Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26315/22.9T8LSB.L2-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: RECLAMAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
INCOMPETÊNCIA RELATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO – ARTIGO 105.º, N.º 4 DO CPC
Decisão: RECLAMAÇÃO PROCEDENTE
Sumário: I. A infração das regras de competência fundadas na divisão judicial do território determina a incompetência relativa do tribunal.
II. O critério geral nesta matéria é o de que o autor deve demandar, em regra, no tribunal do domicílio do réu (regra semelhante consta, relativamente a pessoas coletivas e sociedades). Contudo, a lei prevê casos em que esse critério geral é afastado por regras especiais.
III. No caso de o réu não se encontrar em território português – sendo que, no caso, a citação dos réus foi concretizada na Alemanha, local onde os réus, aliás, declararam residir e ter o único domicílio – o mesmo deverá ser demandado no tribunal do domicílio do autor.
IV. Situando-se o domicílio do autor em Lisboa, a demanda dos réus deveria, como foi, ser efetuada em Lisboa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. Considerando o que se documenta dos autos, mostra-se apurado o seguinte:
1) Em 08-11-2022, “A”, Advogado, com escritório em Lisboa veio instaurar a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, para pagamento de honorários, contra “B” e “C”, casados entre si, residentes em Estugarda, Alemanha, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de € 21.499,00, “acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da data da citação, acrescida, ainda, da sobretaxa de 5% a título de sanção pecuniária compulsória, a partir do trânsito em julgado da sentença, em ambos os casos até integral cumprimento e ainda em custas e demais legal”.
Invocou, em suma, que:
- Os réus, em 1997, lhe conferiram poderes de administração para os representar em todos os assuntos que lhes dissessem respeito em Portugal, sendo que, o autor começou a prestar serviço aos réus, em data anterior, pelo menos em 1995;
- Ao longo dos anos, o Autor foi prestando todos os serviços que se mostravam necessários ao interesse dos Réus, tendo terminado, em julho de 2021, com a conclusão do último processo que ainda estava a decorrer, o processo executivo nº (…)/06.9YYLSB, 1ºJuízo, 3ª Secção;
- O Autor exerceu todos os poderes de administração dos bens referentes a um prédio de dez andares, de que os Réus eram possuidores na Brandoa e a uma vivenda em Alcabideche, que se encontravam arrendadas, com as implicações que resultam, devido às muitas incidências que daí resultavam, nomeadamente pagamento de impostos, seguros, registos, receber estratos bancários, celebração de contratos de arrendamento, atualização de rendas, cobrança de dívidas, tendo algumas chegado ao tribunal, bem como processos no Tribunal de Murça, referente a um prédio de que é titular em(…) - Murça;
- Os últimos honorários pagos pelos Réus, que englobavam todo o mandato, foram apresentados em janeiro de 2002 e, de 30 de janeiro de 2002 até 2021, apesar de forma continuada ter prestado os serviços que se mostrassem necessário, para o bom desempenho do mandato, só recebeu a quantia de € 1250,00 referente aos serviços prestados em processo de execução que, entretanto, foi concluído, e € 500,00, que serviram para pagar parte das despesas;
- Depois do pagamento dos honorários globais, que foram efetuados em 2002, o Autor continuou a prestar os serviços necessários ao decorrer dos processos:
- Processo (…)/98, 2ª Secção, 10ª Vara cível de Lisboa;
- Processo (…)/2000, 1ª Secção, 3ª Vara cível de Lisboa;
- Proc. (…)-A/98, Vara 17ª, 2ª Secção;
- Proc. (…)/2002, 3º Juízo cível Amadora;
- Proc. (…)-A/98, 12º Vara, 1ª Secção;
- E o Autor, no seguimento destas ações declarativas, propôs as seguintes ações executivas;
- Proc.Executivo nº (…)/06.9YYLSB, 1º Juizo, 3ª Secção;
- Proc. Executivo (…)/06.9YYLSB, 2º Juizo, 2ª Secção;
e deu seguimento à ação Executiva nº (…)/98, Vara 17ª, Secção 2ª, que se encontrava a aguardar o pagamento total, resultante da penhora de parte do vencimento do Executado;
2) Os réus, citados, apresentaram – em 15-02-2023 – contestação em juízo, invocando, entre o mais, exceção de incompetência do tribunal, invocando o seguinte:
“(…) 2º Diz o Art.73.º do Código de Processo Civil, relativamente à acção de honorários que:
“ 1 - Para a ação de honorários de mandatários judiciais ou técnicos e para a cobrança das quantias adiantadas ao cliente, é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta. ”
3º A presente acção salvo melhor opinião não tem nenhuma conexão com nenhum processo enunciado pelo A.
