Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA REIS SILVA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE FIM DO PERÍODO DE CESSÃO LIQUIDAÇÃO PAGAMENTOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/29/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1 - A introdução pelo Decreto Lei nº 79/2017 de 30/06 do nº7 do art. 233º do CIRE combinada com o disposto no art. 6º nº6 do referido Decreto Lei, demonstra que o propósito do legislador com esta alteração era o de resolver o diferendo jurisprudencial num sentido mais favorável aos interesses do devedor, evitando desigualdades e nivelando a duração do processo na sua globalidade, dando prioridade à exoneração do passivo restante e à respetiva decisão final. 2 – Não proferir decisão final de exoneração do passivo restante findo o período de cessão e sem que tenha sido pedida a prorrogação do mesmo, porque a liquidação ainda não se encontra encerrada, contraria o propósito destas normas e os objetivos da exoneração do passivo restante. 3 – A possibilidade de o passivo reclamado, verificado e graduado no processo de insolvência vir a ser todo satisfeito com o produto da liquidação dos bens aprendidos para a massa insolvente não impede, por qualquer forma que, antes do termo da liquidação seja proferida decisão final de exoneração do passivo restante, uma vez que o passivo exonerado não é apenas o que foi verificado e graduado nos autos mas todos os créditos sobre a insolvência subsistentes à data do despacho, mesmo que não tenham sido reclamados. 4 – Por outro lado, o facto de, à data da prolação do despacho final de exoneração ainda não se saber qual o passivo verificado e graduado nos autos restante, não impede seja tomada essa decisão, dado que nesse caso a exoneração fica limitada, quanto aos créditos reclamados no processo de insolvência, aos subsistentes após a conclusão da liquidação. 5 – O nº1 do art. 244º do CIRE não condiciona a prolação de decisão nem ao encerramento da liquidação (ou rateio e pagamentos) nem à existência de passivo restante ao reclamado, verificado e graduado nos autos. 6 – A distribuição do remanescente do rendimento disponível entregue pelo devedor aos credores, nos termos do nº1 do art. 241º do CIRE, deve ser feito no termo de cada ano do período de cessão, desde que tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, o que implica que é totalmente independente quer da prolação de despacho final de exoneração, quer do encerramento da liquidação. 7 – A não prolação de despacho final de exoneração findo o período de cessão prejudica o devedor dado que só quando é proferido o despacho final de exoneração o devedor fica liberto das suas obrigações (art. 245º nº1 do CIRE) e porque, sendo a exoneração decretada, o prazo de revogação só começa a contar do trânsito em julgado dessa decisão (art. 246º nº2). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam as juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório Banco Comercial Português, SA intentou ação de declaração de insolvência contra M… e J…, pedindo a respetiva declaração de insolvência. Citada a requerida veio esta informar do falecimento do requerido, juntando certidão de óbito e requerer, no caso de ser decretada a sua insolvência, a exoneração do passivo restante. A insolvência da requerida e da herança indivisa aberta por óbito do requerido foi declarada por sentença de 03/02/2021, transitada em julgado. Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório. O pedido de exoneração mereceu a não oposição do Administrador da Insolvência em relatório. O credor Banco Comercial Português, SA pronunciou-se contra a exoneração do passivo restante. Em 20/05/2021 foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação e foi proferido o despacho previsto no art. 239º do CIRE, nos seguintes termos: «Decide-se assim admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e em consequência: a) Nomear para desempenhar as funções de fiduciário, o Administrador de Insolvência que desempenhou funções nestes autos (cfr. art.ºs 240º a 242º do CIRE). b) Fixar a remuneração do Fiduciário, a suportar pelo(a/s) Devedor(a/s), em 10% das quantias objecto de cessão ou, não havendo cessão de rendimentos, a quantia equivalente a uma e meia unidade de conta processual anual, mediante apresentação do relatório respectivo – cfr. art.º 240º, n.ºs 1 e 2, 241º, n.º 1, al. c) e 60º, n.º 1, do CIRE e art.º 28º, da Lei n.º 22/2013 de 26.02; c) Determinar que o rendimento disponível que o Devedor venha a auferir, no prazo de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, que se denomina, período da cessão, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia equivalente a 1,5 (um vírgula cinco) vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida correspondentemente em vigor, 12 (doze) meses por ano. d) Sob pena de não lhe ser concedido, a final, o pedido de exoneração do passivo restante, durante este período de cinco anos, o Devedor fica obrigada (art.º 239º, n.º 4, do CIRE): • Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado; • Entregar imediatamente ao Fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; • Informar o tribunal e o Fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 (dez) dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; • Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. Notifique.» Na mesma data foi ainda proferido o seguinte despacho: «Encerramento do processo O art.º 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE dispõe que o juiz declara o encerramento do processo de insolvência quanto este não haja ainda sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante. Esclarece o art.