Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2104/16.9T8TVD.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO LEGAL
MUDANÇA
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Tendo o Autor alegado na petição inicial que a servidão de passagem tinha determinadas dimensões, mas tendo resultado de prova pericial requerida pelas partes que as medidas concretas eram diferentes, esses factos, tal como assim apurados, devem ser dados por provados, porque resultam da instrução do processo e sobre eles tiveram as partes oportunidade de se pronunciar na sequência da apresentação do relatório pericial, do qual puderam apresentar reclamação e até pedir esclarecimentos em audiência final (cfr. Art. 5.º n.º 2 al. b) do C.P.C.).

2.Nessas circunstâncias não há alteração da causa de pedir, pois a servidão continuou a ser sempre a mesma, com a mesma configuração e medidas de largura e comprimento, só que se concretizaram melhor as suas dimensões efetivas.

3.Quanto ao pedido de reconhecimento dessa servidão, considerando que a factualidade em que assentava essa pretensão se mostra melhor concretizada, por força da instrução da causa e dos factos dados por provados, deve a sentença poder ser corrigida no sentido de reconhecer esse direito em coerência com a matéria de facto provada (cfr. Art. 607.º n.º 4 “ex vi” Art. 663.º n.º 2 do C.P.C.), sem que tal correção signifique uma condenação em objeto ou quantidade diversa do pedido (cfr. Art. 609.º n.º 1 do C.P.C.).

4.O Art. 609º n.º 1 do C.P.C. deve ser interpretado de modo flexível por forma a permitir ao tribunal corrigir o pedido, compadecendo-se com o poder de o juiz apurar a correção dos factos e, consequentemente, proceder à retificação do pedido, em perfeita coerência interna e recíproca com a matéria de facto provada, tendo em atenção o disposto no Art. 5.º n.º 2 do C.P.C., desde que não sejam violados, de forma grosseira, o princípio dispositivo e do contraditório.

5.Uma servidão de passagem, independentemente de ter sido constituída por usucapião, que corresponda à satisfação do direito potestativo previsto no Art. 1550.º n.º 1 do C.C., é objetivamente uma “servidão legal”, porque se essa serventia não existisse de facto, sempre teria de ser constituída de forma coerciva por decisão judicial.

6.Permitindo a lei a possibilidade de extinção da servidão de passagem constituída por usucapião, por desnecessidade (Art. 1569.º n.º 2 do C.C.), também não existem motivos relevantes para afastar a possibilidade de alteração dessa servidão, tendo em conta o caráter injuntivo do Art. 1568.º do C.C., por força do n.º 4 desse preceito.

7.No caso, o caminho existente servia pelo menos 3 prédios dominantes encravados, sendo que a alteração da servidão de passagem proposta pelo titular do prédio serviente, causava-lhe menor prejuízo, porquanto o novo caminho ocuparia uma área inferior e situava-se numa estrema do seu prédio, deixando consequentemente a serventia de passar pelo meio da sua propriedade.

8.No entanto, constatando-se que esse novo caminho proposto não permitiria assegurar a acessibilidade à via pública a 2 dos prédios dominantes, falha o requisito para a possibilidade mudança de servidão, tal como pretendida, relativo a verificar-se que essa alteração não viria a prejudicar os interesses dos proprietários dos prédios dominantes (Art. 1568.º n.º 1 do C.C.).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


A veio intentar a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra B  e  C, pedindo a condenação dos R.R. nos seguintes termos:

(i)-a reconhecer que o A. é dono e legítimo possuidor do prédio rústico com o artigo matricial Nº ...-Secção T, que melhor identifica;
(ii)-a reconhecer a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do seu prédio, correspondente a uma faixa de terreno com a largura de cerca de 3,5 metros e 45 metros de comprimento, que atravessa o prédio dos réus com o artigo matricial Nº ...-Secção T;
(iii)-a reporem o leito da identificada servidão de passagem no estado em que se encontrava em momento anterior à terraplanagem que realizaram em toda a extensão e largura do seu (dos R.R.) prédio;
(iv)-a absterem-se de modificar, por qualquer meio, o leito da mesma servidão de passagem;
(v)-a absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do autor ao seu prédio;
(vi)-a colocarem, a expensas suas, muro de suporte na confrontação Norte do seu (dos R.R.) prédio com o prédio do autor, que sustente as terras da sua (dos R.R.) propriedade;
(vii)-a colocarem a expensas suas na estrema Norte do seu (dos R.R.) prédio, que confina com o prédio do autor, quer em toda a área que vedaram, quer na área que deixaram sem qualquer vedação, sistema para escoamento das águas pluviais; e
(viii)-a indemnizarem o A. por todos os prejuízos, já previsíveis mas ainda não determináveis nem passíveis de contabilização, que resultaram e venham a resultar da dificuldade de acesso ao seu prédio, assim como do assolamento do mesmo provocado pela conduta dos réus, sendo esta a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, alega ser proprietário do prédio rústico com o artigo matricial Nº ..., que confina a Sul com o prédio dos R.R., com o artigo matricial Nº ..., sendo que o primeiro se encontra encravado.

Especificou que adquiriu tal prédio por partilha por óbito dos seus pais, que por seu turno o haviam adquirido por partilha por óbito dos seus avós, sendo que o acesso à sua propriedade sempre se fez através de uma serventia que atravessa o prédio dos R.R..

Sucede que, desde há 5 ou 6 anos, os R.R. têm utilizado o prédio que lhes pertence para depositar entulhos e terras e, em Outubro de 2016, realizaram obras de movimentação de terras no mesmo, com isso destruindo a aludida servidão de passagem e fazendo com que o prédio do A. ficasse a uma cota inferior de 3 metros na estrema onde confinam os dois prédios, além de terem colocado postes em cimento ao redor do prédio dos R.R..

Após o A. ter derrubado dois postes colocados no acesso à servidão, os R.R. vedaram o seu prédio, deixando, contudo, abertura para acesso à mesma servidão e também para uma nova servidão que criaram.

Com efeito, os R.R. criaram um novo caminho para ligação do prédio do A. à via pública, na estrema poente do prédio dos R.R., por onde passaram a correr em enxurrada as águas pluviais em direção ao prédio do A..

Conclui o A., por um lado, ter direito ao reconhecimento da constituição de uma servidão de passagem por usucapião e, por outro, que os R.R., por via das referidas condutas, violaram o seu direito de propriedade.

Citados, os R.R. contestaram e deduziram reconvenção, alegando que nunca existiu qualquer servidão de passagem, constituída por usucapião sobre o seu prédio, a favor do prédio do A., mas existe, sim, a possibilidade da constituição de uma servidão legal por força do encravamento deste último. Porém, tal servidão legal deverá ser constituída no lugar onde cause menos inconveniente ao prédio onerado, que é o dos R.R.. Ora, existindo dois caminhos ou acessos, o que causa menor prejuízo ao prédio dos R.R. é aquele que criaram em Outubro de 2016, na estrema poente do mesmo, uma vez que a servidão, no lugar pretendido pelo A., ocupa mais área, divide o seu prédio ao meio e impossibilita-os de o afetarem à construção de uma clínica veterinária como desejam.
Em sede de reconvenção, pedem os R.R. que, caso venha a ser reconhecida a necessidade de uma servidão legal de passagem que onere o seu prédio, seja a mesma constituída através do referido acesso existente na estrema poente, por ser a solução que lhes causa menor prejuízo. Subsidiariamente, caso improceda tal pedido, deverá o A. ser condenado no pagamento de uma indemnização no valor de €2.362,50, em contrapartida da criação de uma servidão de passagem, correspondente ao valor da área ocupada por tal servidão (cerca de 157,50 m2).

O A. replicou, impugnando de facto e de direito a contestação, mantendo a sua posição vertida na petição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção.

Findos os articulados, foi designada audiência prévia, na qual foi determinada a realização de prova pericial com vista à fixação do valor da causa.

Realizada essa perícia, veio então a ser fixado o valor da causa e admitida a reconvenção, fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova e, no final, admitida a prova requerida pelas partes, que passou pela produção de prova pericial.

Realizadas as diligências instrutórias prévias, veio então a ser designada audiência final e, após a produção de prova e discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

«a)-Julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
(i)-Condenar os R.R. a reconhecerem que o A. é proprietário do prédio rústico denominado “Barreira P.....”, sito em L....., concelho de C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº... da secção T, da União das Freguesias de L..... e C....., e descrito na Conservatória do Registo Predial do C_____ sob o nº 5... da Freguesia de L.....;
(ii)-Condenar os R.R. a reconhecerem a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do prédio do autor referido na alínea anterior (prédio dominante), sobre o prédio dos réus sito na Barreira P....., Lugar Rocha....., na Freguesia de L....., no concelho do C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº ... da secção T e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o Nº 1... (prédio serviente), servidão essa, constituída por caminho, em terra batida, com a largura de 3,5 metros e 45 metros de comprimento, que atravessa o prédio dos réus no sentido Sul/Norte, com início na Rua do M....., e que é destinada ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas;
(iii)-Condenar os R.R. a absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do A. ao seu prédio;
(iv)-Condenar os R.R., solidariamente, a colocarem a expensas suas, muro de suporte na confrontação Norte do seu (dos R.R.) prédio, que confina com o prédio do A., apta a sustentar as terras e os entulhos provenientes do seu (dos R.R.) prédio;
(v)-Condenar os R.R., solidariamente, a colocarem a expensas suas na estrema Norte do seu (dos R.R.) prédio, que confina com o prédio do A., um sistema adequado ao escoamento ordenado das águas pluviais;
(vi)-Condenar os R.R., solidariamente, a indemnizarem o A. por todos os danos sofridos e que venha a sofrer em consequência do escoamento desordenado e descontrolado de águas pluviais no seu prédio e da invasão de terras e entulhos no seu prédio, provenientes do prédio dos réus, e que são resultado das obras efetuadas pelos R.R. no seu (deles) prédio, quer de movimentação de terras, quer de criação de um caminho a poente [em conformidade com os factos provados das alíneas 12), 15), 16), 17) e 24)], sendo estes danos a liquidar em incidente de liquidação;
(vii)-Absolver os R.R. de tudo o mais peticionado pelo A.;
b)- Julgar a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo o A. de todos os pedidos dos R.R.; (…)»