4º Desta forma, não se preenchem os pressupostos para a competência do presente Tribunal para julgar a presente acção, uma vez que no entender dos RR, a existir qualquer divida de honorários, qualquer acção de honorários deveria correr por apenso às acções que tivessem existido.
5º Assim sendo, não estaremos, s.m.o. perante matérias que caiam na alçada da competência do presente Tribunal.
6º Por conseguinte, deverá s.m.o., ser declarada a incompetência absoluta do tribunal, abstendo-se este, de conhecer o pedido e conduzindo à absolvição do réu da instância.”.
3) O autor replicou – cfr. articulado de 13-03-2023 – pronunciando-se sobre a exceção de incompetência do tribunal, nos seguintes termos:
“1º Os RR. para arguirem a incompetência do Tribunal, invocam o art.º 73º do C.P.C. que manifestamente não se aplica ao presente caso, já que o mesmo se refere a honorários devidos no âmbito de um processo judicial e não a honorários que são devidos no âmbito de vários processos judiciais e de serviços que foram prestados fora do âmbito de qualquer processo;
2º Para determinar o tribunal competente em situações como esta, em que o mandato foi exercido no âmbito de vários processos judiciais e extrajudicialmente, terá que se recorrer à regra geral do nº 3 do art.º 80º do CPC, atendendo a que os RR residem em pais estrangeiro;
3º A vencer a tese dos RR chegaríamos ao absurdo de o Autor ter que propor tantas ações quantos os processos que aqui se incluem, violando os mais elementares princípios do direito, em especial o da economia processual (…)”.
4) Em 06-07-2023 foi proferido despacho determinativo da notificação dos réus “para informarem o seu domicílio em Portugal, uma vez que da acção decorre que serão emigrantes, naturais de Murça e titulares de bens em Portugal, onde terão também o seu domicílio fiscal, para aqui se deslocando ao longo do ano ou em ferias, com certeza”;
5) Por requerimento de 11-07-2023 os réus pronunciaram-se dizendo que a única morada que têm é em Estugarda, na Alemanha, não tendo domicílio em Portugal;
6) Em 09-11-2023 foi proferida decisão julgando procedente a exceção de incompetência do Tribunal e absolvendo os réus da instância, dela constando escrito, nomeadamente, o seguinte:
“(…) No caso em apreço, o A. indicou a morada dos RR. na Pi. na Alemanha onde estes foram citados e contestaram.
Os presentes autos respeitam a invocados honorários, de alegados serviços de advocacia desenvolvidos em vários locais, tribunais e acções, verificando-se até que o aqui A. não identificou completamente os tribunais onde decorreram os alegados serviços e a regra geral no caso em apreço, é a que se encontra no nº3º da disposição legal em apreço que dispõe:
“Se o réu tiver o domicílio e a residência em país estrangeiro, é demandado no tribunal do lugar em que se encontrar”.
A “residência permanente”, é o local onde a pessoa tem centrada a organização da sua vida individual, familiar e social, isto é, é a casa onde a pessoa tem organizado, de forma estável e continuada no tempo, a sua economia doméstica, familiar e social, onde aquela dorme, confeciona e toma as suas refeições, passa o seu tempo de lazer, convive com os seus familiares, recebe os seus amigos e onde tem centrada a sua vida, continuada e permanentemente.
(…) A “residência habitual” é um minus em relação à “residência permanente”.
