Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
386/24.1JAPDL-A.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: VIOLAÇÃO AGRAVADA
FORTES INDÍCIOS
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL EM SEPARADO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição sine qua non da aplicação de todas as medidas de coação, no que concerne à prisão preventiva, a lei é mais exigente, pois usa a expressão «fortes indícios» - os indícios só serão fortes, quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido, na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coação, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência de contraditório, da imediação e da oralidade, que são característicos da fase da discussão e julgamento da causa.

II–Admitindo-se que é provável que uma mulher adulta (ou um homem adulto) que tenha sido sexualmente agredida por um desconhecido, se determine a reportar imediatamente o caso às autoridades competentes para a investigação, desencadeando o procedimento criminal, já a probabilidade de tal acontecer quando a vítima é uma adolescente e o agressor é uma pessoa sua conhecida, eventualmente pertencente a um círculo de amigos, é francamente menor. Da circunstância de a ofendida não ter de imediato denunciado o seu agressor não pode, de modo algum, extrair-se que a cópula foi consentida.

III–O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas tem de resultar de circunstâncias concretas e particulares referentes ao previsível comportamento do arguido – trata-se do perigo de o arguido vir a perturbar a ordem e a tranquilidade públicas -, não relevando só por si a circunstância de os factos já praticados serem suscetíveis de, em abstrato, causar alarme ou intranquilidade na sociedade. Nesta medida, pese embora se concorde que o crime de violação – sobretudo num meio pequeno, como é aquele onde ocorreram os factos – seja, de per se, suscetível de justificar a intranquilidade das populações, o que tem de relevar, no caso concreto, é a intranquilidade produzida na própria vítima.

IV–O perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente «perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova» é, no caso em apreço, é muito real, na medida em que os autos documentam a intensa atividade desenvolvida junto da vítima, de modo a pressioná-la para que não identificasse o seu agressor e não apresentasse queixa, sendo de recear novas iniciativas no mesmo sentido.

V–Os requisitos exigidos pelo artigo 204º do Código de Processo Penal não são de verificação cumulativa, pelo que a não verificação de perigo de continuação da atividade criminosa (ou de perigo de fuga – que não foi considerado na decisão recorrida) não traduz a inexistência de exigências cautelares bastantes para justificar a necessidade de aplicação da medida de coação aqui em apreço, sendo certo que o perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, para a aquisição, conservação e veracidade da prova, se mostra expressivamente acentuado face ao circunstancialismo apurado nos autos.


(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório


No processo nº 386/24.1JAPDL do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo de Competência Genérica da Horta (Juiz 1), foi o arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ...], nacional de ..., nascido em ........1998, solteiro, cantoneiro, com domicílio em ..., submetido a primeiro interrogatório judicial, em 30.03.2024, na sequência do qual foi determinada a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva.
*

O arguido veio interpor recurso daquela decisão, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1.–O presente recurso é interposto do douto despacho de 30 de Março de 2024, do Senhor Juiz de Instrução Criminal, que aplicou ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva, com fundamento na forte indiciação da prática pelo recorrente do crime de violação agravada e na verificação dos perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação e tranquilidade públicas, como resulta de fls. 17 a 21 da douta decisão recorrida,
2.–O arguido, ora recorrente, foi presente a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos do artigo 141º do Código de Processo Penal (CPP), tendo sido decretada a sua prisão preventiva.
3.–O arguido, ora recorrente, está preso na ..., que integra o Estabelecimento Prisional de ..., desde o dia 30 de Março de 2024, data em que foi decretada a sua sujeição a prisão preventiva.
4.–Dos autos não resulta qualquer indício da prática do crime de violação agravada pelo arguido.
5.–A interpretação crítica e conjugada da prova carreada para os autos pelo Ministério Público permite concluir que a relação sexual objecto dos autos foi uma relação consentida pelo arguido e pela alegada vítima e não uma relação sexual contra a vontade da alegada vítima.
6.–As lesões sofridas pela alegada vítima podem resultar de relação sexual consentida com penetração vaginal/ não podendo retirar-se univocamente da ocorrência daquelas lesões a ocorrência do crime de violação.
7.–A alegada vítima apresentou queixa-crime contra o arguido apenas movida por medo dos pais e dos irmãos, da reacção do namorado e do receio de que os pais a fizessem regressar à ilha de ..., para voltar a residir com os pais interrompendo o curso que frequenta na Horta.
8.–Não havendo indícios da prática do crime de violação agravada ou de qualquer outro, então o decretamento da medida de coacção de prisão preventiva é ilegal.
9.–O douto despacho recorrido viola o artigo 204º, nº 1, alíneas b) e c), do CPP, por não estar fundamentado em concretos factos que preencham os requisitos legais para o decretamento da prisão preventiva.
10.–Pelo que não estão verificados os requisitos legais previsto no artigo 204º, nº 1, do CPP para o decretamento da prisão preventiva.
11.–Por não existirem nos autos indícios suficientes da prática do crime de violação agravada e, também, por não estarem verificados nenhuns dos requisitos previstos no artigo 204º, nº 1 alíneas b) e c), do CPP, para o decretamento da prisão preventiva, o pressente recurso deve ser julgado procedente e ordenada a imediata libertação do arguido, ora recorrente, com todas consequências legais.
JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.

O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou resposta ao recurso, pugnando pela respetiva improcedência, e extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
l.–Existem fortes indícios da prática do crime de violação agravada pelo arguido AA.
2.–DD consentiu em estar junto de AA no sofá, beijando-se e tocando o corpo reciprocamente, mas já não consentiu na manutenção de relações sexuais de cópula vaginal.
3.–Tal ficou bem claro para o arguido já que insistiu por 3 vezes em despir DD o que não aconteceria caso desejasse manter relações sexuais com o arguido. DD também disse várias vezes ao arguido que parasse.
4.–DD não via no arguido um agressor sexual ou a pessoa que estava pronta e prestes a violar o seu direito à liberdade sexual,
5.–Por não ter gritado por ajuda não quer dizer que não pudesse sofrer penetração vaginal não consentida e violenta.
6.–A progressiva consideração da perspetiva das vítimas nos crimes sexuais – designadamente o facto de se saber que as mais das vezes o agressor é pessoa conhecida e próxima da vítima – conduziu a reformas de mentalidade e legais, sendo que hoje é criminosa toda a prática de atos sexuais que não seja livremente consentida.
7.–Relembramos que a Convenção de Istambul, que foi adotada pelo Estado português, define violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos e é uma forma de discriminação contra as mulheres, abrangendo todos os atos de violência de género que resultem, ou possam resultar, em danos ou sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos para as mulheres, incluindo a ameaça de tais atos, a coação ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada - artigo 3.º al. a) da Convenção.
8.–Ainda de acordo com a Convenção de Istambul, violência sexual, incluindo violação, é a penetração vaginal, anal ou oral, de natureza sexual, de quaisquer partes do corpo ou objetos no corpo de outra pessoa, sem consentimento desta última; ou a prática de outros atos de natureza sexual não consentidos com uma pessoa - artigo 36.º n.º l.
9.–A Convenção também determina que o consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes - artigo 36.º n.º 2.
10.–Sobre DD não impendia qualquer dever de pedir ajuda, antes cabendo ao arguido atuar de acordo com a vontade não só cognoscível, mas claramente expressa e manifestada daquela, não lhe impondo a cópula vaginal forçada e violenta.
11.–versão de DD é amplamente corroborada por outros elementos de prova.
12.–Referimo-nos, desde logo, aos elementos clínicos e hospitalares. A magnitude das lesões sofridas por DD - recordemos, perfuração das paredes vaginais a exigir reconstrução por cirurgia - não são compagináveis com a cópula consensual.
13.–A penetração vaginal desejada e consentida por ambas as partes, ainda que mais arrebatada, não resultariam lesões a demandar a reconstrução cirúrgica de toda a extensão do fundo do saco vaginal posterior.
14.–Abona ainda a forte indiciação dos factos o auto de diligência externa de 27 de março de 2024, constante da p. 105 da ref.ª citius 5654648, e que refere que a perita médica-legal de …, Dra EE, na sequência do exame, transmitiu ao órgão de polícia criminal investigante que concluiu por “sutura de laceração do fundo do saco, por baixo do colo do útero, bem como ainda um coagulo na parede da vagina, em tudo compatíveis com agressão sexual violenta”.
15.–Atente-se ainda no teor das mensagens que DD enviou e recebeu, conversas espontaneamente tidas ainda durante a sua hospitalização, e de que se extrai que não se tratou de relação sexual consentida pela vítima.
16.–DD, em tais mensagens, também evidenciou concordar com o pacto de segredo que acreditou que lhe era devido ainda sob a emoção dos acontecimentos e na sua inexperiência.
17.–Igualmente a reforçar a versão dos factos apresentada por DD estão as declarações de FF que declarou que o arguido, ao chegarem a casa deste, disse a DD: “DD: é já aqui!”, pelo que permaneceram sozinhos na sala. E que, mais tarde, estando GG e HH na cozinha contigua à sala, o arguido, já após ao to sexual, entrou na cozinha e disse: “ela não queria, mas depois foi”.
18.– Esta expressão proferida pelo arguido “ela não queria, mas depois foi” em ato seguido ao ato sexual, conjugada com a demais prova, revela sem qualquer dúvida não só que o que aconteceu entre ambos não foi uma relação sexual consentida, mas ainda que o arguido sabia e estava consciente de que a relação sexual não era consentida, que assim a penetrou na vagina com violência.
19.–O depoimento da testemunha GG merece toda a credibilidade.
20.–Também não é verdade, como alega o recorrente que tal expressão não poderia ter sido ouvida pela testemunha, já que estava noutro local que não a cozinha juntamente com II e que isto decorre das declarações de II, JJ e KK. HH declarou.
21.–Nenhum destes depoimentos contraria o depoimento de GG, e aliás, são integralmente consonantes com o mesmo, depoimento que é detalhado, circunstanciado e totalmente credível, não se lhe conhecendo motivo para que quisesse praticar um crime de falsidade de depoimento agravado visando o arguido AA.
22.–Relativamente ao consentimento prestado por DD: a menção ao consentimento nunca surgiu em auto de declarações suas perante uma autoridade pública.
23.Tais menções não foram confirmadas jamais nas declarações que prestou. O valor probatório de tais menções ao “consentimento” da vítima, quanto ao seu significado e extensão, é por isso muito pouco ou mesmo nenhum.
24.–Quando referiu a terceiros o consentimento DD, estava ainda sob o efeito traumático dos factos, em privação do sono, com dores, após uma noite de excessos.
25.–Não conhecia nem lhe era exigível que conhecesse o valor rigoroso do consentimento para efeitos penais.
26.–Em tais circunstâncias, DD não conseguiu interpretar adequadamente a gravidade do que acabara de lhe acontecer, tanto mais que acreditava estar entre amigos e sem a perfeita consciência que o consentimento para beijos e carícias não abrange o consentimento para a relação sexual de cópula.
27.–Facto é que sob juramento e diretamente inquirida não confirmou jamais que consentiu na penetração vaginal.
28.–A versão dos factos apresentada pelo arguido não é sustentada por qualquer outro elemento de prova credível.
29.–Existem em concreto, os perigos de continuação da atividade criminosa, do perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública e do perigo de perturbação do inquérito.
30.Subscrevemos a douta decisão recorrida, sendo certo que os perigos mais intensos serão o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública e o perigo de perturbação do inquérito.
31.–A versão da vítima, por um lado, e a versão do arguido e dos seus amigos, por outro, traduz afinal, a polarização, na comunidade, das duas versões dos factos - e tudo isto é patente nas mensagens trocadas e juntas aos autos.
32–Perante a forte indiciação dos factos e crime, e vista a sua gravidade e vulnerabilidade da vítima, a alteração do estatuto coativo do arguido criará a impressão de divagação das decisões e grande insegurança na comunidade.
33.–Existe perigo de perturbação do inquérito, conforme prescrito pelo artigo 204.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal.
34.–Finalmente, e quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, é facto que, conforme se refere na douta decisão recorrida, o comportamento do arguido foi brutal, pois que se serviu de uso muito intenso de força para vencer a resistência da vítima, com as consequências já conhecidas.
35.– A medida de coação privativa da liberdade, sendo necessária e adequada nos termos referidos é, ademais, proporcional à pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido pela prática dos factos que fortemente se indiciam, já que a pena abstratamente aplicável ao crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º 1 a), 177.º n.º 5 e 144.º al. a) e b), é de 1 a 9 anos de prisão.
Termos em que concluímos que não nos merece censura a douta decisão recorrida, a qual deve ser confirmada, mantendo-se o coativo do arguido AA.”

