Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO GONÇALVES | ||
Descritores: | NULIDADES ACUSAÇÃO DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/06/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Texto Parcial: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGADO PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1.A dedução da acusação sem observância dos requisitos legais do nº 3 do artº 283º do CPP constitui nulidade dependente de arguição (sanável) que como tal segue os termos dos artigos 120º e 121º do CPP, devendo assim a sua arguição fazer-se perante o próprio magistrado que deduziu a acusação, cabendo reclamação hierárquica da decisão. 2.Estes mesmos requisitos, cuja inobservância caracteriza a nulidade da acusação, no caso de não ter sido requerida a instrução, podem ser apreciados oficiosamente pelo juiz de julgamento nos termos previstos no nº 3 do artº 311º do CPP, exercendo deste modo o juiz de julgamento o controlo jurisdicional dos vícios estruturais da acusação. 3.No caso de a nulidade da acusação ter sido arguida em Instrução, deve o Juiz de Instrução proferir despacho nos termos do artº 308º do CPP (de pronúncia ou não pronúncia). A declaração formal de nulidade da acusação nesta fase não atingiria os fins da Instrução, nem o Juiz de Instrução, declarando nula a acusação, pode devolver o processo ao Ministério Público para sanar o vício ou reformular a acusação declarada nula, o que seria um atropelo à estrutura acusatória do processo penal, além de gorar as expectativas do arguido. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa. I.RELATÓRIO: 1.No Processo de Instrução com o número supra identificado, a correr termos na Comarca dos Açores - Ponta Delgada - Instrução Central - Secção de Instrução Criminal -J1, os arguidos P.... e I...., não se conformando com a acusação pública contra si deduzida, imputando-lhes a prática de um crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado morte, p. e p. pelos artigos 277º, nº 1, al. a) e 285º do Código Penal, vieram requerer a abertura de instrução peticionando a declaração de nulidade da acusação e consequentemente a sua não pronúncia, e, realizada a instrução foi proferida, em 22.09.2015, decisão instrutória que declarou nula a acusação, em conformidade com os artigos 120º, nº 1, 122º e 283º, nº 3, al. b), todos do CPP, anulando todos os actos posteriores à mesma e ordenando a devolução dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes. 2.Inconformado com esta decisão os Arguidos vieram interpor recurso, cuja motivação termina com a formulação das seguintes conclusões (transcrição): “1.Ao fim de 36 meses de duração do inquérito criminal, o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra vários arguidos, nomeadamente os ora recorrentes, pela alegada prática de um crime de infracção das regras de construção, previsto e punido nos artigos 277º, nº 1, alínea a), do Código Penal, agravado pelo resultado morte, artigo 285º do mesmo diploma. 2.Não obstante a inexplicável excessiva duração do inquérito o MP deduziu uma acusação contra vários arguidos, entre eles os ora recorrentes que foi, e bem, julgada nula, por violação do disposto no artigo 308º do CPP, pois, 3.a referida acusação - composta de 23 artigos -era absolutamente vaga, genérica e inespecificada na medida em que não determinava, de forma individualizada por cada arguido, quais os concretos factos, passíveis de constituir um crime, foram efectivamente praticados pelos arguidos nem fazia a sua respectiva e subsequente sustentada subsunção a uma norma legal penal. 4.A acusação era meramente conclusiva, não continha qualquer facto que fundamente a aplicação aos arguidos da aplicação de uma pena nem qualquer facto, balizado no tempo, modo e lugar, que consubstancie a prática do crime de que os arguidos vêm acusados. 5.A acusação carecia dos necessários e indispensáveis elementos objectivos do crime e era manifestamente insuficiente, porque não continha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. 6.Por conseguinte, o Meritíssimo JIC decidiu, e bem, julgar procedente a invocada nulidade (daí que não esteja agora em causa o acerto da decisão na parte em que declarou a nulidade da acusação). 7.Ou seja, a decisão instrutória julgou os factos da acusação como “irrelevantes do ponto de vista penal (...) em sentido estrito (desprovidos de coloração penal) seja porque (...) são apresentados de tal forma genérica e vaga que tornam imprestáveis e de resto vedam aos arguidos qualquer defesa consequente (artigo 32º, nº 1 da CRP)” “Torna a acusação insondável pela ausência de concretude de imputação fáctica relevante do âmbito de normas penais pertinentes”. 8.Contudo, e é nesta concreta parte que versa o presente recurso, na decisão instrutória de juiz de instrução foi determinado, como consequência de ter jugado nula “(...) em conformidade com os artigos 121º, nº1, 122º e 283º, b) do CPP, a “ordenação da devolução dos autos ao MP para os efeitos que tiver por conveniente” (..) ao invés da emissão de despacho de não pronúncia dos arguidos com o consequente arquivamento dos autos. 