É dessa sentença que os R.R. vêm agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A)Os apelante, não concordam nem aceitam a Douta Sentença proferida pois entendem que a mesma é nula, uma vez que os fundamentos estão em oposição à decisão, existindo ainda ambiguidades que a tornam ininteligível e inócua, padecendo de erro de facto e de direito que viola os artigos 1547.º, 1550.º, 1553.º e 1554.º, todos do Código Civil.
B)A condenação constante do ponto (i) da alínea a) da Douta Sentença, não deveria ter ocorrido em virtude de as partes terem chegado a um acordo quanto à propriedade, confrontações e área do prédio do apelado, com o artigo matricial Nº ..., pelo que quanto a este facto, a condenação proferida deveria ter sido substituída por uma homologação dum acordo alcançado nos autos e não por condenação.
C)A condenação exposta no ponto (ii) da alínea a) da Douta Sentença, resulta de o Tribunal a quo ter dado como provado o facto 7), que salvo melhor opinião não poderia ter sido dado como provado, porquanto existe prova pericial e testemunhal que o contraria.
D)A perícia de fls.. 164 a 177 com a referência Citius 9846653, conclui que a serventia de passagem reconhecida na Douta Sentença em crise tem uma largura variável entre o 2,10 (dois virgula dez) metros e os 3,60 (três virgula sessenta) metros, e que na ligação à “Rua do M.....” a largura é superior a 4,50 (quatro virgula cinquenta) metros e um comprimento de 55,00 (cinquenta e cinco) metros com início na Rua do M..... fletindo para nascente e depois para norte alcançando assim a estrema com o artigo Nº ..., e não as dimensões que constam na Douta Sentença.
E)Também as testemunhas inquiridas sobre as dimensões da serventia de passagem, nomeadamente Fernando ….. e António ….., e cujos depoimentos nesta parte se encontram acima transcritos e que aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos, demostram incerteza quanto às dimensões, sendo contraditória entre si, e não atestam a versão constante da Sentença recorrida.
F)A dimensão de uma serventia é um facto concreto e facilmente determinável, sendo que existindo uma perícia sobre tal facto, e apesar da livre apreciação da prova, este facto não está sujeito a conhecimentos arbitrários e/ou subjetivos.
G)O Tribunal a quo ao condenar os Apelantes como o fez no ponto (ii) da alínea a), sem cuidar da dimensão da servidão torna a sentença ininteligível, e na prática condena os Apelantes num pedido diferente do formulado, pois os Apelantes apenas são obrigados a reconhecer uma servidão de passagem com o comprimento de 45 (quarenta e cinco) metros lineares, resultando numa servidão que não terá qualquer utilidade ao Apelado, pois faltam 10 (dez) metros para atingir o seu prédio.
H)No entanto, a Douta Sentença recorrida ao condenar os Apelantes, no ponto (iii) da alínea a) “a absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do autor ao seu prédio”, obriga, ao contrário do anteriormente decidido em (ii), a ceder 55 (cinquenta e cinco) metros de comprimento, pedido que o Apelado não fez e vai para além do peticionado por este, gerando uma contradição insanável, originadora de insegurança jurídica para os Apelantes, para o Apelado ou para algum terceiro de boa – fé que após o registo da servidão ora em crise, adquira o prédio serviente ou dominante.
I)O Tribunal a quo, não podia dar como provado, como fez o facto descrito sob 7), devendo tal facto ser dado como não provado e o Tribunal a quo ao não fazê-lo torna a Douta Sentença ininteligível, e portanto nula.
J)O Tribunal a quo errou ao efetuar a condenação vertida no ponto (iv) da alínea a) da Douta Sentença, fazendo tábua rasa da perícia do Sr. Perito MF....., junta aos autos a fls. 117 a 126 e dos posteriores esclarecimentos de fls. 141 a 144 que foi perentório ao afirmar que “A configuração atual não impede o uso económico da parcela do art.º N.º ... no uso agrícola efetivo que tem, nem constitui perigo de escorregamento”
K)Também o Sr. Perito prestou esclarecimentos em sede de audiência de discussão e julgamento, onde aos minutos 7:02, 11:25, 14:53 e 18:32, conforme transcrições acima efetuadas e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, corrobora e explica a sua posição, resultando inequivocamente da avaliação pericial, que não há perigo de escorregamento de terras, nem a configuração atual afeta a utilidade de qualquer um dos prédios e que qualquer obra a realizar depende sempre do tipo de construção que se venha a realizar, em qualquer um dos prédios e com licenciamento camarário
L)Nenhuma testemunha arrolada identificou ou concretizou datas ou períodos de tempo em que tenha ocorrido escorregamento ou qualquer tipo de dano provocado por eventual queda de terras.
M)Existe uma contradição insanável entre o facto provado 13) e o facto provado 17), pois a considerar-se provado que os Apelantes ergueram postes em cimento e uma vedação em torno do seu prédio, esta seguramente evitaria que o prédio do Apelado fosse invadido por entulhos e terra.
N)Resulta assim, salvo melhor opinião, que o facto dado como provado sob 17) teria obviamente de ser dado como não provado e consequentemente revertida a decisão condenatória constante do ponto (iv) da alínea a) da Douta Sentença recorrida.
O)Também deveriam os Apelantes ser absolvidos da condenação a que foram sujeitos no ponto (v) da Douta Sentença, porquanto a parte inicial do ponto 15), no que se refere à criação de um caminho e 16) dos factos provados deviam ter sido dado como não provados.
P)Tal conclusão resulta dos esclarecimentos isentos do Sr. Perito MF..... ao minuto 8:15 e 14:53, ambos anteriormente transcritos e que aqui se dão por reproduzidos conjugado com o depoimento pouco credível da esposa do Apelado, com manifesto interesse na decisão da causa e dos documentos 10 e 16 juntos com a petição inicial
Q)Os esclarecimentos do Sr. Peritos foram claros ao declarar que o caminho que os Apelantes destinaram na estrema poente como servidão de passagem a favor do prédio do Apelado, não foi modificado, que é o terreno natural, junto a casas e postes elétricos de media tensão, e que as águas que atravessam o prédio dos Apelantes para o prédio do Apelado é uma consequência da orografia da localidade.
R)A esposa do Apelado, no seu depoimento criou a convicção que o encaminhamento das águas se deveu à vedação do prédio dos Apelados por estes, quando na verdade a vedação foi efetuada apenas com rede.
S)Tal depoimento é contrariado, não só pelos esclarecimentos do Sr. Perito como também pelos documentos 10 e 16 juntos com a Petição inicial onde se constata que a estrada, denominada Rua do M..... é plana, sendo que a orografia da localidade a que o Sr. Perito se refere é junto às casas e aos postes de média tensão.
T)Também, como resulta da douta fundamentação existe uma manilha, onde anteriormente as águas corriam do terreno dos Apelantes para o do Apelado que recolhe as águas pluviais das terras e da povoação situada a sul, ou seja, que recolhe a água que cai na denominada Rua do M....., sendo assim evidente que a água que corre junto à estrema poente resulta da orografia existente e não de qualquer ação efetuada pelos Apelantes.
U)Tais conclusões teriam sido facilmente aprendidas pelo Douto Tribunal a quo, se este não tivesse recusado inspeção judicial ao local, e aí ter constatado que os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Apelado, e sobretudo o depoimento da esposa deste não correspondiam à realidade factual e orográfica do local.
V)Por conseguinte o facto dado como provado no ponto 15, na parte em que os Apelantes criaram um caminho, na estrema poente, não corresponde à verdade, limitando-se estes, como resulta do facto provado 14) a deixar acesso para o Apelado aceder ao seu prédio, como também não corresponde à verdade o facto dado como provado no ponto 16), pelo que ambos deveriam ter sido considerados não provados, e consequentemente serem os Apelados absolvidos no que respeita ao ponto (iv) da alínea a) da Douta Sentença em crise.
W)Do mesmo modo, e por ser decorrência do anteriormente explanado também a condenação aplicada sob ponto (v), da alínea a), da Douta Sentença deve ser revogado, pois, salvo melhor opinião, resulta provado que as águas que correm para o prédio do Apelado, não resultam de qualquer ação dos Apelantes no seu prédio, mas sim da orografia da localidade e terreno, pois como conclui a perícia ordenada “A configuração atual não impede o uso económico da parcela do art.º N.º ... no uso agrícola efetivo que tem, nem constitui perigo de escorregamento”
X)Salvo melhor opinião, a reconvenção formulada pelos Apelantes teria que ser procedente, uma vez que foram dados como provados factos que teriam de originar decisão contrária à tomada, pelo que a Douta Sentença recorrida, ao não os tomar em consideração na sua decisão, coloca-a em contradição com a sua fundamentação.

Y)Com a reconvenção pretendia-se que fossem decididas as seguintes questões:
 “c)-Se por força do encrave do prédio do autor, a servidão de passagem a que este tem direito é de natureza legal e deverá ser constituída no lugar pretendido pelos réus, por ser o que causa menor prejuízo ao seu (deles) prédio; e
d)-Se os réus têm direito a ser indemnizados pelo autor em consequência da constituição de servidão de passagem.”

Z)O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos relevantes para a decisão da reconvenção, sob 6) que (…) “ o prédio identificado em 1) confronta a Sul com o prédio identificado em 4) e encontra-se em situação de encrave, só tendo acesso à via pública através de passagem pelo último.”, e sob o facto provado 15) que existe (…) “um caminho para permitir o acesso do prédio identificado em 1) à via pública, situado na estrema poente do prédio identificado em 4), no sentido Sul/Norte, com início na Rua do M..... e com um comprimento de 24,50 metros e uma largura que varia entre 3,94 metros e 3,44 metros., tendo-se socorrido da perícia de fls. 164 a 177 para aferir as dimensões do referido caminho.
AA)A referida perícia de fls. 164 a 177 apenas foi considerada para aferir as dimensões do caminho existente na estrema poente do prédio dos Apelantes, sendo desconsiderada, sem razão justificável, quanto à dimensão da servidão de passagem reconhecida na Douta sentença em crise e omitindo e decidindo em sentido contrário ao respondido no quesito 3.
BB)No quesito 3 pretendia-se obter resposta sobre “Qual a área necessária à utilização prática e segura de cada um dos acessos, nos diferentes sentidos de marcha, as suas configurações e desníveis, com referência à via pública denominada Rua do M....., no pressuposto que sobre eles passarão veículos, nomeadamente tratores, com ou sem reboque?”, sendo esclarecido pelo Sr. Perito que “Ambos os acessos têm as áreas suficientes para a utilização prática e segura em condições normais do tipo de veículo indicado, exceto no que diz respeito ao comprimento máximo, pois neste aspeto nenhum deles o permite.”
CC)Contudo o Tribunal a quo, sem qualquer outra prova e ao arrepio do peritado deu como não provado, sob a alínea f), que o caminho referido em 15) permite o trânsito adequado de veículos, nomeadamente máquinas agrícolas, pelo que tal facto encontra-se erradamente julgado devendo o mesmo ser dado como provado atenta a perícia acima citada e constante dos autos.
DD)Também o facto dado como não provado sob a alínea g), encontra-se erradamente julgado, pois, salvo melhor opinião, tal facto resulta provado.
EE)Resulta provado no ponto 18) e 19) que os Apelantes pretendem (…) “construir no seu prédio uma clínica veterinária com capacidade de albergar animais de grande porte” e que o caminho pretendido pelo Apelado se situa “sensivelmente a meio do prédio identificado em 4), divide-o materialmente em duas parcelas.”,
FF)Ora a testemunha António ….., ao minuto 4:22, 5:10 e 6:25, conforme transcrições efetuadas e que aqui se dão por reproduzidas, expôs claramente as razões que a servidão a ser constituída a meio do terreno dos Apelantes inviabiliza e impossibilita que os mesmos utilizem o seu prédio na sua plenitude e para o fim a que o destinam.
GG)Neste ponto, a testemunha foi acompanhada pelos esclarecimentos que o Sr. Perito, prestou em sede de audiência de discussão e julgamento ao minuto 16:20, e cuja transcrição acima efetuada se dá aqui por integralmente reproduzida.
HH)Conjugando os depoimento da testemunha mencionada com os esclarecimentos do Sr. Perito e considerando que existe na estrema poente, um caminho que permite ao Apelado aceder em condições normais ao seu prédio, que o Tribunal a quo poderia ter verificado in loco se tivesse realizado a inspeção judicial ao local, é nosso entendimento que também o facto dado como não provado na alínea g) dever ser corrigido e ser dado como provado.
II)Considerando os erros de julgamento na matéria de facto quanto aos factos provados 6) e 15) e quanto aos factos dados por não provados f) e g), que deverão ser considerados provados, aliado ao facto dado como provado 7) não corresponder à verdade, atenta a perícia de fls. 164 a 177, resultaria, salvo melhor opinião, que a pretensão dos Apelados vertida na sua reconvenção fosse procedente por provada, ao invés da improcedência que consta da Douta Sentença em crise.
JJ)Resulta provado que o prédio do Apelado é um prédio encravado, “desde sempre” – vide artigo 6.º da petição inicial – e que este, para atingir a via pública, atravessa o prédio dos Apelantes por necessidade, e não por vontade ou capricho conforme depoimento de António ….. ao minuto 13:42 e de Rui ….. ao minuto 4:08.
KK)Face à necessidade do Apelado em atingir a via pública através do prédio dos Apelantes estes consentiram e permitiram que o fizesse, pois bem sabem que encontrando-se o prédio do Apelado encravado a única alternativa que este tem para aceder ao seu prédio é passar pelo prédio destes, contudo, face à necessidade e intenção dos Apelantes em construir uma clínica veterinária com capacidade para albergar animais de grande porte, esse acesso tornou-se inconveniente e prejudicial ao prédio onerado.
LL)Os Apelantes nunca vedaram o acesso do Apelado ao seu prédio, permitindo que o mesmo aceda ao seu prédio por um caminho na estrema poente do prédio dos Apelantes, que além de ser mais curto, é mais largo e direto à via pública e não divide o prédio dos Apelantes em dois.
MM)Como consta do Venerável Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Maio de 2016, proferido no processo 1241/07.5TBFIG.C1.S1 “O critério decisivo diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coativamente, sendo que, pela circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza.”

NN)Como bem fundamenta aquele Colendo Tribunal, “Caracterizando e diferenciando as modalidades ou tipo de servidões, escreve José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5ª edição (reimpressão), pág. 258, que a expressão servidões legais é utilizada «para designar certas categorias de servidão que podem ser coativamente impostas», apontando como exemplo «as servidões de trânsito ou passagem previstas nos art.ºs 1550º a 1556º» do Cód. Civil. Nestes casos, diz «as servidões são legais porque, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa» (art.º 1547, n.º 2, do Cód. Civil).

Adianta ainda, a folhas 259/260, depois de aludir à constituição deste tipo de servidão e ao poder potestativo de a impor, que «servidão coativa não é a que foi coativamente imposta, mas a que poderia ter sido… Se as partes, por contrato, por exemplo, regularem a sua situação, o legislador não deixa de considerar existente uma servidão legal. Este princípio tem a sua consagração legal no art.º 1569º, n.º 3, do Cód. Civil, que dispõe a extinção por desnecessidade das servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição. Com isto se quer dizer que, verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se constituir se deve sempre considerar legal, mesmo que não tenha sido coativamente atuada».

Também C.A. Mota Pinto, Direitos Reais, Almedina, 1975, ao proceder à classificação e distinção entre servidões voluntárias e legais, refere, a folhas 329/330, que «as legais se traduzem no poder de constituir coercivamente uma servidão…., estendendo-se esta designação à própria servidão constituída, sendo voluntária a que resulta do acordo das partes, sem haver preceito legal que a imponha». E, a folhas 324 da citada obra, ainda a propósito de servidão legal, diz «há, porém, certas hipóteses em que a lei prevê a possibilidade de um indivíduo, mediante o exercício de um direito potestativo, criar uma servidão, falando-se, então, em servidão legal», aludindo a seguir que uma dessas hipóteses é «as chamadas servidões legais de passagem».

Igualmente Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª edição, Quid Júris, depois de, a folhas 428, salientar que «servidões legais no Código Civil, são as de passagem………reguladas no art.º 1550º….» anota, a folhas 432, que «a constituição coativa ou coerciva das servidões é própria das servidões legais, o que não significa, como logo se deixa ver da simples leitura do n.º 2 do art.º 1547º, a exclusão da possibilidade de, em relação a elas, se verificar a constituição voluntária. Mais: em rigor, é a falta de constituição voluntária que legitima o recurso à via coerciva»”.

