Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | SANDRA OLIVEIRA PINTO | ||
| Descritores: | LIBERDADE CONDICIONAL PREVENÇÃO ESPECIAL JUIZO DE PROGNOSE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 07/02/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL EM SEPARADO | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | I–O pressuposto dito substancial ou material, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, aplicável por remissão do nº 3 do mesmo preceito legal, assegura uma finalidade de prevenção especial, de socialização. A concessão da liberdade condicional, neste caso, depende, assim, no essencial, da formulação de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado, assente na ponderação de razões de prevenção especial. II–A concessão da liberdade condicional cumpridos 2 / 3 (ou metade) da pena, não é automática, nem exigida por razões de necessidade de reinserção que não contemplem o juízo de prognose favorável a que se aludiu. O cumprimento por inteiro da pena, se necessário, cabe dentro da culpa do condenado, pois que a pena aplicada na sentença condenatória não ultrapassou a medida da culpa. III–O que releva na formulação do juízo de prognose favorável à concessão da Liberdade condicional é a fundada expectativa de que, uma vez em liberdade, o condenado seja capaz de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes – e não apenas crimes do tipo do que conduziu à sua reclusão. (Sumário da responsabilidade da relatora) | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I.–RELATÓRIO No processo nº 591/20.0TXPRT-B do Juízo de Execução das Penas de Lisboa (Juiz 7), foi proferida decisão, datada de 17.04.2024, que negou a concessão de liberdade condicional ao condenado AA, melhor identificado nos autos, atualmente recluso no Estabelecimento Prisional de .... Inconformado, veio o arguido/recluso interpor recurso daquela decisão, formulando as seguintes conclusões: “I–Entendeu o Tribunal a quo não conceder a liberdade condicional ao recorrente, porquanto, pese embora se encontrassem reunidos os pressupostos de natureza formal do instituto da liberdade condicional, não se encontraria preenchido o requisito de ordem material do mesmo; II–Ainda que o recorrente já tenha cumprido mais de 2/3 da pena de prisão a que foi condenado e tenha consentido na sua libertação. III–Entendemos que, o facto de apresentar 6 infrações disciplinares registadas – e uma pendente –, foi um fator condicionante na elaboração dos relatórios dos serviços prisionais, da DGRSP, do Conselho Técnico e do Parecer do Ministério Público; IV–E, consequentemente, inclusive na concessão, ou não, da liberdade condicional, atentas as necessidades de prevenção especial. V–Não obstante, e com o devido respeito, entendemos que foi feita uma incorreta análise do registo disciplinar do recorrente, inclusivamente em violação do princípio in dubio pro reo, na referência ao processo disciplinar pendente. VI–Neste sentido, o recorrente beneficiou de 1 L.S.J. entre os dias 04 e 07 de novembro de 2022 e de 1 L.C.D. entre os dias 31 de dezembro de 2022 e 02 de janeiro de 2023, com avaliação positiva e sem qualquer incumprimento. VII–O recorrente encontrava-se em R.A.I. entre os dias 30 de novembro de 2022 e 10 de fevereiro de 2023. VIII–Ou seja, qualquer comportamento desviante surgiu em ambiente prisional, o qual, atenta a natureza das coisas, é mais suscetível à existência de comportamentos disciplinarmente relevantes, do que em liberdade. IX–E contrariamente à anterior apreciação da aplicação da liberdade condicional no período de ½ da pena de prisão, foi dado como provado, nesta fase, que “Investiu na sua permanência no E.P. em termos formativos e laborais”; X–O que, e salvo o devido respeito, tenderá a contrariar o argumento da douta sentença recorrida, que “Não demonstrou qualquer vontade em alterar o seu percurso de vida” XI–O recorrente demonstrou ter um projeto de vida, uma proposta de trabalho, uma companheira, um local para viver, um comportamento conforme o Direito em liberdade (já demonstrado nas licenças gozadas). XII–Daí, não se pode considerar que o tipo de infrações disciplinares praticadas pelo recorrente depois de se encontrar em