Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1/24.3PTFUN.L1-3
Relator: HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
ELEMENTOS DO TIPO
CRIME DE PERIGO
MEDIDA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Atenta a natureza do bem jurídico protegido pelo crime previsto no art.º 292º, nº 1 do Cód. Penal, o perigo é presumido pelo legislador, ficando dispensada qualquer averiguação sobre a perigosidade [concreta] do facto.
O mesmo é dizer que existe uma presunção inilidível de perigo, já que o legislador, partindo do princípio de que certos factos constituem normalmente um perigo de lesão, pune-os como crime consumado, independentemente da averiguação de um perigo efectivo no caso concreto [Germano Marques da Silva - Crimes rodoviários: pena acessória e medidas de segurança, Universidade Católica Editora, 1996, p. 14].
II. No plano processual, basta a prova da acção típica, na medida em que, no crime de perigo abstracto é a própria acção que é em si mesma considerada perigosa, segundo a experiência comum aceite pelo legislador», não sendo, nestes casos, de «exigir a prova da criação de uma concreta situação de perigo para determinados bens jurídicos, bastando fazer prova da acção típica.
III. O comportamento típico consiste em conduzir um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, sendo essa acção prolongada no tempo, cuja consumação, tendo uma certa duração, dependente da vontade do agente.
A acção típica ocorre logo que se inicia a actividade de condução, criando-se nesse momento um estado antijurídico que perdura até à sua cessação, o que, tal como sublinha Figueiredo Dias, constitui uma unidade típica de acção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Local Criminal do Funchal – J 1 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo:
(…)
Julgo procedente, por provada, a acusação e consequentemente decido condenar o arguido AA:
a) - pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, pelos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69º, nº. 1, al. a), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que perfaz um montante total de €600,00 (seiscentos euros).
b) - na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses;
c) - no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, nos termos do disposto do art.º 8.º n.º 9 do RCP, a reduzir a metade, em virtude da confissão (art.º 344.º, n.º 2, al. c) do CPP), e nos demais encargos sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.
(…)
Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
A) Vem o recurso interposto da sentença que determinou: “julgo procedente, por provada, a acusação e consequentemente decido condenar o arguido AA:
a) – pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, pelos artigos 292.º, n.º 1e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), o que perfaz um montante total de €600,00 (seiscentos) euros.
b) – na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses;
c) O pagamento das custas de processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, nos termos do disposto do artigo 8.º n.º 9 do RCP, a reduzir a metade, em virtude da confissão (artigo 344.º, n.º 2, al. c) do CPP), e nos demais encargos sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.”
B) Tal sentença, acrescentou o seguinte: “Notifique, sendo, o arguido, com a expressa advertência de que deverá proceder à entrega da respetiva carta/licença de condução na secretaria deste Tribunal ou no posto policial da sua área de residência, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência (cfr. artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal e 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Mais fica notificado o arguido, de que a condução de veículo motorizado durante o período de inibição, o fará incorrer na prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições (cfr. artigo 353.º do Código Penal).”