º 233.º, n.º 7, do CIRE, na redacção dada pelo D.L. n.º 79/2017 de 30.06, que o encerramento do processo de insolvência nos termos do art.º 230.º, n.º 1, al. e), quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível. Com vista a dar início ao período de cessão decide-se: 1. Nos termos do disposto nos art.ºs 230°, n.º 1, al. e) e 233.º, n.º 7, do CIRE, na redacção dada pelo D.L. n.º 79/2017 de 30.06, declarar encerrado o presente processo de insolvência, unicamente para efeitos de início do período de cessão. 2. O/A Administrador/a da Insolvência acumulará essas funções com as de Fiduciário/a, devendo porém apresentar separadamente as contas da administração da massa insolvente e da fidúcia.» Foram juntos os relatórios anuais do Sr. Fiduciário relativos ao 1º, 2º e último ano de cessão, atenta a entrada em vigor da redação dada aos arts. 235º e ss. do CIRE pela Lei nº 9/22 de 11/01, nos quais deu conta do cumprimento pela devedora da obrigação de entrega do rendimento disponível. Foi cumprido o disposto no art. 244º nº1 do CIRE, tendo a devedora vindo requerer seja proferido despacho final de concessão de exoneração do passivo restante da devedora. Em 14/06/2024 foi proferido o seguinte despacho: «M… foi declarada insolvente por sentença proferida em 08.02.2021. O pedido de exoneração do passivo restante foi admitido em 20.05.2021. Atingido o termo do período de cessão, em 08.05.2024, o AI / Fiduciário apresentou relatório elaborado com referência ao art.º 240.º, n.º 2, do CIRE. Efectuadas as notificações previstas no art.º 244.º, n.º 1, do CIRE, não foi deduzida oposição. No entendimento deste tribunal a decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, bem assim aliás como o cumprimento do art.º 241.º, n.º 1, do CIRE, nos casos em que exista rendimento disponível passível de distribuição, carece do prévio encerramento da liquidação e rateio, no âmbito do processo de insolvência. Antes do rateio e distribuição em sede de insolvência não apenas não está determinada a existência ou não de passivo restante passível de exoneração, como não é possível fazer a distribuição do rendimento disponível sem prejudicar os credores comuns relativamente a credores que, no processo de insolvência, beneficiem de garantias ou privilégios especiais que, por força do retardamento da liquidação, não tenham operado. Sendo ainda de acrescentar que, no entendimento deste tribunal, desta decisão não resulta prejuízo relevante para os devedores, uma vez que até encerramento do processo de insolvência se mantém os efeitos da declaração de insolvência, nomeadamente os previstos no art.º 81.º, do CIRE. Decide-se assim determinar que a prolação da decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, e o cumprimento do art.º 241.º, n.º 1, do CIRE, aguardem o encerramento da liquidação e a realização das subsequentes operações de rateio e distribuição. Notifique, sendo o Administrador(a) de Insolvência para proceder à realização de rateio parcial (art.º 178.º, do CIRE).» Inconformada apelou a insolvente pedindo seja o recurso julgado procedente e determinada a nulidade do despacho recorrido, caso assim se não considere, a sua anulação e a sua substituição pelo despacho final a conceder a exoneração do passivo restante, formulando as seguintes conclusões: “A. A Recorrente não se conforma com o despacho proferido pelo Tribunal a quo no incidente de exoneração do passivo restante no segmento onde refere “No entendimento deste tribunal a decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, bem assim aliás como o cumprimento do art.º 241.º, n.º 1, do CIRE, nos casos em que exista rendimento disponível passível de distribuição, carece do prévio encerramento da liquidação e rateio, no âmbito do processo de insolvência. Antes do rateio e distribuição em sede de insolvência não apenas não está determinada a existência ou não de passivo restante passível de exoneração, como não é possível fazer a distribuição do rendimento disponível sem prejudicar os credores comuns relativamente a credores que, no processo de insolvência, beneficiem de garantias ou privilégios especiais que, por força do retardamento da liquidação, não tenham operado. Sendo ainda de acrescentar que, no entendimento deste tribunal, desta decisão não resulta prejuízo relevante para os devedores, uma vez que até encerramento do processo de insolvência se mantém os efeitos da declaração de insolvência, nomeadamente os previstos no art.º 81.º, do CIRE. Decide-se assim determinar que a prolação da decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, e o cumprimento do art.º 241.º, n.º 1, do CIRE, aguardem o encerramento da liquidação e a realização das subsequentes operações de rateio e distribuição”. B. No despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, o Tribunal a quo determinou o encerramento do processo de insolvência, unicamente para efeitos de início do período de cessão, conforme artigo 230.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, pelo que, salvo melhor opinião, a questão suscitada pelo Tribunal a quo no despacho em crise, podia e devia ter sido apreciada aquando da prolação do despacho inicial ou durante o período de cessão do incidente de exoneração do passivo restante. C. O despacho proferido pelo Tribunal a quo contraria o disposto no artigo 244.