9.Esta decisão de ordenação da devolução dos autos ao MP para os efeitos que tiver por conveniente –como o efeito e consequência do julgamento da nulidade da acusação –viola o disposto no artº 308º do CPP. 10.De acordo com a mencionada norma legal, concluída a fase instrutória, como foi o presente caso, possui o JIC apenas duas opções: c)entende estarem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e profere despacho de pronúncia; caso contrário; d)profere despacho de não pronúncia. 11.Não existe, pois, uma terceira alternativa que permita ao juiz de instrução decidir pela remessa do processo ao Ministério Público para reformulação da Acusação ou, tão pouco, “para os efeitos que tiver por convenientes”. 12.Ou seja, não pode o juiz, no final da fase instrutória, ordenar, como efeito e consequência do reconhecimento da nulidade da acusação (artigos 102º, nº 1,122º e 283º b) do CPP) a remessa do respectivo processo ao MP para que com ele faça o que bem entender –nomeadamente arquivar ou voltar a acusar – e no prazo e nos termos que entender. 13.Portanto, ao decidir como decidiu, o juiz violou o disposto no artº 308º do CPP. 14.Mais, neste caso em particular, esta questão é ainda mais líquida por duas razões: c)A primeira porque não se tratava da verificação de uma qualquer nulidade facilmente sanável e em que é possível a sua repetição, como, por exemplo, a falta da data e assinatura, cfr. al. g) do nº 3 do artº 283º, mas sim o reconhecimento de que acusação não contém os elementos objectivos do crime e que por ser vaga, inespecificada e genérica, é manifestamente insuficiente, artigos 102º, 1, 122º e 283º, b) do CPP). d)Segundo, porque o respectivo processo de inquérito já durou 36 meses –foi instaurado em 22 de Março de 2012 e os arguidos só foram notificados de que contra eles foi deduzida acusação em 22/04/2015. 15.Ou seja, a fase de inquérito dos presentes autos durou mais de 36 meses, quando, em regras, o MP deve encerrar o inquérito no prazo de 8 meses, elevado para 16 meses nos casos de excepcional complexidade, cfr. artigo 276º, nº 1 e 3, do CPP. 16.No presente caso, o inquérito não foi qualificado como de excepcional complexidade em, não obstante ter ocorrido a violação dos prazos previstos no artigo 276º do CPP, o MP não comunicou as razões que explicaram o atraso e o período necessário para o concluir. 17.O MP teve, portanto, tempo mais que suficiente –o dobro do máximo legal extraordinário permitido , para apurar os factos e deduzir, convenientemente, a respectiva acusação. 18.Contudo, e não obstante a inexplicável excessiva duração do inquérito e salvo o máximo respeito, o MP deduziu uma acusação nula, e assim até já foi, e bem, julgada, por os factos nela descritos não preencherem os elementos objectivos do crime de que os arguidos vinham acusados e por a acusação não conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena, tudo conforme oportunamente alegado pelos arguidos e reconhecido pelo juiz de instrução criminal. 19.Assim, e atento ao tempo de inquérito que o MP já teve direito (36 meses) sem ter conseguido para apurar os factos e deduzir, convenientemente, a respectiva acusação, a remessa do processo novamente ao MP, é, por um lado, desde logo e acima de tudo, ilegal, por violação do disposto no artigo 308º do CPP. 20.Por outro lado, manifestamente inútil, na medida em que o MP já teve mais do dobro do prazo máximo legal extraordinário para investigar e deduzir acusação sem que o tenha conseguido fazer, e 21.ainda por outro lado, é manifestamente abusiva, desproporcional, lesiva dos mais elementares direitos de qualquer cidadão/arguido e ofensivo da sua dignidade, pois, 22.permite quase perpetuar o processo de inquérito e o estatuto processual de arguido e manter, sobre este, uma névoa de suspeição, no caso infundada, da prática de um crime- que, como vimos, inexiste, não foi praticado- e de fazer correr contra si um inquérito com possibilidade, teoricamente eminente mas indeterminável e quase interminável, de ser deduzida uma nova acusação sobre o mesmo objecto. 23.É interessante destacar que, de acordo com o estatuído no artigo 121º, nº 1, alínea b), do CP a interrupção da prescrição do procedimento criminal ocorre com a notificação da acusação. 24.O regime da prescrição está previsto legalmente e justifica-se, não para favorecer o agente, mas para prevenir uma perpetuidade do procedimento criminal na medida em que, e como é natural, a intervenção penal vai-se tornando desnecessária, impossível ou inconveniente com o passar do tempo. 