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta apresentada na 1ª instância, e aditando:
“Analisados os elementos de prova certificados, o despacho recorrido e os fundamentos do recurso, aderimos inteiramente à resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, por se apresentar fundamentada, crítica, clara e adequada.
Termos em que entendemos que o arguido se deve manter sujeito à medida de coação que lhe foi aplicada, por se configurar como a única apta a prevenir os perigos de continuação da atividade delituosa, de perturbação do decurso do inquérito e perturbação grave da ordem e tranquilidade e públicas, adequada às exigências cautelares que o caso requer, proporcional à gravidade do crime e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada, sendo de negar provimento ao recurso.
Em todo o caso, por mera cautela, na hipótese remota de este Tribunal vir a alterar a medida de coação, sempre diremos que ao arguido, atento o supra exposto, deve ser aplicada a medida de coação de OPHVE cumulada com a obrigação de não contactar por qualquer meio com a vítima e seus familiares, e de não contactar com qualquer uma das testemunhas dos factos, identificadas nos autos, ao abrigo do disposto no art. 201.º, do CPP.”
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer pronunciamento por parte do recorrente.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II.–OBJETO DO RECURSO

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar,sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
No caso, está em questão a prisão preventiva do arguido AA, designadamente, a verificação dos pressupostos legais necessários ao decretamento de tal medida de coação, questionando o recorrente a existência de fortes indícios da prática do crime que lhe é imputado e a verificação dos pressupostos do artigo 204º do Código de Processo Penal.
*

III.–DA DECISÃO REORRIDA
O despacho que determinou a sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva tem o seguinte teor:
“[…]

II.–Fundamentação

Dão-se como indiciados os seguintes factos resultantes dos autos bem como da prova produzida em sede de primeiro interrogatório:
1.–DD, nascida a .../.../2007, atualmente com 16 anos de idade, é natural de ..., sendo estudante na ..., ..., desde 18/09/2023.
2.–No dia 16/03/2024, em hora concretamente não apurada, mas que se situou perto das 23:00h, a vítima DD e GG, colega de escola da vítima, encontraram-se na ..., na Horta, com o intuito de frequentaram a discoteca B-Side naquela noite.
3.–No momento em que estavam naquela Praça, LL e MM ofereceram boleia a DD e a GG até à casa do suspeito BB, sita na ..., pessoa que DD e GG conheciam desde o carnaval de 2024, com o intuito de tomarem bebidas alcoólicas, antes de irem para a discoteca, convite que as mesmas aceitaram.
4.–Em hora concretamente não apurada, mas que se situou, entre as 23:30h do dia 16/03/2024 e a 02:30h do dia 17/03/2024, já no interior da residência do suspeito BB, este e DD ingeriram bebidas alcoólicas e consumiram cannabis resina e md.
5.–Após, pelas 02:30h, o suspeito BB, DD e os aludidos amigos, dirigiram-se para discoteca B-Side.
6.–Depois, pelas 05:30h, o suspeito BB, DD, GG, II, JJ e KK saíram da discoteca e dirigiram-se para a residência do suspeito, onde todos permaneceram inicialmente na sala de estar.
7.–Naquela divisão da residência, o suspeito BB disse a DD: “DD, é já aqui”.
8.–Em seguida, o suspeito BB pediu aos seus amigos, GG, II, JJ e KK que se dirigissem para a cozinha.
9.–Nessa sequência, os aludidos amigos deslocaram-se para a cozinha da residência do suspeito BB, sendo que o mesmo e DD permaneceram naquela sala de estar, sem terceiros, cerca de 45 minutos.
10.–Nessa ocasião, o suspeito BB fechou a porta da sala e aí permaneceu na companhia de DD.
11.–Seguidamente, o suspeito BB e DD sentaram-se no sofá e beijaram-se na boca.
12.–Nessa sequência, o suspeito BB despiu as calças de DD, contudo, a mesma de imediato vestiu as aludidas calças e, em ato contínuo, por diversas vezes, DD disse ao suspeito BB para que parasse com o seu comportamento, dizendo ainda ao mesmo que não queria ter relações sexuais com aquele.
13.–Não obstante e, contra a vontade de DD, o suspeito BB levantou-se e posicionou-se à frente da mesma e, seguidamente, tirou-lhe as calças de licra, bem como as cuecas que aquela vestia.
14.–Em ato contínuo, o suspeito BB, com força, afastou-lhe as pernas, que se encontravam juntas e debruçou-se sobre a mesma.
15.–Após o suspeito BB introduziu o seu pénis ereto na vagina de DD, fazendo movimentos ascendentes e descendentes, com força, durante alguns minutos.
16.–Naquele momento, DD tentou empurrar o suspeito BB, contudo, não conseguiu lograr o seu intento de afastar o mesmo, por falta de força.
17.–Em consequência direta e necessária da conduta do suspeito BB, DD sentiu dores na vagina.
18.–Após o suspeito BB vestiu-se e encaminhou-se para a cozinha, tendo DD ficado no sofá, onde se vestiu e adormeceu.
19.–Quando chegou à cozinha, o suspeito BB disse aos amigos: “ela não queria, mas depois foi”.
20.–A Após, entre as 07:00h e as 08:00h, DD acordou, colocou-se em pé e, nesse momento, foi chamada à atenção por GG, que lhe disse: “estás a pingar sangue para o chão”.
21.–Seguidamente, DD encaminhou-se para a casa de banho, local onde se sentou na sanita e reparou que estava a sangrar da vagina.
22.–Após, GG contactou a sua progenitora, NN, com o intuito de levar DD ao ..., o que sucedeu.
23.–No dia 17/03/2024, período da manhã, durante o percurso para o ..., DD chorou e gritou que não se conseguia sentar.
24.–Uma vez naquele Hospital, DD foi observada, tendo sido diagnosticada com uma laceração na vagina, em toda a extensão do fundo do saco vaginal, por baixo do colo do útero, bem como um coágulo no interior da laceração da vagina.
25.–Nessa sequência, ainda naquele dia, DD foi operada de urgência, com anestesia geral, com vista a desinfetar e proceder ao esvaziamento vesical, bem como saturar a laceração vaginal e colocar spongostan na vagina, com o intuito de estancar a hemorragia.
26.–DD permaneceu internada no ... até ao dia 19/03/2024.
27.–Em consequência direta e necessária da descrita conduta do suspeito BB, DD sofreu de dores físicas e de mal-estar psicológico.
28.–Em consequência direta e necessária da descrita conduta do suspeito BB, DD ficou com a vagina desfigurada, sendo que ficou com uma cicatriz na vagina, que será permanente.
29.–Ao atuar da forma descrita, o suspeito BB agiu com o propósito concretizado de obter prazer sexual, de satisfazer os seus instintos libidinosos e praticar cópula com DD, contra a sua vontade.
30.–O que fez com consciência de que DD não queria manter relações sexuais consigo, isto é, não queria manter cópula consigo e que, assim, agia contra a vontade daquela e ainda, com consciência, de que as zonas do corpo em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade de DD e de que ofendia os respetivos sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual de DD, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, o que também pretendeu e fez.
31.–O suspeito BB sabia ainda que, através do seu corpo, estava a utilizar muita força no ato da cópula com DD e que, por essa via, ofendia de forma grave a vagina daquela, o que quis e conseguiu.
32.–O suspeito BB sabia ainda que, em consequência da utilização da aludida força, afetava a saúde física da vagina de DD, o que quis e conseguiu.
33.–O suspeito BB agiu de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.
Mais se apurou que:
34.–O arguido foi condenado pela prática, em 26.11.2016, de um crime de furto qualificado (por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal) e de um crime de furto simples, por sentença transitada em julgado em 11.06.2019, no âmbito do processo n.º 491/16.8PBHRT que correu termos no Juízo de Competência Genérica da Horta.
35.–O arguido exerce a profissão de cantoneiro, tendo um contrato efetivo bem como desenvolve atividades de jardinagem.
36.–O arguido vive num anexo da casa em que reside a sua mãe e a sua avó.
37.–O arguido tem um filho de 3 anos e uma filha de 4 meses.
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Não se mostra indiciado que:
a)- DD ficou com afetação na fruição sexual, isto é, sentirá uma incomum sensibilidade/irritabilidade em futuros atos sexuais de cópula.
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III.–Elementos do processo que indiciam os factos