(…) A “residência habitual” é o local onde a pessoa fixa o centro da sua vida pessoal e onde habitualmente reside, pelo que essa residência “habitual” pode não ser permanente, podendo, inclusivamente, acontecer de a pessoa ter duas ou mais residências habituais, residindo alternadamente numa e noutra sem que nenhuma se destaque, em termos de primazia, em relação à outra ou outras quanto à organização da vida pessoal, familiar e social da pessoa, caso em que esta se considera domiciliada em qualquer uma delas -n.º 1 do art. 81º do CPC, como poderá suceder de a pessoa ter centrada, de forma habitual/regra, essa sua vida em determinado local, que constituirá a “residência habitual”, isto é, o seu domicílio, e ocasionalmente ir passar uma temporada a outro local – “residência ocasional” ou “secundária”, que a lei desconsidera para efeitos de fixação do domicilio.
(…) É manifesto que o CCivil ao fixar o domicilio geral da pessoa, procurou respeitar o conceito social de domicilio, recolhendo da vida e da natureza das coisas os seus critérios de fixação, ao ponto de ter considerado que no caso de a pessoa não ter “residência habitual” considera-se domiciliada no local da sua “residência ocasional” e, se esta não puder ser determinada, no local onde se encontrar, mas daqui não deriva que para efeitos de ordenamento interno nacional a pessoa tenha o seu domicílio em qualquer um desses locais, incluindo na residência ocasional ou no local em que for encontrada, que até poderá ser na rua ou noutro local público, o que seria um manifesto absurdo jurídico e uma desconformidade do direito com a própria natureza e realidade das coisas, confundindo-se “domicilio” com “paradeiro”.
(…) Para efeitos de direito interno, conforme escreve o Prof. Mota Pinto (Carlos da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 258; RE de 23-06-1988, BMJ, 378º, pág. 309) o domicílio da pessoa coincide com o lugar da sua “residência habitual”.
“Não se trata do local onde a pessoa se encontra em cada momento, isto é, não coincide com o paradeiro, a que se refere o art.º 225ºCPC e cuja noção se pode descortinar no art.º 82º, n.º 2, do CPC. Não se confunde também com a residência, com o local onde a pessoa está a viver com alguma permanência.
Sem dúvida que a residência habitual onde a pessoa vive normalmente, onde costuma regressar após ausências mais curtas ou mais longas, nos fornece o critério do domicílio do art.º 82ºdo CPC. Mas a residência pode ser ocasional, se a pessoa vive com alguma permanência, mas temporária ou acidentalmente, num certo local.
A residência ocasional não faz surgir um domicílio, embora, na falta de domicílio de uma pessoa, funciona como seu equivalente - art.º 82º, n.º 2”.
(…) No presente caso os RR. têm domicílio e residência permanente na cidade de Estugarda, na Alemanha, tal como está indicado na PI, não dispondo de qualquer morada em Portugal, pelo que deverão ser demandados no local onde residem com caracter de permanência.
Em face do exposto, conhece-se da invocada excepção de incompetência supra invocada determinando-se a incompetência territorial deste Tribunal (…)”.
7) Notificado do referido despacho, em 29-11-2023, o autor apresentou alegações de recurso de apelação, pugnando pela declaração de nulidade da sentença proferida e, caso assim não se entenda, pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que declare a validade do ato, tendo concluído o seguinte:
“A. A Sentença é nula, ao abrigo do artigoº 615, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil (CPC), uma vez que o Tribunal deixou “d) (…) de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
B. Analisada, ao detalhe a douta Sentença do Tribunal a quo verifica-se, desde logo que a decisão proferida, confunde o lugar da prestação de serviços com o lugar do cumprimento da obrigação, quando refere: “Os presentes autos respeitam a invocados honorários, de alegados serviços de advocacia desenvolvidos em vários locais, tribunais e acções, verificando-se até que o aqui A. não identificou completamente os tribunais onde decorreram os alegados serviços e a regra geral no caso em apreço, é a que se encontra no nº3º da disposição legal em apreço que dispõe:”
C. Contudo, esquece o Tribunal a quo na sua Sentença, que para efeitos de definição do foro internacionalmente competente dentro do espaço da União Europeia (uma vez que as partes têm a sua sede em diferentes Estados Membros, vulgo Portugal e Alemanha), haverá que atender-se às regras estabelecidas no Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12-12-2012, no qual se estabelece o regime comunitário relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
D. Ora, no art.º 4.º deste Regulamento estabelece-se o princípio geral de que a ação deve ser proposta nos tribunais do País onde se encontra domiciliada ou sediada a pessoa demandada, a menos que outras regras especiais ou exclusivas resultem do mesmo diploma (especialmente as constantes do artigo 7.º – não estando em causa as demais).