25.Além disto, a decisão do JIC de ordenar a devolução dos autos ao MP tem como consequência o arguido ficar refém e a reboque da actuação sem limite e discricionária daquele, que, assim, estaria legitimado, numa actuação de sucessivas tentativas/erro, a formular múltiplas e infindáveis acusações, manifestamente nulas por não conter, sequer, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma determinada pena. 26.A consequência da decisão do JIC equivale, assim, a conferir uma prerrogativa/uma carta branca ao Ministério Público que não tem paralelo quanto aos de mais sujeitos processuais, aos quais, em posição similar, não é concedida a faculdade de deduzir “nova acusação”. 27.Veja-se, a mero título de exemplo, o caso do assistente quando, em caso de crime de natureza pública e semi-pública, na sequência do despacho de arquivamento por parte do MP, vê o seu requerimento de abertura de instrução por si apresentado indeferido, sem que haja lugar a prévio convite ao aperfeiçoamento, designadamente por falta de narração dos factos integrantes do crime imputado ao arguido. 28.Por conseguinte, terminada a fase de inquérito e concluindo-se, de forma manifesta –como resulta dos elementos do processo e do conteúdo da acusação entretanto declarada nula- de que não foi praticado qualquer crime, que não há qualquer facto que fundamente a aplicação aos arguidos da aplicação de uma pena nem qualquer facto, balizado no tempo, modo e lugar, que consubstancie a prática do crime de que os arguidos vêm acusados, não deveria sequer ter sido deduzida acusação. 29.Mas tendo sido deduzida, talvez pelas razões infra invocadas, então a decisão instrutória, ao decidir, como decidiu e bem, pelo julgamento da nulidade da acusação em conformidade com o disposto nos artigos 120º, nº 1, 122º e 283º, al. b) do CPP então teria de ter determinado a não pronúncia dos arguidos Pedro Furtado e Isabel Furtado e consequente arquivamento dos autos, nos termos do artº 308º, nº 1, in fine, do CPP, conforme, aliás, foi oportunamente requerido pelos autores no seu requerimento de abertura de instrução, cfr. ponto 49º. 30.A decisão pelo arquivamento dos autos é a única consequência legalmente admissível no caso de julgamento da nulidade de acusação, por violação do disposto no artigo 283º, nº 3 do CPP, pois é a única que se mostra em conformidade com os elementos literal e sistemático da lei (artº 9º do CC). 31.Só assim se respeita o teor dos arts. 283º, nº 3 e 308º, do CPP, e só assim se compatibiliza o regime da nulidade da acusação com o disposto com nos artigos 303º e 359º, do CPP. Mais, esta é a única solução compatível com o princípio do acusatório e do contraditório, previsto no artigo 32º da CRP. 32.No entanto, o JIC, no final da instrução e como consequência do julgamento da nulidade do despacho de acusação, a ordenação da devolução dos autos ao MP para os efeitos que tiver por convenientes. 33.Portanto, a decisão instrutória do Juiz de Instrução Criminal que na parte em que determinou a ordenação da devolução dos autos ao MP para os efeitos que tiver por conveniente violam disposto no artº 308º do CPP. 34.Acresce que, a interpretação dos artigos 283º, nº 3 e 308º do CPP no sentido de, em sede de instrução, ser admissível a prolação de decisão instrutória que ordene a remessa dos autos ao MP para reformulação da acusação em caso de verificação das nulidades vertidas nas als. a) a c) do artº 283º, nº 3 do CPP é manifestamente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18º, nº 2 e nº 3 e 32º, nº 5 do CRP. 35.Nesse sentido decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30.01.2007, Proc. 10221/2006-5 (...) “Não pode, naquele caso, o juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula”. 36.Mais, não se vê motivo plausível para que transitando o processo directamente da fase de inquérito para a fase de julgamento, o juiz, por ocasião do artigo 311º do CPP, detectando um dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do nº 3 do citado preceito -equivalentes às que configuram as nulidades contempladas nas als. a), b) e c) do nº 3 do artº 283º do CPP –deva rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação e constatado idêntico vício na fase de instrução a consequência a retirar não seja a de não pronúncia, não obstante por razões que se não prendem com o mérito. 37.Assim, verificando-se as aludidas nulidades da acusação, deveria ter sido proferido despacho de não pronúncia dos arguidos com o consequente arquivamento dos autos. 38.Pelo que, decidindo, como decidiu o JIC, pela remessa dos autos ao MP, a decisão instrutória violou o disposto no artigo 308º do CPP. (...)”. 3.O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito devolutivo (cfr. despacho de fls. 808). 