Tais factos encontram-se sustentados nos seguintes meios de prova:

1)–Testemunhal

i.-Auto de inquirição de DD (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024);
ii.-Auto de inquirição de GG (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024);
iii.-Auto de inquirição de JJ (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024);
iv.-Auto de inquirição de II (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024);
v.-Auto de inquirição de NN (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024);
vi.-Auto de inquirição de KK (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024);
vii.-Auto de inquirição de OO (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024

2)–Documental
Auto de denúncia (Ref. Citius n.º 5648356, datada de 25/03/2024);
Auto de apreensão n.º 1 (Ref. Citius n.º 5648356, datada de 25/03/2024);
Auto de exame e avaliação (Ref. Citius n.º 5648356, datada de 25/03/2024)
Elementos clínicos (Ref. Citius n.º 5653556, datada de 27/03/2024);
Fotogramas (Ref. Citius n.º 5654648, datada de 28/03/2024
Auto de busca (processo 30.03.2024).
Auto de Apreensão (processo 30.03.2024).
Reportagem fotográfica (processo 30.03.2024).

3)–Certificado de registo criminal de 28.03.2024.

4)–Os factos relativos à profissão, residência e estado civil e demais condições sociais do arguido resultou das declarações prestadas pelo mesmo em sede de interrogatório judicial.
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IV.–Apreciação crítica de factos controversos/Motivação
Importa ter presente que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, nos termos do artigo 127.º do Código Processo Penal.
Analisado os autos, considera-se que a prova carreada para os autos pelo Ministério Público permite a conclusão no sentido da forte indiciação dos factos.
De facto, temos as declarações da vítima, as quais saem corroboradas pelos demais elementos probatórios constantes nos autos, dos quais ressalta, desde logo, os elementos clínicos que nos dão conta de que a vítima sofreu lesões físicas, nomeadamente, uma laceração na vagina, em toda a extensão do fundo do saco vaginal, por baixo do colo do útero, bem como um coágulo no interior da laceração da vagina.
No demais, os depoimentos das testemunhas vão todas no sentido de descrever a noite em que aconteceu o episódio dos presentes autos, nos termos constantes nos factos acima indiciados, bem como, e sobretudo, tais depoimentos vão no sentido de colocar a vítima e o arguido no local dos factos, nas circunstâncias de modo e tempo acima descritos.
Não se ignora que nessas mesmas circunstâncias, o arguido e a vítima se encontravam sozinhos, não tendo ninguém presenciado o concreto ato sexual, mas as declarações da vítima no sentido em que não foi consentido e que a mesma ofereceu resistência, conjugado com as concretas lesões corporais resultantes do ato sexual, apenas permitem concluir pelo facto de que as relações sexuais não foram consentidas.
De facto, neste tipo de criminalidade, como é sabido, as declarações de vítima têm um peso acrescido, dado que em regra são crimes que ocorrem entre quatro paredes e longe do olhar de qualquer testemunhas.
Ademais, não é de todo expectável ou plausível que tais lesões corporais tenham sido fruto de uma relação consentida, ao que se acresce que a testemunha GG ouviu o suspeito afirmar em tom de orgulho que “ela não queria, mas depois foi”.
Por fim, o facto de a vítima poder ter afirmado em algum momento de que as relações sexuais foram consentidas, tal se deveu a um sentimento de vergonha, aliado a um sentimento de culpa, no sentido de não querer que o agressor sofresse consequências e, ainda, conjugado com alguma pressão por parte de amigos do suspeito, como se encontra espelhado nos autos, sobretudo nos fotogramas de SMS trocadas entre a vítima e algumas testemunhas do processo.
É certo que o arguido prestou declarações e acabou por admitir os factos acima indiciados, sustentando, todavia, que os relacionamentos íntimos que manteve com a vítima foram consensuais.
Contudo, a verdade é que a credibilidade que se poderia reconhecer a estas declarações do arguido falece no confronto com o conjunto da prova acima referida e a especial força probatória que dele resulta.
Há que salientar que não se vislumbra nenhuma razão para que a ofendida tenha prestado depoimentos falsos imputando ao arguido factos desta gravidade.
Por tudo isto se conclui, e não ignorando o significado do alcance do princípio da presunção da inocência, que os indícios da prática pelo arguido dos factos acima descritos não só existem como são fortes.
Numa última nota, não resulta indiciado, por ora, que a vítima vá padecer, de futuro, de uma incomum sensibilidade/irritabilidade em futuros atos sexuais de cópula, dado que, por ora, não se encontram juntos aos autos elementos clínicos que permitem concluir em tal sentido.
Os factos relativos às condições sociais e económicas decorreram das declarações do arguido.
Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração os certificados de registo criminal juntos aos autos.
Em suma, em face dos considerandos acima expendidos bem como da análise global da prova, temos que os factos se encontram fortemente indiciados.
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V.–Qualificação jurídica
No caso dos autos, o Ministério Público imputa ao arguido a prática, em autoria material, de um crime de violação agravado, previsto e punido pelo artigo 164.º n.º 1 a), 177.º n.º 5 ex vi 144.º a) e b) do Código Penal.
Numa breve nota, o artigo 177.º, n.º 5 do Código Penal prevê uma agravação do crime de violação quando dos mesmos resultem ofensas à integridade física graves, o que é o mesmo que dizer no caso dos autos, uma desfiguração grave e permanente de um órgão (artigo 144.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal) ou uma afetação da capacidade de procriação ou de fruição sexual (artigo 144.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal).
No caso dos autos, quanto à alínea b), não duvidamos que de futuro se vá a apurar uma efetiva incapacidade de procriação ou de fruição sexual, ante a gravidade e extensão das lesões físicas.
Contudo, o processo encontra-se numa fase embrionária, sendo que não foi possível até ao momento realizar a perícia médico-legal, a qual demorará ainda o seu tempo.
De todo o modo, dos elementos clínicos constantes nos autos, até à presente data, não se pode concluir pela existência de indícios que sejam idóneos ao preenchimento da dita alínea.
Sem embargo, considerando a factualidade indiciária acima dada como provada, donde decorre a laceração do saco fundo da vaginal (vulgo, rompimento profundo da parede vaginal), bem como a necessidade de internamento hospitalar e sujeição a operação, entendemos que, por ora, se mostra preenchida a alínea a).
A ser assim, por ora, e sem prejuízo das futuras diligências que venham a ser levadas a cabo e de futura qualificação jurídica decorrente das mesmas, mostra-se, assim, fortemente indiciada a prática pelo arguido BB, em autoria material de um crime de violação agravado, previsto e punido pelo artigo 164.º n.º 1, alínea a), 177.º n.º 5 ex vi 144.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
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Nos presentes autos não se vislumbra a existência de qualquer causa que, porventura, possa isentar o arguido de responsabilidade ou que demonstre a extinção do procedimento criminal (artigo 192.º, n.º 6 do CPP).
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VI.–Apreciação da existência de necessidades de natureza cautelar
O recurso às medidas de coação, no âmbito do direito processual penal, obedece aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade em decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência (cfr. artigoº 32º, n.º 2 da CRP).
Daí que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar – cfr. Art.º 191º, n.º 1 do CPP.
Por outra banda, nos termos do artigo 193º do CPP, as medidas de coação devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
A que acrescem, cumulativamente, os requisitos enunciados nas alíneas do artigo 204.º do CPP, os quais devem ser verificados através de factualidade concreta resultante dos autos.
Importa, pois, fazer uma breve enunciação e explanação dos mencionados perigos constantes nas alíneas do artigo 204.º do Código Processo Penal.
A situação de fuga implica uma atualidade desta no momento da aplicação da medida de coação. Já o perigo de fuga exige um perigo concreto fundado em elementos de facto que indiciem uma probabilidade razoável de o arguido em liberdade se ausentar para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à ação penal, não bastando, pois, a mera dedução desse perigo somente da gravidade da pena ou do facto de o arguido ser cidadão estrangeiro.
O perigo de fuga deve tomar em conta a gravidade das sanções criminais e civis previsíveis para os crimes imputados ao arguido e outros fatores relacionados com o caráter do arguido, a sua casa, a sua ocupação, as suas posses, os seus laços familiares e os laços que tem como o país onde é investigado.
O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo subtrai-se em factos que indiciem o propósito do arguido de prejudicar a investigação, isto é, de prejudicar a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perturbando-se, assim, o decurso do inquérito ou da instrução (em sentido amplo) do processo. Este perigo, mais intenso nas fases de inquérito ou instrução, carece de demonstração mediante factos concretos que indiciem a atuação previsível do arguido com esse objetivo, analisando-se a sua capacidade efetiva (um risco sério e atual) para perturbar a investigação e especialmente a recolha ou preservação da prova.