OO)O prédio do Apelado é encravado desde sempre, configurando o Apelado na sua petição inicial, que os Apelantes tinham impedido o acesso ao seu prédio – vide artigo 28.º, 29.º, da petição inicial – factos que foram, e bem, dados como não provados nas alíneas b) e c) da sentença ora em crise.
PP)Os Apelantes, na qualidade de donos de um prédio serviente, aceitaram voluntariamente a imposição, de que, pelo seu prédio existe uma servidão legal de passagem a favor do prédio do Apelado, por força do seu encravamento, e em momento algum impediram que o Apelado usasse prédio dos Apelantes, para aceder ao seu.
QQ)Uma vez que os donos do prédio serviente, em clara manifestação de relações de boa vizinhança, acederam e toleraram que a passagem fosse exercitada, desde sempre através do seu prédio, à servidão agora reconhecida por sentença não perde a natureza de servidão legal, e os efeitos legais daí decorrentes e previstos nos artigos 1550.º a 1556.º do Código Civil.
RR)Não obstante, o Apelado veio coercivamente pedir o reconhecimento de uma servidão em virtude de encravamento do seu prédio, contudo essa mesma servidão, conforme conclui o Venerando Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, teria de forçosamente manter a natureza de servidão legal, e não ser afastada essa natureza, como erradamente concluiu a Douta Sentença recorrida.
SS)A servidão legal decorrendo mediatamente da lei e podendo ser constituída por sentença, a sua fonte mais natural por poder ser imposta coercivamente, pode também ser constituída, como se vê do art.º 1547º, n.º 2 , do Cód. Civil, por qualquer das outras formas admitidas na lei, nomeadamente, como sucedeu no caso, por usucapião. – Ibidem Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
TT)Atento posição jurisprudencial e doutrinária, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que não merece qualquer reparo ou censura, não poderia o Tribunal a quo ter decidido nos moldes em que o fez, isto é admitir a existência de uma servidão constituída por usucapião, afastando e separando a natureza legal da mesma.
UU)O Tribunal a quo ao decidir como o fez parece ter criado uma forma de afastar a constituição duma servidão legal de passagem prevista no artigo 1550.º do Código Civil.
VV)Apelado e Apelantes sempre concordaram que o prédio do primeiro era encravado e que era sobre o prédio dos segundos que necessariamente se faria o acesso à via pública, apenas discordando sobre o local onde essa servidão deverá ser posicionada.
WW)Qualquer servidão a favor do prédio do Apelado sobre o prédio dos Apelantes tem a natureza de servidão legal de passagem pelo que deveria ser concedida pelo modo e lugar menos inconveniente para o prédio serviente conforme artigo 1553.º do Código Civil.
XX)Considerando que resulta provado, que existe um caminho na estrema poente do prédio dos Apelantes, com uma largura útil que varia entre os 3,94 (três virgula noventa e quatro) metros e 3,44 (três virgula quarenta e quatro) metros, e um comprimento de 24,50 (vinte e quatro virgula cinquenta) metros, com orientação sul norte e vice-versa que liga a “Rua do M.....” ao Prédio do Apelado, com área suficiente e necessária para a utilização prática e segura em condições normais, seria esta a que forçosamente o Tribunal a quo tinha que constituir, por força dos artigos 1553.º e 1568.º do Código Civil.
YY)E não como erradamente o fez, constituir uma servidão que divide o prédio onerado em dois, impedindo a sua utilização plena, e que, inclusivamente o Tribunal a quo erra na sua dimensão, tornando a sentença nesse ponto ininteligível.
ZZ)Por conseguinte, e salvo melhor entendimento, andou mal o Tribunal a quo, ao proferir a decisão que ora se recorre, sendo que a mesma viola, o disposto nos artigos 1547.ª. 1550.º, 1553.º e 1554.º, todos do Código Civil e alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Pedem assim que a sentença seja revogada, com todas as demais consequências.

O A. veio responder ao recurso, apresentando no final das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
I.Os Apelantes, nas suas alegações e conclusões, não identificam claramente o que é impugnação da matéria de facto e o que é impugnação da matéria de direito, cumprindo de forma débil os requisitos consagrados nos artigo 639º e 640º do CPC, o que constitui um óbvio obstáculo ao exercício esclarecido do direito de resposta do Apelado, por não se mostrar indicada de forma clara e explicita a matéria objeto de impugnação.
II.A Douta Sentença proferida não padece de qualquer nulidade, não se verificando qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, nem padece a mesma de quaisquer ambiguidades que a tornam ininteligível e inócua, sendo ainda certo que não se verifica qualquer erro de julgamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, não tendo sido violadas a normas invocadas pelos Apelantes.
III.Em sede de audiência as partes não foi celebrada qualquer transação, relativamente à qual devesse ser proferida uma qualquer sentença homologatória, limitando-se a acordar quanto à matéria de facto a ser objeto de prova em audiência de julgamento pelo que deve manter-se a condenação dos Apelantes “a reconhecerem que o autor é proprietário do prédio rústico denominado “Barreira P.....”, sito em L....., concelho de C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº ... da secção T, da União das Freguesia de L..... e C....., e descrito na Conservatória do Registo Predial do C_____ sob o N.º 5... da Freguesia de L.....;”
IV.O facto provado na alínea 7) resulta provado do teor do relatório pericial elaborado pelo Sr. Perito MF....., o qual é expressamente referido na douta sentença, que determinou que “A serventia S1 existente, pelo observado, tem cerca de 3,5m de largura e cerca de 45m de comprimento, com início na Rua do M..... e terminando no prédio identificado como art.º 136.”, o que corresponde à extensão indicada pelo Apelado, em face do levantamento topográfico que havia solicitado e junto aos autos como Doc. 6 da petição inicial.
V.Não existe uma qualquer contradição, que conduza a uma alegada “incerteza jurídica para os Apelantes, para o Apelado ou para algum terceiro de boa-fé”, pelo que a sentença é perfeitamente inteligível, não estando por isso ferida de nulidade.
VI.Ainda que dúvidas existissem sobre a extensão da servidão, tendo a mesma sido judicialmente reconhecida, por aquisição por usucapião, e tendo os Apelantes sido condenados no reconhecimento da mesma e bem assim “a absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do autor ao seu prédio”, sempre teria aplicação o disposto no artigo 1565º do Código Civil.
VII.Assim, sempre os Apelantes poderiam ser condenados a reconhecer a servidão com uma tal extensão, sem que houvesse uma qualquer condenação para além do pedido, na medida em que o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso, sendo neste caso o direito de passagem até ao prédio dominante.
VIII.A condenação dos Apelantes na colocação de um muro de suporte apto a sustentar as terras e os entulhos provenientes do seu prédio, resulta dos factos provados indicados nas alíneas 12) e 17), sendo que o facto da alínea 12) não foi objeto de qualquer impugnação.
IX.Quanto ao facto provado da alínea 17), sempre será de manter inalterado, pois resulta dos esclarecimentos apresentados pelo Sr. Perito, transcritas pelos Apelantes nas suas alegações de recurso, que há a possibilidade de escorregamento de terras, o que não acontecia na orografia inicial do prédio, mas que em face da modificação está mais alto, pelo que há erosão.
X.A testemunha Ana ….. confirmou o escorregamento de terras (minuto 22:15), depoimento que é corroborado pelas fotografias juntas aos autos pelo Apelado, das quais resulta evidente o desnível existente entre os prédios em causa nos presentes autos e bem assim o escorregamento de terras dos prédios dos Apelantes para o prédio do Apelado.
XI.É incompreensível a alegação feita pelos Apelantes de que “Existe uma contradição insanável entre o facto provado 13) e o facto provado 17), pois a considerar-se provado que os Apelantes ergueram postes em cimento e uma vedação em torno do seu prédio, esta seguramente evitaria que o prédio do Apelado fosse invadido por entulhos e terra.”
XII.Para que a colocação de uma vedação permitisse impedir o escorregamento de terras e entulhos para o terreno do Apelado teria de ser colocada ao nível da cota deste terreno, ou seja, 1,5m abaixo da cota do prédio dos Apelantes, o que não aconteceu, como se constata pelas fotografias.
XIII.A testemunha Jorge ….., filho dos Apelantes, quando questionado sobre a vedação, esclareceu que “na parte de trás é que não se fez nada” (minuto 11:55), sendo essa exatamente a parte que confina com o prédio do Apelado, confirmando assim a inexistência de qualquer vedação que impeça o escorregamento.
XIV.Não existe qualquer censura que possa ser feita, nesta parte, à decisão sobre o facto provado na alínea 17), tendo o Tribunal a quo seguido de forma criteriosa as regras de experiência comum, seguindo um raciocínio e juízo hipotético, adquirido mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, extraindo o facto desconhecido (escorregamento) do facto conhecido (desnível entre terrenos), ao concluir que “não custa admitir ante essa alteração de cotas dos prédios, e da criação de um combro, que o prédio do autor seja invadido por terras e entulhos provenientes do prédio mais alto”.
XV.A condenação dos Apelantes a colocarem a expensas suas na estrema norte do seu prédio um sistema adequado ao escoamento ordenado das águas pluviais, resultou dos factos provados indicados nas alíneas 15), 16) e 24), tendo os Apelantes apenas impugnado a primeira parte do facto provado sob a alínea 15) e o facto provado sob a alínea 16).
XVI.Do depoimento do Sr. Perito MF..... ao referir que “dá ideia que não foi modificado, que é terreno natural que estava ali assim”, não se pode concluir que não existiu qualquer aterro ou modificação do terreno, sendo um facto indiscutível que os Apelantes delimitaram um novo acesso ao prédio do Apelado, separando-o do resto do seu prédio com a colocação de postes de cimento e vedação, conforme se pode expressamente observar nas fotografias juntas com a petição inicial identificados como Doc. 10 e 16.
XVII.Tal facto resulta igualmente provado do depoimento das seguintes testemunhas Orlando ….. (minuto 5:24 e minuto 10:50), João ….. (minuto 15:48) e Vítor ….. (minuto 13:36) os quais referem a existência de uma nova serventia que anteriormente não existia.
XVIII.Acresce que a testemunha AC....., a instâncias da Mmª Juiz, ao minuto 33:20 do seu depoimento, esclareceu concretamente as obras efetuadas pelos Apelantes no caminho em causa.
XIX.A prova do facto provado da alínea 16) resultou do depoimento das seguintes testemunhas Orlando ….. (minuto 13:22), António ….. (minuto 7:27) e Rui ….. (minuto 7:47 e 12:20), que referem expressamente a anterior existência de um combro ou uma regueira.
XX.Assim, as obras efetuadas pelos Apelantes, ao terem eliminado a barreira natural existente - que as testemunhas apelidaram de “combro” e “regueira” – tiveram consequências no escoamento das águas pluviais, desde logo pelo facto de o caminho aberto pelos Apelantes ser “muito sensível às águas pluviais provenientes do escoamento de uma rua da povoação, rua de acentuado declive e deficiente drenagem que aumentam imenso a velocidade das águas e se concentram por facilidade de escoamento, na via da serventia”, conforme consta expressamente no relatório do Sr. Perito MF......
XXI.As considerações feitas pelos Apelantes a propósito do depoimento da testemunha Ana ….., que visaram apenas a descredibilização de tal depoimento por se tratar da mulher do Autor, são despiciendas e totalmente despropositadas, sendo certo que tal depoimento da testemunha não criou a convicção no Tribunal de que foi a vedação colocada pelos Apelantes que passou a encaminhar a água para a estrema poente do prédio dos Apelantes, ficando bem explicito o entendimento do Tribunal ao minuto 12:18 de tal depoimento.
XXII.Alegar que o Tribunal a quo ficou convencido que foi a colocação de vedação – em rede! - que passou a encaminhar a água para a estrema poente do prédio, demonstra uma total falta de fundamento por parte dos Apelantes, bem como uma desconsideração, por parte daqueles, das capacidades do Tribunal a quo – ao defender que o mesmo se deixou convencer por factualidade manifestamente absurda!
XXIII.A existência de uma manilha colocada no terreno dos Apelantes não afeta de nenhum modo a decisão sobre o facto provado na alínea 16), pois “isso não invalida que, quer devido ao desaparecimento de tal vala entre o seu prédio e a via pública, quer devido às características do novo caminho aberto a poente, as águas pluviais não corram desordenada e descontroladamente em direção ao prédio do autor, tal como referido no dito relatório pericial e por várias testemunhas.” , como consta na sentença recorrida.
XXIV.Os Apelantes impugnam a factualidade julgada não provada sob as alíneas f), no entanto em face da inclinação, a criação de boas condições do piso é essencial para a utilização de tal acesso, como resulta de ambos os relatórios periciais juntos aos autos, resultando do depoimento da testemunha Ana ….. (minuto 11:18) a impossibilidade de utilização de tal caminho.
XXV.Acresce que a alteração da decisão da matéria de facto pretendida entraria em contradição com o facto provado sob a alínea 23), o qual não foi objeto de impugnação por parte dos Apelantes, motivo pelo qual não pode ser alterado, nem, naturalmente, podem ser dados como provados quaisquer outros factos que o contrariem.
XXVI.Deverá igualmente manter-se a decisão relativa ao facto não provado sob a alínea g), pois não foi produzida qualquer prova, nomeadamente testemunhal, suficientemente clara e precisa em afirmar que essa servidão prejudicava a afetação do prédio à construção, tendo inclusive o genro dos Apelados dado conta que não chegou a ser apresentado nenhum projeto de edificação para licenciamento camarário.
XXVII.Mantendo a condenação dos Apelantes a reconhecer a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do prédio do Apelado, tal circunstância impedirá, só por si, a procedência do pedido reconvencional deduzido, uma vez que não tem aplicação a norma do artigo 1553º do Código Civil, na medida em que esta norma regula a constituição de servidão em benefício de prédio encravado, sendo que in casu resulta que a servidão se constituiu inicialmente por usucapião.
XXVIII.No mesmo sentido que o defendido na sentença recorrida veja-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-02-2015, (processo n.º 357/13.3TBTND.C1), o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2001 (Processo n.º 0031786) e António Menezes Cordeiro ("Servidão legal de passagem e direito de preferência", na Revista da Ordem dos Advogados, 50º, 1990, III, pp. 574 e ss., e Parecer de 8.8.88, na CJ, 1992, 1º-63), segundo o qual as servidões legais não podem constituir-se por usucapião, não sendo aplicável / alargado o regime das servidões legais às servidões constituídas por usucapião.
XXIX.Na verdade, as servidões de passagem constituídas por usucapião diferenciam-se das servidões legais, porquanto, entre outros fundamentos: a)- Na constituição por usucapião não há a concorrência da vontade do titular do prédio serviente, o que existe é a imposição da sua constituição pelo titular do prédio dominante; b)- Na constituição duma servidão de passagem por usucapião o que releva é a posse e a invocação do seu decurso; c)- Uma vez constituída por usucapião a servidão de passagem, já o titular do prédio serviente não poderá eximir-se à oneração por esse modo daquele, adquirindo o prédio beneficiado, por não existir um momento preciso de constituição no qual essa faculdade pudesse ser exercida; d)- Está ainda o artigo 1553º afastado da aplicação à servidão de passagem constituída por usucapião, porquanto ela é pré-determinada pela posse ou pelos sinais visíveis e permanentes, situando-se eles onde quer que seja, mesmo que não seja o lugar menos inconveniente ou que cause menor prejuízo ao prédio serviente; e)- A própria Lei distingue expressamente as servidões de passagem constituídas por usucapião das servidões legais constituídas voluntariamente – art.º 1569º, nºs 2 e 3 do Código Civil;
XXX.Mesmo que se defenda a aplicação do artigo 1553º do Código Civil – o que apenas por mera cautela se admite – dos factos provados sob as alíneas 22) e 23) resulta evidente que o novo caminho, criado pelos Apelantes, não satisfaz minimamente os interesses do Apelado, ficando este seriamente prejudicado com a alteração sugerida, uma vez que deixaria de ter acesso, por veículo, ao seu prédio.
XXXI.Concluindo, dir-se-á que a decisão recorrida não violou a aplicação de qualquer norma legal, não tendo nomeadamente violado o disposto nos artigos 1547º, 1550º, 1553º e 1554º do Código Civil, nos termos apontados pelos Apelantes, nem se encontra ferida de qualquer nulidade, uma vez que os fundamentos não estão em oposição com a decisão, nem se verifica alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615º, n.º 1, alínea c) do CPC), pelo que deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pelos Apelantes.
Pede assim que o recurso seja julgado totalmente improcedente, mantendo-se na integra a decisão recorrida.

