Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | NUNO LOPES RIBEIRO | ||
Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO CONTRATO DE MÚTUO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | À luz do disposto no art.º 46º, nº1, c) do Código de Processo Civil de 1961 (na versão resultante do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8/3), o documento que consubstancia um acordo de vontades tipificável como contrato de mútuo mas do qual não conste declaração do mutuário no sentido do reconhecimento de uma obrigação já existente nem resulte que a quantia foi efectivamente entregue ou disponibilizada ao mesmo, não constitui título executivo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa I. O relatório A interpôs a presente acção executiva comum, em 28/8/2013, contra B peticionando o pagamento da seguinte quantia exequenda: Valor Líquido: - €6.800,49 a título de capital em dívida; Valor dependente de simples Cálculo Aritmético: - €1.255,82, a título de juros remuneratórios, calculados desde 22/02/2012 até 29/08/2013 à taxa de 12,00%; - €396,70, a título de juros moratórios, calculados desde 22/03/2012 até 29/08/2013 à taxa supletiva de 4,00 %; - €66,10 a título de imposto de selo; - €14,40 a título de despesas; - €400,00 a título de comissões. Invoca, para tanto, o seguinte: 1 - Por contrato de crédito pessoal outorgado em 30/07/2010 o ora Exequente, A., emprestou à ora Executada B a quantia total de €7.434, 36, a reembolsar mediante o pagamento de 120 prestações mensais e sucessivas de capital e juros (Cfr. doc. n.º 1); 2 - Foi acordado que o capital mutuado venceria juros à taxa de 12,00% (Cfr. Doc. n.º 1); 3 - Mais tendo sido acordado que, em caso de incumprimento de qualquer prestação de juros ou capital, serão devidos pela ora Executada, durante a mora, juros à taxa vigente à data do incumprimento acrescida de uma sobretaxa de 4,00 %, a título de cláusula penal (Cfr. Doc. n.º 1); 4 - A Executada deixou de pagar as prestações a que se obrigou, entrando, assim, em incumprimento a 22/03/2012, cifrando-se, nessa data, o capital em dívida em €6.800,49 (cfr. Doc. nº. 2); 5 - Apesar de devidamente interpelado para o efeito, a Executada não liquidou as quantias em divida (Doc. nº 3). 6 - Pelo que, são devidos juros remuneratórios à taxa contratual de 12%, desde a data do ultimo pagamento, ou seja, 22/02/2012, até à data do incumprimento, ou seja, 22/03/2012, bem como juros de mora sobre o montante do capital em dívida de €6.800,49, à taxa de 12,00% + 4,00%, contados da data do incumprimento até à data de 29/08/2013, no montante total de €1.652,52 e aos quais acresce €66,10 a título de imposto de selo devido sobre os juros, a entregar aos cofres do Estado. 7 - Às supra mencionadas quantias acrescem ainda os seguintes montantes: €14,40 referentes a despesas e €400,00, a título de comissões em dívida. 8 - O débito do Executado perante o Exequente, ascende, assim, na data de 29/08/2013 a €8.933,51 (€6.800,49 + €1.652,52 + €66,10 + €14,40 + €400,00); 9 - São igualmente devidos juros de mora vincendos sobre o montante de capital de €6.800,49 à taxa de 12,00% + 4,00% ao ano, acrescidos do devido Imposto de Selo, a contar de 30/08/2013 e até efectivo e integral pagamento. Juntou o exequente, com o requerimento executivo, cópia do contrato invocado, documento intitulado Gestão de Crédito Vencido – Consulta de Detalhe de Responsabilidades e cópia de carta dirigida à executada, datada de 19/8/2013, com o seguinte teor: Como é do conhecimento de V.Exa, encontra-se em incumprimento o Contrato Crédito Pessoal nº 37000602781 celebrado com o A em 30/07/2010. A situação mantém-se na presente data, dado que resultaram infrutíferos todos os esforços extrajudiciais levados a cabo pelo B…. Face ao incumprimento reiterado, o Banco considera mediatamente vencida e exigível a totalidade da dívida do contrato supra mencionado, passando, nesta data, V.Exa. a ser devedora da quantia total de 8.902,09€, correspondendo ao saldo em dívida daquela operação de crédito, sendo 6.800,49€ de capital, 1.622,30€ de juros moratórios, 64,90€ de imposto de selo, 14,40€ de despesas e 400,00€ de comissões em dívida. Ao supra referido valor acrescem ainda os juros de mora vincendos que serão contabilizados até efectivo e integral pagamento dos montantes em dívida. No entanto, e na expectativa de que não seja necessário o recurso à via judicial, solicitamos que dentro do prazo de 8 dias, proceda ao pagamento da dívida. Caso o pagamento não ocorra, irá o B… promover todas as diligências judiciais destinadas a obter o integral ressarcimento do seu crédito, executando as garantias prestadas com todas as consequências de tal procedimento. * Com data de 11/4/2014, foi proferido despacho com o seguinte teor dispositivo: Carece pois o exequente de título executivo válido que lhe permita demandar a executada. Termos em que, face ao exposto e ao abrigo dos art.