4.O Ministério Público veio responder ao recurso, pronunciando-se pela manutenção do despacho recorrido, considerando, em síntese, que o JIC ao ordenar a devolução dos autos ao MP não violou o disposto no artº 308º, nº 1, in fine, uma vez que a apreciação do mérito da causa ficou, desde logo, ferida de morte pela existência da referida nulidade. O Mº JIC o que fez foi apreciar a nulidade invocada pelos recorrentes, dando-lhes razão, cumprindo criteriosamente o disposto no nº 3 do artº 308º do CPP, isto é, antes de proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia decidiu das nulidades invocadas. A decisão sobre a existência de uma nulidade processual, é uma questão prévia que tem de ser proferida antes da apreciação sobre o mérito da causa. Refere, por último, que a decisão instrutória ao dar provimento no que se refere à nulidade invocada pelos recorrentes leva a que os recorrentes não tenham interesse em agir, nos termos do artº 401º, nº 2 do CPP, pelo que o presente recurso deveria ter sido rejeitado e, não o tendo sido deve ser objecto de apreciação. Termos em que, não se verificando a violação do disposto no artº 308º, nº 1 do CPP, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a mesma nos seus termos. 5.Os assistentes não vieram responder ao recurso. 6.Neste Tribunal, a Exmª Procuradora Geral Adjunta na oportunidade do artº 416º, nº 1 do CPP emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, subscrevendo a argumentação dos recorrentes. 7.Foi dado cumprimento ao disposto no artº 417º, nº 2, do CPP, sem que tenha sido oferecida qualquer reposta. 8.Colhidos os Vistos legais, procedeu-se á Conferência. * II-FUNDAMENTAÇÃO. 1.Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, assim se definindo as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[1]. Atentando nas conclusões da motivação, o recurso coloca as seguintes questões: -Questão prévia: da inadmissibilidade do recurso por falta de interesse em agir dos arguidos (questão suscitada pelo MP). E sendo o recurso admissível: -Teria o juiz de instrução, depois de declarar nula a acusação pública manifestamente insuficiente por falta de concretização dos elementos objectivos do crime, violado o disposto no artº 308º, nº 1 do CPP, ao ordenar a remessa dos autos ao MP para os efeitos tidos por convenientes? ou, -Deveria antes o juiz de instrução, declarada nula a acusação pública por manifestamente insuficiente, ter proferido despacho de não pronúncia com o consequente arquivamento dos autos? Ou, ainda, Conforme defende o MP, a alegada nulidade da acusação constitui questão prévia cuja procedência impede o conhecimento do mérito da acusação, e por isso, o JIC ao remeter os autos ao MP não violou o artº 308º do CPP, não podendo deixar de ordenar a remessa dos autos ao MP para os fins tidos por convenientes? 2.Apreciando. 2.1.Da decisão recorrida. A decisão instrutória sob recurso tem o seguinte teor que aqui se transcreve na parte relevante para o recurso: “(…). 3.quanto às nulidades invocadas por I... e P.... (...) cabendo agora apreciar se estes factos (atinentes a estes arguidos) são suficientes e relevantes à luz do crime imputado ou de outro qualquer. (...)....sabido como é que o legislador usa no artigo 277º, nº 1, al. a), do CP, uma técnica de remissão externa que a torna uma “norma penal em branco” ou, mais rigorosamente, “com espaços em branco”. A acusação nesse plano indica expressamente como violados (...). (...) 5.3.Começando pelo quadro normativo a cuja luz, na óptica do MP, seriam relevantes os comportamentos dos arguidos, a imediata apreciação que as normas indicadas suscitam é a da total incongruência delas com qualquer das condutas imputadas (sem curar para já dos termos dessa imputação) e, à cabeça, até com o tipo de crime presuntivamente preenchido. Na verdade, nenhuma delas comporta regras legais, regulamentares ou técnicas atinentes à execução dos trabalhos em causa como sem mais se vê da descrição do conteúdo respectivo acima feito. O mais que se pode dizer é que remetem algumas delas e nem todas para regras técnicas (...). A acusação limita-se neste plano ao um quase caótico (e em todo o caso insondável) alinhamento de regras atinentes à disciplina do processo de licenciamento de obras, e seus condicionalismos, o que evidentemente não é o preenchimento dos “espaços em branco” constantes do artigo 277º, nº 1, a) do CP. A temeridade foi ao ponto de citar-se uma norma que classifica como “espaço natural” (e, portanto, de “elevado valor ecológico e paisagístico”, deduz-se) um talude de um lote para construção, por ter um declive superior a 30%! Pior não seria considerar “espaço natural” a fachada de um arranha-céus com inclinação abissal!... O que de qualquer modo nada adiantaria ao conhecimento das regras técnicas para nele construir. E estas, fossem estritamente técnicas, positivadas em manuais ou emergentes de usos correntes, ou fossem legais ou regulamentares, sempre teriam de ser indicadas com precisão. A indicação de normas manifestamente alienígenas ao âmbito da norma penal invocada só pode ser entendida como relevando desconhecimento do que está ou não em causa neste processo. Naturalmente, o tribunal não estaria em sede de instrução impedido de averiguar por si as normas pertinentes em relação à factualidade descrita na acusação e suprir mesmo, a seu tempo, a deficiência de qualificação jurídica. (...). E se aqui o foco é apenas para enfatizar que a acusação em pouco ou nada ajuda o tribunal à delimitação dos factos por referência a certas normas. Terá este, pois, de “trabalhar sem rede” e indagar se os factos identificados como imputados aos arguidos Isabel Furtado e Pedro Furtado integram o ilícito em causa, e à luz de que normas técnicas, ou qualquer outro. 