C) Sucede que, no caso concreto do recorrente, o qual está ciente desta proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses, verificar-se-ão nefastas, desproporcionais e iníquas consequências de tal sanção acessória de inibição;
D) As quais recairão na sua vida profissional e na dos utentes do Serviço de Urgência do Hospital onde exerce funções como médico, pelo que se torna imperioso impetrar ao Tribunal “a quo” que altere a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses – não sendo de entender revogá-la – suspendendo-a na sua execução, por igual ou superior período de tempo, o que “in casu”, com a devida vénia, se mostraria suficiente para satisfazer o desiderato sancionatório e de prevenção geral;
E) No seu caso concreto, constata-se que a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses, traduz-se, efetivamente numa sanção muito mais pesada e desproporcionada, quer para o interesse público (Utentes do Serviço de Urgência do Hospital de S. Sebastião em Santa Maria da Feira), quer financeiramente para o recorrente (porque mais pesada do que a pena de multa de €600,00), pois, sendo o recorrente médico no Serviço de Urgência do Hospital S. Sebastião (Santa Maria da Feira) que fica a sensivelmente 30 Km de sua casa (V. N. de Gaia), porque trabalha por turnos (de 12H e de 16H), em regime vulgarmente chamado de “médico tarefeiro”, que sofrem alguma variabilidade de semana para semana, e que não são compatíveis com a utilização de transportes públicos, corre o risco de perder mais de €6.200,00 (dez vezes mais do que o valor da pena principal) em três meses de inibição de conduzir, ou seja, o equivalente a três meses de vencimento;
F) Em último reduto, a decisão recorrida, na parte da execução da sanção acessória de inibição de condução por 3 meses, pode traduzir-se na impossibilidade de o recorrente trabalhar e auferir o seu salário, e pior do que isso, privar vários utentes do Serviço de Urgência do Hospital onde exerce funções, de serem atendidos e tratados por si durante 3 meses, com desproporcionais consequências para o interesse e erário públicos (muito superiores aos €600,00 de pena de multa);
G) Ora, em face de um acontecimento que foi, certamente um singular momento de irreflexão e irresponsabilidade que, profundamente o recorrente lamenta, só resta este recurso para pedir a esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que atenda e leve em linha de conta a importância absolutamente vital da licença de condução na vida profissional do recorrente, bem como dos nefastos resultados para o interesse público dos utentes do Serviço de Urgência do Hospital, considerando a alternativa de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de condução por igual período (3 meses) ou até por um maior período, se não puder ser revogada, pois o recorrente está em condições de assegurar que tal episódio é irrepetível;
H) Sendo consabido que, maioritariamente a jurisprudência não acolhe esta possibilidade da suspensão da execução da sanção acessória, vem também sendo reconhecido por alguma doutrina e jurisprudência que a determinação da medida concreta da sanção inibitória, deve efetuar-se segundo os critérios orientadores gerais contidos no artigo 71.º do Código Penal, não se esquecendo que a sua finalidade (diferentemente da pena principal que tem em vista a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) reside na censura da perigosidade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral;
I) E no caso vertente, pode constatar-se que da prova existente, e não obstante a escassa fundamentação da sentença, não foi provocado qualquer acidente, ninguém se feriu, ninguém foi concretamente prejudicado com a situação, está referido que o recorrente é médico e que precisa da licença de condução para ir trabalhar para o Serviço de Urgência do Hospital de S. Sebastião em Santa Maria da Feira (a cerca de 30 km da sua residência), a sua boa conduta anterior, a sua total colaboração com as autoridades policiais e judiciais, o desproporcional prejuízo para si e para o interesse público da sanção acessória, o que implicaria in casu, a ser feita verdadeira justiça e dada a especificidade e singularidade do caso, não ficasse inibido de conduzir;
J) Aliás neste sentido, o Acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 132/18.9PFBRR.L1-3, no qual foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Dr. Nuno Coelho;
K) Destarte, e sempre com o mui douto suprimento do Tribunal, em face da ostensiva desadequação e desproporcionalidade da sanção acessória, impetra como alternativa a suspensão da sua execução por igual período (3 meses) ou até por um maior período, sem prejuízo de a mesma ser revogada, o que se requer.
Nestes termos, requer seja dado provimento ao recurso, com o que farão, V. Exas. a acostumada justiça!
(…)
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo:
(…)
1- Por Sentença proferida no dia 04 de janeiro de 2024 foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €10,00 e, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses.
2- Compaginando a motivação e as conclusões, constata-se que inconformado com a decisão recorrida, pugna o recorrente, no seu pedido, pela suspensão da execução da pena acessória ou mesmo pela sua revogação.
3- Para tanto, o recorrente invoca a sua ausência de antecedentes criminais, a sua integração familiar, social e profissional, a confissão integral e sem reservas e o facto de necessitar da carta de condução para desenvolver a sua atividade profissional.
