Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1425/24.1YRLSB-1
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
AMIZADE
MOTIVO PONDEROSO
CONHECIMENTO DE FACTOS
OBJECTO DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: DEFERIDA
Sumário: 1) Atenta a proximidade de amizade – entre o Sr. Juiz e o companheiro da credora interveniente no processo, regularmente renovada pelos encontros mantidos, pelos motivos expressos pelo Sr. Juiz – que se estende à dita companheira e credora impugnante, sobre a posição da qual o julgador terá de proferir decisão e, bem assim, a circunstância de o Sr. Juiz ter tomado conhecimento de factos relacionados com a causa, que poderão contender com a decisão a proferir, constitui motivo ponderoso que justifica o deferimento da escusa.
2) A relação extremamente próxima e de amizade mantida com o companheiro da credora e a relação, por tal via, mantida com a dita credora, revelada e densificada da forma descrita, sugere o referido não distanciamento para com a pessoa da credora, podendo interferir na imagem de lisura e de total imparcialidade que deve sempre pautar o julgador, perante os demais sujeitos processuais e quaisquer terceiros.
3) A tal não é alheia a circunstância de a dita relação ter difusão na comunidade e de a dimensão geográfica da Ilha permitir o conhecimento pela comunidade em geral dos factos acima relatados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. O Sr. Juiz de Direito “A”, a exercer funções no Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo do Tribunal da Comarca dos Açores veio, ao abrigo do disposto nos artigos 119.º do Código de Processo Civil, apresentar pedido de escusa de intervenção no processo n.º (…)/15.4T8AGH, invocando, em suma, que:
- É titular do referido processo, do referido juízo;
- O processo é de insolvência e encontra-se na fase de verificação de alguns créditos impugnados para subsequente graduação;
- Um dos credores que impugnou o seu crédito e sobre o qual terá de ser produzida prova é a credora “B”, que é companheira de “C”, o qual é, atualmente, o melhor e mais próximo amigo do Sr. Juiz na ilha Terceira, sendo, por via disso, o signatário também amigo desta;
- Tal relação não existia, mas por força da prática de atletismo conjunta iniciada no ginásio foi sedimentada, ao ponto de, hoje, pôr em causa a imparcialidade do signatário;
- Nas horas de almoço, semanalmente, o Sr. Juiz corre em conjunto com o seu mencionado amigo e, por vezes, almoçam ou jantam juntos, fazem corridas e provas em conjunto, inclusive, correndo conjuntamente com a mencionada credora “B”, sendo vistos por todos como amigos muito próximos, com fotos e imagens conjuntas nas redes sociais, com especial projeção pelo facto de o mencionado “C” ser sócio da maior cadeia de ginásios da ilha (…);
- A ilha onde decorrem os presentes autos é pequena e todas as pessoas se conhecem;
- Teve, por essa via, dada a existência de outros amigos em comum, entretanto conhecimento de factos relativamente ao crédito em causa que contendem com a questão que iria agora apreciar;
- Num processo de insolvência de uma empresa que era conhecida no meio, é razoável supor que a comunidade (na qual todos são conhecidos) possa suspeitar da imparcialidade do signatário e é, ainda, razoável supor que as próprias partes possam suspeitar da imparcialidade do signatário, julgando-o mais próximo da credora em causa, tudo, com o consequente desprestígio para a justiça, a constituir razão ponderosa para que, nos termos do disposto no art. 119.º, n.º 1, do CPC, seja dispensado de, doravante, intervir no mencionado processo.
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II. Pretende o requerente ser dispensado de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
Conforme salienta Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, 1974, p. 320), “pertence pois a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera [de pura objectividade e de incondicional juridicidade] não (…) enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possam criar nos outros a convicção de que ele a perdeu”.
O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
Para afastar o juiz natural não é suficiente um qualquer motivo que alguém possa considerar como gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. É preciso que o motivo seja sério e grave, pois o juiz natural só pode ser arredado se isso for exigido pela salvaguarda dos valores que a sua consagração visou garantir: imparcialidade e isenção. Por isso é excecional o deferimento de um pedido de escusa (cfr., Acórdão do STJ de 11-11-2010, Pº 49/00.3JABRG.G1, rel. MANUEL BRAZ; no mesmo sentido, vd. Ac. do STJ de 05-04-2000, in CJ, 2000, p. 244).