ºs 809º, n.º 1, al. a), 812º-D, al. e) e 812º-E, n.º 1, al. a) e 820º, decido rejeitar a presente execução. Custas pelo exequente, fixando-se o valor da causa em €8.933,51 (art.ºs 315º, n.º 2 e 446º, n.ºs 1 e 2). Registe e notifique. * Inconformado, o exequente interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: a) Da sentença proferida nos autos à margem referenciados resultou o indeferimento liminar do requerimento executivo por falta ou insuficiência do título ao abrigo do disposto nos art.º 809º nº. 1 alínea a), 812º-D alínea e), 812º- E nº. 1 alínea e 820º do C.P.C, ainda aplicável a esta fase processual por via do disposto no art.º 6º, nº. 3 da Lei nº. 41/2013, de 26 de Junho. b) Da exposição de facto e de direito que subjaz à prolação da sentença em apreço, conclui o Meritíssimo Juiz a quo pela insuficiência do título dado à execução, pugnando que o contrato em apreço não constitui per si título executivo, na medida em que o direito reclamado não advém da mera assinatura do contrato, carecendo, por conseguinte, de ser provada a verificação da mora ou incumprimento definitivo da Executada, uma vez que a obrigação emergente do documento carreado para o autos não reúne os requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade vertidos no art.º 802º do C.P.C. que o Mmo. Juiz a quo não considerou a oposição à homologação do Plano de Revitalização deduzida pelo ora Recorrente; c) A completude e a perfeição do título dado à execução, e, por conseguinte, a almejada certeza, exigibilidade e liquidez, seriam, na sua óptica, asseguradas pelo preenchimento e apresentação a pagamento da livrança entregue em branco conforme convencionado no contrato celebrado entre as partes. Seria este complemento que permitiria a aceitação contrato de crédito enquanto título executivo. d) É entendimento da ora Recorrente que o documento objecto de execução titula um contrato de crédito pessoal, por via do qual o Recorrente financiou a ora Executada, ficando esta correspectivamente obrigada ao reembolso do respectivo valor mutuado nos termos clausulados. Constitui um documento particular não autenticado, no qual se encontra aposta a assinatura da Executada, importando, para esta, a constituição da obrigação de pagamento ao Recorrente de uma quantia pecuniária, cujo montante é determinável mediante simples cálculo aritmético. e) Descrito como tal, é, por conseguinte, um título executivo, nos termos do art.º 46º nº 1 c) do CPC. f) "(...) constitui título executivo o documento representativo de um contrato de concessão de crédito ao consumo, no qual se encontra aposta, no local destinado à assinatura do mutuário, uma assinatura correspondente ao nome do executado. Tal documento traduz o reconhecimento presuntivo de uma dívida, por parte do subscritor (mutuário), proveniente de um empréstimo em numerário, destinado directamente à aquisição de um bem (al. c), do art.º 46º, do CPC). Deste modo, em face do requerimento executivo e do título dado à execução, presume-se a verificação da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação dos executados, sendo que ao exequente mais não compete, relativamente à existência da obrigação, do que exibir o título executivo pelo qual ela é constituída ou reconhecida (...)", cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Proc. 0452592, proferido em 17/05/2004. g) Contrariando a tese defendida pelo Meritíssimo Juiz a quo, entendemos que o documento não só comprova como integra a constituição de uma obrigação de reembolso. Na realidade, a devedora está obrigada ao pagamento da totalidade da verba creditada e demais encargos nos termos contratualmente clausulados. h) A obrigação exequenda reconduz-se à obrigação de reembolso emergente do crédito mutuado, sendo para o caso irrelevante que as prestações sejam de imediato exigíveis, na sua totalidade, em virtude da resolução operada pela exequente. i) O reembolso da quantia mutuada constitui obrigação expressa e pessoalmente assumida pela devedora no contrato que agora titula a execução. O facto de as prestações em dívida serem exigíveis na totalidade, por força do clausulado contratual, insere-se igualmente no acervo de obrigações assumidas pelo devedor. É facto notório que a Recorrida socorreu-se abusivamente de um procedimento legal para arquitectar maquiavelicamente um Plano que lhe permitisse levar a "bom porto" a sua intenção de se eximir de algumas responsabilidades contratadas, fazendo-se aliar do seu Credor maioritário, cujo crédito manteve incólume; j) Por conseguinte, existe identificação qualitativa e quantitativa entre a obrigação exequenda e a obrigação documentada no título. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso, devendo, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, com as devidas consequências, assim se fazendo a costumada justiça. * O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo. Com data de 20/7/2021, foi proferido no apenso A sentença, com o seguinte teor dispositivo: Assim sendo, atenta a prova documental oferecida, a falta de oposição e visto o disposto no art.º 356º, nº 1, alínea b), 2ª parte, do CPC, julgo habilitada a Requerente C, para, no lugar da exequente prosseguir a demanda. * II. O objecto e a delimitação do recurso Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio. De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso. Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal: Apreciação da força executiva do contrato dado à execução. * III. Os factos Resulta provada a factualidade supra indicada. * IV. O Direito Fundou o Exmo. Juíz a quo a sua decisão nas seguintes considerações jurídicas: In casu, o documento dado à execução consubstancia um contrato de concessão de crédito, que mais não é do que um contrato de mútuo. Com efeito, dispõe o art.º 1142º do Código Civil que "Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade". Trata-se de um contrato real ou quod constitutionem, pelo facto de a sua perfeição depender da circunstância de o mutuante ter de proceder à entrega do dinheiro ou da coisa. A sua perfeição não depende, portanto, apenas do encontro das declarações negociais das partes, mas também da entrega material da coisa mutuada, só se podendo considerar o negócio concluído com tal entrega; só com a entrega é que o negócio fica concluído, nascendo então para o mutuário, e só nesse momento, a obrigação de restituição da res. Do documento dado à execução resulta que a restituição do valor mutuado pelo exequente seria feito nas condições aí definidas. Depende por isso de prova a produzir a verificação da mora ou do incumprimento da executada, não constituindo tal documento título executivo por si só, uma vez que o direito alegado pelo exequente depende do seu incumprimento e não da mera assinatura do mesmo, não sendo a dívida, apenas em face do documento apresentado, certa, exigível e líquida. No contrato, convencionou-se a entrega de uma livrança em branco para garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações emergentes do mesmo. Ou seja, sendo o contrato incumprido pela executada, poderia então o exequente preencher a livrança em conformidade com o acordado e apresentá-la a pagamento. E, só com esse preenchimento e apresentação a pagamento ficaria então o exequente munido de título executivo. Porém, o exequente, apesar de ter esse direito, não deu a livrança à execução, pretendendo que o contrato de crédito sirva de título executivo por si só o que, conforme se demonstrou, não acontece. Carece pois o exequente de título executivo válido que lhe permita demandar a executada. * Atenta a data de interposição da presente acção executiva (28/8/2013), mostra-se o documento dado à execução excluído da esfera de análise emergente do disposto no art.º 703º, nº1 do Código de Processo Civil actual, com vigência iniciada em 1/9/2013, por força do disposto no art.º 6º, nº3 da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (norma que expressamente afastou a aplicação do novo Código ao elenco de títulos executivos, nas execuções iniciadas antes daquela data). Ainda que assim não o fosse, sempre se dirá que, na senda dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 847/2014 (de 3/12/2014) e 161/2015 (de 4/3/2015), se encontra presentemente firmado o entendimento de que é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, a interpretação das normas conjugadas do art.º 703º do novo Código (que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias) e 6º, nº 3 do seu diploma preambular (que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013) no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art.