5.4.Passando agora à apreciação dos ditos factos posso logo qualifica-los como irrelevantes do ponto de vista penal. Seja porque o são em sentido estrito (desprovidos de coloração penal), seja porque podendo esconder alguns outros com significado, são apresentados de tal forma genérica e vaga que se tornam imprestáveis e de resto vedam aos arguidos qualquer defesa consequente (artigo 32º, nº 1 da CRP). Na primeira categoria estão inequivocamente: a) o serem os arguidos arquitectos; b) o terem elaborado um projecto de arquitectura com declaração de o terreno não ter condicionantes especiais; c) o não terem projectado uma estrutura de suporte do talude ou de escoamento de águas pluviais. Simplesmente não se alcança qual a ligação causal desses factos com o iter da derrocada e subsequente morte de uma criança. O serem arquitectos e portanto fazerem projectos de arquitectura seria eventualmente relevante diante do que dispõe a alínea a) do nº 1 do artigo 277º do CP (que fala de “planeamento”) se e na medida em o que adiante fizeram ou deixaram de fazer pudesse caracterizar-se de regras próprias dessa actividade. Sucede que, de acordo com a própria acusação, não foram eles quem projectou o muro em questão e nem se vê que o tivessem que projectar uma vez que, também nos termos da própria acusação foi um terceiro que o projectou e enfim até teria construído efectivamente de forma divergente do projectado; e inversamente, de onde emergiria o suposto dever de os arguidos projectarem um muro de suporte (putativa fonte de dever que é silenciada na acusação) tendo em conta que a edificação era a levantar num lote de um loteamento para o efeito aprovado pelas autoridades camarárias (e para mais quando, embora não conste isso expressamente da acusação mas dela se intuindo – artigo 16º e 17º -o talude a suportar era do domínio público). Dir-se-á de resto que, tivesse o acusador reflectido no ponto, dificilmente deixaria de concluir que se o lote estava aprovado para construção de um moradia, os arquitectos que a projectaram não teriam segundo todo a verosimilhança que nisso cuidar de previsão de muros de suporte de uma talude aliás alheio ao lote. Pelo contrário, o que em boa verdade mandaria a lógica concluir, sempre à luz da própria acusação, é que pudessem confiar em que as autoridades públicas antes de aprovarem o loteamento num tal local se tivessem assegurado das condições da adequação do terreno para construção nos lotes. É essa lição do chamado princípio da confiança que vigora no âmbito de procedimentos complexos que envolvem vários decisores actuando em cadeia e em relação. É já fútil dizer que a aprovação municipal mesmo do projecto elaborado pelos arguidos só reforça este argumento. 5.5.Naturalmente, nada disto afastaria a responsabilidade dos arguidos se na concreta execução dos trabalhos se deparassem com concretas evidências que reclamassem uma sua actuação em conformidade com esta ou aquela norma legal, regulamentar ou técnica (nunca indicadas, recorde-se) mas o omitissem. Neste plano teria potencial relevo, como se disse, o facto de os arguidos saberem (admitindo que com efeito soubessem) que o terreno era instável, etc elevada em relação à casa contígua, que não havia escoamento de águas pluviais e que estas corriam para o logradouro do prédio, que o proprietário daquela outra casa reclamara junto da autarquia pelos perigos e o mais que se refere supra 5.1 e), tudo à luz daquele outro de que “acompanharam” a execução do muro. Porém, não se discutindo aqui se fizeram ou não esse “acompanhamento” (repisa-se que para o efeito da indagação da invocada nulidade o que cumpre é uma análise da acusação qua tale), questão que poderia ser tema de prova, não pode é contornar-se que afirmá-lo (ao acompanhamento) é em boas contas nada dizer! Em nenhum ponto da acusação cuida de concretizar, fosse como fosse, em que se teria traduzido esse acompanhamento. Que instruções os arguidos deram ou não na construção do muro (aliás projectado por outrem), fosse sobre os materiais a empregar, as técnicas a usar, o modo de o dispor, o local onde implantá-lo e um largo etc, tudo fica fora dela. Breve, a indicação de nenhuma parte daquele universo possível de actos e/ou omissões concretos pode ser suprida pela mera aposição da etiqueta “acompanhamento”, vaguidade que não apenas não permitiria aos arguidos uma defesa cabal (como já se disse), como ainda, o que para aqui imediatamente importa, torna a acusação insondável pela ausência de concretude de imputação fáctica relevante do âmbito de normas penais pertinentes. Escusado será dizer que não é apondo no final da acusação a fórmula crónica da imputação subjectiva (“agiram deliberada, livre e conscientemente” e etc) que, de jeito como que alquímico, se supre a falta dos elementos objectivos. 