º do CIRE, que, a propósito dos efeitos da concessão da exoneração, diz que não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor. D. Inexiste letra da lei que diga que a concessão da exoneração do passivo restante, só ocorre após o encerramento da liquidação e rateio ou que permita a suspensão da instância do processo de insolvência ou do incidente de exoneração do passivo restante, pois os artigos 8º e 9º do CIRE consagram precisamente o contrário, ou seja, que a “instância do processo de insolvência não é passível de suspensão” e que “o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal”. E. A não concessão da exoneração do passivo restante põe em causa o princípio da dignidade da pessoa humana estabelecido pelo artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa e prejudica a Recorrente nos seus direitos, em especial, impossibilita a Recorrente do direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios.” Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi admitido por despacho de 13/08/2024 (ref.ª 152506353), no qual o tribunal a quo entendeu não ter sido cometida qualquer nulidade. Foram colhidos os vistos. Cumpre apreciar. * 2. Objeto do recurso Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma. Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a de se, em processo de insolvência a prosseguir com liquidação do ativo, terminado o período de cessão de rendimentos, deve ser proferido despacho final de exoneração do passivo restante ou se deve se sustada a prolação do mesmo até ao encerramento da liquidação e a realização das operações de rateio e distribuição. * Consigna-se que, pese embora no termo das suas alegações de recurso a devedora peça a declaração de nulidade do despacho recorrido ou a sua anulação, verifica-se que, seja na motivação, seja nas conclusões, não foi invocada qualquer nulidade da sentença ou outra, pelo que o respetivo conhecimento não integra o objeto deste recurso. * 3. Fundamentos de facto: Com relevância para a decisão do recurso, além dos demais factos referidos no relatório, resultam dos autos os seguintes factos (processuais): 1 - No decurso do período de cessão a devedora entregou ao Sr. Fiduciário o montante total de rendimento disponível de € 8.703,90, tendo aquele retirado daquele montante o pagamento da sua remuneração pelo exercício de funções nos termos fixados pelo tribunal no montante global de € 1.018,75 (relatório anual e requerimentos de 07/05/2024 no processo principal); 2 – Em 15/04/2021 foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens (cfr. apenso B): Verba 1 - Fração autónoma designada pela letra "A", correspondente à CAVE A, destinada a comércio, do prédio urbano designado Quinta …, sito na Rua …, n.º 4, Queluz, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …da união de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, Distrito de Lisboa, e descrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n.º …/19860707–A da Freguesia de Queluz, com o valor patrimonial de 34.354,77€; Verba 2 - Fração autónoma designada pela letra "B", correspondente à CAVE B, destinada a comércio, do prédio urbano designado Quinta …, sito na Rua …, n.º 4, Queluz, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da união de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, Distrito de Lisboa, e descrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n.º …./19860707–B da Freguesia de Queluz, com o valor patrimonial de 18.658,38€; Verba 3 – Fração autónoma designada pela letra "C", correspondente à CAVE C, destinada a comércio, do prédio urbano designado Quinta …, sito na Rua …, n.º 4, Queluz, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da união de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, Distrito de Lisboa, e descrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n.º …/19860707–C da Freguesia de Queluz, com o valor patrimonial de 190.296,66€; Verba 4 - Fração autónoma designada pela letra "I", correspondente ao 1.º andar direito, destinada a habitação, do prédio urbano designado Quinta …, sito na Rua…, n.º 4, Queluz, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …da união de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, Distrito de Lisboa, e descrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n.º …/19860707–I da Freguesia de Queluz, com o valor patrimonial de 57.560,65€; Verba 5 - Fração autónoma designada pela letra "A", correspondente à CAVE, destinada a armazéns e atividade industrial, do prédio urbano sito Rua …, nºs. …, lugar de Casal de São Brás, … Amadora, Concelho da Amadora, Distrito de Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Mina de Água, e descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º …/19860224–A, da Freguesia da Falagueira-Venda Nova, com o valor patrimonial de 110.125,10€. - Direito de crédito sobre EMBALAR DETALHES, UNIPESSOAL, LDA., NIPC: … / DIVINA MASSA, LDA., NIPC: …, no valor de 10.000,00€, correspondente a rendas vencidas relativamente ao arrendamento das verbas 1, 2 e 3, do Auto de Arrolamento e Apreensão de Bens Imóveis. 3 – Por sentença de 14/11/2021, transitada em julgado, foram verificados ao credor Panorama Jubilante, SA créditos no valor de € 67.820,36 de capital, acrescido dos juros vencidos e vincendos liquidados a partir de 30.01.2018 sobre o capital em dívida, à taxa máxima de 10%, com o limite de 3 (três) anos, operando exclusivamente sobre o imóvel apreendido sob a verba nº3 do auto de apreensão apresentado em 04/05/2021 no apenso B, como garantido em relação ao mesmo imóvel (cfr. apenso C). 4 – Por sentença de 24/01/2022, transitada em julgado, foram verificados, por homologação, os seguintes créditos: - Autoridade Tributária e Aduaneira – € 27.336,81, comuns; - Banco Comercial Português, SA – € 76.954,40, parte garantido, parte comum, parte privilegiado e o remanescente comuns; - Cabot Securitization Europe Limited – € 34.111,17, comuns e subordinados; - Nestlé Portugal, Unipessoal, Lda – € 16.042,99 – comuns, Créditos que foram graduados nos seguintes termos: “1. Pelo produto da venda do imóvel apreendido sob a verba 3 dar-se-á pagamento pela ordem seguinte: 1.