º 46º nº1, al. c) do Código de 1961. Acrescendo que nesse sentido se pronunciou expressamente e com força obrigatória geral, o mesmo Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 408/2015, de 23 de Setembro, no qual, por violação do princípio da confiança, decidiu «declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do C.P.C. (aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho) a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do C.P.C. de 1961, constante dos artigos 703º do C.P.C., e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho». * Ultrapassada esta questão, quer pela data de entrada em juízo do requerimento executivo quer pela interpretação conforme à Constituição supra explanada, cumpre, pois, analisar se o documento dado à execução cumpre os requisitos previstos no Código Processo Civil de 1961 para titular a execução. E, a esse respeito, definia o art.º 46º desse Código, na versão resultante do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8/3, sob a epígrafe Espécies de títulos executivos, o seguinte: 1 - À execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias; b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto; d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. 2 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante. * O documento dado à execução é, indiscutivelmente, um documento particular que está assinado pela executada e, portanto, o que importa saber é se esse documento importa ou não o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação pecuniária. O aludido documento é intitulado como Crédito Pessoal Mais, numa das páginas contém as respectivas condições gerais, sendo que noutra, alude ao montante concedido, ao número de mensalidades, ao montante de cada mensalidade, à taxa de juro nominal anual e à TAEG na data da concessão de crédito. Além da data, do nº do contrato, ali se mencionam os dados da executada referentes ao seu estado civil, números de identificação civil e fiscal, residência e número de conta bancária «vinculada» ao contrato. Como vem sendo entendido e como se refere, designadamente, no Acórdão do STJ de 25/01/2011, disponível em www.dgsi.pt, “…o mútuo é, pela sua própria natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa com a entrega da coisa…” sendo que o legislador, mantendo-se fiel à doutrina romanista, “…continua a considerar a tradição como um elemento constitutivo do próprio contrato real em si, e não apenas como condição de eficácia do contrato já existente, não se tratando da execução do acordo, do cumprimento da obrigação, mas antes da existência do próprio contrato”. Isso mesmo referem Pires de Lima e Antunes Varela quando referem: “…o mútuo é, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa pela entrega (empréstimo) da coisa”, in Código Civil Anotado, vol. II, pg. 680. Significa isto, portanto, que o acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), exigindo-se ainda a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário. Com efeito, caracterizando os contratos reais, recordemos as palavras de Inocêncio Galvão Telles, in Manual dos Contratos em Geral, pg. 380: “…são aqueles para cuja validade se exige, além dos requisitos comuns a todos os contratos, outro que consiste na transferência da posse – na datio rei. Sem essa transferência o contrato não está constituído: não é válido e, portanto, não produz efeitos”, acrescentando mais adiante que “na definição legal destes contratos, mais ou menos nitidamente, transluz a ideia constante de que é necessária à sua válida formação a transferência da posse, de um contraente para outro, do objecto respectivo”. Assim, porque a obrigação a cargo do mutuário só existe se e quando a coisa mutuada lhe for entregue e porque a obrigação de entrega a cargo do mutuante não está definida na lei como obrigação decorrente do contrato, ter-se-á que concluir que o contrato de mútuo apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário e que a obrigação de restituição a cargo deste apenas se constitui no momento em que a coisa lhe for entregue, sendo, para tanto, insuficiente o acordo de vontades relativamente aos elementos integradores do negócio. O documento junto aos autos (no qual se baseia a execução), ainda que contenha os elementos integradores de um contrato de mútuo, nem sequer chegará a configurar, só por si, um verdadeiro acordo de vontades, porquanto, como decorre das condições gerais dele