4- Sucede que, nenhuma das circunstâncias invocadas pelo recorrente tem aptidão para servir de fundamento legal às suas pretensões.
5- Com efeito, relativamente à revogação ou inaplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, importa considerar que é entendimento unânime na jurisprudência que nos casos de condução de veículo em estado de embriaguez a pena acessória surge estruturalmente ligada à prática do crime, pelo que, uma vez cometido, o tribunal não pode deixar de aplicar tal pena acessória.
6- Do mesmo modo, não é possível suspender a execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por falta de fundamento legal.
7- Por fim, importará dizer que o Tribunal recorrido teve em atenção todos os elementos disponíveis no processo que interessavam em sede de graduação da pena acessória, tendo aplicado o mínimo legal de 3 meses de proibição de conduzir veículos a motor, ou seja, o recorrente teve a melhor solução possível que a lei prevê para este caso.
(…)
***
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos art.ºs 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos art.ºs 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º, por remissão do art.º 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (art.º 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [art.º 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no art.º 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
O arguido, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- o Tribunal a quo valorou erradamente as exigências de prevenção na fixação da pena acessória que deve ser revogada ou suspensa, pois que a sua efectividade, impondo custos à vida profissional do arguido e aos utentes do hospital em que trabalha por não poder usar viatura nas deslocações, é desproporcional à gravidade do crime e circunstâncias ocorridos.
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Fundamentação
O Tribunal remeteu a matéria de facto para a acusação que, por seu lado, remeteu para o auto de ocorrência. Decorrendo assente no processo que:
No dia 03.01.2024, cerca das 21h12m, o arguido foi fiscalizado na Rotunda Madre Virgínia [Santo António, Funchal] quando conduzia a viatura automóvel ligeira de matrícula ..-..-FN e, submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, acusou uma taxa de 1,279g/litro;
Feita a contraprova, como requereu, acusou uma taxa de 1,213g/litro;
O arguido sabia que não podia conduzir após ingestão de bebidas alcoólicas, conhecendo as proibições legais, agindo deliberada, livre e conscientemente;
O arguido é médico, vive sozinho, trabalha como tarefeiro no hospital de Santa Maria da Feira, auferindo retribuição que oscila entre 2.500€ e 3.000€ mensais e não paga renda ou qualquer prestação bancária;
Não tem antecedentes criminais averbados no CRC;
Tem carta desde 16.04.2019 e nunca esteve inibido do seu uso;
Confessou integralmente e sem reservas os factos;
Mostra-se arrependido;
Não foi interveniente em qualquer acidente de viação;
Está integrado profissional, social e familiarmente.
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto:
Na confissão integral e sem reservas do arguido;
No auto de notícia de fls. 3 e talões de fls. 5 e 6;
Nas notificações ao arguido e certificado do IPQ de fls. 12;
No CRC do arguido junto.
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente.
Comecemos por atender aos elementos relevantes resultantes do processo.
O arguido foi fiscalizado a conduzir um veículo ligeiro na via pública com 1,24g/litro de álcool no sangue.
Confessou os factos e está integrado socialmente, não tendo antecedentes.
Vejamos.
São conhecidas, reconhecidas e aceites genericamente sem discussão as implicações altamente, violentamente diríamos, nocivas da condução de veículos sob a influência do álcool no nosso País.
Como diz Figueiredo Dias, [s]e bem que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez se consume logo que o agente, tendo uma TAS igual ou superior a 1.2 g/l, inicia a condução, não se esgota nesse momento. A consumação prolonga-se no tempo, persiste enquanto se mantiver o exercício da condução nesse estado. Por isso pode qualificar-se como um crime duradouro, que se caracteriza justamente por o estado antijurídico ter “uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas1.
Por outro lado, da análise do Cód. Estrada extrai-se que:
- no seu art.º 81º, nº 1, inserido na Secção XII, sob a epígrafe «Regras especiais de segurança», do Capítulo I do Título II do Código da Estrada (a que se referem as disposições seguintes sem menção ao diploma legal) proíbe a condução sob influência de álcool: «É proibido conduzir sob influência de álcool (…)».