Relativamente ao perigo de continuação da atividade criminosa, este há de resultar de um juízo de plausibilidade de reiteração criminosa (um juízo de prognose de perigosidade social), apoiado na natureza e circunstâncias do crime imputado ao arguido ou na sua personalidade, e reporta-se apenas à atividade criminosa indiciada no processo, consubstanciada na prática de crimes análogos ou da mesma natureza.
Em conformidade o perigo de continuação da atividade criminosa verifica-se sempre que existam factos ou circunstâncias, que não sejam simplesmente conjeturais, donde resulte que em face da personalidade do arguidos e circunstâncias dos factos seja formulado um juízo de prognose que aponta com forte probabilidade para a prática de factos crime.
No que concerne ao perigo de perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas, não é suficiente o genérico e abstrato «alarme social», nem invocar de que certo tipo de crimes pode em abstrato causar a agitação pública. Assim, torna-se necessário que o arguido, em concreto, crie perigo e perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
No caso dos autos, verificam-se os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação de ordem e tranquilidade públicas.
Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, a brutalidade das circunstâncias em que o crime em apreço foi praticado (o uso da força perante a recusa de ato sexual aliado às consequências daí advenientes, com o rompimento da parede vaginal) bem como a própria personalidade do arguido vertida nos factos dados como indiciários (a não aceitação da recusa e o uso de força perante a resistência) faz antever uma efetiva possibilidade de continuação da atividade criminosa.
Tenha-se em consideração que pese embora a resistência da vítima e o facto de esta lhe ter solicitado para parar, o mesmo ignorou tal comando imprimindo força na sua conduta, tendo em vista a sua satisfação sexual; força essa que foi de proporção tal que a vítima sofreu um rompimento da parede vaginal.
De facto, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado e a personalidade deveras desvaliosa do arguido, tudo aponta para a possibilidade de existir um risco sério de o arguido reiterar na conduta criminosa com outras mulheres.
Na verdade, o claro ascendente do arguido e incapacidade do mesmo aceitar a recusa de um ato sexual bem como ainda de controlar os seus impulsos sexuais faz antever que o arguido, em futuros relacionamentos que venham a ter, com elevada probabilidade venha a fazer novamente uso da força, perante a recusa de um ato sexual.
Note-se que, as concretas condutas empreendidas pelo arguido se deram num contexto de convívio, sendo que existe um efetivo risco de o arguido, colocado nas mesmas circunstâncias, voltar a encetar as condutas criminosas.
Quanto ao perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública, parece-nos evidente, ante o concreto facto indiciário.
O crime em causa é grave, integra o conceito de criminalidade violenta e é causador de inquietação na comunidade, a qual exige a adoção por parte das autoridades de medidas enérgicas e protetoras de potenciais vítimas.
De facto, as concretas condutas empreendidas pelo arguido e a personalidade do mesmo vertida nos aludidos factos são, sem sombra de dúvidas, idóneas a causar a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, sendo que a comunidade se sente insegura na sua presença e sente que a ordem social está a ser posta em crise com as suas condutas.
Na verdade, estamos perante um meio pequeno, em que as pessoas da dita comunidade tomaram conhecimento dos factos, no diálogo entre amigos, sendo que a comunidade ficou abalada, ante a brutalidade dos factos, que se recorde, culminou com o rompimento da parede vaginal da vítima.
Ademais, considerando a elevada probabilidade de continuação da atividade criminosa, a comunidade, com elevada probabilidade, continuará a sentir-se inquieta e insegura perante a presença do arguido.
Por fim, quanto ao perigo de perturbação do inquérito, verifica-se o mesmo, designadamente no que toca à aquisição e conservação da prova, em face das pressões que podem ser exercidas pelo arguido contra a vítima, no sentido de condicionar o seu depoimento.
De facto, a personalidade do arguido e o circunstancialismo em que ocorreram os factos, salientando-se a relação de proximidade entre todos, fazem ainda recear que o mesmo exerça pressões sobre as vítimas e sobre as demais testemunhas, já inquiridas e a inquirir, no sentido de condicionar o seu depoimento e de levá-las a desmentir o que já declararam, suscitando-se, assim, o perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição, conservação e veracidade da prova.
Na verdade, é de facto de recear, face à personalidade temerária do arguido que este procure condicionar os depoimentos da vítima e das testemunhas, quer intimidando-as quer apelando aos laços de amizade que os unem.
E o que se disse, em nada fica prejudicado pelo facto de as testemunhas já terem sido ouvidas, na medida em que, importa conservar a prova, entretanto já produzida e obstar a que as testemunhas, condicionadas para tal, venham a alterar o seu depoimento em julgamento.
Por fim, distintamente da douta promoção do Ministério Público, entendemos que inexiste um efetivo perigo de fuga no caso dos presentes autos, na medida em que, por ora, inexistem indícios que permitam sustentar tal conclusão, sendo certo que, a mera probabilidade séria de futura aplicação de prisão efetiva não é suficiente para preencher este perigo.
Verificando-se, em concreto, estes perigos, importa então aplicar ao arguido a medida ou medidas que, conjuntamente, sejam as necessárias e adequadas a remover esses mesmos perigos e, simultaneamente, sejam proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
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VII.–Escolha da MC/ Juízo concreto da necessidade e adequação das medidas de coação (artigos 193.º, n.º 1 a 3, 204.º, 194.º, n.º 6 al. d), do CPP)
À aplicação de uma medida de coação devem presidir os critérios da necessidade, proporcionalidade e subsidiariedade, a que alude o artigo 193.º do CPP, sendo que este normativo nada mais é do que uma manifestação das exigências constitucionais que se encontram nos artigos 18.º, 27.º, n.º 3 e 28.º da Constituição da República Portuguesa.
Se é certo que a aplicação de uma medida de coação acarreta sacríficos à pessoa do arguido, não é menos verdade que no outro lado da balança encontram-se as necessidades atinentes à realização da justiça.
Cumpre então indagar, em face dos referidos princípios e das necessidades cautelares identificadas, qual a medida(s) de coação que deve(m) ser aplicada(s) para além do já prestado TIR.
No âmbito dos presentes autos, mostra-se fortemente indiciada a prática por parte do arguido de um crime de violação agravada.
Por outro lado, importa ter presentes a gravidade dos factos indiciados bem como os perigos que se fazem sentir nos presentes autos, os quais reivindicam exigências cautelares acentuadas.
Numa sociedade cada vez mais global, dificilmente os cidadãos em geral compreenderão e aceitarão – e, por isso, dificilmente será compatível com a preservação da ordem e tranquilidade públicas, enfim, com a paz social – que atenta a natureza, gravidade, circunstâncias dos crimes e personalidade demonstrada pelo arguido ao praticar os mesmos (nas circunstâncias conhecidas em que o praticou), este não fosse sujeito à medida de coação detentiva.
O tribunal tem presente que, nos termos do n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Penal, quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
O arguido, já se disse, exibiu um comportamento que merece veemente censura, sendo que as exigências acima mencionadas não se compaginam com a aplicação da vulgarmente denominada “prisão domiciliária”.
De facto, a obrigação de permanência na habitação não é suficiente para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa, dado que, nada obsta a que o arguido faça com que as mulheres se desloquem à sua residência, com o fito de encetar novas condutas criminosas.
Neste conspecto, é de assinalar que os factos ora em apreço ocorreram no interior da residência do arguido, o que apenas reitera o que se vem dizendo.
Ademais, a intranquilidade gerada na sociedade não é compatível com a obrigação de permanência na habitação, sendo que a mesma dificilmente compreenderia ou toleraria tal medida de coação.
De facto, a mesma não ficaria apaziguada no seu sentimento de segurança, ante a elevada possibilidade de o arguido permanecer na sua habitação e a partir da mesma continuar a praticar novas condutas criminosas.
Nessa medida, apenas a prisão preventiva é suficiente e idónea, por ora, a satisfazer as exigências cautelares acima mencionadas.
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VIII.–Decisão
Por tudo e em face do exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 195º, 204º, b) e c) e 202.º, todos do Código de Processo Penal, determina-se que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:
- Obrigações decorrentes do TIR já prestado nos autos.
- Prisão preventiva.”
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IV.–FUNDAMENTAÇÃO