6.Já se viu, pois, que no que tange ao postulado crime de infracção de regras de construção agravado pelo resultado morte (crime doloso com resultado negligente) a imputação fáctica quanto aos arguidos I... e P... constante da própria acusação é insuficiente, implicando isso a arguida nulidade, nos termos do artigo 283º, nº 3, b) do CPP. Porventura, outra linha de raciocínio sugeriria indagar da aproveitabilidade da acusação com uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, para isso só se mantendo no limite do cogitável o crime de homicídio negligente, punido pelo artigo 137º do CP. Tratar-se-ia de alteração consentida pelo artigo 303º, nº 5 do CPP, na medida em que se cingisse a esse aspecto jurídico. Porém, como se sabe, a imputação fáctica de um ilícito negligente é não raro bem mais complexa e filigrânica do que a de um ilícito doloso: se neste basta a linear ligação psicológica do agente ao facto, naquele é precisamente a incongruência dessa ligação a reclamar maiores cuidados –não apenas o que foi levado a efeito pelo agente, mas ainda o que ele deveria ter levado a efeito e o conhecimento ou cognoscibilidade disso. Pois bem, em concreto a insuficiência da acusação seria aqui ainda mais patente, faltando nela o que quer que seja que respondesse àqueles requisitos. 7.Por fim, mesmo admitindo, para efeitos de raciocínio, que no processo houvessem sido recolhidos indícios suficientes de factos que faltam (em abundância) na acusação, estaria fora das possibilidades do tribunal fazê-los entrar em eventual pronúncia, hipótese em que irremediavelmente a decisão respectiva incorreria na nulidade prevista pelo artigo 309º, nº 1 do CPP. Com efeito estaria aí o caso mais radical de uma alteração substancial, que é o de descrever na pronúncia um crime quando na acusação nenhum havia. Não se pode olvidar que a definição de alteração substancial de factos (artigo 1º, f) do CPP), sendo a “imputação de um crime diverso” ou mais grave, pressupõe logicamente que na acusação já haja descrito um crime. Havendo por maioria de razão alteração substancial (uma alteração superlativa) quando se imputa crime onde nenhum era imputado. 8.Já concluindo, têm razão os arguidos I... e P... no apontar desta nulidade e, mais do que isso, sobre a conhecê-la não pode o tribunal ultrapassá-la. A consequência é a respectiva declaração e, com ela, a invalidade da acusação, de toda ela, pois que não é cindível entre os vários arguidos, ainda que os demais não tenham arguido a mesma nulidade (não há acusações parcialmente nulas) isto inutilizará, aqui, o conhecimento das arguições dos demais arguidos, sem prejuízo de se notar que porventura haveria quanto a eles também largo espaço de procedência para mais nulidades do mesmo jaez, arguidas fossem. Em face do exposto, julgo nula acusação, em conformidade com os artigos 120º, nº 1, 122º e 283º, nº 3, b) do CPP, anulando todos os actos posteriores á mesma por nenhum ser aproveitável e ordenando se devolvam os autos ao MP, dando-se baixa na secção, e para os efeitos que tiver por conveniente”. 3.Apreciando. 3.1.Da questão prévia: admissibilidade do recurso. Veio o MP colocar em causa a admissibilidade do recurso por falta de interesse em agir dos arguidos visto a decisão recorrida ter declarado, tal como pugnado, pela nulidade da acusação. Somos a entender e não nos merecer dúvidas a admissibilidade do recurso: interposto por quem tem legitimidade e interesse em agir, visto que a decisão foi parcialmente contra ele proferida ao devolver os autos ao MP para reformulação da acusação cfr. arts. 399º e 401º, ambos do CPP. 3.2.Da alegada nulidade da acusação. Os arguidos, notificados da acusação deduzida pelo Ministério Público, vieram requerer a abertura de instrução invocando a nulidade da acusação considerando ser a mesma meramente conclusiva, não contendo qualquer facto que fundamente a aplicação aos arguidos da aplicação de uma pena. O Meritíssimo JIC decidiu julgar procedente a invocada nulidade, considerando os factos da acusação como “irrelevantes do ponto de vista penal (...) em sentido estrito (desprovidos de coloração penal) seja porque (...) são apresentados de tal forma genérica e vaga que tornam imprestáveis e de resto vedam aos arguidos qualquer defesa consequente (artigo 32º, nº 1 da CRP)”. “Torna a acusação insondável pela ausência de concretude de imputação fáctica relevante do âmbito de normas penais pertinentes”. E como consequência de ter julgado nula a acusação, ordenou a devolução dos autos ao MP “para os efeitos que tiver por conveniente”. Os recorrentes não colocam em causa a decisão na parte em que declarou a nulidade da acusação, que têm como correcta, mas o facto de o Mmº JIC ter remetido os autos ao MP para reformulação da acusação. Entendem que a decisão recorrida viola o disposto no artº 308º do CPP, devendo ser substituída por outra que determine a não pronúncia dos arguidos e o consequente