R.A.I., e ter beneficiado, com sucesso, de medidas de flexibilização da pena, sejam um retrocesso, quando são uma consequência do seu processo de reinserção social – e tentativa de aproximação à sua companheira. XIII–Das infrações disciplinares do recorrente praticadas depois de se encontrar em R.A.I., não decorre qualquer agressividade perante terceiros ou o próprio, desacatos ou situações graves, ou sequer o desrespeito pelo direito de propriedade de outrem – o que frustra qualquer juízo de prognose que implique uma expetativa de que o condenado volte a delinquir no âmbito do mesmo tipo de crime. XIV–Como já decidiu esse Douto Tribunal da Relação1 “O essencial do juízo de prognose que há que fazer reporta-se aos bens jurídicos tutelados pelos tipos de crimes cometido e não a qualquer outra circunstância.”, o que, entendemos, não ocorrer no presente caso. XV–Logo, não se pode daí aferir que o recorrente não transmita garantias suficientes que não volte a delinquir, mas antes o contrário. XVI–Inclusivamente, no anterior recurso relativo à apreciação da aplicação da liberdade condicional2, cujos factos provados são, em tudo, semelhantes aos atuais – com a exceção de agora o recorrente “Investiu na sua permanência no E.P. em termos formativos e laborais” – se asseverou que “Por força do perdão de um ano de que o recluso, certamente, irá beneficiar ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que entrou em vigor a 1 de Setembro, o recorrente irá ver antecipada a reapreciação da liberdade condicional aos 2/3 da pena, sendo provável que dela irá beneficiar.” XVII–E ainda que as infrações disciplinares pressupusessem um comportamento de menor capacidade de reintegração, entendemos ser preferível a aplicação ao recorrente do regime de uma liberdade condicionada no remanescente do cumprimento da pena; a uma liberdade plena, pelo cumprimento da pena de prisão, sem qualquer orientação por parte do Estado. XVIII–Assim sendo, e com o devido respeito, entendemos que o tribunal a quo fez uma interpretação incorreta do vertido no artigo 61.º, n.º 2 do CP, encontrando-se preenchido, também, o requisito de ordem material de aplicação do instituto da liberdade condicional. Nestes termos e nos melhores de direito ao caso aplicáveis, e sempre com o douto suprimento de V. Exas. deve a presente apelação ser julgada procedente, e consequentemente, deve ser concedida a liberdade condicional ao recorrente, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!” * O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo. O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões: “A decisão recorrida não concedeu a liberdade condicional a AA, por referência aos dois terços das penas que cumpre, pela prática de 2 crimes de furto qualificado. Atentos os factos provados, é inegável que o recluso precisa de consolidar competências pessoais e sociais, de modo a adequar o seu comportamento à normatividade da vida em sociedade, para que não reincida na prática criminosa. O art. 61.º n.º 3, com referência ao n.º 2 al. a) do Código Penal, exige que, para a formulação do juízo de prognose sobre o comportamento futuro, se tenha em atenção as circunstâncias do caso, a vida anterior a personalidade e evolução desta durante a execução da pena de prisão, e também a sua relação com o crime cometido, como decorre também do art. 173.º n.º 1 al. a) do CEPMPL. O recorrente ainda não denota suficiente consciência reflexiva sobre os seus comportamentos desviantes e, embora verbalize vontade de mudança, apresenta ainda fragilidades pessoais que comprometem um juízo de prognose favorável quanto a tal desígnio, continuando a centrar os efeitos negativos da reclusão, essencialmente, na sua esfera pessoal. Por outro lado, subsiste alguma limitação ao nível do pensamento consequencial, traduzida em processo de tomada de decisão pouco refletidos, num registo de atuação marcadamente imediatista, a que acresce alguma indefinição na forma como se perspetiva o acesso, em meio livre, a atividade profissional/laboral. O primeiro passo para que se possa fazer um juízo de prognose favorável no sentido de futuro comportamento socialmente responsável e sem cometer crimes é, indubitavelmente, o reconhecimento