Insurge-se o recorrente por ter sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva, por via da decisão proferida em 30.03.2024, considerando que os indícios existentes não suportam a imputação do crime de violação agravada, na medida em que a relação sexual mantida com a menor DD (que o arguido assume) foi consentida. Entende, por isso, que a medida de coação decretada é ilegal.
Por outro lado, considera, genericamente, inexistentes os requisitos impostos pelo artigo 204º do Código de Processo Penal, pelo que também por esse motivo será de considerar inadmissível a sua sujeição a prisão preventiva.
Cumpre apreciar.
O direito à liberdade pessoal, na aceção de liberdade ambulatória, é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e também na Constituição da República Portuguesa.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III, proclama a validade universal do direito à liberdade individual e no artigo IX, que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso, admitindo, no artigo XXIX, apenas as limitações à liberdade individual que resultem da lei, para prossecução do reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e da satisfação das justas exigências da ordem pública.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) consagra o direito à liberdade pessoal, no seu artigo 5º, estabelecendo que ninguém pode ser dela privado, a não ser que seja preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal e que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
Nos termos do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito à liberdade e à segurança, de harmonia com a consagração do direito à liberdade individual como um direito fundamental.
O direito fundamental a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é, porém, um direito absoluto, como os próprios instrumentos de direito internacional e a Constituição da República Portuguesa, admitem.
As medidas de coação são, justamente, meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias2.
«As medidas de coação emergem como condição indispensável, embora num quadro de excecionalidade,à realização da justiça»3.
A prisão preventiva é aplicável, quando estando fortemente indiciada a prática de algum dos crimes enumerados no artigo 202º do Código de Processo Penal, se verifique algum dos perigos previstos no artigo 204º do mesmo diploma.
Quanto aos pressupostos legais de carácter geral, (aplicáveis quer à prisão preventiva, quer a qualquer outra medida de coação diferente do TIR), referem-se à verificação de algum ou algum dos perigos enumerados nas alíneas a) a c) do artigo 204º do Código de Processo Penal: a)Fuga ou perigo de fuga; b)Perigo de perturbação da investigação; c)Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da atividade criminosa – que não são de verificação cumulativa.
Quanto aos pressupostos de carácter específico, encontram-se estabelecidos no artigo 202º nº 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, e são cumulativos: a existência de fortes indícios da prática de crime; que o crime indiciado seja doloso; que o crime indiciado corresponda a criminalidade violenta ou seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.
E é, no elenco de medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, a mais gravosa para os direitos fundamentais do arguido, dado implicar a total restrição da sua liberdade individual.
Por tal razão tem natureza subsidiária e excecional, o que significa que só deve ser aplicada, se todas as restantes medidas se mostrarem inadequadas ou insuficientes para a salvaguarda das exigências processuais de natureza cautelar que o caso requeira, concretamente, para a aquisição e conservação dos meios de prova e para garantir a presença do arguido nos atos processuais, sobretudo, na audiência de discussão e julgamento.
Deve, igualmente, à semelhança das restantes medidas de coação, com exceção do Termo de Identidade e Residência, ser proporcional à gravidade do crime e às sanções que, num juízo de prognose em relação ao julgamento, virão, possivelmente, a ser aplicadas.
É o que decorre das normas contidas nos artigos 191º, nº 1, 193º e 204º do Código de Processo Penal, de acordo, aliás, com os princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º, nº 2, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da adequação das medidas de coação exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coação imposta ou a impor. Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.
O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coação se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso e não de outra qualquer ou da não aplicação de qualquer delas.
O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida.
O artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e, tal como em todos os demais campos de aplicação, em matéria de aplicação das medidas de coação o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto «em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito»4.
Assim, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, é imperioso que, em cada fase do processo, exista uma relação de idoneidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado, bem assim, a sanção que se julga que pode vir a ser imposta, ou seja, tem de existir uma correlação entre a privação da liberdade individual que a medida de coação implica, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que, previsivelmente, virá a ser aplicada ao arguido.
Ora, estes princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade que regem a sua aplicação são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Tanto no que se refere à aplicação das medidas de coação em geral, como, muito especialmente, no que concerne às medidas de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação, às quais é expressamente atribuído carácter excecional ou subsidiário, terão, pois, necessariamente, de obedecer a estes princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 18º, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa5.
É no ponto de equilíbrio entre os direitos em confronto – o direito fundamental à liberdade individual e o da realização da justiça penal (na medida em que a aplicação da prisão preventiva, como de qualquer outra medida de coação, apenas serve para garantir o normal desenvolvimento do procedimento criminal e obstar a que o arguido se exima à execução da previsível condenação), que se garante o respeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e se impede o livre arbítrio (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.01.20196).
«Respeitar o princípio da adequação significa escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso (…). Para respeitar o princípio da proporcionalidade, a medida de coação escolhida deverá manter uma relação direta com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos.
«O respeito pelo princípio da subsidiariedade impõe considerar sempre a prisão preventiva como uma medida de natureza excecional que só pode ser aplicada como extrema ratio, quando nenhum outro meio se perfile ou anteveja como adequado e suficiente.»7.
«É no balanço entre estas realidades que deve ser encontrada a solução adequada, proporcional e justa que impeça o livre arbítrio»8.
Feitas estas considerações de carácter geral, que hão de ser tidas em conta na verificação da existência dos pressupostos de que depende a aplicação da medida de coação imposta ao arguido recorrente, é tempo de nos debruçarmos sobre os concretos aspetos assinalados nas conclusões extraídas da motivação do recurso do arguido.

(dos fortes indícios do cometimento do crime imputado)
Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição sine qua non da aplicação de todas as medidas de coação, no que concerne à prisão preventiva, a lei é mais exigente, pois usa a expressão «fortes indícios», sendo que ao fazê-lo, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.08.20189, cuja perspetiva subscrevemos, “o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado10 e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.
Sendo diferente o contexto probatório em relação ao momento da aplicação da medida de coacção – como é o caso – e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que não sendo conceitos semelhantes, claro está, de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art. 202º e o de «indícios suficientes» explicitado no art. 283º, nº 2 quanto aos objectivos que visam em cada momento processual: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.11 12
Essa idoneidade, porém, há de aferir-se pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas, e não pela respetiva substância.
Assim, se os indícios suficientes se devem ter por verificados, quando, com base nesses indícios, a probabilidade de condenação é, pelo menos, maior do que a de absolvição, reportada à fase da audiência de discussão e julgamento13, os indícios só serão fortes, quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido, na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coação, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência de contraditório, da imediação e da oralidade, que são característicos da fase da discussão e julgamento da causa.
O despacho recorrido considerou fortemente indiciado o cometimento pelo arguido BB, em autoria material, de um crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164º, nº 1, alínea a), e 177º, nº 5, ex vi artigo 144º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal.
O arguido não negou, em momento algum, ter mantido cópula (vaginal) com a menor DD.
Porém, nas conclusões extraídas da motivação do recurso apresentado, sustenta o recorrente que “a interpretação crítica e conjugada da prova carreada para os autos pelo Ministério Público permite concluir que a relação sexual objecto dos autos foi uma relação consentida pelo arguido e pela alegada vítima e não uma relação sexual contra a vontade da alegada vítima” (conclusão 5); que “as lesões sofridas pela alegada vítima podem resultar de relação sexual consentida com penetração vaginal/ não podendo retirar-se univocamente da ocorrência daquelas lesões a ocorrência do crime de violação” (conclusão 6); e que “a alegada vítima apresentou queixa-crime contra o arguido apenas movida por medo dos pais e dos irmãos, da reacção do namorado e do receio de que os pais a fizessem regressar à ilha de ..., para voltar a residir com os pais interrompendo o curso que frequenta na Horta” (conclusão 7) – conclui, por isso, pela ausência de fortes indícios da prática do crime que lhe foi imputado.