E. Prevê assim o Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12-12-2012 no seu artigo 7.º:“As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: - no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, - no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado- -Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.”
F. Assim, ao contrário do referido da douta Sentença, a presente ação estava sujeita ao regime comunitário, sendo este o regime que prevalece em relação ao regime interno, motivo pelo qual não se compreende nem a argumentação legal, nem o raciocínio lógico da Sentença de que se recorre.
G. A tudo isto acresce que, a relação comercial entre as partes (Advogado – Autor e clientes – Réus) se desenvolveu, e consolidou, ao longo de vários anos, em Portugal e relacionado com questões jurídicas tratadas ao abrigo da legislação portuguesa e que os Réus têm inclusive nacionalidade Portuguesa, como se alcança da leitura da PI e da Contestação dos autos.
H. Posto isto, dúvidas não restam que o lugar do cumprimento da obrigação de pagamento na prestação de serviços é o domicílio do credor – o Autor dos autos – em Lisboa/Portugal.
I. Prosseguindo, sempre se dirá que recorrendo ao nosso Código Civil, temos a mesma solução legal: “Artigo 774.º(Obrigações pecuniárias) Se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.”
J. A tudo isto acresce ainda que, a norma do 80º do Código de Processo Civil (doravante CPC) - ainda que fosse aplicável - o que se alega por mero dever de patrocínio e à cautela, não é uma norma de competência internacional.
K. Pelo que não se compreende como pode o Tribunal a quo declarar-se incompetente territorialmente.
L. A decisão recorrida deveria verificar e sindicar em primeiro lugar (o que não fez – apesar do dever de ofício) a incompetência internacional.
M. E só depois, verificar a sindicância da lei nacional, nomeadamente o artigo 80º do CPC, "da competência interna".
N. O que nos termos da Lei implicava a remessa para o tribunal competente (vide artigo 105.º, n.º 3 do CPC), coisa que o Tribunal não fez. Limitando-se apenas a “matar estatisticamente o processo”.
O. Isto porque, caso fosse aplicável o artigo 62.º, alínea b) do CPC, sempre se tornaria o Tribunal a quo, competente para dirimir o litígio!
P. Pelo que se torna manifestamente incompreensível a decisão de que se recorre.
Q. Contudo, ao que aqui importa as regras de competência do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, aplicam-se desde que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro - o que sucede nos autos em causa.
R. E um órgão jurisdicional de um Estado-membro não pode declinar a competência que lhe é conferida pelo Regulamento por considerar que um órgão jurisdicional de um Estado Membro é um foro mais adequado para conhecer do litígio, como fez erradamente o Tribunal a quo.
S. Ademais nos termos da al. b) do art.º 62.º do CPC, os tribunais portugueses são competentes mesmo que só alguns dos factos que constituem a causa de pedir tenham sido praticados em território português – por isso pouco importa se “o A. não identificou completamente os tribunais onde decorreram os alegados serviços”.
T. Assim, para efeitos de definição do foro internacionalmente competente (dentro da UE e uma vez que, as partes têm a sua residência em diferentes Estados Membros), haverá que atender-se às regras estabelecidas no Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12.12.2012.
U. Estando a ação sujeita ao regime comunitário, conforme é o caso, é este o regime que prevalece em relação ao regime interno (vide acórdãos da Relação de Guimarães de 09.06.2016 - proc. nº 3077/15.0T8BRG.G1,e do STJ de 1387/15.6T8PRT-B.L1.PO1-A. 7ª secção, ambos in www.dgsi.pt).
V. Ora, percorrida a decisão em crise, não é feita qualquer referência ao Regulamento referido, parecendo inclusive, que se esqueceu o Tribunal a quo de apreciar o direito aplicável…
W. Finalmente, mesmo que assim não fosse o entendimento, nos termos da al. b) do art.º 62.º do CPC, os tribunais portugueses seriam, sempre, competentes para dirimir o caso.