O Tribunal a quo ao admitir o recurso, pronunciando-se sobre a questão das nulidades da sentença, ao abrigo do Art. 617.º n.º 1 do C.P.C., deixou consignado o seguinte:
«Alegam os RR. que a sentença é nula, por os fundamentos estarem em oposição à decisão, para além da mesma ser ininteligível. / Pela análise da sentença, consideramos que não assiste razão aos RR., encontrando-se a sentença devidamente fundamentada, com o respetivo exame crítico da prova, assim como não existe qualquer oposição entre os factos provados e não provados e a respetiva decisão, não vislumbrando, ainda, que a mesma seja ininteligível, ou qualquer outro vício que inquine a sentença pelo que nada há a alterar».
*

IIQUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).

Assim, em termos sucintos, as questões a decidir são as seguintes:
a)-A nulidade da sentença, por violação do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C.;
b)-A impugnação da matéria de facto e sua eventual rejeição; e
c)-O mérito da ação e da reconvenção relativamente a cada concreto pedido posto em causa, nomeadamente:
1- O reconhecimento do direito de propriedade do A.;
2- A constituição da servidão de passagem por usucapião e o seu conteúdo;
3- A possibilidade de constituição em alternativa duma servidão legal e a indemnização devida pela sua constituição;
4- A abstenção de prática de atos que perturbem o uso da servidão;
5- A condenação na colocação de muro de sustentação de terras e de sistema adequado de escoamento de águas; e
6- A indemnização por prejuízos causados pelas obras realizadas pelos R.R..

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
***

IIIFUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1)Sob a Ap. nº 690 de 2012/05/29 da respetiva matrícula predial, mostra-se registada a aquisição a favor do A., por partilha por óbito de seus pais Artur ..… e Laura .…., falecidos em 19/06/1992 e 27/01/2011, do prédio rústico denominado “Barreira P.....”, sito em L....., concelho de C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº ... da secção T, da União das Freguesias de L..... e C..... e, descrito na Conservatória do Registo Predial do C_____ sob o nº 5... da Freguesia de L..... .
2)Os pais do A. haviam adquirido tal prédio por partilha por óbito dos avós do A., José ….. e Maria .…., outorgada por escritura pública em 30/07/1977, no Cartório Notarial do Concelho do C_____.
3)De acordo com a matrícula predial referida em 1), o prédio que lhe corresponde tem a área de 3.200 m2.
4)Sob a Ap. 1999/01/18 da respetiva matrícula predial, mostra-se registada a aquisição, por compra, a favor do 1.º R., no estado de casado com a 2.ª R. no regime da comunhão de adquiridos, do prédio rústico sito na Barreira P....., Lugar de Rocha....., na Freguesia de L....., no concelho do C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº ... da secção T e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o Nº 1... .
5)O prédio referido em 4) confronta a Norte com o prédio identificado em 1) e a Sul com a via pública, denominada Rua do M..... .
6)Por seu turno, o prédio identificado em 1) confronta a Sul com o prédio identificado em 4) e encontra-se em situação de encrave, só tendo acesso à via pública através de passagem pelo último.
7)Pelo menos desde o tempo dos avós do A., o acesso ao prédio identificado em 1) é feito através de um caminho, em terra batida, com a largura de 3,5 metros e 45 metros de comprimento, que atravessa o prédio identificado em 4), no sentido Sul/Norte, com início na Rua do M..... .
8)Tal caminho apresenta sinais visíveis e permanentes que evidenciam o seu uso consolidado no tempo, e
9)Tem sido destinado ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas.
10)Os avós e os pais do A., e depois da morte destes o próprio A., sempre utilizaram o caminho referido em 7), 8) e 9) para acederem ao prédio referido em 1), a pé e de carro, ou com máquinas agrícolas, o que fizeram ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém, incluindo dos R.R., na convicção de lhes assistir o direito a fazê-lo.
11)Até Outubro de 2016, terceiros utilizaram o prédio referido em 4) para depositar entulhos, lixo e desperdícios.
12)Em Outubro de 2016, os R.R. realizaram obras de movimentação de terras no prédio referido em 4), em toda a sua extensão, com isso tendo alterado a orografia e as cotas naturais desse prédio, designadamente fazendo com que o prédio confinante identificado em 1) ficasse a uma cota inferior de pelo menos 1,5 metros.
13)Pela mesma altura, os R.R. ergueram postes em cimento em torno do seu prédio e, em seguida, ergueram uma vedação.
14)Os R.R. deixaram a vedação referida em 13) aberta no espaço de acesso ao caminho a que se alude em 7), 8) e 9), assim como na estrema poente do seu prédio.
15)Ainda por altura de Outubro de 2016, os R.R. criaram um caminho para permitir o acesso do prédio identificado em 1) à via pública, situado na estrema poente do prédio identificado em 4), no sentido Sul/Norte, com início na Rua do M..... e com um comprimento de 24,50 metros e uma largura que varia entre 3,94 metros e 3,44 metros.
16)Após o facto referido em 15), as águas pluviais passaram a correr descontrolada e desordenadamente em direção ao prédio identificado em 1).
17)Por força das obras referidas em 12), o prédio referido em 1), na estrema Sul que confina com o prédio identificado em 4), passou a ser invadido por entulhos e terras provenientes deste último.
18)Os R.R. edificaram a vedação referida em 13) para evitar que terceiros utilizassem o prédio referido em 4) para depositar entulhos, lixo e desperdícios e por ser sua intenção ali construir uma clínica veterinária com capacidade para albergar animais de grande porte.
19)O caminho referido em 7), 8) e 9), por se situar sensivelmente a meio do prédio identificado em 4), divide-o materialmente em duas parcelas.
20)O caminho referido em 15), à saída para a Rua do M....., não tem tanta visibilidade para a circulação automóvel para poente quanto o caminho referido em 7), 8) e 9), mas permite executar essa manobra para ambas as direções.
21)O caminho referido em 7), 8) e 9), à saída para a Rua do M....., é mais difícil para a circulação rodoviária no sentido nascente, devido a ser formado por uma curva, seguida de contracurva.
22)O caminho referido em 15), tem uma inclinação mais acentuada que o caminho referido em 7), 8) e 9), sendo menos adequado para o trânsito de veículos com reboque e de transporte de cargas elevadas.
23)Ao contrário do caminho referido em 7), 8) e 9), o caminho referido em 15) não se encontra funcional para a circulação automóvel, mas tão só para pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação automóvel, e sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1).
24)O caminho referido em 15) tem ligação com uma rua da povoação situada a poente, que é de acentuado declive e deficiente drenagem, o que facilita que as águas pluviais provenientes do escoamento dessa rua se concentram no caminho e corram em direção ao prédio identificado em 1).
***

Foram julgados por não provados os seguintes factos:
a)-Que desde há cerca de 5 ou 6 anos, os R.R. têm utilizado o prédio identificado em 1) para depósito de entulhos e terras;
b)-Que em consequência do facto provado da alínea 12), os R.R. alteraram e destruíram o caminho referido em 7), 8) e 9);
c)-Que o A., ao pretender deslocar-se ao prédio identificado em 1) no dia 14-10-2016, verificou a impossibilidade de o fazer perante o impedimento provocado pelos R.R. com os trabalhos de movimentação das terras e de estreitamento da largura do caminho e colocação de postes em cimento;
d)-Que para alcançar a via pública, a partir do prédio identificado em 1), o A. atravessa o prédio dos R.R. a nascente, a sul e ainda a poente;
e)-Que o prédio identificado em 1) esteve durante mais de 15 anos votado ao abandono, sendo que só há cerca de 4 ou 5 anos o A. começou a deslocar-se ali esporadicamente;
f)-Que o caminho referido em 15) permite o trânsito adequado de veículos, nomeadamente máquinas agrícolas;
g)-Que a passagem do A. pelo caminho referido em 7), 8) e 9), impossibilita que os R.R. destinem o prédio identificado em 4) à sua urbanização, para o qual o mesmo tem aptidão.
h)-Que o valor médio do metro quadrado de terreno para construção na localidade de Rocha..... ascende a 15 Euros.
*

Tudo visto, cumpre apreciar.
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IVFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Fixadas as questões a apreciar neste recurso, que fazem parte do objeto da apelação, cumprirá agora delas tomar conhecimento pela sua ordem de precedência lógica, começando pelas nulidades formais apontadas à sentença recorrida.

1.Da nulidade da sentença por violação do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C..

Os Recorrentes vieram por em causa a validade da sentença recorrida, por alegada oposição entre os fundamentos e a decisão, por ambiguidade e ininteligibilidade, o que constituiria uma violação ao disposto no Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C..

Apesar de existir uma evidente confusão ao longo das alegações de recurso entre as questões típicas de nulidade, com questão de impugnação da decisão sobre a matéria de facto e relativas ao mérito da causa, diremos em termos muito sucintos, que os Recorrentes vêm defender que: 1.º Quanto à parte dispositiva da sentença constante de (i) da al. a), a sentença não poderia reconhecer o direito de propriedade do A., mas sim homologar o acordo entre as partes sobre o reconhecimento desse direito (conclusão B)); 2.º Quanto à parte dispositiva da sentença, em (ii) da al. a), essa condenação funda-se no facto constante do ponto 7, o qual deveria ser dado por não provado, em face da prova pericial e testemunhal que indicaram, sendo ininteligível a decisão por não serem indicadas as medidas da serventia (conclusões C) a F) e I)); 3.º Quanto à parte dispositiva de (iii) da alínea a), a condenação na abstenção de impedir o acesso ao prédio do A. está em contradição com a obrigação de cedência de passagem em 55 m, que está para além do peticionado (conclusões G) e H)); 4.º Quanto à parte dispositiva da sentença em (iv) da al. a) está em contradição com a perícia e os esclarecimentos do perito (conclusões J) a L); e 5.º Existe uma contradição entre os factos provados em 13) e 17) da sentença, devendo este último ser dado por não provado (conclusões M) e N)). Depois seguem-se ainda mais questões que já claramente extravasam a matéria de nulidade da sentença propriamente dita, sendo certo que muitas das questões agora enunciadas também já saem fora do âmbito do Art. 615.º do C.P.C., como adiante se explicitará.

O Recorrido veio sustentar que não houve qualquer transação suscetível de homologação, mas mera decisão sustentada em matéria de facto aceita por acordo das partes. Pugnam ainda pela manutenção do julgamento do ponto 7 dos factos provados, porque o mesmo decorre de um dos relatórios periciais juntos autos, o qual foi respeitado na sentença condenatória. Defende em coerência que não existiria assim qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, que seria perfeitamente inteligível, pois os 45 metros indicados pelo perito correspondem às dimensões indicados pelo Recorrido em face do levantamento topográfico do terreno. Quanto ao mais, defendeu a correção da decisão sobre a matéria de facto e da decisão final constante da parte dispositiva da sentença.

Como vimos o Tribunal a quo limitou-se a sustentar que os vícios apontados não se verificavam no caso concreto.

Apreciando, temos de partir da consideração de que o Art. 615º n.º 1 al. c) do C.P.C. dispõe que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Trata-se de vício formal na construção da sentença, que não se pode confundir com “erro de julgamento”, seja sobre a matéria de facto, seja sobre o mérito da causa.