sincero das consequências do crime e a manifestação de profundo arrependimento, garantindo uma aptidão séria para a mudança, o que o recluso ainda necessita de desenvolver. As referidas fragilidades pessoais constituem um forte fator de risco de reincidência e inviabiliza a concessão da liberdade condicional, mormente numa situação de delitos graves, em que se atentou contra bens jurídicos particularmente relevantes. O tempo de pena já cumprido e o curto período de tempo que (agora, após aplicação da lei do perdão) falta cumprir não garantem comportamento normativo fora de meio vigiado e, por si só, não devem nem podem determinar a concessão da liberdade condicional, ainda mais numa situação em que ainda subsistem as referenciadas vulnerabilidades. Quem pratica crimes tão graves, como aqueles que determinaram a reclusão aqui em causa, deve apresentar um percurso prisional consolidado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário, o que não é ainda o caso do recorrente. A decisão proferida contém fundamentação suficiente de modo a permitir compreender o seu teor e o processo lógico-mental que lhe serviu de suporte, fez correta interpretação e aplicação do direito, mormente, do art. 61.º n.º 3 e n.º 2 al a) do Código Penal, baseando-se nos elementos instrutórios, por unanimidade, desfavoráveis à liberdade condicional, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, pelo que deve ser mantida. Contudo V. Exas., decidindo, farão, como sempre JUSTIÇA” Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a argumentação já apresentada na primeira instância e pugnando, por isso, pela improcedência do recurso. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o recorrente apresentado resposta. Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. * II.–OBJETO DO RECURSO Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.») No caso, está em questão a concessão de liberdade condicional ao recluso AA, cumpridos que estão 2/3 da pena em que foi condenado, sendo que, de acordo com as conclusões apresentadas, o arguido apenas põe em causa o juízo sobre a falta de preenchimento dos pressupostos da concessão da liberdade condicional formulado pelo Tribunal a quo. * III.–FACTOS PROVADOS Da decisão recorrida consta (transcrição): “III–Os Factos Considerando a análise conjugada dos elementos existentes nos autos, em especial a certidão da decisão condenatória, o CRC, a ficha biográfica, o auto de audição do recluso, a acta da realização do conselho técnico, o parecer do Ministério Público, o parecer do Sr. Director do E.P., o relatório da DGRS e o relatório dos SEE do EP, pode dar-se como demonstrado o seguinte quadro factual: 1.–Cumpre (após aplicação da lei do perdão) uma pena de 3 anos e 10 meses de prisão, à ordem do processo nº 392/16.0GBAVV, do Juízo Local Criminal de Arcos de Valdevez, pela prática de 2 crimes de furto qualificado. 2.–Atingiu o meio desta pena em 05/12/2022, os dois terços em 25/07/2023, estando o termo da pena previsto para 05/11/2024. 3.–Fora as condenações supra, o recluso foi julgado e condenado pela prática de 1 crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e 1 crime de condução de veículo sem habilitação legal. 4.–Tem registadas 6 infracções disciplinares, a última de 10/04/2023. Tem uma infracção disciplinar pendente, de 04/11/2023. 5.–Beneficiou de 1 L.S.J. e 1 L.C.D., deixando de gozar tais medidas de flexibilização da pena por motivos disciplinares. 6.–Cumpre a pena em regime comum. Esteve em R.A.I. entre 30/11/2022 e 10/02/2023, suspenso por questões disciplinares. 7.–O recluso encontra-se pela primeira vez privado de liberdade, a cumprir 3 anos e 10 meses de prisão pela prática do crime de furto, após aplicação da Lei nº 38-A/23, pena que inicialmente tinha sido suspensa na sua execução. Assinala antecedentes criminais pela prática de crime similar. Beneficiou de uma suspensão provisória do processo mediante a imposição da prestação de 80 horas de trabalho a favor da comunidade no “...”, que cumpriu em Dezembro de 2015. O seu percurso criminal remete para défices de responsabilização e de pensamento consequencial, bem como alguma propensão para o alheamento face às convenções sociais. Os dados