constantes, a concessão do crédito encontrava-se condicionada à entrega de toda a documentação exigida. Mostra-se o mesmo documento omisso a qualquer indicação no sentido de essa quantia ter sido já disponibilizada ao mutuário (aqui executada) e, ainda que indique o número e o valor das prestações através das quais o mutuário iria proceder à restituição, não contém sequer a data em que teria início o pagamento dessas prestações. Assim, a executada não ficou obrigada, com a assinatura do aludido documento, a pagar ao mutuante os valores que viesse a utilizar, na medida em que era necessário que a quantia em causa fosse efectivamente disponibilizada e entregue ao mutuário. Refira-se que o documento em causa não evidencia e nem sequer faz presumir que o capital tenha sido entregue ao Executado no momento da assinatura do contrato, porquanto o que dele resulta – designadamente das condições gerais – é que, após essa assinatura, a mutuária ainda teria que entregar documentação. Neste sentido se decidiu, aliás, no Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2000, em cujo sumário se lê que “um contrato de crédito ao consumo em que não conste que o montante do crédito concedido tenha sido efectivamente entregue ao vendedor não pode servir de título executivo”. No mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos da Relação de Coimbra de 17/12/2014, da Relação de Guimarães de 15/09/2014 e desta Relação de Lisboa, 5/6/2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Desta Secção, veja-se o Acórdão (não publicado) proferido em 15/9/2022, no processo nº 18237/13.0YYLSB-A.L1, relatado por Gabriela Marques – que também assina este): II. Apresentando a exequente como título um contrato de concessão de crédito, que prefiguraria um título executivo face ao disposto no art.º 46º alínea c) do Código de Processo Civil/95 (disposição aplicável face ás normas conjugadas dos art.º 6.º, n.º 3 e 8.º da Lei 41/2013, de 26 de Junho, pois o Novo CPC não se aplica à execução que se iniciou a antes de 01/09/2013), para a instituição de crédito dar à execução tal obrigação, tem de provar, não só o contrato, mas também as concretas disponibilizações/utilizações efectivas do crédito. III. Não prefigura um título executivo, nem o mesmo serve de suporte ao contrato, a indicação do montante da responsabilidade dos executados num anexo que não foi pelos mesmos subscrito ou no qual não estejam representados pela entidade terceira que o elaborou. E, se é certo que o aludido documento não incorpora, só por si, a constituição de qualquer obrigação pecuniária a cargo da executada, é igualmente certo que não foi junto aos autos qualquer outro documento que, conjugado com o primeiro, permita concluir pela efectiva constituição da obrigação que está aqui a ser exigida. Com efeito, o documento junto com o requerimento executivo intitulado Consulta de detalhe de responsabilidades, configura apenas um documento que terá sido elaborado pela própria exequente (para controlo interno das operações e movimentos efectuados ou eventualmente elaborado com vista à junção aos presentes autos) e que não tem qualquer idoneidade para provar a efectiva realização dos movimentos e operações nele retratados e a efectiva disponibilização do capital à executada. E muito menos possui tal eficácia constitutiva a mera interpelação extra-judicial que também acompanha o requerimento executivo. Por fim, o documento em que se fundamenta a execução também não incorpora uma qualquer declaração da executada que possa ser entendida como reconhecimento da existência de tal obrigação. Concluímos, portanto, que o documento em causa não importa a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária da responsabilidade do Executado, pelo que, face ao disposto no art.º 46º, nº 1, c), do anterior Código de Processo Civil, não constitui título executivo bastante para a persente execução. Consequentemente, tendo em conta o disposto no art.º 726º, nº 2, a) do actual Código de Processo Civil, havia fundamento para indeferimento liminar e, como tal, nada obstava a que, ao abrigo do disposto no art.º 734º do mesmo diploma e até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, o Exmo. Juiz a quo conhecesse oficiosamente dessa questão, determinando, com base nela, a extinção da execução. Daí a improcedência da apelação. * V. A decisão Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. * Lisboa, 12 de Janeiro de 2023 Nuno Lopes Ribeiro Gabriela de Fátima Marques Adeodato Brotas |