X. A decisão incorre assim no vício de omissão de pronúncia, gerador de nulidade. Esta omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
Y. Nomeadamente nas questões que sejam de conhecimento oficioso (art.º 96.º al. a), do CPC - competência internacional), e de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.”.
8) Os réus, por requerimento de 08-03-2024, pronunciaram-se sobre a nulidade arguida pela contraparte, concluindo pela sua não verificação.
9) Em 24-04-2024 foi proferido despacho de admissão do recurso e de indeferimento da nulidade invocada.
10) Em 23-05-2024, o relator a quem o processo foi distribuído – da 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa – determinou a convolação do recurso em reclamação nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do CPC, “cuja admissibilidade, a apreciar pelo tribunal de 1ª instância, está dependente do pagamento pelo Autor da multa e a penalização previstas no nº 6 do artigo 139º do C.P.C. , a liquidar pela secretaria na 1ª instância.
Remetam-se os autos à 1ª instância, e dê baixa do recurso de apelação.”
11) Na 1.ª instância, após despacho de 27-06-2024, foi emitida guia de multa pela apresentação da reclamação, em conformidade com o disposto no artigo 139.º, n.º 5, do CPC, que foi objeto de pagamento, após o que, por despacho de 07-11-2024, foi determinada a subida dos autos a este Tribunal da Relação.
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II. Tendo-se procedido à convolação do recurso interposto em reclamação, cumpre apreciar esta.
Dispõe o nº. 4 do artigo 105.º do CPC – preceito integrado na secção intitulada “Incompetência relativa” - que, da decisão que aprecie a competência cabe reclamação, com efeito suspensivo, para o presidente da Relação respetiva, o qual decide definitivamente a questão.
Trata-se de um mecanismo expedito de resolução de conflitos sobre incompetência relativa.
A decisão que afirma ou que negue a competência relativa de um Tribunal é passível de impugnação.
Contudo, “em lugar de a sujeitar ao recurso de apelação previsto no art.º 644.º (cujo n.º 2, al. b), apenas abarca as decisões sobre competência absoluta), o CPC de 2013 prevê a reclamação dirigida ao Presidente da Relação, à semelhança do que está previsto para a resolução de conflitos de competência. Para além da maior rapidez associada a este instrumento de impugnação, colhem-se do novo regime benefícios potenciados quer pela uniformidade de critério relativamente à resolução de questões idênticas, quer pela definitividade do que for decidido” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 148).
Conforme salientam os mesmos Autores (ob. cit., p. 149), o que for decidido pelo Presidente do Tribunal da Relação “resolve definitivamente a questão, sendo vedado ao tribunal para onde for remetido o processo recusar a competência que lhe tenha sido atribuída ou endossá-la a um terceiro tribunal, com ou sem invocação de outro fundamento (…)”.
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III. Conhecendo:
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a) Da nulidade invocada:
Arguiu o reclamante a nulidade da decisão de 09-11-2023, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, considerando que o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar, a competência internacional do tribunal.
O tribunal reclamado indeferiu a nulidade arguida, concluindo que a decisão de 09-11-2023 “tomou posição sobre a questão suscitada pelos RR. de competência em razão do território, considerando-se a questão da residência habitual dos RR. onde foram citados para a presente acção, fundamento para a decisão tomada e que agora é questionada em sede de recurso” (cfr. despacho de 24-04-2024).
Importa referir, liminarmente, que a decisão que pode ser objeto da reclamação a que se refere o artigo 105.º, n.º 4, do CPC é a “decisão que aprecie a competência” relativa do Tribunal (cfr. artigo 105.º, n.º 4, do CPC, normativo integrado na Secção II, do Capítulo V, do Livro I do CPC).
Conforme referia Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, reimpr., p. 424): “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo”.
No caso, da decisão proferida foi interposto recurso de apelação que não veio a ser admitido pelo Tribunal da Relação, por se entender estar em causa a impugnação de decisão que se pronunciou sobre a incompetência relativa do Tribunal, tendo sido convolado o recurso em reclamação nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do CPC.