- nos termos do nº 2 do citado normativo, considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico;
- e que a conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue» (nº 4).
De acordo com os citados normativos, acrescendo a esta lista, como é óbvio, o art.º 192º do Cód. Penal com a refª ao art.º 69º do mesmo diploma, também resulta que aos condutores impõe-se, ainda, o dever de se submeterem às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool (nº 1, al. a) do art.º 152º).
E nos termos do nº 1 do art.º 153º ainda se prevê que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
Resultando do nº 2 que [s]e o resultado do exame (…) for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente: a) Do resultado do exame; b) Das sanções legais decorrentes do resultado do exame (…).
E o resultado é considerado positivo quando o condutor se dever considerar sob influência de álcool, ou seja, quando a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l ou igual [o que constitui contra-ordenação grave – art.º 145º, nº 1, al. l)], ou quando a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l [o que constitui contra-ordenação muito grave – art.º 146º, al. j)], ou quando o condutor conduzir em estado de embriaguez, isto é, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l [o que constitui o crime p. e p. pelo art.º 292º do Cód. Penal].
Ora, o crime de condução em estado de embriaguez está previsto no art.º 292º, nº 1 do Cód. Penal, precisamente inscrito no Capítulo IV (Dos crimes contra a segurança das comunicações) do Título IV (Dos crimes contra a vida em sociedade).
O preceito em causa dispõe que quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Como tem repetidamente esclarecido a nossa jurisprudência, o bem jurídico protegido pela norma penal é, directamente, a segurança da circulação rodoviária.
No entanto, de forma indirecta ou mediata, se vise também proteger outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito dos veículos, já que a segurança no tráfego evita riscos e lesões para a vida ou integridade física2.
Na caracterização do crime, individualizam-se as seguintes características:
- é um crime de mera actividade;
- é um crime de perigo abstracto, pois que o perigo não é elemento do tipo legal, mas simplesmente motivo da proibição;
- o comportamento é tipificado conquanto assente na perigosidade da actividade para o bem jurídico, sem que seja necessária a sua comprovação no caso concreto;
- e o agente é punido independentemente de ter criado um perigo efectivo para o bem jurídico.
Como ainda refere Figueiredo Dias, temos como exemplo a condução de veículo em estado de embriaguez (art.º 292.º), em que o condutor embriagado é punido pelo facto de o estado em que se encontra constituir um perigo potencial para a segurança rodoviária3.
Atenta a natureza do bem jurídico protegido, o perigo é, como tal, presumido pelo legislador, ficando dispensada qualquer averiguação sobre a perigosidade [concreta] do facto.
O mesmo é dizer que existe uma presunção inilidível de perigo, já que o legislador, partindo do princípio de que certos factos constituem normalmente um perigo de lesão, pune-os como crime consumado, independentemente da averiguação de um perigo efectivo no caso concreto4.
Assim, no plano processual, basta a prova da acção típica, na medida em que, no crime de perigo abstracto é a própria acção que é em si mesma considerada perigosa, segundo a experiência comum aceite pelo legislador», não sendo, nestes casos, de «exigir a prova da criação de uma concreta situação de perigo para determinados bens jurídicos, bastando fazer prova da acção típica5.
O comportamento típico consiste em conduzir um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, sendo essa acção prolongada no tempo, cuja consumação, tendo uma certa duração, dependente da vontade do agente.
A acção típica ocorre logo que se inicia a actividade de condução, criando-se nesse momento um estado antijurídico que perdura até à sua cessação, o que, tal como sublinha Figueiredo Dias, constitui uma unidade típica de acção6.
Polémicas à parte relativas ao que deva considerar-se como a pluralidade de acções relevante, e que aqui não relevam, podemos ainda dizer que o tipo subjectivo exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades (art.º 14º do Cód. Penal), e consistente, como sabemos, no que aqui importa, na intenção do agente de conduzir o veículo sabendo ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.