arquivamento dos autos. Vejamos se lhes assiste razão. Importa, antes de mais, para melhor compreensão da questão suscitada tecer algumas considerações, ainda que breves, acerca da regime das nulidades processuais. Como sabemos, o artº 118º do CPP consagra o princípio da legalidade e da taxatividade das nulidades com a seguinte fórmula: “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”. O legislador distinguiu as nulidades insanáveis, também designadas por nulidades absolutas, das nulidades dependentes de arguição ou nulidades relativas. E assim, na técnica usada determinou o legislador no artº 120º, nº 1 que qualquer nulidade diversa das referidas no artº 119º, que prevê as nulidades insanáveis (que são as ali expressamente previstas, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais) deve ser arguida. Deste modo, se a lei expressamente não indicar que se trata de nulidade insanável ela é uma nulidade dependente de arguição, contendo este preceito legal, como refere a doutrina, a consagração do princípio da subsidiariedade da nulidade sanável. É o que acontece no caso dos autos relativamente à acusação. A acusação deverá conter, “sob pena de nulidade”, todas as referências indicadas no nº 3 do artº 283º do CPP, com especial relevância a narração dos factos, abrangendo naturalmente os factos que integram todos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime imputado ao arguido. Assim, a dedução de acusação pública sem observância dos requisitos legais previstos no nº 3 do artº 283º constitui uma nulidade dependente de arguição (sanável ou relativa) que, como tal, segue o regime dos artigos 120º e 121º do CPP. Tal significa que o interessado querendo atacar a acusação com a arguição de nulidade deverá fazê-lo no prazo legal para a sua arguição. A regra geral é a do artº 105º, nº 1, do CPP, a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo posterior do processo ou tiverem intervindo em algum acto nele praticado, ou seja, no prazo de 10 dias, salvo previsão legal distinta, como ocorre nos casos previstos no nº 2 do artº 120º referido. Quanto aos efeitos, a declaração da nulidade sanável tem os efeitos fixados no artº 122º: tornam inválido o acto em que se verificaram, bem como os que dele dependem e possam ser afectados, e decorrente do princípio do favor do processo e do aproveitamento dos actos, a decisão de declaração da nulidade deve determinar, identificando expressamente quais “os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição”. Ou seja, a decisão que declarar a nulidade tem necessariamente de determinar as consequências no processo. Como vimos, a não observância dos requisitos legais do nº 3 do artº 283º do CPP constitui indubitavelmente uma nulidade sanável. Significa, segundo o regime das nulidades, que a mesma tem de ser primeiro arguida, e em local e tempo próprio. A arguição da nulidade da acusação por omissão das matérias referenciadas no nº 3 deverá então fazer-se perante o próprio magistrado que deduziu a acusação, cabendo reclamação hierárquica da decisão. Não tendo sido arguida, esta nulidade da acusação, enquanto tal, consolida-se, assim transitando o processo para a fase de julgamento ou de instrução se no processo comum vier a ser requerida. Na fase de julgamento, a Lei nº 59/98, de 25.8 veio permitir que estes mesmos requisitos da acusação possam ser apreciados oficiosamente em fase jurisdicional. Assim, o artº 311º, nº 2, al. a) permite ao juiz, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, definindo o nº 3 do mesmo preceito as situações em que a acusação pode ser considerada manifestamente insuficiente: a)Quando não contenha a identificação do arguido; b)Quando não contenha a narração dos factos; c)Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d)Se os factos não constituírem crime. Este nº 3 foi aditado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, permitindo ao juiz a possibilidade de rejeição da acusação nos casos taxativamente ali previstos, que são, em síntese, os mesmos que caracterizam a nulidade da acusação. Há quem entenda que esta alteração veio colocar em causa o regime previsto no artigo 283º, nº 3 do CPP, ao permitir converter as mesmas situações ao conhecimento oficioso pelo juiz de julgamento. Não nos parece que assim seja, vendo nesta alteração o separar das águas em fases processuais distintas, permitindo que os interessados após a dedução da acusação possam arguir eventual nulidade da acusação ainda na fase de inquérito, mas não o tendo feito, e transitando o processo para julgamento, ao tribunal teriam de ser conferidos mecanismos de travar o prosseguimento de uma acusação “manifestamente infundada”, que em face dos seus próprios termos não tem condições de viabilidade, estando desde logo votada ao insucesso. No fundo, o legislador veio nesta fase conferir ao juiz de julgamento o controlo jurisdicional dos vícios estruturais da acusação, cujas consequências levariam à admissão de uma acusação manifestamente