Relativamente à arguição de nulidade da sentença (que não a referida na alínea a) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC), quando não caiba recurso ordinário, o regime de arguição é o que decorre do n.º 4 do artigo 615.º do CPC: “As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 737) no caso de nulidades da sentença de que seja admitido recurso ordinário, “as nulidades apenas podem ser suscitadas em sede do recurso de apelação (ou, depois, em sede recurso de revista), como fundamentos autónomos da sua impugnação. (…) Nos casos em que a sentença não admita recurso ordinário, as nulidades devem ser arguidas incidentalmente, sendo apreciadas pelo juiz, depois de cumprido o contraditório”.
Ora, considerando este regime processual e o objeto da reclamação a que se reporta o artigo 105.º, n.º 4, do CPC – centrado na decisão que aprecie a competência relativa – afigura-se que nela (no conhecimento da reclamação para o Presidente da Relação) não se compreende a aferição da verificação da existência de nulidade da decisão, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, uma vez que, da decisão proferida – sobre a incompetência relativa – não cabia recurso ordinário, pelo que, o meio próprio de impugnação, seria o da arguição de nulidade processual perante o tribunal que proferiu a decisão, que, aliás, se pronunciou sobre a dita nulidade.
Assim, pelos motivos expostos, entende-se não se conhecer da questão arguida.
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b) Do mérito da reclamação:
O Tribunal reclamado julgou procedente a exceção de incompetência territorial invocada pelos réus, absolvendo estes da instância.
Os fundamentos em que se sustenta a decisão proferida são os seguintes:
- A regra geral quando o réu tiver o domicílio e a residência em país estrangeiro é a da sua demanda no tribunal do lugar em que se encontrar;
- Os réus têm domicílio e residência permanente em Estugarda, na Alemanha, não dispondo de morada em Portugal, devendo ser demandados no local onde residem com caráter de permanência.
Insurge-se o autor/reclamante contra a decisão proferida – e para além da questão da nulidade da decisão que invocou – visando que, a mesma, seja substituída por outra que declare a validade do ato de interposição da ação no Tribunal onde, territorialmente, a ação foi instaurada.
A infração das regras de competência fundadas na divisão judicial do território determina a incompetência relativa do tribunal.
Os critérios territoriais de determinação da competência determinam em que circunscrição territorial deve a ação ser instaurada.
O critério geral nesta matéria é o de que o autor deve demandar, em regra, no tribunal do domicílio do réu (regra semelhante consta, relativamente a pessoas coletivas e sociedades). Contudo, a lei prevê casos em que esse critério geral é afastado por regras especiais.
Assim, sempre que alguma das regras especiais for aplicável à situação em causa, o critério geral não terá aplicação, sendo antes aplicável a regra especial.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (A competência declarativa dos tribunais comuns; 1994, Lex, p. 83) “os critérios especiais determinam a competência territorial em função de um nexo entre o tribunal e o objecto da causa ou as partes da acção”.
O Tribunal reclamado declarou a incompetência territorial louvando-se no disposto no artigo 80.º, n.º 3, 1.ª parte do CPC.
Contudo, afigura-se-nos que o Tribunal reclamado olvidou a previsão contida na 2.ª parte do mesmo preceito legal, pois, no caso de o réu não se encontrar em território português – sendo que, no caso, a citação dos réus foi concretizada na Alemanha, local onde os réus, aliás, declararam residir e ter o único domicílio (cfr. requerimento de 11-07-2023) – o mesmo deverá ser demandado no tribunal do domicílio do autor.
Ora, situando-se o domicílio do autor em Lisboa, a demanda dos réus deveria, como foi, ser efetuada em Lisboa.
A decisão reclamada não deverá, pois, manter-se, procedendo a reclamação, devendo os autos prosseguir os seus termos no tribunal reclamado, revogando-se e substituindo-se a decisão reclamada em conformidade.
*
IV. Pelo exposto, decido:
a) Não se conhecer da questão atinente à nulidade da sentença invocada; e, no mais,
b) Atender à reclamação apresentada pelo autor/reclamante, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, do CPC, revogando-se a decisão de 03-11-2023 e concluindo-se pela competência territorial do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz (…), para a tramitação dos presentes autos.
Sem custas.
Notifique.
Baixem os autos.

Lisboa, 18-11-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).