Assim, entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição (cfr. Ac.s do T.R.C. de 11/1/1994 – Relator: Cardoso Albuquerque, in BMJ n.º 433, pág. 633; do S.T.J. de 13/2/1997 – Relator: Nascimento Costa, in BMJ n.º 464, pág. 524 e de 22/6/1999 – Relator: Ferreira Ramos, in C.J. 1999 – Tomo II, pág. 160).

Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre. Nesse caso, o que existe é “erro de julgamento” e não oposição nos termos aludidos (cfr. Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum”, 2000, pág. 298).

Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (cfr. Ac. do S.T.J. de 8/3/2001 – Relator: Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt.).

No que tange à obscuridade conducente à ininteligibilidade da decisão, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 151), ensinava a este propósito: «A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz».

Assim, a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes (cfr. Ac. do T.R.C. de 7/6/1994 – Relator: Cardoso Albuquerque, in BMJ n.º 438, pág. 569). A ininteligibilidade da decisão não se reporta ao conteúdo ou mérito, mas à exteriorização formal do discurso “quo tale”, perfilando-se, nesta perspetiva, situações de ambiguidade expositiva, de obscuridade, de excessivo gongorismo impeditivo da univocidade ou, no limite, de meros lapsos de escrita (cfr. Ac. do S.T.J. de 28/9/2006 – Relator: Sebastião Póvoas, acessível em www.dgsi.pt/jstj).

A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (vide: Ac. do T.R.L. de 17/5/2012 – Relator: Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09, acessível em www.dgsi.pt/jtrl).

Feitas estas considerações gerais, que dão o exato enquadramento jurídico e doutrinário das nulidades previstas no Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., vejamos a sua pertinência no caso concreto.

Conforme verificámos, muitas das situações de alegada nulidade invocada pelos Recorrentes estão relacionadas com o julgamento da matéria de facto, pretendendo evidenciar contradições entre factos provados, entre os factos provados e a prova em que se sustentam e entre factos que deveria ter sido julgados de forma diversa e a decisão que no final foi tomada. Evidentemente que nenhuma dessas situações cai na alçada do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., no sentido que supra deixámos explicitado. Quando muito, estaremos perante “erros de julgamento”, alguns deles típicos da apreciação da decisão sobre a matéria de facto, sendo o meio processual próprio para alcançar a sua correção a impugnação prevista nos Art.s 640.º e 662.º do C.P.C..

Quanto à questão da condenação constante do ponto (i) da alínea a) da parte dispositiva da sentença, sinceramente não percebemos o propósito dos Recorrentes. É evidente que não faria qualquer sentido homologar uma “transação” que de facto não existiu. Essa condenação resulta claramente da prova de factos sobre os quais as partes até acabaram por estar de acordo, pois não os impugnaram por via de recurso, o que determinou a aplicação conforme do direito, sobre o qual os Recorrentes não apresentam qualquer razão discordante. Pelo que, nem sequer de “erro de julgamento” se pode falar.

Quanto à questão da ininteligibilidade da condenação relativamente à dimensão da serventia, temos de referir que o ponto (ii) da alínea a) da sentença fala em 45 metros de comprimento (cfr. fls. 237), em perfeita coerência com o facto que deu por provado no ponto 7 dos factos provados, onde também se indica que o caminho tem 45 metros de comprimento. Portanto, internamente a sentença é formalmente inteligível e coerente, sem qualquer contradição intrínseca.

Na verdade, a sentença não enferma de qualquer contradição, muito menos no que se refere ao que resulta da conjugação do ponto (iii) da alínea a) da parte dispositiva da sentença, com o ponto (ii) da mesma alínea, pois a condenação dos R.R. em absterem-se de quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso do A. ao seu prédio reporta-se à servidão de passagem tal como identificada em (ii).

O mais reporta-se apenas à valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido, ou a considerações relativas à decisão sobre o mérito da causa, com as quais os Recorrentes podem não concordar, sem que daí decorra a nulidade da decisão, mas apenas, e eventualmente, motivo para alterar a decisão de facto, no quadro legal dos Art.s 640.º e 662.º do C.P.C., ou para revogar a sentença quanto ao julgamento do mérito, por forma a conformá-la com o direito efetivamente aplicável.

Em suma, improcedem todas as conclusões que sustentam a nulidade da sentença, por violação do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C..

2.Da impugnação da matéria de facto.

Os Recorrentes pretendem ainda pôr em causa o julgamento da matéria de facto, pretendendo alterar os factos provados em 7), parte do 15), 16) e 17), que no final entendem que deveriam ser dados por não provados, pedindo em contraposição que a matéria que ficou a constar das alíneas f) e g) dos factos não provados passassem a constar dos factos provados. Para tanto, invocam existir contradições entre os factos provados e entre estes e os factos não provados e, bem assim, erros na apreciação da prova pericial, esclarecimentos dos peritos e alguns depoimentos testemunhais cujos extratos da gravação pontualmente transcrevem, na parte que, no seu entender, deveria determinar decisão diversa da encontrada na sentença recorrida.

O Recorrido veio pugnar pela improcedência da impugnação apresentada, transcrevendo igualmente alguns depoimentos testemunhais e de peritos, não sem antes expressar a imensa dificuldade no exercício do contraditório, na medida em que as alegações de recurso traduzem uma patente confusão entre impugnação de facto e a matéria de direito, havendo assim incumprimentos dos Art.s 639.º e 640.º do C.P.C..

Apreciando, nos termos do Art. 662º n.º 1 do C.P.C. o Tribunal da Relação pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.

Mas, nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.

A lei impõe assim, a quem apela, específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância, mas concretizando os concretos meios de prova que levariam a decisão diversa e especificando qual a decisão que se impunha em termos factuais.

No caso concreto, apesar de reconhecermos a apontada confusão nas alegações de recurso entre a matéria de nulidades da sentença, da impugnação da decisão sobre matéria de facto e questões típicas relativas ao mérito da causa, não se nos afigura que os Recorrentes não tenham cumprido os ónus de alegação (Art. 639.º do C.P.C.) e de impugnação da decisão relativa à matéria de facto (Art. 640.º do C.P.C.). Muito menos podemos concluir que o exercício do direito de defesa do Recorrido tenha ficado minimamente diminuído pela aparente “confusão” na apresentação das questões, tal como elas aparecem expostas nas alegações de recurso pelos R.R..

Aliás, o A., aqui Recorrido, não deixou de exercer o seu direito de resposta a cada um dos factos impugnados, apesar da alegada “confusão”. Pelo que, não existe fundamento para rejeitar o recurso, nomeadamente atendendo ao disposto no Art. 640.º n.º 1 2 n.º 2 do C.P.C..

Nessa medida, uma vez que foram cumpridos os ónus de impugnação, cabe agora a nós apreciar do bem fundado dessa parte do recurso dos R.R..

Vejamos então cada facto, ou conjunto de factos impugnados, respeitando a ordem de apresentação dos Recorrentes.

2.1.Do facto provado em 7).
Os Recorrentes vieram impugnar o facto provado em 7) da sentença recorrida, essencialmente no que se refere ao comprimento e largura da servidão de passagem aí dada por assente.
(…)

Pelo exposto, deverá ser alterada a redação do ponto 7) da sentença recorrida, que passará a ser a seguinte:
«7)- Pelo menos desde o tempo dos avós do A., o acesso ao prédio identificado em 1) é feito através de um caminho, em terra batida, com a largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio identificado em 4), com início na Rua do M....., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171».

2.2.Do facto provado em 17) e a sua contradição com o facto provado em 13).
Os Recorrentes impugnam o facto provado em 17) da sentença recorrida, que entendem que deve ser dado por não provado, relevando que o mesmo está em oposição com o facto 13).
Nesse ponto 17) ficou provado que por força das obras realizadas pelos R.R., em outubro de 2016, que alteraram a orografia e as cotas naturais do prédio, a estrema sul do prédio do A. (descrito em 1), passou a ser invadido por entulhos e terras provenientes do prédio dos R.R. (descrito em 4).
Com relevância para os termos da impugnação, relembre-se que no ponto 13) ficou provado que, na mesma altura, em outubro de 2016, os R.R. ergueram postes em cimento em torno do seu prédio, e em seguida ergueram uma vedação.
Dito isto, só pela mera descrição dos factos em causa, não se vislumbra qualquer contradição entre os factos provados em 13) e 17), que refletem realidades perfeitamente distintas e compatíveis entre si. Mas, adiante.
(…)
Em suma, razões não vemos para alterar o julgamento do facto provado em 17), que assim deverá subsistir como tal, improcedendo a impugnação nesta parte.

2.3.Dos factos provados em 15) e 16).
De seguida, os Recorrentes põem em causa o julgamento dos pontos 15) e 16). Quanto ao primeiro (15) só impugnam na parte em que se dá por provado que “criaram um caminho”, acrescentando que negam ter criado um aterro nessa zona de terreno. Quanto ao segundo, sustentam os Recorrentes que o mesmo deveria ser dado por não provado.
(…)
Pelo exposto, julgamos que improcede também nesta parte a impugnação da matéria de facto.

2.4.Dos não provados constantes da alínea f).
De seguida, os Recorrentes põem em causa o julgamento do facto não provado na alínea f), do qual consta que o caminho criado pelos R.R. em outubro de 2016, mencionado em 15), permite o trânsito adequado de veículos, nomeadamente de máquinas agrícola.
Da sentença recorrida resulta que esse facto foi julgado por não provado, não só com base no depoimento de Ana ....., mas valeu-se ainda do relatório pericial de fls. 164 a 177 e da fotografia junta como documento n.º 16 com o requerimento de 19/12/2016 (fls. 29).
Os Recorrentes entendem que se fez prova desse facto precisamente com base na resposta ao quesito 3 dada pelo Sr. Perito PM....., que respondeu que: «ambos os acessos têm as áreas suficientes e necessárias para a utilização prática e segura em condições normais do tipo de veículo indicado [ou seja de tratores agrícolas, com ou sem reboque], exceto no que diz respeito ao comprimento máximo, pois neste aspeto nenhum deles o permite» (cfr. cit. “Relatório” a fls. 167).
(…)

Nessa medida, o facto constante da alínea f) deverá ser eliminado, devendo ser aditado aos factos provados um facto 22-A com a seguinte redação:
«22-A O caminho referido em 15) permite o trânsito de veículos do tipo trator agrícola ou florestal, com ou sem reboque, e máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal».

Por força desta alteração, nos termos do Art. 662.º n.º 1 do C.P.C., considerando que a prova é a mesma e deve ser garantida a coerência entre todos os factos provados, compatibilizando na medida do possível os factos que estão adquiridos com toda a prova produzida a seu respeito (cfr. Art. 607.º n.º 4, aqui aplicável por força do Art. 663.º n.º 2 do C.P.C.), deve ainda ser alterada a redação do ponto 23) dos factos provados, que efetivamente não havia sido impugnado neste recurso, mas que deverá passar a ter a seguinte redação:
«23)-O caminho referido em 15) permite a circulação de pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant, com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação adequada a outros tipos de veículos automóveis, sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1).

2.5.Dos factos não provados na alínea g) e a sua contradição com os factos 18) e 19).
Finalmente, os Recorrentes puseram em causa o julgamento do facto constante da alínea g) dos factos não provados, evidenciando desde logo a sua contradição com os factos provados em 18) e 19).
(…)
Em suma, a prova sobre este ponto foi efetivamente insuficiente, não havendo qualquer motivo para alterar o facto não provado ora em consideração.

2.6.Da conclusão da impugnação da matéria de facto.

Em face de todo o exposto, julgamos proceder às seguintes alterações na matéria de facto:

1O ponto 7) dos factos provados da sentença recorrida passará a ter a seguinte redação:
«7)- Pelo menos desde o tempo dos avós do A., o acesso ao prédio identificado em 1) é feito através de um caminho, em terra batida, com a largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio identificado em 4), com início na Rua do M....., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171».

2É aditado aos factos provados o ponto 22-A com a seguinte redação:
«22-A O caminho referido em 15) permite o trânsito de veículos do tipo trator agrícola ou florestal, com ou sem reboque, e máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal».

3O ponto 23) dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
«23)- O caminho referido em 15) permite a circulação de pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant, com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação adequada a outros tipos de veículos automóveis, sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1).
4É eliminado o facto constante da alínea f) dos factos não provados da sentença recorrida.

3.Do mérito da ação e reconvenção.
Fixados os factos provados e não provados, cumpre então agora apreciar o mérito da causa.
Como vimos, a sentença praticamente julgou por procedentes quase todas as pretensões formuladas pelo A. na sua petição inicial, absolvendo-o dos pedidos reconvencionais. Nesta apelação os R.R. pretendem alterar toda a parte dispositiva da sentença recorrida, pugnando essencialmente pela sua absolvição dos pedidos em que foram condenados e pela procedência da reconvenção. O que implica a necessária reapreciação de todas as condenações de que os R.R. foram alvo e, bem assim, do mérito da reconvenção. Debrucemo-nos então sobre cada uma dessas decisões.