º Panorama Jubilante, S.A., até ao montante de € 67.820,36 (sessenta e sete mil oitocentos e vinte euros e trinta e seis cêntimos) de capital, acrescido dos juros vencidos e vincendos liquidados a partir de 30.01.2018 sobre o capital em dívida, à taxa máxima de 10%, com o limite de 3 (três) anos; 2.º Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes, observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva; 3.º Os créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; * 2. Pelo produto da venda do imóvel apreendido sob a verba 4 dar-se-á pagamento pela ordem seguinte: 1.º Banco Comercial Português, S.A., até ao montante de € 39 601,21 (trinta e nove mil seiscentos e um euros e vinte e um cêntimos) de capital, acrescido dos juros vencidos e vincendos nos termos liquidados, com o limite de três anos. 2. Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva; 3.º Aos créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes. * 3. Pelo produto da venda dos imóveis apreendidos sob as verbas 1, 2 e 5 dar-se-à pagamento pela ordem seguinte: 1.º Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva; 2.º Aos créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes. * 4. Pelo produto da liquidação dos direitos de crédito apreendidos, de outros bens móveis ou direitos apreendidos ou a apreender, e de eventuais entregas de rendimento disponível dar-se-á pagamento pela ordem seguinte: 1.º Banco Comercial Português, S.A. relativamente a um quarto do montante reconhecido que não corresponda a crédito garantido, num máximo correspondente a 500 UC, observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva. 2.º Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva; 3.º Aos créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes. * As dívidas da massa insolvente, incluindo as custas do processo de insolvência, são pagas prioritariamente sobre os demais (cfr. art.ºs 51.º, 172.º, n.º 1 e 241.º, do CIRE.” 5 – De acordo com as informações sobre o estado da liquidação que o Sr. Administrador da insolvência foi oportunamente apresentando no apenso D (liquidação do ativo), a verba nº4 foi vendida em 22 de abril de 2022 por € 120.500,00, a verba nº5 foi vendida em 28/07/2022 por € 75.050,00, não foi cobrado o direito de crédito e as verbas nºs 1, 2 e 3 foram entregues pela massa insolvente da arrendatária em junho de 2024, tendo-se então iniciado as diligências para venda. * 4. Fundamentos do recurso: A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start. Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE[1]: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.» “A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2] É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente. Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art. 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[3] Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer. É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[4], já transposta[5], e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, previu o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º. A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016, relatado por Fonseca Ramos (3562/14) e TRP de 15-09-2015, relatado por José Igreja Matos (24/14)[6], entre as quais os arts. 243º e 244º. Estabelece o art. 244º do CIRE[7], sob a epígrafe Decisão final da exoneração: «1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência. 2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior. 3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores.» No caso dos autos, integralmente decorrido o período de cessão, com informação do cumprimento, pela devedora, da obrigação de entrega do rendimento disponível, foi cumprido o disposto no nº1 do art. 244º sem que tenha sido apresentada outra pronúncia que não o requerimento da devedora insolvente de que fosse proferido despacho final de concessão da exoneração. O tribunal recorrido não proferiu despacho final, tendo decidido sustar a decisão até ao encerramento da liquidação, rateio e distribuição. Vejamos, em concreto, os fundamentos do despacho recorrido e os argumentos trazidos a recurso. Foram os seguintes os fundamentos do despacho recorrido: “No entendimento deste tribunal a decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, bem assim aliás como o cumprimento do art.º 241.º, n.º 1, do CIRE, nos casos em que exista rendimento disponível passível de distribuição, carece do prévio encerramento da liquidação e rateio, no âmbito do processo de insolvência. Antes do rateio e distribuição em sede de insolvência não apenas não está determinada a existência ou não de passivo restante passível de exoneração, como não é possível fazer a distribuição do rendimento disponível sem prejudicar os credores comuns relativamente a credores que, no processo de insolvência, beneficiem de garantias ou privilégios especiais que, por força do retardamento da liquidação, não tenham operado. Sendo ainda de acrescentar que, no entendimento deste tribunal, desta decisão não resulta prejuízo relevante para os devedores, uma vez que até encerramento do processo de insolvência se mantém os efeitos da declaração de insolvência, nomeadamente os previstos no art.º 81.º, do CIRE. Decide-se assim determinar que a prolação da decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, e o cumprimento do art.º 241.º, n.