disponíveis indiciam tendência para agir de forma imponderada, sem consideração de hipotéticas consequências decorrentes das suas opções comportamentais, seja para si seja para terceiros. Ao nível do discurso reconhece a censura social quanto à desviância e verbaliza arrependimento, embora o direcione, com maior ênfase, para uma perspetiva de sofrimento pessoal. Centra ainda a conduta criminal numa vivência de vulnerabilidade pessoal, decorrente da sua imaturidade (à data tinha 18 anos) e dificuldades para a resolução de problemas, que promoveram o comportamento pró-criminal. Contudo, tais características, relacionadas com dificuldades de descentração, de pensamento consequencial e de responsabilização, não se encontram na atualidade devidamente minoradas. Prevalece ainda a tendência para orientar a sua atuação dando primazia à satisfação de interesses pessoais nos processos de tomada de decisão. A posse de quatro telemóveis em meio prisional, o processo disciplinar pendente que detém no gabinete jurídico e a vulnerabilidade relativamente ao seu enquadramento em meio livre remetem para necessidades subsistentes de reinserção social. Assim, a preparação da sua liberdade de forma responsável continua comprometida, o que remete para probabilidade de desajustamento e reincidência. 8.–Trabalhou na l… e, com a colocação em R.A.I., na brigada …, ficando suspenso da actividade laboral por motivos disciplinares, actividade laboral que ainda não retomou. 9.–Neste momento encontra-se a frequentar uma F.M.C. de competências digitais, cujo o termo de prevê para julho do corrente ano. 10.–No exterior conta com o apoio da sua companheira e da sua mãe. Em liberdade perspectiva trabalhar como ….” * IV.–FUNDAMENTAÇÃO O recorrente sustenta que, ao contrário do entendido na decisão recorrida, estão reunidos os pressupostos previstos no artigo 61º, nº 2, alíneas a) e b), do Código Penal, para a concessão de liberdade condicional aos dois terços da pena. O Ministério Público defende posição contrária, manifestando concordância com a decisão recorrida. Vejamos, pois. Tal como consta do preâmbulo do Código Penal, ponto 9, a libertação condicional tem como objetivo «criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.» Regulada nos artigos 61º a 64º do Código Penal e 173º a 188º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, a liberdade condicional assume hoje a natureza de um incidente de execução da pena de prisão. Como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.20173, “uma primeira questão que importa precisar é a de que a liberdade condicional «constitui uma forma de individualização da pena com vista à ressocialização do condenado em pena privativa de liberdade» e não uma medida de «premiar o bom comportamento, apenas e só, do recluso, neste caso seria um mero incidente e não uma medida de execução da sanção privativa da liberdade» (Moraes Rocha & Catarina Sá Gomes, Algumas notas sobre direito penitenciário, in Moraes Rocha, Entre a Reclusão e a Liberdade Estudos Penitenciários, vol. I, Almedina, 2005, pp. 42)”. Sobre os pressupostos para a concessão da liberdade condicional, aos dois terços da pena, situação que está em causa nos autos, dispõe o artigo 61º do Código Penal (na redação dada pela Lei nº 59/2007, de 24 de novembro): «1. A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado; 2. O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses, se: a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social. 3. O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior. (…).» Assim, citando ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2017, há que considerar que “o legislador neste marco da pena, abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito de prevenção geral, considerando que o/a condenado/a já cumpriu uma parte significativa de prisão e que, por conseguinte, tais exigências já estarão minimamente garantidas. Donde, aos dois terços da pena temos apenas como requisito a expectativa de que o condenado/a em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes, ou seja prevenção especial, na perspectiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa). Pelo que, no respeita aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudança e regeneração (ressocialização) e na prevenção de cometimento de novos crimes. Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo da prognose possível sobre o que irá ser o comportamento futuro do recluso no que respeita a reiteração criminosa e seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.” Temos, assim, que a concessão de liberdade condicional, aos dois terços da pena, está dependente da verificação dos seguintes pressupostos: - Que o recluso tenha cumprido dois terços da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão; - Que aceite ser libertado condicionalmente. - Que exista a formulação de um juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Os dois primeiros pressupostos, de índole formal e que respeitam ao consentimento do condenado e ao período de prisão já cumprido, este último quando está em causa o cumprimento de uma única pena de prisão (o mesmo poderá não acontecer quando se trate do cumprimento de penas sucessivas), não suscitam problemas e, no caso vertente, mostram-se preenchidos. Já assim não acontece – e é precisamente essa a questão suscitada no presente recurso – com o pressuposto dito substancial ou material, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, aplicável por remissão do nº 3 do mesmo preceito legal, e que se reconduz a que seja de esperar fundadamente que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes. Este pressuposto assegura uma finalidade de prevenção especial, de socialização. A concessão da liberdade condicional, neste caso, depende, assim, no essencial, da formulação de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado4, assente na ponderação de razões de prevenção especial. Para a formulação do juízo de prognose sobre o comportamento do condenado, em liberdade, o tribunal atenderá, aos critérios estabelecidos na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, quais sejam: 1) as circunstâncias do caso; 2) a vida anterior do agente; 3) a sua personalidade e 4) a evolução desta durante a execução da pena de prisão. Assim, se ponderados tais critérios, for possível concluir, em termos de fundadamente ser expectável (aceitando, obviamente, “um risco prudencial”5), que uma vez em liberdade, o condenado conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, será formulado juízo de prognose favorável e, consequentemente, a liberdade condicional poderá ser concedida, o que não acontecerá na situação inversa – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.09.20216. A formulação deste essencial juízo de prognose tem, pois, que assentar numa expectativa fundada de que o perigo de perturbação da paz jurídica, resultante da libertação, possa ser comunitariamente suportado, por a execução da pena ter concorrido, em alguma medida, para a socialização do delinquente. Ensina Figueiredo Dias7 que, ao contrário do prognóstico para efeito de suspensão da execução da pena, “o prognóstico para efeito de concessão da liberdade condicional deve, numa certa medida, ser «menos exigente» (o que não deixa de compreender-se, porque o condenado já cumpriu uma parte da pena e dela se esperará que possa, em alguma medida, ter concorrido para a sua socialização); se ainda aqui deve exigir-se uma certa medida de probabilidade de, no caso da libertação imediata do condenado, este conduzir a sua vida em liberdade de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, essa medida deve ser a suficiente para emprestar fundamento razoável à expectativa de que o risco da libertação já possa ser comunitariamente suportado”. Todavia, tem de manter-se presente que a concessão da liberdade condicional cumpridos 2/3 (ou metade) da pena, não é automática, nem exigida por razões de necessidade de reinserção que não contemplem o juízo a que se aludiu. Acresce, ainda, que o cumprimento por inteiro da pena, se necessário, cabe dentro da culpa do condenado, pois que a pena aplicada na sentença condenatória não ultrapassou a medida da culpa. Porém, como faz notar Joaquim Boavida8: «Na dúvida, a liberdade condicional não será concedida. É sabido que na fase de julgamento, a dúvida sobre a realidade de um facto é resolvida a favor do arguido, em decorrência do princípio