3.1.Do reconhecimento do direito de propriedade do A.
A primeira questão suscitada pelos Recorrentes relativamente ao mérito da sentença recorrida, em bom rigor, nada tem a ver com uma alteração substancial da apreciação de fundo, pois na verdade não é sequer posto agora em causa que o A. não seja proprietário do terreno que alegou ser titular. O que os Recorrentes pretenderiam agora era somente que o reconhecimento desse direito de propriedade resultasse da circunstância das partes terem chegado a acordo quanto à propriedade, não devendo ser condenados por isso. Sustentam assim que essa condenação deveria ser substituída por uma homologação dum acordo.
Sobre este ponto já deixámos a nossa posição expressa no ponto 1. do presente acórdão. Esta pretensão, constante da conclusão B) do presente recurso, não faz qualquer sentido, porque não houve transação alguma que pudesse ser objeto de homologação, nos termos do Art. 290.º do C.P.C.. O que houve foi um conjunto de factos alegados pelo A., nos artigos 1.º a 5.º da petição inicial, que por acaso até foram todos impugnados pelos R.R., conforme artigo 6.º da contestação, mas que foram dados por provados nos pontos 1) a 3) da sentença recorrida, porque resultaram do teor da certidão de registo predial juntas aos autos (cfr. doc. de fls. 9 vero a 10), complementadas por escrituras de partilha (cfr. doc.s de fls. 10 verso a 15), os quais confirmavam a causa de pedir alegada pelo A. e vieram a justificar a procedência do pedido formulado na alínea a) da petição inicial.
O A. beneficiou assim da presunção registral constante do Art. 7.º do Código de Registo Predial, quer quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, quer quanto ao modo da sua aquisição, o que necessariamente determinava a procedência do seu pedido, o qual havia sido impugnado pelo R. na sua contestação, que ali requereu ser absolvido de todos os pedidos contra si formulados (cfr. fls. 50 verso).
O máximo que a este propósito se poderia dizer é que não faria muito sentido “condenar” os R.R. a reconhecer o direito de propriedade do A., porque nessa parte estamos perante o mero reconhecimento ou declaração de um direito. Ou seja, se a finalidade da ação, nesta parte, é a declaração da existência de um direito, nos termos do Art. 10.º n.º 3 al. a) do C.P.C., o que esgota a finalidade da procedência dessa pretensão, pondo termo a uma situação de incerteza (vide: Francisco Ferreira de Almeida in “Direito Processual Civil”, Vol. I, 3.ª Ed., pág. 172), motivos não haveriam para “condenar” os R.R. ao reconhecimento desse direito, porque uma “condenação” pressuporia que estes tivessem de realizar qualquer prestação que fosse exequível (vide, a propósito: Jorge Pais do Amaral in “Direito Processual Civil”, 14.ª Ed. pág. 33). O que, evidentemente, não é o caso.
Seja como for, mesmo sendo certo que nem sequer foi nesse sentido que a questão foi colocada pelos Recorrentes, o suprimento da expressão “condenar os R.R.”, pela simples decisão de “reconhecer” o A. como proprietário do prédio rústico em causa, acaba por se reconduzir a uma “bizantinice” completamente irrelevante para o caso. Pelo que, só nos resta julgar improcedente a conclusão B) das alegações de recurso dos Recorrentes, mantendo-se a sentença recorrida quanto ao ponto (i) da alínea a) da sua parte dispositiva.

3.2.Da constituição da servidão por usucapião.
Passando agora para o ponto (ii) da alínea a) da parte dispositiva da sentença, foram aí os R.R. condenados reconhecer a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do prédio do A. e sobre o prédio dos R.R., constituída por caminho, em terra batida, com largura de 3,5 metros e 45 metros comprimento, destinada ao trânsito de pessoas, animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas.
Os Recorrentes puseram em causa, desde logo a delimitação objetiva da servidão no local e, consequentemente, da obrigação de respeitarem a servidão assim definida, porque a mesma teria uma dimensão superior, conforme decorria da prova pericial, sendo assim indeterminado o direito reconhecido, que não respeitaria sequer o princípio do pedido. Isto, para além, de entenderem que estaríamos perante uma servidão legal suscetível de ser fixada em localização que causasse menor prejuízo possível ao seu prédio onerado.
Já o Recorrido defendeu a manutenção da decisão recorrida, porque respeitou as dimensões da servidão por si alegadas e provadas num dos relatórios periciais juntos aos autos, sendo que mesmo que se chegasse a conclusão de que a serventia teria de 55 metros, tal não constituiria qualquer violação do princípio do pedido.
Apreciando, antes de mais, importa verificar os pressupostos do reconhecimento do direito que justificou a condenação pelo tribunal a quo, o que passa pela definição do que é uma servidão predial.
O Art. 1543.º do C.C. define servidão predial como «o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente», esclarecendo depois que: «diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia».

Menezes Leitão (in “Direitos Reais”, 8.ª Ed., pág. 359) define servidão predial como «atribuição ao titular de um prédio, dito dominante, de utilidades provenientes de outro prédio, dito serviente». Rui Pinto Duarte (in “Curso de Direitos Reais”, 2.ª Ed., revista e aumentada, pág. 189), defini-a como «direito que o titular de um direito real sobre um certo prédio (dito prédio dominante) tem de utilizar um prédio alheio (dito prédio serviente) para melhor aproveitamento do prédio dominante». Carvalho Fernandes (in “Lições de Direitos Reais”, 3.ª Ed., atualizada e aumentada, pág. 431) define-a como o «direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em benefício do aproveitamento das utilidades do primeiro». E, Oliveira Ascensão (in “Direito Civil – Reais”, 4.ª Ed., pág. 432), fala então em «direito real que permite aumentar as utilidades de um direito real de gozo sobre um imóvel, mediante uma restrição correlativa do direito de gozo sobre um imóvel vizinho».
Assim, uma servidão é um encargo, uma restrição ou uma limitação ao direito de propriedade sobre um prédio, denominado prédio onerado ou serviente, em benefício exclusivo doutro prédio, denominado prédio dominante, sendo que esses dois prédios (serviente e dominante) devem pertencer a donos diferentes.
As servidões podem constituir-se através de contrato, por testamento, por usucapião ou destinação de pai de família (cfr. Art. 1547.º n.º 1 do C.C.). Sendo que, o n.º 2 do Art. 1547.º do C.C. estabelece ainda que: «as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos». Existe, portanto, uma classificação que distingue entre servidões legais e servidões voluntárias, que é pressuposta neste citado preceito legal e que foi objeto de longa discussão das partes nas suas alegações de recurso, por daí pretenderem retirar consequências jurídicas diversas.

Para Menezes Leitão (in Ob. Loc. Cit., pág. 364) a servidão legal (ou coativa) é a que pode ser constituída sem consentimento do proprietário do prédio sujeito à servidão, sendo a servidão voluntária aquela que exige o consentimento do proprietário do prédio serviente para se poder constituir. Esclarecendo depois que esta classificação não se baseia no facto das servidões resultarem da lei ou de negócio jurídico, mas no facto de poderem ser ou não coercivamente instituídas, exemplificando como servidão legal aquelas que resulta da aplicação da previsão do Art. 1550.º do C.C., ou seja decorrente da existência de um prédio encravado que não tem acesso à via pública.

Carvalho Fernandes (in Ob. Loc. Cit., pág. 438) entende que a distinção entre servidões legais e voluntárias resulta da modalidade do título constitutivo, reconhecendo que as constituídas por negócio jurídico ou ato voluntário são servidões voluntárias, mas não é correto dizer que as servidões legais sejam constituídas por lei, estas resultarão de decisão judicial ou administrativa, nos termos do Art. 1547.º n.º 2 do C.C.. No mesmo sentido, vai Henrique Antunes (in “Direitos Reais”, pág. 470), esclarecendo que a intervenção da lei não é constitutiva, mas tão somente determinante da possibilidade de constituição coativa. Portanto, nas servidões legais, os direitos decorrem de sentença judicial, ou decisão administrativa, que a constituem na falta da vontade das partes.

De igual modo, Rui Pinto Duarte (in Ob. Loc. Cit., pág. 195) escreve: «As servidões legais não resultam automaticamente da lei. A expressão em causa não designa casos em que a servidão é um efeito da lei sem o concurso de um ato jurídico, mas sim os casos em que a lei dá ao titular do prédio dominante o direito a exigir a constituição de servidão. Nesse caso abrem-se duas sub-hipóteses: ou o titular do prédio serviente colabora na constituição da servidão ou se recusa a isso – mas em ambos os casos se fala em servidão legal. A recusa de colaboração do titular do prédio serviente pode ser ultrapassada por recurso aos tribunais ou, nalguns casos, às entidades administrativas (art. 1547, n.º 2)». E, mais adiante, explicita ainda (pág. 196): «As servidões cuja constituição não poderiam ser exigidas pelo titular do prédio dominante são chamadas “servidões voluntárias”. Podem resultar de contrato, testamento e usucapião».

José Alberto Vieira (in “Direitos Reais”, 2.ª Ed., pág. 735) refere mesmo que todas as servidões têm a sua fonte na lei e, nessa medida, até as servidões voluntárias são servidões legais. Todavia, as servidões voluntárias resultam do funcionamento da autonomia privada, sendo o produto duma decisão livre das partes concretizadas por via negocial (contrato ou testamento). Já as servidões legais propriamente ditas atribuem ao beneficiário um direito potestativo à sua constituição, podendo ser impostas por decisão judicial ou administrativa, em caso de recusa do titular do prédio serviente. A servidão coativa pode constituir-se da mesma forma que a servidão voluntária, no entanto, tem de estar subjacente ao ato o exercício de um direito potestativo, que paira como ameaça sobre o proprietário do prédio serviente para o caso do mesmo não prestar a sua colaboração à constituição da servidão (cfr. cit. Ob., pág. 736).

Neste mesmo sentido já escrevia Oliveira Ascensão (in Ob. Loc. Cit., pág. 251 a 253), que preferia a designação de “servidão coativa” à expressão “servidão legal”. Para este autor, o que relevaria nesta classificação era a circunstância de um dos titulares dos prédios em confronto ter o poder potestativo de impor a servidão aos titulares dos prédios vizinhos, os quais, correlativamente, estão sujeitos à constituição da servidão.

Daqui resulta que a constituição duma servidão de passagem, por motivo de um dos prédios estar encravado, nos termos do Art. 1550.º do C.C., definida na lei no capítulo destinado a regular as “Servidões Legais”, não deixará de corresponder ao exercício de um direito potestativo, suscetível de ser coercivamente imposto por decisão judicial, mesmo que o proprietário do prédio serviente tenha dado o seu acordo à constituição duma qualquer concreta servidão incidente sobre o seu prédio e em benefício do prédio dominante.

À mesma conclusão se deve chegar se o modo concreto de constituição da servidão predial tiver sido a usucapião, nomeadamente quando para esse concreto direito de passagem sempre seria aplicável o Art. 1550.º n.º 1 do C.C..

Em conclusão, estando em causa a aplicação do Art. 1550.º n.º 1 do C.C., é indiferente para a consideração da natureza de “servidão legal” a circunstância do direito de passagem pelo prédio serviente ter sido voluntariamente aceito pelo proprietário desse prédio, tal como é irrelevante que esse direito em concreto tenha nascido da posse continuada que permite a aquisição do correspondente direito pelo decurso do tempo, nos termos dos Art.s 1287.º e ss. e 1547.º n.º 1 do C.C..

No caso, é inquestionável que o prédio do A. estava encravado, por não ter acesso direto à via pública, nem condições para estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio. Pelo que, nos termos do Art. 1550.º n.º 1 do C.C. assistia-lhe o direito potestativo de exigir a constituição duma servidão de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos, no caso, sobre o prédio dos R.R. (cfr. facto provado em 6) da sentença recorrida).

Ora, como resulta evidenciado dos autos, esse direito já existia de facto e era exercido na prática, porque era materialmente realizado por força da passagem que era feita pelo A., em conformidade com o que já era feito desde o tempo dos seus avós, pelo caminho que se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171 (cfr. facto provado 7) - com a redação dada no presente acórdão no ponto 2.6.).

Efetivamente, trata-se de passagem bem visível no local, com sinais de uso permanente, contínuo e consolidado no tempo, destinado ao trânsito de pessoas, animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas (cfr. factos provados 7), 8) e 9) da sentença). Tendo esse tipo de uso se mantido ininterruptamente à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, incluindo dos R.R.., na convicção assumida e expressa, seja pelo A., seja pelas seus pais e avós, de que o faziam no exercício de um direito (cfr. facto provado em 10). Portanto, tudo há muito mais de 20 anos, como resultou evidenciado da prova produzida em audiência final.

Em conclusão, o A. tinha a “posse” correspondente ao exercício do direito de passagem previsto no Art. 1550.º n.º 1 do C.C., o que lhe permitiria a sua aquisição por usucapião.

Efetivamente, nos termos do Art. 1287.º do C.C.: «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião».

Inquestionavelmente que a servidão predial é um direito real de gozo que pode ser adquirido originariamente por usucapião (cfr. Art. 1547.º n.º 1 do C.C.).

Esclareça-se que também nós sufragamos o entendimento doutrinal e jurisprudencial, que temos por dominante, de que o nosso Código Civil consagra a conceção subjetiva da posse.
É conhecida a querela entre as conceções subjetiva de Savigny e objetiva de Ihering sobre a posse. Sabe-se que cada um destes autores germânicos propunha uma orientação metodológica diferente quanto às atribuições do conteúdo dessa figura jurídica.
Ihering subordinava a posse à realidade objetiva da relação material entre o possuidor e a coisa, da qual a lei faz emergir uma tutela especifica que só é afastada nas situações expressamente tipificadas na lei.  Para Ihering na posse não se pode separar qualquer elemento subjetivo ou objetivo.  Assim, escreveu: « Na realidade o corpus não pode existir sem o animus, nem o animus sem o corpus» (citação de Ihering in “A posse - Estudo de Direito Civil Português” - Manuel Rodrigues, 1996, pág. 77).