º 1, do CIRE, aguardem o encerramento da liquidação e a realização das subsequentes operações de rateio e distribuição.” A recorrente defende que, tendo decorrido integralmente o período de cessão, sem que tenha sido deduzida oposição à concessão da mesma, não ocorrendo qualquer das causas de recusa de exoneração e não tendo sido requerida a prorrogação, estão reunidos os requisitos para a concessão da exoneração e prolação da decisão final de exoneração. Alega que o despacho recorrido, na prática, suspende a instância do incidente de exoneração, em violação do disposto nos arts. 8º e 9º do CIRE. O despacho recorrido impede o início de um novo ciclo na vida da insolvente, sendo o foco do instituto o devedor e não os credores. A situação gerada é injusta e ilegal, dado que se atingiu o termo do período de cessão, mas mantém todos os efeitos da declaração de insolvência. Mais alega que a questão deveria ter sido previamente suscitada, nomeadamente antes do despacho liminar e decurso do período de cessão, tendo o despacho recorrido violado o disposto no art. 244º do CIRE. O despacho recorrido resulta em prejuízo relevante para a recorrente pondo em causa o princípio da dignidade humana. A recorrente está na lista negra do Banco de Portugal e não pode abrir contas ou ver-lhe concedido crédito. Apreciando: A exoneração do passivo restante pode ser concedida no final de um período de cessão do rendimento disponível que se inicia com o encerramento do processo (arts. 244º nº1 e 239º nº2). Na versão primitiva do Código, havendo bens a liquidar, o encerramento do processo de insolvência era sempre o encerramento após o rateio final previsto no art. 230º nº1, al. a) e 233º nº1. Não havendo bens a liquidar o despacho de encerramento deveria ser o despacho previsto nos arts. 230º nº1, al. d) e 232º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, mas tal não se mostrava possível por força do disposto nos arts. 232º nº6 e 248º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa. O legislador, em 2012[8], acrescentou ao catálogo das causas de encerramento do processo de insolvência a al. e) do nº1 do art. 230º prevendo o encerramento dos autos nos casos de exoneração do passivo restante. Obviamente, mesmo tendo sido liminarmente deferida a exoneração do passivo restante, existindo bens a liquidar, sempre deve o processo prosseguir para liquidação e fazia todo o sentido que só após vendido o património, graduados os créditos e feito o rateio se prosseguisse com a exoneração do passivo restante, pois só nessa altura se saberia qual o passivo que vai ser satisfeito pelo produto da massa e qual o restante, não satisfeito ou não reclamado, que seria objeto de exoneração. Tal levou à interpretação de que o encerramento nos termos da al. e) do nº1 do art. 230º seria residual, servindo somente para colmatar o problema causado pela impossibilidade de encerramento em caso de insuficiência de bens e concessão liminar do benefício de exoneração do passivo restante. Por outro lado, esta interpretação, de que este fundamento de encerramento era residual, apenas servindo para os casos de insuficiência da massa insolvente (em que não é possível proceder ao encerramento nos termos do art. 230º nº1, al. d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, por força do disposto nos arts. 232º nº6 e 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa) criou uma objetiva desigualdade entre devedores que tinham e apresentavam bens e rendimentos e devedores que os não tinham ou não os apresentavam aos autos. Tal constatação resultava ainda agravada pelo facto de a liquidação do ativo não depender do devedor e poder ser dificultada e demorada por circunstâncias externas ao processo e seus intervenientes, como crises conjunturais económicas e financeiras, excesso de oferta em determinado contexto geográfico ou outros ou mesmo o estado dos serviços do tribunal onde correm termos os autos. Como consequência de delongas não imputáveis aos devedores, podiam estes ser confrontados com um período de cessão de rendimentos de cinco anos, de iure e com mais três ou quatro anos de facto conduzindo a um resultado claramente não querido pelo legislador se analisarmos o percurso deste de previsão, em 2004, do instituto, inspirado no fresh start, e na sua correção em 2012 com a introdução desta regra. Geraram-se então (em síntese) duas linhas jurisprudenciais para os casos de existência de bens a liquidar e deferimento liminar da exoneração do passivo restante: uma entendendo que a al. e) do nº1 do art. 230º do CIRE apenas seria aplicável aos casos de insuficiência da massa e outra, aplicando referido preceito como encerramento apenas com o efeito de permitir o início da contagem do período de cessão, independentemente do resultado da liquidação[9]. A dissensão veio a ser resolvida com a introdução do nº7 do art. 233º do CIRE pelo Decreto Lei nº 79/2017 de 30/06, onde se consagrou que «7 - O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» A regra, combinada com o disposto no art. 6º nº6 do referido Decreto Lei[10] demonstra qual o propósito do legislador: resolver o diferendo jurisprudencial num sentido mais favorável aos interesses do devedor, evitando desigualdades e nivelando a duração do processo na sua globalidade, dando prioridade à exoneração do passivo restante e à respetiva decisão final. Como se escreveu no Ac. TRE de 08/03/2018 (Albertina Pedroso – 118/12) “por via do DL n.