Em apoio de tais afirmações, fez o recorrente constar da motivação do seu recurso:
- que as declarações prestadas pela vítima (e pela testemunha GG) não merecem credibilidade – cotejando-as, designadamente, com as declarações prestadas por NN (mãe de GG), a quem DD (ao ser transportada para o hospital, na manhã do dia 17.03.2024) teria confirmado ter consentido nas relações sexuais mantidas com o arguido;
- que não é verdade que as lesões sofridas pela vítima constituam indício seguro da falta de consentimento para o relacionamento sexual – e convoca, para o efeito, publicações referenciadas no site norte americano da National Library of Medicine (em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov);
- e, finalmente, que os SMS trocados entre a vítima e as testemunhas JJ e II (juntos aos autos) confirmam ter existido consentimento da parte daquela primeira.
Resulta manifesto do teor da alegação do recorrente que pretende por em causa a avaliação da prova efetuada pelo Mmo Juiz a quo, designadamente, no que se refere à credibilidade reconhecida aos diferentes meios de prova, sobrepondo a sua convicção àquela que foi a do Tribunal.
Não nos alongaremos em considerações acerca do princípio da livre apreciação da prova – sendo, aliás, exatas as referências jurisprudenciais e doutrinais constantes da motivação do recurso quanto ao conteúdo de tal princípio – mas não pode deixar de dizer-se que, como o recorrente bem sabe atenta a resenha jurisprudencial que expôs, a sobreposição da convicção do arguido (ou de qualquer sujeito processual) à do julgador só pode vingar se se demonstrar que esta última se acha desligada da prova disponível nos autos (ou produzida em julgamento) e se revela contrária às regras da experiência comum.
Não é o que sucede no caso dos autos.
Na verdade, toda a argumentação do recorrente – tendo em vista desacreditar as declarações prestadas perante OPC por DD – arranca do pressuposto de que todas as vítimas de violação (ou de agressão sexual, com ou sem cópula) têm de imediato consciência de que foram vítimas de um crime e estão, de imediato, dispostas a denunciar o respetivo agressor (e que, se não o fazem, é porque o crime não aconteceu).
Tal uniformidade de reações inexiste na vida real.
Admitindo-se que é provável que uma mulher adulta (ou um homem adulto) que tenha sido sexualmente agredida por um desconhecido, se determine a reportar imediatamente o caso às autoridades competentes para a investigação, desencadeando o procedimento criminal, já a probabilidade de tal acontecer quando a vítima é uma adolescente e o agressor é uma pessoa sua conhecida, eventualmente pertencente a um círculo de amigos, é francamente menor – desde logo, por não se rever a vítima nessa qualidade, ocorrendo compreensível confusão face ao comportamento de uma pessoa que identificava como amigo – ou, pelo menos, como não ameaçador – e que, afinal, acabou por não respeitar o seu inalienável direito a não manter um determinado contacto de natureza sexual. Da circunstância de a ofendida não ter de imediato denunciado o seu agressor não pode, de modo algum, extrair-se que a cópula foi consentida15.
Como, certeiramente, aponta o Ministério Público na sua resposta ao recurso, não pode esquecer-se que a vítima é uma menor de 16 anos, com a sua personalidade ainda em formação, deslocada na ..., sendo compreensível que quisesse integrar-se no grupo de jovens, não os identificando como potenciais agressores. Já o arguido é um homem de 25 anos – para todos os efeitos, um adulto – acabado de sair de um relacionamento conjugal, do qual nasceram dois filhos, ou seja, uma pessoa com muito maior experiência de vida e com capacidade para se aperceber da recusa da ofendida em com ele manter cópula (além de que também estava ciente de que a mesma havia ingerido várias bebidas alcoólicas ao longo da noite16, circunstância suscetível de afetar a sua capacidade de tomar decisões livres e esclarecidas). Identifica-se, pois, um claro ascendente, que, manifestamente, foi aproveitado pelo arguido.
O consentimento da menor para a cópula não pode ser extraído do facto – admitido pela mesma – de ter aceitado beijar e ser beijada pelo arguido ou mesmo de terem trocado carícias (identificadas como «amassos»), a partir do momento em que aquela resiste a que lhe seja retirada a roupa, voltando a vestir-se, mais de uma vez. Esta sequência de factos é referida pela ofendida, mas também pelo arguido.
E, se não fossem suficientes as declarações da vítima (que é, em qualquer caso, a única pessoa, além do arguido, a ter estado presente na ocasião em que ocorreram os factos), não pode duvidar-se de que a ausência de consentimento para a prática de tal ato era conhecida do arguido, quando o próprio comenta, perante os amigos II e GG, ela não queria, mas depois foi”.
Diga-se, a propósito, que não corresponde à verdade extraída dos elementos de prova disponíveis nos autos, que GG não pudesse ter ouvido tais palavras proferidas pelo arguido: todos os depoimentos coincidem em colocar GG, II, e também KK, na cozinha da casa no momento em que BB ali se deslocou, deixando DD na sala (altura em que, de acordo com GG, proferiu, orgulhosamente, a referida frase).
De igual modo, os SMS trocados entre a ofendida e as testemunhas mostram-se inaptos a sustentar a versão do recorrente: o que claramente resulta deles é que os amigos do arguido se apressaram a contactar DD, com o propósito de que esta não revelasse a identidade daquele, declarando-se dispostos a apoiá-la, mas, na verdade, procurando sempre, e só, assegurar-se de que a vítima não o denunciaria. Da circunstância de a ofendida ter tentado tranquilizá-los – persuadida que estava de que todos eram amigos – nada pode extrair-se em contrário do que mais tarde narrou perante os OPC e em Tribunal. Se alguma coisa pode constatar-se é, apenas, a confusão e abandono em que a mesma se achava, quando internada no hospital e submetida a intervenção cirúrgica de urgência.
Repare-se que a testemunha II, quando DD lhe diz tou rasgada por dentro”, responde “tem cuidado com o que dizes”, “é meu irmão não [quero] que nada corra mal”, “aconteceu pronto”, “só quero que fiques bem” “e que tenhas cuidado com o que dizes também”, “nunca digas nomes”, e mais adiantesabes que se isso for para a frente ele nem seus filhos vai poder ver vai ser mt triste”.
Nas mensagens trocadas com a testemunha JJ vê-se que, quando a ofendida a informa de queo médico disse ao meu pai que isto foi forçado” e “eles conseguem ver nos exames JJ”, a resposta foi “Sim eu sei DD!! Nem tou dizendo que tas mentindo”, e a ofendida ainda acrescentou: “eu disse que foi por vontade dos 2”, “mas eu tbm sei que disse q[ue] n[ão] e ele insistiu”, “eu pedi ao meu pai a chorar que n queria ir com isto para a frente”, “nem queria dizer nomes”, “eu tava beijando ele e eu tava dizendo que não”, “daí ele despiu-se todo”, “eu queria tar com ele”, “mas não queria fuder com ele”, “e ele sabe q[ue] eu disse q[ue] n[ão]”, “mas dps tbm fui na onda”, “por isso a culpa n é toda do fernando”, “tenho de ser sincera isto não são coisas de brincar né”, “pq eu nunca na vida levo isto como violação!”, “eu tbm quis!”, “só n[ão] queria fuder”, “e dps ele tirou-me a roupa… e foi o q foi”, “mas ele tentou tirar-me a roupa 2 3 vezes e sempre puxei pra cima”, “mas daquela vez foi…”. E mais adiante, ainda em mensagens com a testemunha JJ, escreve a ofendida “forçado foi um pouco né”, “mas n faço nd pra o prejudicar JJ”. Porém, perante toda a angústia de DD, o que JJ tem a dizer é: “Não tou a puxar pra lado nenhum só tou dizendo que não dizendo nada pode ser a solução”, “Eles vão te meter pressão agora mas depois eles vão acalmar pk eles querem puxar por ti e puxar mas daí tu dando cenas eles vão querer saber mais e mais”, “E o problema é que tu dando os nomes ou o nome vais arranjar problema para todos os maiores de idade que lá estavam que no caso são todos menos a GG”, “Até eu me vou fuder no meio disso tudo”.
E a testemunha KK é ainda mais clara:DD” “N te culpes ok” “As coisas acontecem é mesmo assim”, “N intressa o q as pessoas pensam” “O fernando anda bué embaixo por causa disso” “Ele tem um coração enorme mesmo” “Tipo eu adoro aquele crlh”, e ainda acrescenta “[H]á muita mulher que gostava de tar no lugar que estiveste!, as coisa n correm da melhor forma prontos acontece tens que pensar e daqui pa frente não é em merdinhas isso já passou é só isso que tens que pensar (…)”.
Face a todas estas trocas de mensagens (e as mais que constam dos autos), o que resulta muito claro é que a própria ofendida se culpabilizou pelo facto de o arguido não ter sabido controlar os seus impulsos perante a sua recusa, como se lhe não fosse legítimo não querer manter cópula com ele – tal atitude representa uma segunda vitimação, que nasce do preconceito, ainda prevalecente em alguns setores da sociedade, e que, verdadeiramente, nega à vítima a sua liberdade e autodeterminação sexual (que é, afinal, o bem jurídico protegido pela incriminação).
O arguido, nas declarações que prestou, de resto, insistiu sempre em que foi a ofendida que o procurou, que lhe deu beijos e o agarrou e que, na verdade, se limitou a fazer-lhe a vontade… 17
José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro18, alertam para várias antinomias frequentemente presentes na análise da criminalidade sexual, nomeadamente, a negação do agressor e o concomitante descrédito da vítima. Citamos: “No domínio da criminalidade sexual a negação dos factos imputados ao agressor, por parte deste nos seus depoimentos, pode ser considerada uma evidência. No caso de crimes sexuais contra menores raramente o agressor assume que praticou atos sexuais com as vítimas. Negar, negar, negar. Sempre. Negar mesmo o conhecimento das vítimas. Ainda que confrontado com evidências ou mesmo provas físicas inequívocas sobre a ocorrência dos factos a sua postura é e será sempre a negação.
No caso de criminalidade sexual entre adultos, embora a negação seja igualmente comum, não assume o relevo e o âmbito das situações que envolvem menores. No entanto ainda no âmbito da criminalidade sexual entre adultos a negação, sobretudo do caráter não livre do ato sexual ocorrido, é uma constante. Como se referiu o fenómeno da «paralisação pelo medo» da vítima é, assim, usado exatamente pelo agressor, em seu benefício para defender e contrariar uma narrativa de negação ao não consentimento ou a qualquer tipo de coação.”
E, mais adiante, ainda: “Importa referir que a seguir à negação dos factos por parte do agressor, a estratégia de defesa usual utilizada pelo arguido/agressor consiste em questionar e desqualificar os depoimentos das vítimas e a própria personalidade desta. A estratégia de questionamento assume duas vertentes.
Quando a vítima é menor trata-se de questionar desde logo a credibilidade do seu testemunho, atenta a sua idade e sobretudo a sua personalidade frágil e vulnerável. Assim, a desqualificação do depoimento, quer por via da alusão à sua idade ou através da sugestão e mesmo imputação de «depoimentos» imaginários, são frequentes.
Quando a vítima é maior, trata-se de afirmar desde logo que, se ocorreu alguma coisa ou se foi praticado qualquer ato sexual, essa situação decorre ou de uma «comparticipação» da vítima nos factos, do seu assentimento à sua prática dos mesmos ou mesmo da ocorrência de um passado menos próprio da vítima. (…). Trata-se, também de um fenómeno que implica igualmente uma revitimização da vítima, na medida em que não só o seu corpo e integridade física foi objeto de uma violência (e de um trauma) como é, também, o seu caráter que é atingido. Como referem alguns autores, o «questionamento sobre a sua vida íntima é particularmente humilhante e frequentemente visto como uma segunda agressão»19.”
É o que o recorrente procura fazer nos presentes autos.
Porém, como cremos que resulta do que fica exposto, não são indícios – fortes indícios – que faltam no caso vertente. O que há é uma leitura enviesada dos factos, feita pelo arguido e pelos seus amigos, que procuram responsabilizar a ofendida pelo que lhe sucedeu, negando-lhe o direito a decidir quando, com quem, e em que termos, quer manter relacionamento sexual.
Esta interpretação dos factos é contrária à realidade acontecida – e contrária à lei – e foi considerada inaceitável pelo Tribunal a quo. E bem.
Não se identifica incongruência ou inverosimilhança nas declarações prestadas pela ofendida, que são, como se referiu na decisão recorrida, corroboradas pelos demais elementos de prova disponíveis nos autos. A «vítima perfeita» não existe: tudo o que se observa no modo como DD se conduziu nos dias que se seguiram à agressão é compreensível e congruente com as características da própria, a sua faixa etária, o seu meio de vida e a pressão da sociedade que a rodeia. Caberá ao sistema de justiça tentar não contribuir para a persistência da respetiva vitimação.
Importa deixar, ainda, uma última nota a propósito da suposta literatura da especialidade convocada pelo recorrente para demonstrar a consensualidade do relacionamento sexual ocorrido entre arguido e ofendida. Na verdade, o que o arguido trouxe ao seu recurso são apenas referências a artigos médicos que, admite-se, estarão disponíveis nos sítios eletrónicos indicados na National Library of Medicine, mas que não são de acesso livre (e não estão, claro, na língua dos autos). Mas mesmo que assim não fosse – e mesmo que pudessem apresentar qualquer valor enquanto «pareceres» - o que é evidente é que a opinião dos autores de tais estudos terá sempre de ser confrontada com o caso concreto e com a anamnese da situação. E nunca seriam aptos a afastar a perícia médico-legal que já foi solicitada nos presentes autos, e que, a seu tempo, será tida em devida conta.