Já Savigny faz distinguir a posse da mera detenção pela verificação dum elemento de carácter subjetivo: o “animus possidendi”.
Sem tecer mais considerações sobre esta questão, que tem o seu interesse em termos de enquadramento histórico, diremos que é maioritariamente aceite que o nosso legislador aceitou a orientação metodológica de Savigny, sendo elemento de distinção entre a posse e a detenção a existência do animus”, para lá da relação material do possuidor com a coisa (corpus) - Vide: Pires de Lima e Antunes Varela – “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª Ed. - Revista e Ampliada, pág. 5 a 6; Mota Pinto in “Direitos Reais”, 1972, pág. 181; “A posse - Estudo de Direito Civil Português” - Manuel Rodrigues, 1996, e o pequeno estudo introdutório de Fernando Luso Soares designado por “Ensaio sobre a posse como fenómeno social e instituição jurídica”; Durval Ferreira in “Posse e Usucapião”, 3.ª Ed., pág.s 30 e ss.; e Penha Gonçalves in “A Posse”, pág.s 13 e ss.).

Posto isto, para haver posse é necessário não só que o possuidor exerça materialmente o poder sobre a coisa em conformidade com o exercício de um direito real de propriedade ou outro direito real de gozo, como ainda ter a intenção própria de quem age convencido ser o titular desse direito real que exerce.

É nesse sentido que se deve ler o Art. 1.251.º do C.C., quando aí se define a posse como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real, e bem assim, quando, nos termos do Art. 1253.º al. a) do C.C. se define que os detentores ou possuidores precários são aqueles que exercem o poder de facto «sem intenção de agir como beneficiário do direito».

A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (cfr. Art.s 1258.º a 1262.º do C.C.) e pode adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito (cfr. Art. 1263.º al. a) do C.C.).

No caso da servidão de passagem, a posse inicia-se pelo ato de passar por um determinado local, de forma visível e permanente e continua, subsistindo enquanto o caminho se mantiver apto a proporcionar as utilidades próprias da servidão (cfr. Art.s 1257.º n.º 1 e 1544.º do C.C.).

Nos termos do Art. 1296.º do C.C., estando em causa  a usucapião de direitos sobre bens imóveis: «Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé».

Acresce que estamos perante uma servidão aparente, nos termos do Art. 1548.º do C.C., tendo em atenção o facto provado em 8), o que permite a aquisição por usucapião (cfr. Art.s 1548.º n.º 1 e 1293.º al. b), a contrario, do C.C.).

Portanto, em face de toda a factualidade provada (cfr. factos 7) a 10) da sentença), só podemos concluir que estão reunidos todos os pressupostos da posse (corpus e animuns), no que respeita ao direito de passagem do A. pelo dito caminho que atravessa o prédio dos R.R..

A posse do A. é pública, pacífica, de boa-fé e é ininterrupta desde os seus avós, tendo-se transmitido aos sucessores do possuidor inicial (cfr. Art. 1255.º do C.C.), encontrando-se em condições de permitir a aquisição do direito de passagem por usucapião, nos termos do Art. 1296.º do C.C., por ser exercida a posse nesses termos há muito mais de 20 anos.

Realce-se que a aquisição do direito por usucapião retroage os seus efeitos à data do início da posse em nome próprio (cfr. Art. 1288.º do C.C.). Portanto, esta servidão, que é uma “servidão legal” por força de estar subordinada ao regime do Art. 1550.º n.º 1 do C.C., existe há mais de 20 anos, embora não tenha um título constitutivo formal, ficando subordinada ao disposto nos Art.s 1564.º e ss. do C.C..

Sucede que a sentença recorrida condenou os R.R. a reconhecer a servidão de passagem explicitando que a mesma tem uma largura de 3,5 metros e 45 metros de comprimento, o que estava em coerência com o facto então dado por provado no ponto 7), na sua versão original.

Essa decisão correspondia ao pedido formulado pelo A. na alínea B) do petitório da petição inicial e ao facto por si aí alegado no artigo 16.º do mesmo articulado. Pelo que, em si mesmo considerada, a sentença recorrida nunca violou o princípio do pedido, ao contrário do que os Recorrentes alegaram, nem se colocava então sequer o problema da terminação efetiva dos limites da serventia.

No entanto, como resulta do ponto 2.6. do presente acórdão, o facto constante do ponto 7) foi alterado, fazendo-se agora uma descrição mais pormenorizada das dimensões e trajeto do caminho em causa, tendo por referência ao levantamento topográfico de fls. 171, que resulta muito em particular da resposta ao quesito 2 do relatório pericial junto a fls. 166.

Daí resulta que o caminho afinal tem 55 metros de comprimento (e não 45m), largura que varia entre 2,10 metros e 3,60 metros (e não só 3,5m), esclarecendo-se que faz uma curva, mais junto à estrada onde se inicia a serventia, e só depois segue a direito no sentido Sul/Norte.

Como deixámos explicitado no ponto 2.1. do presente acórdão, não estamos perante um facto novo que corresponda a uma efetiva alteração da causa de pedir.

A causa de pedir relativamente ao pedido de constituição da servidão, para além do facto relativo ao encravamento do prédio do A., reporta-se ao caminho que concretamente existia no local, que era usado por si, pelos seus pais e avós, sempre nas mesmas condições. Ora, esse caminho não mudou com a propositura da ação, simplesmente apurou-se que as suas medidas não eram exatamente aquelas que foram alegadas na petição inicial.

Esta situação é perfeitamente equiparável às situações de “erro de cálculo” (cfr. Art. 249.º do C.C.), que permite a sua devida correção. Na prática o que aconteceu foi que o A. enganou-se nas medidas indicadas na petição inicial, o que é suscetível de correção em função das medições que concretamente foram apuradas durante a instrução do processo, através de prova pericial mais rigorosa, pois a servidão continuou a ser sempre a mesma, com a mesma configuração e medidas de largura e comprimento, só que concretizaram-se melhor as suas dimensões efetivas.

Com já evidenciámos, se comparamos o levantamento topográfico de fls. 18, correspondente ao documento n.º 6 junto com a petição inicial, por referência ao qual o A. conformou a sua pretensão inicial, verificamos a sua coincidência com o levantamento topográfico do perito junto a fls. 171. Pelo que, estamos sempre a falar da mesma realidade geográfica, na qual assentou a pretensão formulada pelo A. e relativamente à qual os R.R. sempre souberam que existiu no local, não tendo tido qualquer dificuldade no exercício da sua defesa e na compreensão do que estava em discussão, só pelo facto de se terem apurado agora as medidas exatas dessa serventia.

O facto que agora consta provado no ponto 7), respeitou a previsão do Art. 5.º n.º 2 al. b) do C.P.C., pois limita-se a ser uma melhor concretização dos factos alegados pelo A. no artigo 16.º da petição inicial, resultando da instrução realizada nos presentes autos, mais propriamente da prova pericial, relativamente à qual tiveram as partes oportunidade de exercer o contraditório pleno, reclamando e pedindo esclarecimentos ao relatório, quer por escrito, quer presencialmente. Direitos que, aliás, no caso concreto, foram exercidos por ambas as partes, como decorre das apreciações feitas durante a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constantes do ponto 2. do presente acórdão.

Finalmente, quanto ao pedido, como vimos ele constava da petição inicial em coerência com a causa de pedir alegada. Mas, considerando que a factualidade em que assentava essa pretensão se mostra melhor concretizada no ponto 7) dos factos provados, na sequência do decidido nos pontos 2.1. e 2.6. do presente acórdão, é evidente que a parte dispositiva da sentença tem de ser alterada no ponto (ii) da sua alínea a), porque a descrição do caminho tem de ser necessariamente corrigida em conformidade (cfr. Art. 607.º n.º 4 “ex vi” Art. 663.º n.º 2 do C.P.C.).

Essa correção não significa uma condenação em objeto ou quantidade diversa do pedido, atento ao disposto no Art. 609.º n.º 1 do C.P.C., pois, como já julgamos ter demonstrado à saciedade, a servidão continua a ser a mesma. Não se alterou, simplesmente concretizaram-se melhor as suas dimensões e configuração, respeitando a causa de pedir e o mesmo thema decidendi.

Não há dúvida que o objeto da decisão da sentença deve coincidir com o objeto do processo, não podendo o juiz ficar aquém, nem ir além do que lhe é pedido (Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª Ed., pág. 715). No entanto, o Art. 609º n.º 1 do C.P.C. compadece-se com o poder de o juiz apurar a correção dos factos e proceder à retificação do pedido, em perfeita coerência interna e recíproca, tendo em atenção o disposto no Art. 5.º n.º 2 do C.P.C.. O que não pode é ser violado de forma grosseira o princípio dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e ainda o princípio do contraditório, que não permitem ao tribunal resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. Ora, no caso, estamos perfeitamente dentro dos limites do litígio colocado à discussão, não tendo havido qualquer alteração do objeto do processo.

Conforme escreveu Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág.s 67 a 68): «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. (...) Também não pode condenar em objeto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido». Mas depois explicita em que situações tal se verifica, exemplificando-as do seguinte modo: «Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a presta um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo)». Ora, nada disso se verifica no caso concreto. A serventia alegadamente existente no local, segundo a versão dos factos apresentada na petição inicial, cuja aquisição por usucapião se pretendida ver reconhecida, é, e sempre foi, a mesma. O objeto do processo não se altera por se corrigirem as dimensões indicadas na petição inicial por aquelas que se apuraram ser as corretas.
O n.º 1 do Art. 609.º do C.P.C. deve ser interpretado de modo flexível por forma a permitir ao tribunal corrigir o pedido. Isso já foi reconhecimento pelo Supremo quando a correção em causa se traduza numa mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo, ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo A., não exclua uma outra abarcada por aquela (cfr. Acórdão do S.T.J. de 18/11/2004 (Relator – Ferreira Girão; Proc. n.º 04B2640 – disponível em www.dgsi.pt). Pelo que, por maioria de razão, semelhante interpretação deverá se aplicada quando a correção do pedido e, consequente, condenação, é decorrente de mera retificação das concretas medidas duma serventia.
Julgamos pois que a correção do pedido e alteração da condenação, para conformar a mesma ao facto dado por provado em 7), não constitui desrespeito pelo princípio do pedido.
Finalmente, quanto à questão da indeterminação dos limites da servidão, na verdade ela nunca se colocou no quadro da sentença recorrida, mas certamente que a questão perde ainda mais sentido quando se decidir, como é nosso propósito, corrigir a parte dispositiva do ponto (ii) da alínea a) da sentença, por forma a conformar essa decisão com o facto apurado em 7).

O que está em causa é o princípio que Menezes Leitão identifica como sendo o “princípio da especialidade”. Conforme escreve este autor (in “Direitos Reais”, 8.ª Ed., pág.21), esse princípio «exige que se possa individualizar concretamente a coisa que constitui objeto do direito real. (…) para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas».

No dizer dos Recorrentes, não sabiam os mesmos como respeitar a decisão da 1.ª instância, quando a serventia teria mais metros de comprimento e dimensões diversas das dadas por provadas e constantes da parte dispositiva da  sentença agora posta em crise. No entanto, julgamos que a correção do pedido e da condenação, por referência ao levantamento topográfico de fls. 171, respeita inteiramente o princípio de especialidade e afasta qualquer dúvida.

Em suma, alterando a parte dispositiva da sentença recorrida, nos termos propostos, improcedem todas as conclusões apresentadas que punham em crise a condenação constante do ponto (ii) da alínea a) da sentença recorrida.

Em todo o caso, sempre deveria ser alterada essa parte da condenação no sentido de aí passar a constar o seguinte:
«(ii)- Condenar os R.R. a reconhecerem a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do prédio do autor referido na alínea anterior (prédio dominante), sobre o prédio dos réus sito na Barreira P....., Lugar de Rocha....., na Freguesia de L....., no concelho do C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº ... da secção T e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o Nº 1... (prédio serviente), servidão essa, constituída por caminho, em terra batida, com largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio dos réus identificado em 4), com início na Rua do M....., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171, e que é destinada ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas».