º 79/2017, de 30/06/2017 (em vigor desde o dia 1 de Julho de 2017), foi aditado o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, que regula os efeitos do encerramento do processo, estatuindo o seguinte: «O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» O que sinaliza que se pretende atribuir autonomia à al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CPC, devendo ser declarado o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal não tenha ainda ocorrido. No entanto, existindo bens ou direitos a liquidar, os efeitos do encerramento se repercutem unicamente no início do período de cessão do rendimento disponível. Coloca-se, assim, o devedor insolvente a salvo da demora desgastante em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência, conferindo-se eficácia renovada ao incidente da exoneração do passivo restante: o princípio do “fresh start”, visando a reintegração plena do devedor na vida económica, não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, sendo antes imperioso que possa cumprir, desde logo e durante o prazo fixo de cinco anos, as obrigações legais que lhe permitirão alcançar a sua reabilitação económica.” Tratou-se de solução não isenta de críticas[11] mas que funcionou, pondo cobro à desigualdade objetiva que se surpreendia entre a duração de processos de insolvência por causas alheias aos devedores. A solução da decisão recorrida afronta, com clareza, o objetivo destas normas, prolongando o tempo de espera dos devedores pela decisão final de exoneração exatamente no mesmo tipo de casos, quando os devedores têm ou apresentam bens e por delonga da liquidação que aqueles, de todo não controlam. A intervenção legislativa em causa sempre encerrou o eventual problema de o período de cessão poder terminar antes de finda a liquidação do ativo, deixando uma interrogação sobre a própria existência de passivo restante. Tal possível questão tornou-se de ocorrência mais provável após a transposição da Diretiva (UE) 1023/2019, que, em alteração de relevo, reduziu a duração fixa do período de cessão de cinco para três anos, prorrogável por uma única vez. E esse é exatamente um dos fundamentos do despacho recorrido, que apontou que “antes do rateio e distribuição em sede de insolvência não (…) está determinada a existência ou não de passivo restante passível de exoneração”. Trata-se, porém, de um problema aparente. No caso dos autos há créditos verificados e graduados no montante global de € 222.265,73. Já foram liquidados dois imóveis, que renderam € 195.550,00. Uma vez que ainda estão por liquidar três imóveis existe a possibilidade de o produto da venda dos bens integrados na massa ser suficiente para o pagamento do passivo verificado e graduado, parecendo assim, que não irá restar passivo a ser perdoado[12]. Trata-se de um problema aparente desde logo porque o passivo restante a perdoar não se limita ao passivo reclamado e verificado no processo de insolvência. Nos termos do disposto no nº1 do art. 245º do CIRE, preceito que tem por epígrafe Efeitos da exoneração, «A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam á data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados (…).» O que implica que o facto de (eventualmente) todo o passivo reclamado e verificado nos autos ser satisfeito, não prejudica, por nenhuma forma, a prolação de despacho final de exoneração, nomeadamente de concessão. E a dificuldade é aparente por outro motivo. Ao devedor é alheio o resultado da liquidação e, consequentemente, o grau de satisfação dos créditos reclamados, verificados e graduados na insolvência. Ele tem direito de intervenção no processo de insolvência e nas várias fases (art. 81º nº5 do CIRE), mas a apreensão, administração da massa e liquidação do ativo são funções exclusivas do administrador da insolvência (arts. 81º nº1, 149º e ss. e 158º e ss.). A decisão de exoneração do passivo restante apenas perdoa os créditos sobre a insolvência que subsistam à data da sua concessão, reclamados ou não – art. 245º nº1 do CIRE. Interpretando a regra sistematicamente, na economia do processado da insolvência, é bastante claro que a lei pretende/assume que a liquidação esteja finda antes do final do período de cessão de rendimentos. Prevê o artigo 235º[13] que «Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo.» (sublinhado nosso). Para tanto concorre não só a natureza do instituto – que apenas exonera o passivo que não seja pago no processo da insolvência, mediante a liquidação dos bens apreendidos – como a previsão da urgência de todas as fases, incluindo a liquidação, nos termos dos arts. 9º nº1 e 169º do CIRE, bem como a natureza subsidiária e restrita do encerramento subsequente ao despacho liminar de exoneração do passivo restante, como expressamente previsto no nº7 do art. 233º. Se necessário fosse, a previsão da possibilidade de liquidação adicional caso surjam novos bens, nos termos do art. 241º-A, confirma que o pressuposto genérico da lei é de que, antes que a cessão de rendimentos termine, a liquidação, como fase típica da insolvência, esteja já finda. Só assim se explica a necessidade de regras de liquidação adicional, dado que continuando a correr a liquidação, sem encerramento do processo nos termos do art. 230º nº1, al. a), qualquer bem ou direito suscetível de apreensão que seja conhecido, será regularmente apreendido e liquidado nos termos gerais. Quando assim não suceda, e, seja por delongas próprias da liquidação, seja por vicissitudes do próprio processo ou consequências de fatores externos[14], a liquidação não esteja finda antes do final do período de cessão, é bastante claro que, sem prejuízo da plena eficácia da decisão de exoneração quanto aos créditos que não tenham sido reclamados no processo de insolvência, nos termos do nº1 do art. 245º do CIRE, no tocante aos créditos que foram reclamados e que poderão vir a obter, ao menos, parcial satisfação mediante a venda do ativo apreendido, quando ocorrer, a exoneração apenas abrangerá a parte que não vier a ser satisfeita. Neste