Ora, no caso sub juditio, o arguido, de facto, tal como assumiu na confissão que fez, conduzia o automóvel ligeiro de passageiros na via pública com álcool no sangue em medida superior à prevista para a contraordenação grave, superior ainda à medida prevista para a contraordenação muito grave, portanto, sendo o seu comportamento suficientemente grave para constituir crime.
Numa intervenção na AR a respeito da sinistralidade com vinculações à problemática do consumo de álcool como factor determinante, a deputada Isabel Jorge7 referia que:
A problemática da sinistralidade rodoviária ainda é, embora todo o esforço desenvolvido, uma das grandes preocupações de todos os Estados no espaço de União Europeia.
Trata-se de um problema de dimensão internacional que tem mantido os Estados em alerta para experiências e modelos que, além-fronteiras, se vêm implementando e testando com mais ou menos sucesso.
Já no longínquo mês de Abril de 1926 foi assinado em Paris uma convenção que visava estabelecer alguma uniformidade ao nível das regras e circulação rodoviária de forma a facilitar o turismo internacional, adoptando uma sinalética comum.
Actualmente é visível o empenho, ao nível da União, em tentar criar pontos de convergência em relação às políticas de segurança rodoviária prosseguidas pelos Estados Membros.
Por manifesta escassez de tempo não nos poderemos debruçar sobre um estudo comparativo da sinistralidade, suas causas e consequências.
Iremos, nesta comunicação, analisar uma das vertentes da sinistralidade rodoviária cuja expressão ainda é muito significativa e cuja consciência da ilicitude continua a não estar presente nos infractores.
Referimo-nos à condução sob o efeito do álcool.
Com efeito, a prática deste crime, no nosso País, ainda não foi interiorizada pelos condutores que continuam a insistir numa conduta ilícita.
Como vem sendo divulgado nos meios de comunicação social, de acordo com alguns dados disponíveis nos respectivos fóruns, estima-se que no conjunto da União Europeia, 25% dos automobilistas mortos, apresentem taxas de alcoolemia superiores ao limite legal aceite em cada país.
Atenta a manifesta gravidade do comportamento e restante factualidade apurada, impõe-se concluir que o Tribunal a quo fez uma correcta integração tópica da conduta do arguido, ponderando aquela gravidade, sopesada com os demais factores a que estava vinculada a sua apreciação, desde logo, os decorrentes dos art.ºs 40º, 70º e 71º, todos do Cód. Penal.
Atentemos, ainda.
O facto de o arguido ter confessado integralmente não permite dele retirar grande valia, uma vez que, como consta do auto de notícia, as Autoridades fiscalizaram o arguido em flagrante, na condução efectiva da viatura, sendo de imediato sujeito ao teste de alcoolemia.
Tudo isto visto, vejamos a opção da Exma. Juiz a quo.
A pena aplicada ao arguido foi de multa, fixada em 60 dias de multa, à razão diária de 10€, atentos os rendimentos do mesmo, e a pena acessória de proibição de condução foi fixada n mínimo legalmente previsto.
A moldura penal prevista na lei para o referido crime varia entre multa [até 120 dias] e prisão [até um ano].
Muito embora o arguido não discuta a escolha pela pena de multa, o que bem se compreende, e também não discuta o quantitativo dos dias de multa fixado ou a razão diária deles, o que também se compreende bem, importa atender a que o Tribunal a quo, cumprindo a determinação dos art.ºs 40º, nº 1 e 2 e 47º do Cód. Penal, fixou a pena de multa na metade inferior da moldura abstracta prevista para este tipo de crime.
Conforme ensina Figueiredo Dias, a fixação da pena deverá obedecer ao critério geral consignado no artigo 71º e ao critério especial previsto no artigo 77º, nº1, ambos do Cód. Penal, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique 8, relevando, na avaliação da personalidade do agente.
Ponderando globalmente as circunstâncias atinentes ao crime em causa (cfr. Art.º 77º nº1, 2ª parte) como acima se deixou, conclui-se que a pena fixada na primeira instância é a adequada para sancionar o comportamento arguido.