Por ora, o que os autos nos oferecem é o parecer preliminar da Srª Perita Médico-Legal de Velas – ..., que examinou a ofendida e referiu que a mesma apresentava uma sutura de laceração do fundo do saco, por baixo do colo do útero, bem como ainda um coágulo na parede da vagina, em tudo compatíveis com agressão sexual violenta, de tal modo que a mesma apresentou dor ao ser examinada (cf. fls. 118 dos autos principais). O índice de artigos apresentado pelo recorrente não é apto a contrariar tal parecer, sem prejuízo do que a investigação em curso ainda irá trazer aos autos.
Em face do acervo probatório disponível nos autos, não vemos razões para discordar da avaliação das circunstâncias apuradas feita pelo Tribunal a quo, pelo que é de concluir pela forte indiciação da prática por parte do arguido recorrente do crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164º, nº 1, alínea a), e 177º, nº 5, ex vi artigo 144º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal, com pena de prisão de 1 ano e 6 meses a 9 anos, que lhe foi imputado. Tal crime é em abstrato punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, pelo que é admissível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva. Em suma, é de considerar demonstrada a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”, nos termos exigidos pelo artigo 202º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

(dos pressupostos para a prisão preventiva)

Preenchido o pressuposto específico do artigo 202º, do Código de Processo Penal, vejamos agora os pressupostos constantes do artigo 204º do mesmo diploma legal, em que se fundou o Tribunal a quo para justificar a prisão preventiva do recorrente (considerando verificados os perigos de perturbação do inquérito, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade pública, contemplados nas alíneas b) e c) do preceito citado).
O recorrente afirma não se verificar nenhum desses perigos.
Desde já adiantamos que sem razão.

Quanto aos pressupostos constantes do artigo 204º do mesmo diploma legal, ponderou o Tribunal recorrido: “Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, a brutalidade das circunstâncias em que o crime em apreço foi praticado (o uso da força perante a recusa de ato sexual aliado às consequências daí advenientes, com o rompimento da parede vaginal) bem como a própria personalidade do arguido vertida nos factos dados como indiciários (a não aceitação da recusa e o uso de força perante a resistência) faz antever uma efetiva possibilidade de continuação da atividade criminosa.
Tenha-se em consideração que pese embora a resistência da vítima e o facto de esta lhe ter solicitado para parar, o mesmo ignorou tal comando imprimindo força na sua conduta, tendo em vista a sua satisfação sexual; força essa que foi de proporção tal que a vítima sofreu um rompimento da parede vaginal.
De facto, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado e a personalidade deveras desvaliosa do arguido, tudo aponta para a possibilidade de existir um risco sério de o arguido reiterar na conduta criminosa com outras mulheres.
Na verdade, o claro ascendente do arguido e incapacidade do mesmo aceitar a recusa de um ato sexual bem como ainda de controlar os seus impulsos sexuais faz antever que o arguido, em futuros relacionamentos que venham a ter, com elevada probabilidade venha a fazer novamente uso da força, perante a recusa de um ato sexual.
Note-se que, as concretas condutas empreendidas pelo arguido se deram num contexto de convívio, sendo que existe um efetivo risco de o arguido, colocado nas mesmas circunstâncias, voltar a encetar as condutas criminosas.
Quanto ao perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública, parece-nos evidente, ante o concreto facto indiciário.
O crime em causa é grave, integra o conceito de criminalidade violenta e é causador de inquietação na comunidade, a qual exige a adoção por parte das autoridades de medidas enérgicas e protetoras de potenciais vítimas.
De facto, as concretas condutas empreendidas pelo arguido e a personalidade do mesmo vertida nos aludidos factos são, sem sombra de dúvidas, idóneas a causar a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, sendo que a comunidade se sente insegura na sua presença e sente que a ordem social está a ser posta em crise com as suas condutas.
Na verdade, estamos perante um meio pequeno, em que as pessoas da dita comunidade tomaram conhecimento dos factos, no diálogo entre amigos, sendo que a comunidade ficou abalada, ante a brutalidade dos factos, que se recorde, culminou com o rompimento da parede vaginal da vítima.
Ademais, considerando a elevada probabilidade de continuação da atividade criminosa, a comunidade, com elevada probabilidade, continuará a sentir-se inquieta e insegura perante a presença do arguido.
Por fim, quanto ao perigo de perturbação do inquérito, verifica-se o mesmo, designadamente no que toca à aquisição e conservação da prova, em face das pressões que podem ser exercidas pelo arguido contra a vítima, no sentido de condicionar o seu depoimento.
De facto, a personalidade do arguido e o circunstancialismo em que ocorreram os factos, salientando-se a relação de proximidade entre todos, fazem ainda recear que o mesmo exerça pressões sobre as vítimas e sobre as demais testemunhas, já inquiridas e a inquirir, no sentido de condicionar o seu depoimento e de levá-las a desmentir o que já declararam, suscitando-se, assim, o perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição, conservação e veracidade da prova.
Na verdade, é de facto de recear, face à personalidade temerária do arguido que este procure condicionar os depoimentos da vítima e das testemunhas, quer intimidando-as quer apelando aos laços de amizade que os unem.
E o que se disse, em nada fica prejudicado pelo facto de as testemunhas já terem sido ouvidas, na medida em que, importa conservar a prova, entretanto já produzida e obstar a que as testemunhas, condicionadas para tal, venham a alterar o seu depoimento em julgamento.
Por fim, distintamente da douta promoção do Ministério Público, entendemos que inexiste um efetivo perigo de fuga no caso dos presentes autos, na medida em que, por ora, inexistem indícios que permitam sustentar tal conclusão, sendo certo que, a mera probabilidade séria de futura aplicação de prisão efetiva não é suficiente para preencher este perigo”.
Defende o arguido/recorrente que inexiste perigo de continuação da atividade criminosa, na medida em que “dos autos não se retira que a conduta do arguido, ora recorrente, venha ou possa vir a ser repetida, até porque o arguido não tem antecedentes criminais quanto a crime de natureza sexual, tem a profissão de cantoneiro, vive num anexo à casa em que habitam a sua mãe e a avó e tem um filho de 3 anos e uma filha de 4 meses (factos 35 e 37), estando socialmente integrado”. Mais sustenta não estar demonstrada a existência dos perigos de perturbação da tranquilidade pública e de perturbação do inquérito, apoiando-se em que a decisão recorrida os teria considerado verificados apenas com base numa invocada «personalidade desvaliosa» do arguido, sem qualquer concretização fáctica.
Já veremos que não foi assim.
Antes, porém, importa determo-nos, por breves instantes, nas especialidades convocadas, a propósito da imposição de medidas de coação, pela circunstância de estarmos perante um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, que a lei define como criminalidade violenta, sendo a respetiva vítima legalmente tida como especialmente vulnerável (cf. artigos 1º, alínea j) e 67º-A, nº 1, alínea b) e nº 3, ambos do Código de Processo Penal).
Escrevem Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro20: “Na criminalidade sexual, a vítima, como se referiu, assume uma importante e relevante visibilidade no direito penal substantivo e processual. A nível da detenção e das medidas de coação o legislador reconhece que a vítima é um importante “ator” no processo penal, não só enquanto meio de prova, mas também enquanto cidadão que anseia que seja realizada justiça da forma mais célere possível, através da eventual aplicação de uma reação, ainda que provisória, do sistema penal que a tranquilize (fazendo-a acreditar que o agressor não voltará a cometer factos semelhantes em relação a si ou sobre outras vítimas). Qualquer que seja o prisma de enquadramento é um dever zelar pela sua proteção. É aliás, um direito da vítima conforme resulta do art. 67.º-A, n.º4 do CPP.
A detenção e as medidas de coação deverão proteger a vítima, não só para evitar novas agressões sexuais, mas para que, por via de um receio ou temor decorrentes da situação em que se viu envolvida, não fique de tal modo constrangida que se recuse a esclarecer os factos, ou, já tendo prestado depoimento, seja previsível que a manter-se um clima de atemorização física ou mental do agressor não seja possível assegurar que preste esclarecimentos subsequentes.
(…)
A nível das medidas de coação existem requisitos gerais que estão estreitamente relacionados com a vítima.
Assim, o art. 204.º, al. b) prevê que para aplicação de uma medida de coação exista perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução21 do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova. No âmbito da criminalidade sexual é muito frequente a ocorrência de uma situação de relação de poder entre vítima/agressor que, por si só torna imperioso (nomeadamente no caso das vítimas especialmente vulneráveis) a aplicação de uma medida de coação adequada, necessária, suficiente, proporcional e não excessiva, que permita a colaboração daquela com o sistema de justiça. Embora o escopo seja a atividade probatória, está intrinsecamente relacionado com as necessidades de proteção da vítima, pois só uma medida de coação que afaste qualquer receio é que salvaguardará a prova.”
Como se sabe, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas tem de resultar de circunstâncias concretas e particulares referentes ao previsível comportamento do arguido – trata-se do perigo de o arguido vir a perturbar a ordem e a tranquilidade públicas -, não relevando só por si a circunstância de os factos já praticados serem suscetíveis de, em abstrato, causar alarme ou intranquilidade na sociedade. Nesta medida, pese embora se concorde que o crime de violação – sobretudo num meio pequeno, como é aquele onde ocorreram os factos – seja, de per se, suscetível de justificar a intranquilidade das populações, o que tem de relevar, no caso concreto, é a intranquilidade produzida na própria vítima, a qual resultando algo mitigada pelo facto de esta última se encontrar noutra ilha do arquipélago (que não aquela onde reside o arguido), não pode ainda assim considerar-se eliminada, na medida em que a mobilidade dos sujeitos, uma vez em liberdade, é fácil, e, por outro lado, não pode ser a liberdade ambulatória de própria vítima (que, desejavelmente, quererá retomar os seus estudos) a ser sacrificada para o efeito.
No que se refere ao perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente «perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova», foi o mesmo considerado verificado pelo Tribunal a quo, relevando que o processo ainda se encontra em investigação, sendo de recear que, mantendo-se o arguido em liberdade, venha a tentar influenciar a vítima e as testemunhas, procurando convencê-las a alterar os respetivos depoimentos ou inibi-las de intervir no processo.
Este perigo, no caso em apreço, é muito real, na medida em que os autos documentam a intensa atividade desenvolvida junto da vítima, de modo a pressioná-la para que não identificasse o seu agressor e não apresentasse queixa, sendo de recear novas iniciativas no mesmo sentido.
Não nos merece reparo, neste aspeto, a avaliação feita pelo Tribunal recorrido.
Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, muito embora se não discorde da avaliação feita pelo Tribunal a quo relativamente à personalidade desvaliosa do arguido, que demonstrou não ser capaz de controlar os seus impulsos, nem refrear o ascendente que sabia deter perante uma adolescente de 16 anos, concede-se que, face à ausência de antecedentes criminais ou de notícia de outros comportamentos desviantes por parte do arguido, tal perigo se mostra, no caso concreto, algo residual.
Não obstante, como acima se referiu, os requisitos exigidos pelo artigo 204º do Código de Processo Penal não são de verificação cumulativa, pelo que a não verificação de perigo de continuação da atividade criminosa (ou de perigo de fuga – que não foi considerado na decisão recorrida) não traduz a inexistência de exigências cautelares bastantes para justificar a necessidade de aplicação da medida de coação aqui em apreço, sendo certo que o perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, para a aquisição, conservação e veracidade da prova, se mostra expressivamente acentuado face ao circunstancialismo apurado nos autos.
A gravidade objetiva do crime que vem indiciado, patente na respetiva moldura penal – impressionando, naturalmente, a brutalidade da agressão – e a previsibilidade de condenação em pena de prisão efetiva (mesmo considerada a juventude do arguido) justificam, do ponto de vista da proporcionalidade, a imposição da prisão preventiva, a qual se mostra, por isso, proporcional à gravidade do crime fortemente indiciado e às sanções para o mesmo legalmente prevista.