exato sentido já se pronunciou o Ac. TRE de 27/10/2022, relatado por Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2146/16), no qual se decidiu, precisamente, que, terminando o período de cessão de rendimentos antes de estarem concluídas as diligências de liquidação e rateio final “os créditos que resultam extintos com a concessão da exoneração do passivo restante são aqueles que subsistam à data em que é concedida e não venham a obter pagamento em sede de rateio final.” Assim, e como já se decidiu no Ac. TRL de 06/02/2024 (Fátima Reis Silva - 13933/19) “Entendimento diverso – que não nos parece sequer possível – acrescentaria ao elenco legal uma nova causa de encerramento (o perdão de todos os créditos reclamados) e uma nova causa de encerramento da liquidação (estando perdoados todos os créditos não poderia prosseguir a liquidação para satisfação dos mesmos). A decisão a proferir é de concessão da exoneração, limitada, porém, quanto aos créditos reclamados no processo de insolvência, aos subsistentes após a conclusão da liquidação.” E se é assim quando subsista passivo restante, o que aliás, sucederá na maior parte dos casos, nenhuma razão se encontra para que assim não seja quando não subsista passivo restante. Por outro lado, o elemento literal do art. 244º nº1 do CIRE não condiciona a prolação de decisão nem ao encerramento da liquidação (ou rateio e pagamentos) nem à existência de passivo restante ao reclamado, verificado e graduado nos autos. E como já vimos, o elemento literal concorda com os elementos sistemático e histórico. Como decidido no Ac. TRE de 08/03/2018 (já citado) “De facto, mostrando-se já então decorrido o período de exoneração do passivo restante que se iniciara após a prolação do despacho de encerramento da insolvência para este fim, implicando o cumprimento pelos insolventes durante o período da cessão das obrigações fixadas no despacho de admissão liminar, decorrido tal período, impõe-se ao juiz que avalie se exonera ou não os devedores do passivo restante àquela data, proferindo decisão final sobre a concessão ou não da exoneração, em cumprimento do preceituado no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE.” O segundo argumento adiantado para a decisão tomada foi de que “(…) não é possível fazer a distribuição do rendimento disponível sem prejudicar os credores comuns relativamente a credores que, no processo de insolvência, beneficiem de garantias ou privilégios especiais que, por força do retardamento da liquidação, não tenham operado.” Nos termos do disposto no nº1 do art. 241º do CIRE «O fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão: a) Ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; b) Ao reembolso ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; c) Ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas; d) À distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, cujos créditos se mostrem verificados e graduados por sentença, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.» Como resulta do preceito em causa, a distribuição do rendimento disponível deve ser efetuada no final de cada ano, apenas sendo necessário, para o efeito, que tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos. Como se verifica da matéria de facto provada, no final do primeiro ano de cessão de rendimentos já havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos com graduação compreendendo expressamente o rendimento disponível[15], pelo que a distribuição do rendimento deveria ter sido efetuada ano a ano, como prescrito na lei. A distribuição do rendimento disponível remanescente pelos credores que reclamaram créditos no processo e os viram verificados e graduados não depende, nem da prolação de despacho final de exoneração, nem, por qualquer forma, de estar encerrada a liquidação. O mero facto de a lei prever esta distribuição desde o final do 1º ano de cessão comprova, sem qualquer espaço para dúvidas que a lei se alheia completamente do demais processado, pretendendo que, ano a ano, os credores possam receber os montantes a que têm direito, independentemente da sorte do pedido de exoneração e da demais satisfação dos seus créditos. O legislador foi ao ponto de prever a total satisfação dos credores durante o período de cessão como causa de encerramento antecipado do incidente (243º nº4 do CIRE) sem distinguir a fonte dessa satisfação (se por pagamento subsequente a rateio se por via da distribuição do remanescente do rendimento disponível), pelo que é evidente que inexiste qualquer relação entre o encerramento da liquidação e a distribuição do remanescente do rendimento disponível pelos credores. Trata-se de norma aplicável apenas no caso de pendência do incidente, ou seja, desde que ainda não tenha sido proferido o despacho final. Revertendo ao caso concreto, não é, assim, possível, retirar da distribuição do remanescente qualquer argumento obstativo à prolação de decisão final de exoneração, até porque, em bom rigor, tal distribuição, nos termos da lei, deve estar integralmente efetuada[16] no momento em que vai ser proferido tal despacho. Acrescenta o tribunal a quo que “desta decisão não resulta prejuízo relevante para os devedores, uma vez que até encerramento do processo de insolvência se mantém os efeitos da declaração de insolvência, nomeadamente os previstos no art.º 81.