivo repetido, completa ausência de funções nervosas superiores, dupla hemiparesia espática com tono muscular aumentando nas extremidades e no pescoço, que mantém numa postura hipertónica permanente, sem resposta verbal, responde a ordens simples com movimento de abrir e fechar os olhos, apresenta momentos de maior reactividade dando a entender estar com compreensão activa respondendo assertivamente sim ou não a perguntas simples, piscando os olhos uma vez para não e duas vezes para sim. Mantendo nessa data dificuldade de seguimento ocular de estímulos e ausência de resposta emotiva primária perante estímulos de referência emocional. Verificaram-se alterações relacionadas com a saúde intra-oral, ao nível da mucosa das gengivas, língua, palato duro e bochechas, por défices de hidratação e aumento da reactividade resultando em contracção da musculatura oro-facial. O autor apresenta ainda aumento significativo do tono ao nível da musculatura dos lábios, língua, mentoniano, perioral, bucinator e zigomáticos e não tem capacidade de realização de praxias bucofaxiais activas. As contracções involuntárias são frequentes, o que dificulta a normalização do tono orofacial, não realiza praxias activas da mandíbula, lábios e língua. O varrimento ocular e o estabelecimento e manutenção do contacto ocular directo é inexistente. Apesar de estar muito reactivo a estímulos externos por aumento do tono, é possível posicionar os membros inferiores de forma correcta, embora por períodos curtos. Os membros superiores mobilizam-se com alguma dificuldade mas têm uma resposta muito positiva quando se aplica acupunctura, diminuindo de imediato o tono e permitindo uma mobilização mais facilitada. Ao nível da cervical verifica-se muita tensão com rotação para a direita, mostrando igualmente forte diminuição quando se aplicou acupunctura. O autor apresenta uma escara de grau I na zona do cóccix.
As lesões corporais e cerebrais irreversíveis, consequência do acidente ocasionaram repercussões profundamente graves na vida diária do autor, mercê da dimensão e gravidade das lesões e sequelas, remetendo-o para um estado ‘’vegetativo’’ em que nem as funções mais básicas, como alimentar-se, vestir-se, rir, deslocar-se pelo seu pé pode executar. Estando dependente integralmente da ajuda de terceira pessoa, sendo que os tratamentos e aturados cuidados a que, com o empenho familiar, vem sendo submetido, não revertem o seu estado, muito embora evitem o agravamento do seu estado geral.
Este panorama não pode deixar de merecer a tutela do direito para os efeitos previstos no art.º 496º, mesmo tratando-se de um caso em que se poderia defender que o estado mínimo de consciência do autor minora o sofrimento.
A este propósito acompanhamos o propugnado no Acórdão do STJ de 28.02.2013, proferido no processo nº 4072/04.0TVLSB.C1.S1 , acessível in www.dgsi.pt, em que está em causa em termos fácticos a situação de um lesado (40 anos) vítima de acidente que originou gravosas lesões cerebrais e neurológicas, que implicaram um estado clínico persistente e irreversível de coma vegetativo, prolongado por quase 6 anos. «A especificidade do caso dos autos radica na circunstância de não ter ficado demonstrada a consciência por parte do lesado do seu estado de total incapacidade, pelo que não teria tido este uma efectiva percepção subjectiva, ainda que mínima, da extrema e irreversível degradação do seu padrão e qualidade de vida, ao longo dos quase 6 anos que precederam a morte : ou seja, não está demonstrado que tenha ocorrido o sofrimento psicológico inerente a ter de suportar, durante esse período prolongado, as sequelas absolutamente frustrantes e incapacitantes das lesões sofridas. Considera-se que é pertinente, a este propósito, distinguir, para efeitos de cômputo da indemnização, entre o plano objectivo da perda e degradação extrema do padrão de vida do sinistrado, enquanto lesão objectiva de um bem jurídico essencial da personalidade, ligado à própria dignidade da pessoa humana, que ocorre independentemente da percepção cognitiva pelo lesado do estado em que se encontra, envolvendo a drástica carência de autonomia e de eliminação das possibilidades de realização pessoal; e o plano subjectivo, decorrente de – a tal estado objectivo – se ter de adicionar o sofrimento psicológico necessariamente inerente à consciência, ainda que difusa ou mitigada, da total falta de autonomia pessoal e de qualidade de vida e da frustração irremediável de todos os projectos e satisfações alcançáveis no decurso da vida pessoal do lesado.»
Conclui-se, por conseguinte, ser adequada à gravidade do dano não patrimonial sofrido, apelando à equidade e atendendo aos padrões jurisprudências actuais, a fixação da compensação por danos morais na quantia de 210.000,00 €. “
Importa não olvidar que “ o montante pecuniário compensatório , a arbitrar genericamente a título de danos de carácter não patrimonial , não tem de obedecer a qualquer critério ( obrigatório ) de proporcionalidade relativamente ao específico dano morte ( compensação pela perda do direito à vida )” face “ à natureza , autonomia e especificidade inerentes às duas espécies de danosidade em equação”. ( Acórdão do S.T.J. de 14.9.2010 , rel. Ferreira de Almeida , disponível em www.dgsi.pt )
Para um noção mais rigorosa dos valores fixados em sede de jurisprudência faz-se apelo ao Acórdão da Relação do Porto de 13.3.2013 , acima citado a propósito da indemnização pelo dano biológico  , que atribuiu a quantia de 250 000,00 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais. ( rel. Fernanda Almeida, disponível in www.dgsi.pt )
Procedem assim parcialmente nesta parte os recursos , revogando-se parcialmente a sentença recorrida no que respeita à indemnização pelo dano biológico , que se fixa em 250 073,96 euros, e confirmando-se a mesma no que respeita à indemnização pelos danos não patrimoniais.

V – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 8ª Secção Cível  do Tribunal da Relação de Lisboa  em julgar parcialmente procedentes os recursos interpostos e, em consequência :
5.1. Revogam parcialmente a sentença  recorrida, condenando a Ré a pagar a título de indemnização por danos emergentes a quantia de 182 913,61€, acrescida de juros de mora , contabilizados desde a citação, à taxa legal, e a título de indemnização pelo dano biológico ( incluindo a vertente patrimonial da perda de capacidade de ganho) a quantia de 250 073,96€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a data da sentença;
5.2.  Confirmam a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar a título de indemnização por danos não patrimoniais quantia de 210 000,00 €,  acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a data da sentença.
Custas pelos  Recorrentes, na proporção do decaimento. ( artigo 527º, do C.P.C.)

Lisboa, 8/2/2024
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Carla Mendes