O arguido não discute, como se disse e aliás se compreende, a medida dessa pena, mas tão só a medida e fixação da pena acessória de proibição de condução.
Sendo esta pena a fixar entre o mínimo de 3 meses e o máximo de 3 anos [art.º 69º, nº 1, al. b) do citado Cód. Penal, a medida fixada de 3 meses corresponde, como tal, ao mínimo legalmente admitido.
Importa considerar também a proteção dos bens jurídicos violados, a proteção da própria sociedade em relação ao agente do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente este último, se possa esperar que o mesmo não venha a adotar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa).
Na proteção dos bens jurídicos, será ainda de destacar que a reação penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, inequivocamente, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma (função de prevenção geral).
Da ponderação destes elementos, decorre que, por vezes, sobrepondo-se à função ressocializadora, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático.
Concretizando, o crime praticado pelo arguido é objetivamente grave, suscita grande censura e repúdio, sendo elevadas as exigências de prevenção geral.
E ainda que, como bem refere o Tribunal a quo, as de prevenção especial se mostrem atenuadas pela inserção social do arguido e ausência de antecedentes, é isso mesmo que justifica aqui a fixação da pena acessória no mínimo legal.
A graduação da medida concreta da pena acessória é, como tal, efectuada em função dos mesmos factores que determinam a graduação da pena principal, ou seja, nos termos do disposto no art.º 71 do Cód. Penal, com a excepção de que finalidade a atingir é mais limitada, dado que a sanção em causa tem apenas em vista prevenir a perigosidade do agente: Assim sendo, a determinação da medida da pena acessória (período de tempo de inibição de condução) deve ser concretizada tendo em vista apenas uma das finalidades subjacentes às penas em geral (art.º 40 nº 1 do Código Penal) qual seja a de protecção dos bens jurídicos e já não também a da reintegração do agente na sociedade.9
O facto de o recorrente necessitar da carta para exercer a sua profissão não invalida qualquer dos critérios ponderados pelo Tribunal a quo, já que, como bem se compreende, o condutor que necessita de carta de condução para exercer a sua profissão, tem que ter uma maior consciência da perigosidade que consiste em conduzir sob os efeitos de álcool.
Ademais, sendo médico.
Há exigências que decorrem das nossas características pessoais ou de vida: assim como mal se compreende [para usar de soft words] que um juiz cometa ilegalidades, mal se compreende que um médico incorra em comportamentos bastas vezes associados a males graves de saúde e perdas de vida.
Por isso, também aquela ponderação se faz com base na violação das obrigações impostas a este concreto cidadão.
E a aplicação da pena acessória é obrigatória para o Tribunal. Decorre de imposição legal e não está ao abrigo do poder discricionário do Tribunal.
Assim, também a impossibilidade da sua suspensão é uma decorrência do regime que lhe foi fixado [como, aliás, decorre do acórdão citado pelo próprio arguido, vendo-se Ac. TRL de 11.12.2018, desta mesma secção, e disponível em www.dgsi.pt\trl..], distinguindo-a da inibição de conduzir prevista nas leis estradais.
De facto, como esclarecem os Tribunais regularmente:
Esta pena, acessória, enquanto decorrência da prática do crime de condução em estado de embriaguez (art.º 69 n.º 1 al.ª a) do CP), não se confunde com a inibição de conduzir, enquanto decorrência da prática de uma contraordenação (grave ou muito grave) prevista no Código da Estrada; trata-se de realidades diferentes, que assentam em pressupostos diferentes.