in dubio pro reo. Na fase de execução da pena de prisão e da consequente apreciação da liberdade condicional esse princípio não tem aplicação. A lei exige, na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, para que o condenado seja colocado em liberdade, que seja possível concluir por um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro sem reincidência, ou seja, exige um juízo positivo e só nesse caso a medida será aplicada. Portanto, em caso de dúvida séria, que não possa ser ultrapassada, sobre o caráter favorável da prognose, o juízo deve ser desfavorável e a liberdade condicional negada.» Tendo presentes estas considerações, voltemos então ao caso dos autos. Tal como já se referiu acima, os pressupostos formais da liberdade condicional mostram-se preenchidos, posto que o recorrente já cumpriu dois terços da pena de três anos e dez meses de prisão a que foi condenado e declarou aceitar a liberdade condicional. Em relação ao pressuposto substancial ou material, entendeu o Tribunal a quo não estar o mesmo verificado, o que fundamentou do seguinte modo: “O recluso tem passado criminal sendo esta a sua 1ª reclusão. Foram tentadas previamente soluções não privativas da liberdade a fim de afastar o recluso da prática de ulteriores crimes, todas sem sucesso, culminando com a actual reclusão. Beneficiou de Medidas de Flexibilização da Pena, 1 L.S.J. e 1 L.C.D., suspensas por motivos disciplinares, gozo que importa consolidar, no sentido de testar o seu comportamento, nomeadamente a sua adesão a comportamentos normativos, em liberdade. Tem um percurso disciplinar com 6 infracções disciplinares registadas, a última de 10/04/2023. Tem pendente uma infracção disciplinar, de 04/11/2023. O seu percurso disciplinar aponta para uma dificuldade em manter o seu comportamento consistentemente normativo, mesmo em meio prisional, dificultando de sobremaneira a elaboração de um juízo de prognose favorável de que o terá quando em liberdade. Investiu na sua permanência no E.P. em termos formativos e laborais, encontrando-se actualmente laboralmente inactivo por motivos disciplinares. Demonstra pouca consciência crítica face aos factos por cuja prática foi condenado. Não demonstrou qualquer vontade em alterar o seu percurso de vida. O recluso revela uma personalidade imatura e impreparada para respeitar os comandos jurídico criminais que a vida da sociedade impõe, avultando uma fragilidade ao nível da interiorização da conduta criminal, sendo fraco o seu juízo crítico e, consequentemente, a sua motivação para a mudança, factores estes que não transmitem garantias suficientes de que aquele tenha criado os contraestímulos adequados à tendência criminosa e aptidão para se reinserir socialmente. Verificam-se, assim, as apontadas necessidades de prevenção especial. Concordamos assim com o Ministério Público e o Conselho Técnico, sendo ainda prematura a concessão da liberdade condicional.” No essencial, concordamos com a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo para concluir não estarem reunidos, no caso e relativamente ao recorrente, todos os pressupostos da concessão da liberdade condicional, nomeadamente o previsto na alínea a) do nº 2, do artigo 61º do Código Penal, não assistindo razão ao recorrente, quando defende a posição contrária. Senão vejamos: Todos os elementos do processo – relatório da DGRSP e parecer do Conselho Técnico e do Ministério Público, unanimemente desfavoráveis – apontam no sentido da decisão que veio a ser tomada, a de não concessão da liberdade condicional, ancorando-se no contacto direto com o recluso e na perceção colhida quanto à real possibilidade de que, uma vez em liberdade, não volte a cometer crimes. Na verdade, quanto ao juízo de prognose acerca do comportamento futuro do recluso, em liberdade, ponderando as circunstâncias do caso, revelando o recorrente uma personalidade desconforme ao direito, refletida nos factos por cuja prática foi condenado, estando a cumprir pena por crimes de furto qualificado, assumindo os factos/crime gravidade relevante e considerando a postura do recorrente, face aos crimes cometidos, sendo que persiste em desculpabilizar-se, centrando a respetiva conduta criminal numa vivência