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo. O ponto de vista subjetivo visa apurar se o juiz deu mostra de interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. O ponto de vista objetivo procura determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade. Ao aplicar o teste subjetivo, a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objetivos evidentes devem afastar essa presunção (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-02-2018, Proc. 166/18.3YRLSB, 5.ª Secção, Des. Anabela Simões e Cid Geraldo, em: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=5385&codarea=57).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. O Sr. Juiz vem referir, designadamente, que, no processo em questão – de insolvência de uma empresa – é credora a companheira do seu melhor amigo na Ilha (…), com quem mantém relação de proximidade (praticando conjuntamente atletismo – o que faz também com a referida credora -  e tomando refeições com regularidade), sendo vistos por todos como amigos muito próximos, com fotos e imagens conjuntas nas redes sociais, com especial projeção, dado que o seu amigo – e companheiro da dita credora – é sócio da maior cadeia de ginásios da ilha (…).
Estas circunstâncias, aliadas à pequena dimensão da ilha, onde todas as pessoas se conhecem, bem como, a circunstância de ter tido conhecimento de factos relativamente ao crédito em causa que contendem com a questão que iria agora apreciar, justificam, em seu entender, a escusa pretendida.
Cumpre salientar que, não se verifica nenhuma situação de impedimento para a tramitação e julgamento da causa, quer considerando o disposto no artigo 7.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, quer o consignado no artigo 115.º do CPC.
O artigo 120.º do CPC - aplicável às situações de escusa, por remissão do artigo 119.º do CPC – salvaguarda diversas situações (tipificadas nas várias alíneas do n.º 1) em que existe circunstância ponderosa relacional que determina que possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador.
E, relativamente à cláusula geral, estabelecida no n.º 1, do artigo 119.º do CPC – “quando por outras circunstâncias [além das enunciadas no artigo 120.º do CPC] ponderosas” possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador, tal aferição da aparência “visa o processo concreto, o mesmo é dizer, é sobre o objecto do processo, sobre o mérito da decisão, da factualidade em que assenta e sobre os respectivos sujeitos processuais envolvidos, que há-de ser apreciada e aferida a suspeição do julgador. O motivo, sério e grave, gerador da desconfiança para que aponta aquele dispositivo legal, tem de ser concreto e concretizado face à matéria da causa e não ser aferido a partir de generalidades e abstracções” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2019, Pº 186/17.5GCTVD.L1-A.S1, rel. FRANCISCO CAETANO).
Ora, atenta a proximidade de amizade – entre o Sr. Juiz e o companheiro da credora interveniente no processo, regularmente renovada pelos encontros mantidos, pelos motivos expressos pelo Sr. Juiz – que se estende à dita companheira e credora impugnante, sobre a posição da qual o julgador terá de proferir decisão e, bem assim, a circunstância de o Sr. Juiz ter tomado conhecimento de factos relacionados com a causa, que poderão contender com a decisão a proferir, mostra-se existir motivo ponderoso que justifica o deferimento do requerido.
De facto, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz, sempre, a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão. Todavia, perante os factos relatados, coloca-se em risco, na situação concreta, o seu não distanciamento do caso concreto.
A relação extremamente próxima e de amizade mantida com o companheiro da credora e a relação, por tal via, mantida com a dita credora, revelada e densificada da forma descrita, sugere o referido não distanciamento para com a pessoa da credora, podendo interferir na imagem de lisura e de total imparcialidade que deve sempre pautar o julgador, perante os demais sujeitos processuais e quaisquer terceiros.
A tal não é alheia a circunstância de a dita relação ter difusão na comunidade e de a dimensão geográfica da Ilha permitir o conhecimento pela comunidade em geral dos factos acima relatados.
Quer do ponto de vista subjetivo, quer do ponto de vista objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, sendo que, tal excecionalidade ocorre relativamente ao caso em apreço.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que o Sr. Juiz seja dispensado de intervir no processo.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção do Sr. Juiz de Direito, “A”, no âmbito do processo n.º (…)/15.4T8AGH.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 13-05-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).