Já antes do assento n.º 5/99, DR, I Série – A, de 20.07.99 – que fixou jurisprudência no sentido de que “o agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art.º 292 do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no art.º 69 n.º 1 al.ª a) do Código Penal” – era jurisprudência dominante que, em caso de condenação pelo crime p. e p. pelo art.º 292 do CP, deveria aplicar-se ao agente a pena acessória prevista no art.º 69 n.º 1 al.ª a) do CP e não a sanção de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada (por todos podem ver-se o acórdão desta Relação de 19.09.00, Col. Jur., Ano XXV, t. IV, 282, os acórdãos da RC de 14.06.00, Col. Jur., Ano XXV, t. III, 53, e de 29.11.00, Col. Jur., Ano XXV, t. V, 49 e 50, e da RP de 29.11.00, Col. Jur., Ano XXV, t. V, 229).
A Lei 77/2001, de 13.07, com a alteração introduzida ao art.º 69 do CP, veio afastar qualquer dúvida quanto à natureza da sanção acessória prevista naquele preceito como verdadeira pena acessória, distinta da pena principal, ou seja, como uma censura adicional pelo crime cometido e destinada a prevenir a perigosidade do agente que praticou tal crime (veja-se a Ata n.º 8 relativa à Reunião da Comissão Revisora do Código Penal ocorrida em 29.05.89).
E enquanto pena acessória – natureza que atualmente parece indiscutível (o que decorre do art.º 69 do CP e da sua inserção sistemática no Capítulo III do Título III, este sob a epígrafe “Das Consequências Jurídicas do Facto” e aquele sob a epígrafe de “Penas Acessórias e Efeitos das Penas”) – é-lhe inaplicável o instituto da suspensão da pena (que apenas está previsto para a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, como se vê do art.º 50 do CP), pois a suspensão da execução da mesma é contrária aos fins que com a mesma se visam atingir (esta é a orientação que temos seguido e que vem sendo seguida pela jurisprudência desta Relação, que temos como pacífica, podendo ver-se ainda neste sentido os acórdãos da RG de 10.01.2005, Proc. 1943/04.1, e da RC de 16.11.2011, Proc. 87/11.0GTCTB.C1, ambos in www.dgsi.pt, e Germano Marques da Silva, in Crimes Rodoviários, 1996, 62).
Carece, assim, de fundamento legal a suspensão da pena acessória de proibição de conduzir em que o arguido foi condenado, seja em face do regime de suspensão previsto no Código Penal (art.º 50), privativo da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, seja em face do regime da suspensão da inibição de conduzir previsto no Código da Estrada, privativo das contraordenações (graves) aí previstas.10
Do exposto resultam as duas conclusões que respondem à pretensão do recorrente.
Primeira, que a pena acessória é de aplicação obrigatória, decorrendo isso do disposto no art.º 69º do Cód. Penal.
Segunda, que essa pena é insusceptível de qualquer suspensão.
Mas também decorre do exposto que, tendo a mesma pena sido fixada pelo Tribunal a quo n mínimo previsto na lei, carece também de fundamento o pressuposto entendimento de que podia a sua medida ter sido fixada abaixo do que fez aquele Tribunal.
Finalmente, importa atender a que foi com esta pena acessória de proibição de conduzir que o legislador pretendeu fundamentalmente atingir o seu objectivo de redução da sinistralidade rodoviária provocada pela condução sob o efeito do álcool, sendo consabida a eficácia preventiva da pena acessória em causa.
Razões pelas quais, improcedem na totalidade as pretensões recursivas, devendo por isso manter-se intocada a decisão recorrida.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto por AA, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s e demais encargos legais.

Lisboa, 08 de Maio de 2024
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Margarida Ramos de Almeida
M. Elisa Marques
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1. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 296.
2. Paula Ribeiro de Faria - Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 1093. Também Paulo Pinto de Albuquerque - Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p. 1025.
3. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2007, p. 309.
4. Germano Marques da Silva - Crimes rodoviários: pena acessória e medidas de segurança, Universidade Católica Editora, 1996, p. 14.
5. Idem.
6. Idem, p. 314 e 984.
7. www.parlamento.pt\intervenção Isabel Jorge.
8. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Coimbra - 1993, p. 290 ss.
9. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, recurso nº 187/97 de 21.01.2015 – www.dgsi.pt\trc..
10. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.06.2016 – www.dgsi.pt\tre..