de vulnerabilidade pessoal, decorrente da sua imaturidade e consequente permeabilidade à influência de terceiros, insistindo na sua vitimização, sem revelar qualquer reconhecimento do prejuízo causado – em contrário do que seria de esperar, com a virtualidade de poder levar a considerar existir suficiente interiorização do desvalor da sua conduta criminosa, o que não é o caso, sendo a postura do recluso face aos factos/crime cometidos, reveladora de que necessita de consolidar essa interiorização, sendo esse um fator determinante, para que não volte a delinquir. Note-se que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, o que releva na formulação do juízo de prognose favorável à concessão da liberdade condicional é a fundada expectativa de que, uma vez em liberdade, o condenado seja capaz de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes – e não apenas crimes do tipo do que conduziu à sua reclusão. Sendo verdade que, como se considerou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.20169, que cita no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.10.201210, «não é requisito necessário de concessão da liberdade condicional que o condenado assuma o crime, revele arrependimento e interiorize a sua culpa». Também aí se reconhece que «essa assunção e interiorização da culpa e arrependimento são desejáveis e valoráveis e que a ausência de assunção e de arrependimento podem ser valorados negativamente, podendo significar a existência do perigo de cometimento de novos crimes. Contudo, essa postura não é automaticamente excludente, não é – não pode ser – condição sine qua non da concessão da liberdade condicional.» No caso, regista-se também tal ausência de reconhecimento do desvalor dos atos praticados, evidenciando o condenado, como reflete o parecer elaborado pela DGRSP, “défices de responsabilização e de pensamento consequencial, bem como alguma propensão para o alheamento face às convenções sociais. Os dados disponíveis indiciam tendência para agir de forma imponderada, sem consideração de hipotéticas consequências decorrentes das suas opções comportamentais, seja para si seja para terceiros”. Tais considerações – que, inevitavelmente, vêm aliar-se ao registo disciplinar que o condenado vem acumulando – não permitem qualquer previsão tranquilizadora quanto ao modo como o mesmo virá a conduzir a sua vida, uma vez colocado em liberdade. A tal acresce que as perspetivas de inserção laboral apresentadas são, no mínimo, vagas. Registe-se, a este respeito, que o parecer elaborado pela DGRSP, dá conta de que “Os dados disponíveis e os recolhidos remetem para que antes da reclusão não tenha adquirido hábitos de trabalho, apesar de, ter trabalhado em Espanha durante um curto período na agricultura, e durante o tempo em que permaneceu nos ...), cerca de 2 anos, ter desempenhado tarefas na área da jardinagem na empresa do padrasto. Todavia, tais atividades não contribuíram para a estabilização individual e da sua empregabilidade, o que remete na atualidade para um dos fatores de risco de ordem criminógena importante, quer pela ausência de hábitos e rotinas de trabalho quer pelas dificuldades económicas decorrentes.” Perante isto, o recorrente apenas apresenta projetos vagos, envolvendo um potencial exercício de atividades para as quais não possui qualquer formação técnica ou experiência profissional anterior. Por outro lado, ao contrário do pretendido pelo recorrente, não podem desvalorizar-se as sanções disciplinares de que foi alvo (que são já seis – mesmo não levando em conta a reportada a 04.11.202311), na medida em que constituem evidência de uma personalidade avessa ao cumprimento de regras e à assunção de responsabilidades – o que, aliás, se denuncia como um traço de carater do condenado aqui em apreço. Para que o sinal de sentido inverso possa vir a ser afirmado, no futuro, é determinante que o recorrente atinja alguma interiorização crítica do desvalor da sua conduta criminosa e, sobretudo, uma alteração relevante ao nível do pensamento consequencial e aquisição de competências pessoais que lhe permitam “aumentar a sua capacidade de mobilização para objetivos pró-sociais”, fatores determinantes para que, em meio livre, não