º, do CIRE.” A devedora aponta que continua na lista negra do Banco de Portugal, com as consequências que tal acarreta. Há um primeiro ponto que interessa realçar: como refere a decisão recorrida, o processo principal de insolvência não está encerrado e, enquanto assim for, todos os deveres e limitações que para a devedora decorrem da pendência do processo se mantêm, designadamente as constantes do art. 81º do CIRE, mas não só[17]. Aliás, enquanto estiver pendente o processo de insolvência, todos os atos típicos do processo de insolvência podem ser praticados até final[18]. Mas tal não apresenta qualquer relação com o prejuízo da recorrente/devedora. O devedor não pode ser prejudicado pela demora da liquidação no sentido de o juiz atrasar a prolação do despacho de exoneração até ao rateio e subsequente pagamento. Sendo certo que terminou o período de cessão e que, assim sendo, o devedor está liberto dos deveres previstos no nº4 do art. 239º do CIRE, é ainda devedor de todo o seu passivo e o seu reequilíbrio financeiro é adiado, sem fundamento para tanto, como vimos. Na verdade, só quando é proferido o despacho final de exoneração o devedor fica liberto das suas obrigações (art. 245º nº1 do CIRE). Sendo o principal fito deste instituto da exoneração o proporcionar de uma segunda oportunidade e, em tributo à dignidade humana, a reabilitação económica e financeira do devedor, teríamos que ter razões muito forte e expressamente consagradas que nos levassem a adiar esse momento em exceção à regra que prevê que, findo o período de cessão deve ser proferida uma decisão. Mas acresce ainda que, se a exoneração for decretada, o prazo de revogação só começa a contar do trânsito em julgado dessa decisão (art. 246º nº2). O protelar da decisão arrasta no tempo também esse prazo. Tratam-se de evidentes prejuízos para o devedor que não estão contrabalançados nem são exigidos pelo interesse dos credores, que não vêm, por forma alguma, terminado o período de cessão e prosseguindo a liquidação do ativo, prejudicado o seu interesse protegido de satisfação dos seus créditos. Procedem, assim, as alegações de recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida. Não compete, porém, a este tribunal, a prolação da decisão omitida, dado que o juízo previsto no nº1 do art. 244º do CIRE passa pela avaliação do cumprimento, pelo devedor de todos os deveres que lhe foram impostos para o período de cessão, juízo totalmente omitido pelo tribunal recorrido, não por ter sido considerado prejudicado, mas por ter sido postergado (art. 665º nº2 do CPC). Assim, a consequência da revogação da decisão recorrida é, não a prolação, por este Tribunal da Relação, de decisão final nos termos do art. 244º nº1 do CIRE, mas sim a ordem de que seja retomada a regular tramitação do incidente, precisamente com a prolação da decisão em causa. * As custas devidas a juízo são suportadas pela recorrente, que do recurso tirou proveito, sem que haja parte contrária, sem prejuízo, porém, do benefício do apoio judiciário e do disposto no art. 148º nº1 do CIRE – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil. * 5. Decisão Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a apelação, decide-se: - revogar a decisão recorrida; - determinar o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho final relativo à exoneração previsto no nº1 do art. 244º do CIRE. * Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário e do disposto no art. 148º nº1 do CIRE. Notifique. * Lisboa, 29 de outubro de 2024 Fátima Reis Silva Manuela Espadaneira Lopes Susana Santos Silva _______________________________________________________ [1] Na versão em vigor à data da formulação do pedido, à data do seu deferimento liminar, tendo sido alterado no decurso do prazo da cessão de rendimentos pela Lei nº 9/2022 de 11/01, que entrou em vigor em 11/04/2022. [2] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, abril de 2018, pg. 560. [3] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563. [4] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT [5] Pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022. [6] Todos disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência. [7] Na versão em vigor à data da prolação da decisão recorrida. [8] Lei nº 16/2012 de 20/04. [9] Ver, entre muitos outros, os Acs. TRC de 07/6/2016 (Arlindo Oliveira - 1145/14) e TRP de 28/11/2013 (Amaral Ferreira – 915/12). [10] Onde se estabeleceu que «6 - Nos casos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei.» [11] Ver Alexandre Soveral Martins em Um Curso de Direito da Insolvência, Volume I, 4ª dição, Almedina, 2022, pg. 530. [12] Trata-se de uma hipótese que levantamos sem rigor, dado que apenas temos apurados o valor dos créditos a satisfazer e o produto bruto da liquidação, havendo ainda que apurar as despesas e demais dívidas da massa insolvente, que saem precípuas – art. 172º do CIRE. [13] Aqui na redação atual. [14] Como no caso presente, em que a insolvência do arrendatário na posse de imóveis propriedade dos devedores sucedeu, entretanto, gerando demoras e dificuldades. [15] Ali constando, com sublinhado nosso: “4. Pelo produto da liquidação dos direitos de crédito apreendidos, de outros bens móveis ou direitos apreendidos ou a apreender, e de eventuais entregas de rendimento disponível dar-se-á pagamento pela ordem seguinte: 1.º Banco Comercial Português, S.A. relativamente a um quarto do montante reconhecido que não corresponda a crédito garantido, num máximo correspondente a 500 UC, observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva. 2.º Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes observando-se o disposto no art.º 181.º, n.º 1, do CIRE para os créditos sob condição suspensiva; 3.º Aos créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes.” [16] Pelo menos a dos dois primeiros anos. [17] Por exemplo os deveres decorrentes do art. 83º do CIRE. [18] Ver o caso tratado no Ac. TRP de 14/07/2020 (Ana Paula Amorim – 1105/10). |