Na verdade, tal como considerou a decisão recorrida, nenhuma outra medida se mostra adequada a afastar os aludidos perigos: nem mesmo a de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, sabendo-se que não seria apta para impedir ou prevenir que o recorrente se ausentasse da sua residência ou a que contactasse a vítima, a partir dessa mesma residência, dificultando ou impossibilitando a ação da justiça, limitando-se os meios eletrónicos de controlo à distância a assinalar a violação da medida imposta.
Nestes termos, afigura-se que, no caso em apreço, tal como o refere o Tribunal a quo, a prisão preventiva é a única medida que obstará aos perigos já supra enunciados, e por isso é aquela que se mostra adequada e proporcional, sendo insuficiente para acautelar tais perigos qualquer medida não privativa da liberdade, tal como o é também a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita aos meios de vigilância eletrónica.
Em conclusão, a decisão recorrida mostra-se suficientemente fundamentada e encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que ao arguido recorrente pudesse ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coação que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer, pelo que o despacho impugnado não violou qualquer normativo legal ou constitucional, designadamente os artigos 32º da Constituição da República Portuguesa, 191º, nº 1, 193º, 202º e 204º, todos do Código de Processo Penal, nem os princípios da proporcionalidade, adequação e subsidiariedade.
Improcede integralmente o recurso, mantendo-se o recorrente em prisão preventiva.
*

V.–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo que determinou a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
*
Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
*


Lisboa, 04 de junho de 2024



(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)



Sandra Oliveira Pinto
(Juíza Desembargadora Relatora)
Manuel José Ramos da Fonseca
(Juiz Desembargador Adjunto)
Alda Tomé Casimiro
(Juíza Desembargadora Adjunta)



1.Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 254.
3.Frederico Isasca, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pág. 103.
4.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 264.
5.José António Barreiros, As Medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal, Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª edição, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª edição, volume II, pág. 250; Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, vol. 1, 3ª edição, pág. 1270.
6.No processo nº 65/19.1JBLSB-A.L1-3, Relatora: Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, acessível em www.dgsi.pt
7.Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.06.2019, no processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, Relator: Desembargador João Lee Ferreira, em www.dgsi.pt
8.Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.01.2016, no processo nº 576/14.5GEALRF.L1-9, Relator: Desembargador Antero Luís, em www.dgsi.pt
9.No processo nº 142/17.3JBLSB-A.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva, em www.dgsi.pt
10.Cfr Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, 3ª ed. pag 1270
11.Cfr “Código de Processo Penal Comentado” de Henriques Gaspar et all., 2ª ed. pag 817
12.Neste sentido também Jorge Silveira, “O Conceito de Indícios no Processo Penal Português”, em https://www.odireitoonline.com
13.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 261.
14.Entretanto, foram já prestadas declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 271º do Código de Processo Penal – cf. refª Citius 57143572.
15.Com muito interesse sobre a questão, pode ver-se a dissertação de mestrado em Psicologia da Justiça apresentada na Escola de Psicologia da Universidade do Minho por Gabriela Maria Figueira Martinho, com o título “Crimes sexuais contra mulheres adultas: Da avaliação forense à decisão judicial”, UMinho|2011, acessível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/18642/1/Gabriela%20Maria%20Figueira%20Martinho.pdf, na qual a autora expõe os contributos de vários estudos sobre o tema, reportando, nomeadamente, que “as mulheres vítimas de violação por um conhecido, tendem a não olhar para o ato como abusivo, o que não significa que a experiência não tenha sido prejudicial (Maria, 2004).”, e que “são vários os motivos que levam as vítimas de violação a não revelarem ou denunciarem o crime, seja pelo medo e a ansiedade sentidas após o crime, criando uma sensação de entorpecimento; pelo sentimento de impotência pessoal antes da agressão; pelo medo de ser revitimada pelo agressor; por pertencer a grupos marginalizados (e.g., prostitutas); pela existência de uma relação próxima com o violador (Sangrador, 1986, como citado em Olivera, 1993); pela desconfiança no sistema criminal de justiça e pelo medo de serem estigmatizadas (Kelly & Regan, 2001, como citado em Maria, 2004). Outros motivos são apontados, como a dificuldade da vítima em reconhecer o que lhe aconteceu como crime devido à confusão emocional sentida na altura ou por sustentarem crenças que a impede de reconhecer (Rozee & Koss, 2001, como citado em Maria, 2004). Em paralelo, aparece a vitimação secundária, uma vez que são muitas as vítimas que encaram o sistema de justiça como inibidor da denúncia, pois antecipam que a resposta dada pela polícia não será adequada às suas necessidades (Hatten, 2000, como citado em Martins, et al., 2011). A literatura mostra que uma das queixas apontadas é o questionamento intrusivo de que são alvo, sentindo-se julgadas pelos seus atos (Tomlinson, 1999, como citado em Martins, et al., 2011).
16.Em quantidade que determinou que, na manhã seguinte (pelas 11h10), ainda apresentasse uma TAS de 0,520 g/l – como resulta da documentação clínica que se mostra junta aos autos principais – cf. fls. 135 (refª Citius 5654648).
17.Ana Folhadela Figueiredo Pina, no estudo “O carácter discriminatório da exigência de outras formas de violência para além da actuação com o dissentimento da vítima para efeitos de preenchimento do crime de violação” (prémio Teresa Rosmaninho de 2014 da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas(APMJ), que pode ser acedido em https://apmj.pt/premio-teresa-rosmaninho) escreve: “Apesar de toda a evolução verificada e da cada vez maior luta do Estado e da sociedade civil contra todas as formas de discriminação, por vezes e lamentavelmente parece-me, ao ser confrontada com o tratamento legal e jurisprudencial de certas situações relativas aos crimes sexuais, que o longe se faz perto, em termos de tratamento das vítimas do crime de violação, e que, se calhar, sob uma máscara formal de igualdade, ainda estamos numa fase mais “Afonsina” do que pensamos, nomeadamente através de interpretações legais discriminatórias relativamente aos crimes sexuais e ao tratamento de exigência exagerada e de infundada desconfiança com que carregamos as vítimas de violação, tantas vezes, atualmente ainda marcadas pelo preconceito de terem que fazer a prova do não consentimento e do exercício da violência.
A constatação é grave, tendo em conta que reflete uma visão de negação do livre arbítrio no que respeita à sexualidade feminina, como se para a sociedade fosse obrigatório ou, pelo menos, se presumisse, para cada pessoa e, em particular, para cada mulher, sempre a existência de consentimento relativamente a atos sexuais, independentemente de quem os quisesse praticar com ela.
18.Crimes Sexuais – análise substantiva e processual, 3ª ed., Almedina, 2021, págs. 45-46
19.Assim, Nicole Rénaud, Les crimes Sexuels en Common Law, Droit Anglais et Americain, Presses Universitaires Septentrion, 1998, p. 445.
20.Ob. cit., págs. 421-422.
Instrução abrange toda a atividade de recolha e produção de prova no processo, quer decorra na fase de inquérito, instrução ou julgamento, conforme salienta Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo, pág. 298.