venha a reiterar a prática de crimes, mormente da natureza daqueles por cuja prática se encontra a cumprir pena. Acompanhando, mais uma vez, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2017, diremos que “entre outros elementos, a atitude face ao crime é relevante porque permite percepcionar o sentido crítico do recluso face aos próprios comportamentos ilícitos determinantes da reclusão e o seu impacto negativo relativamente à vítima em concreto. Como já se referiu, o adequado comportamento institucional do recluso e tempo de pena já cumprido, por si só, não podem determinar a concessão da liberdade condicional, sendo que o juízo holístico impõe que se considere a consciência crítica e a interiorização do desvalor da sua própria actuação, determinante da sua condenação e consequente reclusão. (…) Perante a gravidade da situação que motivou a reclusão e os elementos fornecidos nos autos, nomeadamente o relatório de reinserção social, surge acertada a asserção de que «a reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno. Quem não logra percepcionar em plenitude o mal cometido, dificilmente possui mecanismos passíveis de evitar a repetição da sua conduta. Como explicitam João Luís de Moraes Rocha e Sónia Maria Silva Constantino (in “Reclusão e Mudança” - “Entre a Reclusão e a Liberdade”, Vol. II, Pensar a Reclusão, Almedina, pág. 171), sem interiorização da responsabilidade dificilmente será possível alterar comportamentos. E, sem interiorização, coloca-se a possibilidade de recidiva a qual, sendo provável, obsta à concessão da liberdade condicional no marco dos 2/3 da pena.” Nesta conformidade, entendemos que, neste momento, ainda não é possível fazer um juízo de prognose favorável em relação ao recluso/recorrente, no sentido de que, caso seja colocado em liberdade condicional, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes e, nessa medida, a sua libertação antecipada, aos dois terços da pena, não se afigura possível. Por conseguinte, concluímos não estarem verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional, nomeadamente o previsto na alínea a) do nº 2, do artigo 61º do Código Penal, pelo que, tem de manter-se a decisão de não concessão da liberdade condicional ao recluso/recorrente, que respeitou os critérios legais e não violou as normas legais invocadas pelo recorrente. Improcede, pois, o recurso. * V.–Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso apresentado por AA. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC. Notifique. * Lisboa, 02 de julho de 2024 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal) Sandra Oliveira Pinto (Juíza Desembargadora Relatora) Luísa Oliveira Alvoeiro (Juíza Desembargadora Adjunta) Rui Coelho (Juiz Desembargador Adjunto) 1.-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com o nº de processo 6530/10.9TXLSB- N.L1–3, datado de 28.01.2015 e disponível online. 2.-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com o nº de processo 591/20.0TXPRT-I.L1, datado de 5 de setembro de 2023, que se anexa. 3.-No processo nº 2284/13.5TXLSB.N.L1-3, Relator: Desembargador Moraes Rocha, acessível em www.dgsi.pt. 4.-Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 540. 5.-Jescheck – Tratado de Derecho Penal. Parte General, 3ª edição, Barcelona, Boch, pág. 770. 6.-No processo nº 480/20.0TXEVR-C.E1, Relatora: Desembargadora Fátima Bernardes, acessível em www.dgsi.pt. 7.-Ob. cit., pág. 539. 8.-A Flexibilização da Prisão, Almedina, 2018, pág. 137. 9.-No processo nº 224/16.9TXLSB-D.L1-3, Relator: Desembargador Jorge Raposo, acessível em www.dgsi.pt. 10.-No processo nº 1796/10.7TXCBR-H.P1, Relator: Desembargador Pedro Vaz Pato, também acessível em www.dgsi.pt. 11.-Registe-se, a este respeito, que inexiste qualquer violação do princípio in dubio pro reo, o qual constitui decorrência da presunção de inocência de qualquer arguido até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, e que, por assim ser, não tem aplicação na fase de execução da pena. Sendo, por outro lado, certo que a decisão recorrida não deu como assente que o condenado viria a ser punido pela infração disciplinar denunciada em novembro de 2023 (apenas registou a existência desse procedimento). |