infundada, mantendo-se sempre intocável a valorização dos indícios para acusar ao Ministério Público no estrito respeito pelo princípio do contraditório. E tendo sido requerida a fase de instrução pelo arguido, como ocorreu no caso dos presentes autos, de que modo pode o Juiz de Instrução responder à questão colocada pelo arguido, da nulidade da acusação por deficiente e insuficiente narração dos factos na acusação? Refira-se antes de mais que a arguição da nulidade da acusação não constitui o conhecimento de uma questão prévia, assim respondendo ao Ministério Público. Isto porque a decisão sobre questões prévias visa o saneamento do processo, respeitante sobretudo à validade e regularidade da instância, sendo independentes da questão de mérito, ou melhor dizendo, visam remover os obstáculos que se opõem à decisão de mérito. E se o objecto da decisão instrutória é a acusação, esta pode ser nula, mas em razão da nulidade do processo ou por exemplo da ilegitimidade do MP ou do acusador, questões que serão previamente conhecidas para que se possa vir a proferir a decisão de mérito acerca da acusação. Ora, terminada a instrução, a decisão instrutória pode consistir i) num despacho de pronúncia, se se concluir pela suficiência de indícios), ii) num despacho de não pronúncia que pode ser: -despacho que conhece de nulidades, irregularidades ou pressupostos processuais que obstem ao conhecimento do mérito da causa; ou -despacho que conclui pela insuficiência de indícios. Do nosso ponto de vista, e salvo melhor opinião, não deve o Juiz de Instrução nesta fase declarar nula a acusação por insuficiente ou deficiente narração dos factos que conduzam a aplicação de uma pena, nos termos do disposto no artº 283º, nº 3, do CPP. Primeiro, porque a nulidade não foi arguida no tempo e lugar próprio mostrando-se então sanada, e nunca a declaração de nulidade da acusação pelo Juiz de instrução poderia ter como consequência a remessa dos autos ao MP com vista à sanção de tal anomalia. A verdade é que a instrução requerida pelo arguido, invocando insuficiência dos factos alegados na acusação pública, visa acima de tudo a prolação de um despacho de não pronúncia, e o consequente arquivamento dos autos (não deixando, contudo, de a acusação ser nula, mas cuja declaração formal, por si só, não atinge os objectivos da instrução requerida pelos arguidos). Podemos assim dizer que a insuficiente narração dos factos de que depende a aplicação de uma pena pode, em fase de inquérito, ser atacada por via da arguição de nulidade da acusação; em fase de julgamento, sem que tenha sido requerida instrução, pode levar à rejeição da acusação por manifestamente inviável nos termos do artº 311º, do CPP, e requerida a instrução, a decisão só poderá ser de pronúncia ou não pronúncia. Não pode um processo que transitou para uma fase jurisdicional retornar à fase de inquérito para que o MP venha a sanar as nulidades invocadas, ou reformular a acusação nula, o que seria um atropelo à estrutura acusatória do nosso processo penal, além de gorar as expectativas do arguido. De duas uma: ou a factualidade descrita na acusação é insuficiente na descrição de todos os elementos típicos do crime, mas a prova produzida permite colmatar tais insuficiências, sem que os factos novos possam traduzir uma alteração substancial dos factos, de modo a não produzir a nulidade do despacho de pronúncia nos termos do artº 309º, e produzindo tal nulidade, ter-se-á que concluir pela não pronúncia do arguido. Deste modo, assiste razão aos recorrentes, mostrando-se violado o disposto no artº 308º do CPP, assim se julgando procedente o recurso. Importa assim revogar o despacho recorrido, na parte em que declarou, como consequência da nulidade da acusação, a remessa dos autos ao MP para “os efeitos que tiver por convenientes”, ordenando-se a substituição desse despacho por outro que analise e retire as devidas consequências da declaração de nulidade, nos termos do artº 308º do CPP. * III-Decisão. Nestes termos, e com os fundamentos acima expostos, acordam os Juízes da ...ª secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, na parte em que declarou, como consequência da nulidade da acusação, a remessa dos autos ao MP para “os efeitos que tiver por convenientes”, ordenando-se a substituição desse despacho por outro que analise e retire as devidas consequências da declaração de nulidade, nos termos do artº 308º do CPP. Sem custas por não serem devidas. Notifique. * Lisboa, 6/04/2016. Elaborado, revisto e assinado pela Relatora: Conceição Gonçalves e assinado pela Desembargadora: Maria Elisa Marques. [1]Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. 2007, pág.103; entre outros, mais recentemente, o ac.do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt, e ainda, o acórdão do Pelenário das Secções Criminais do STJ nº 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995. | ||
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Decisão Texto Integral: |