3.3.Da possibilidade de constituição duma servidão legal alternativa e da indemnização devida pela sua constituição.
Saltamos agora diretamente para os pedidos reconvencionais, porquanto estas pretensões estão relacionadas ainda com a matéria da constituição da servidão e, de alguma maneira estão numa relação de prejudicialidade com a apreciação dos demais pedidos que mereceram provimento na sentença recorrida.
Como já tivemos oportunidade de referir, os R.R. formularam dois pedidos reconvencionais, que foram julgados por improcedentes, mas que os Recorrentes agora pretendem que mereçam acolhimento.
Em causa está, antes de mais, que os R.R. peticionavam que, caso se viesse a verificar que deveria ser fixada uma servidão legal, nos termos do Art. 1550.º do C.C., então pediam que a mesma fosse constituída no início da Rua do M....., no lugar de Rocha....., no sentido sul/norte com um comprimento de 23,60 metros e largura de 3,60 metros, por ser a que provoca menos prejuízo e pelo modo e lugar menos inconvenientes ao prédio dos reconvintes (pedido da alínea i) da reconvenção identificada em C) da contestação – cfr. fls. 50 verso).
Pugnam agora pela procedência desse pedido, em via de recurso de apelação, por um lado, porque estaríamos perante uma servidão legal, independentemente de outra ter sido constituída por usucapião. Por outro, porque nunca impediram o acesso do A. ao seu terreno, devendo agora estabelecer-se o direito de passagem pelo lugar que provocasse menor prejuízo, por ser mais curto, ocupar menos espaço e permitir o mesmo tipo de acessibilidade, respeitando assim o Art. 1553.º e 1568.º do C.C..
O Recorrido, sustentou que não poderiam aplicar-se os citados normativos quando em causa está a constituição duma servidão por destinação de pai de família ou com fundamento na posse (cfr. Ac. do TRC de 24/2/2015, Proc. n.º 357/13.3TBTND.C1) e, bem assim, porque as servidões legais não podem ser constituídas por usucapião, não lhe sendo aplicável o regime alargado das servidões legais (cfr. Menezes Cordeiro in R.O.A. n.º 50, 1990, III, pág.s 574 e ss. e parecer de 8/81988 publicado na C.J., 1992, tomo I, pág. 63), vincando as diferenças entre servidões de passagem constituídas por usucapião e as servidões legais, o que justificaria que não fossem aplicáveis a estas os Art.s 1550.º a 1555.º e 1569.º n.º 3 do C.C., como decidido também pelo Ac. TRP de 25/1/2001.
Nós já tivemos oportunidade de expressar a nossa posição sobre a conclusão de que a servidão de passagem existente no local desde os tempos dos avós do A. tinha por finalidade a satisfação da necessidade de acesso desse seu prédio à via pública e, portanto, correspondia integralmente ao cumprimento do propósito legal estabelecido no Art. 1550.º n.º 1 do C.C., considerando que a propriedade do A. se encontrava objetivamente encravada.
Portanto, estamos perante uma servidão que, independentemente de ter sido constituída por usucapião, sempre corresponderia à satisfação do direito potestativo do A. previsto no Art. 1550.º n.º 1 do C.C. e, por isso, é objetivamente uma “servidão legal” no sentido já supra esclarecido. Isto porque, se esse caminho não existisse de facto, como de facto existe, sempre teria de ser constituída uma serventia semelhante, de forma coerciva por decisão judicial.
É certo que a aquisição por usucapião do direito de passagem não é automática, mas sim potestativa, dependendo da iniciativa do possuidor, pois o Art. 1287.º do C.C. define-a como uma “faculdade”. No entanto, uma vez exercida essa faculdade, a usucapião tem efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. Art. 1288.º do C.C.), pelo que tudo funciona como se o direito de passagem sempre tivesse existido desde essa data, nos termos reconhecidos pela sentença judicial. Em consequência, existe uma servidão de passagem desde o tempo em que os avós do A. utilizavam esse caminho e o prédio deste deixou de estar encravado em função da existência dessa concreta acessibilidade.
O problema que agora se coloca é o de saber se, tendo a servidão legal sido constituída por usucapião, não pode a mesma ser alterada, nos termos do Art. 1568.º, porque às mesmas não pode ser aplicável o regime geral das “servidões legais”.
Menezes Cordeiro, no parecer sobre “Servidões legais e direito de preferência” (publicado na C.J., ano XVII – 1992, Tomo I, pág.s 65 a 80), afasta a aplicação do regime geral das servidões legais – no caso para efeitos de pôr em causa a existência de um direito de preferência – nas situações em que a servidão foi constituída por destinação de pai de família ou por usucapião, desde logo porque entende que nesses casos não há sequer encrave.

Textualmente escreveu este autor o seguinte: «Quando a posse fosse anterior ao “encrave”, este nunca teria existido: os efeitos retrotraem-se à data do início da posse – Art. 1288.º - pelo que tendo havido sempre «comunicação suficiente com a via pública por terreno alheio» não há encrave. / Portanto: não se aplica o regime das servidões legais, por falta de encrave, sempre que este resulte de divisão que, em simultâneo, constitua uma servidão suficiente por destinação de pai de família ou sempre que, posteriormente seja alegada a usucapião de servidão bastante, na base duma posse anterior dado o efeito retroativo de tal alegação» (Ob. Cit., pág. 66).
Mais à frente explicita ainda que no caso das servidões constituídas por usucapião ou destinação de pai de família: «a servidão seguirá pelo lugar pré-determinado pela posse ou pelos “sinais visíveis e permanentes”, sejam eles quais forem. (…) As servidões legais, seja qual for o título da sua constituição, extinguem-se por desnecessidade superveniente – artigo 1569.º/3; outro tanto, por expressa e autónoma injunção legal, acontece com as servidões constituídas por usucapião – artigo 1569.º/2. Em compensação, havendo destinação de pai de família, nenhuma razão se visualiza para penalizar os (ex-)encraves: na falta de preceito legal que disponha doutra forma, tantas razões existem para manter a servidão constituída, por destinação de pai de família, tornada desnecessária, quando não haja encrave e quando isso não suceda. A forma de extinção própria das servidões legais apenas se aplica às constituídas por usucapião em virtude de norma própria e autónoma e não funciona perante as constituídas por destinação de pai de família.
«vi-Em conclusão: O regime próprio das servidões legais de passagem, firmado nos artigos 1550.º (Prédio encravado), 1551.º (Possibilidade de afastamento da servidão), 1552.º (Encrave voluntário), 1553.º (Lugar da constituição), 1554.º (indemnização) e 1569.º/3 (Extinção) não se aplica, em nenhum dos seus pontos, e por razões várias e confluentes, às servidões constituídas por usucapião ou por destinação de pai de família.

«Assim sendo, perfilam-se duas consequências:
«- As servidões em causa, não gozando do regime das servidões legais, não são elas próprias legais;
«- O  artigo 1555.º (Preferência legal) não se aplica, por razões sistemáticas e de fundo, a estas servidões» (Ob. Cit., pág.s 76 e 77).
Em suma: «A servidão constituída por usucapião ou por destinação de pai de família não são, nem genericamente, nem pelo seu regime, servidões legais» (Ob. Cit., pág. 79).
Quanto a este último aspeto, diremos apenas que, as servidões prediais que respeitem os pressupostos do Art. 1550.º n.º 1 do C.C., mesmo que objetivamente constituídas por usucapião, são sempre “servidões legais” no sentido supra exposto, mesmo que se possa discutir se estão integralmente subordinadas ao seu regime jurídico típico. Assim é, porque sobre a sua constituição paira sempre a possibilidade de, de todo o modo, serem coativamente imposta por força do exercício do direito potestativo previsto nesse normativo legal. Por isso, discordamos também frontalmente com o exposto no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/2/2015, citado na sentença recorrida e nas contra-alegações de recurso.
Por outro  lado, no caso concreto dos autos, não se pode dizer que não existisse um prédio encravado, não fora a circunstância de se ter constituído uma servidão (por usucapião), portanto a questão da possibilidade de aplicação do Art. 1550.º n.º 1 do C.C. nunca estaria excluída.
Finalmente, uma servidão constituída por usucapião pode ser declara extinta por decisão judicial, desde que se demonstre ser desnecessária ao prédio dominante (cfr. Art. 1569.º n.º 2 do C.C.), sendo que o que está em causa nesta ação é a possibilidade  de mudança dessa servidão, nos termos previstos no Art. 1568.º do C.C., que curiosamente não é mencionado parecer do Prof. Menezes Cordeiro. Ora, este Art. 1568.º parece assumir um caráter imperativo, pois o n.º 4 do mesmo estabelece que: «As faculdades conferidas neste artigo não são renunciáveis nem podem ser limitadas por negócio jurídico».

Oliveira Ascensão (in “Direito Civil – Reais”, 4.ª Ed., pág. 442 a 443), para além de defender que os Art.s 1564.º a 1568.º se aplicam a toda e qualquer servidão – portanto, também às servidões coativas –, não tem dúvidas em reconhecer o caráter injuntivo à disposição estabelecida no Art. 1568.º n.º 4 do C.C..

Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª Ed., pág.s 672 e 763), reportando a posição de Guilherme Moreira, sustentam a faculdade de mudança (alteração) da servidão vigora para todas as servidões, seja qual for o título da sua constituição, quer se trate de servidões legais ou voluntárias. Acrescentando ainda que: «tratando-se de um poder legal, não se extingue com o seu exercício, podendo qualquer dos proprietários formular novos pedidos de mudança de servidão, sempre que, em consequência de alteração de circunstancialismos objetivos, se verifiquem os pressupostos indicados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1568.º (vide as atas da Comissão Revisora. Bol. Cit., págs. 139 e 140)».

Assim, se a lei permite a possibilidade de extinção da servidão de passagem constituída por usucapião, por desnecessidade (Art. 1569.º n.º 2 do C.C.), não vemos motivos relevantes para afastar a possibilidade de alteração dessa oneração, tendo em conta o caráter injuntivo do Art. 1568.º do C.C..
Nos termos do Art. 1568.º n.º 1 do C.C. «1- O proprietário do prédio dominante não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhes for conveniente e não prejudicar os interesses do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste».

Sucede que, no caso dos autos, a serventia em causa, não serve apenas o prédio do A.. Conforme podemos constatar na cópia do levantamento topográfico de fls. 18 (Doc. n.º 6 da p.i.), que é replicada no levamento de fls. 171, esse caminho atravessa o prédio dos R.R. (artigo 137) e dá acesso aos prédios encravados a que correspondem os artigos 136 (que é o prédio do A.) e 135 que, de acordo com a prova produzida em audiência final, que tivemos oportunidade de auscultar, pertence a um terceiro.

Acresce que, esse caminho não fica por aí, seguindo em linha reta, no sentido sul-norte, pela estrema existente entre os prédios dos artigos 136 e 135, prosseguindo até ao prédio a que corresponde o artigo 134, que igualmente está encravado e pertence a outras pessoas, mais propriamente a AI..... e EP....., que foram ouvidos como testemunhas em audiência final e aí confirmaram que o seu prédio também está encravado e só tem acesso à via pública pelo caminho em discussão.

Portanto, este caminho serve pelo menos 3 prédios dominantes, sendo que a serventia proposta pelos R.R., que ficaria na estrema poente do seu prédio, apesar de ter uma implantação que poderia causar menor prejuízo aos titulares do prédio onerado, por fazer um percurso mais curto e mais a direto, ocupando, portanto, uma área menor, não lograria garantir que os proprietários dos prédios a que correspondem os artigos 135 e 134 pudessem continuar a ter acesso à via pública. Logo, falha o requisito da mudança pretendida «não prejudicar os interesses do(s) proprietário(s) do(s) prédio(s) dominante(s)» (cfr. Art. 1568.º n.º 1 do C.C.). E isso é quanto basta para se concluir que a reconvenção deve improceder, quer quanto ao pedido de constituição duma servidão legal diferente da existente, quer quanto ao pedido de indemnização pelo valor do prejuízo decorrente da constituição dessa nova servidão.

Na verdade, mesmo que se estabelecesse a nova serventia a favor do A., tal como sugerido pelos R.R., daí não resultaria a conclusão necessária de que a servidão antiga devesse ser extinta, na medida em que beneficia os prédios inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 134 e 135. Ou seja, haveria sempre de considerar o risco do prédio dos R.R. ficar onerado com 2 servidões e, portanto, nem sequer era seguro a conclusão de que essa alteração se traduzisse num benefício efetivo para os titulares do prédio serviente.

Em conformidade, improcedem as conclusões que sustentam o contrário, devendo manter-se a improcedência total dos pedidos reconvencionais.

3.4.Da abstenção da prática de atos que perturbem o uso da servidão.
No ponto (iii) da alínea a) da parte dispositiva da sentença, foram os R.R. condenados a abster-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do A. ao seu prédio.
As objeções que os Recorrentes levantavam a este pedido tinham mais a ver com a configuração da servidão e a alegada indeterminação das suas obrigações, porque o caminho teria mais comprimento que o definido na sentença recorrida. Esta questão deixou de ter relevância, por ter ficado prejudicada pelo exposto nos pontos 2.1., 2.6. e 3.2. do presente acórdão. Pelo que, não vemos motivos para deixar de subsistir essa condenação, por se trata de consequência da eficácia erga omnes dos direitos reais, embora referindo-se à alteração que nos propusemos fazer dos termos da condenação do ponto (ii) da alínea a) da sentença recorrida.

3.5.Da colocação de muro de sustentação de terras e de sistema adequado de escoamento de águas.
Seguem-se as condenações constantes dos pontos (iv) e (v) da alínea a) da parte dispositiva da sentença recorrida, que se referem à condenação dos R.R. a colocarem a expensas suas um muro de suporte das terras e um sistema de escoamento adequado de águas.
Os recorrentes entendem que não se provou que foi por ação dos R.R. que o A. deixou de poder beneficiar das utilidades do seu prédio, nem se que verificaram invasões de entulho e terras, pretendendo que fosse dado por não provado o ponto 17). Por outro lado, quanto às águas, sustentavam a sua pretensão recursiva na alteração dos factos provados em 15) e 16), que deveriam ser dados por não provados.
Ocorre que todos esses factos impugnados continuam provados, nos mesmos termos consignados na sentença recorrida, sendo que a matéria de facto provada de 12) a 17) determinam a inevitável procedência dos pedidos do A. e justificam a sentença condenatória nessa parte, tendo em atenção o disposto no Art. 1351.º n.º 2, 2.ª parte, do C.C.. Pelo que, improcedem as conclusões que sustentam a revogação da sentença nesta parte.

Da indemnização pelos prejuízos causados pelas obras dos R.R.
Finalmente, temos a condenação em indemnização a liquidar em execução de sentença constante do ponto (vi) da alínea a) da parte dispositiva da sentença recorrida, relativamente à qual não encontramos nenhuma alegação na motivação do recurso, ou sequer uma única conclusão apresentada pelos Recorrentes, que pusesse em causa essa decisão. Pelo que, motivos não existem para alterar a sentença recorrida nesta parte.
Em suma, improcedem no essencial as conclusões dos Recorrentes que sustentam o contrário do oposto do exposto, devendo a sentença ser confirmada, sem prejuízo das alterações que se impõem por força do decidido sobre a impugnação da decisão da matéria de facto e suas consequências quanto ao ponto (ii) da parte dispositiva da sentença recorrida.

VDECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação dos Recorrentes improcedente por não provada, sem prejuízo de se procederem às seguintes alterações na sentença recorrida:
a)-Quanto à matéria de facto é a mesma alterada nos termos estabelecidos no ponto 2.6. do presente acórdão, nos seguintes termos:
1 O ponto 7) dos factos provados da sentença recorrida passará a ter a seguinte redação:
«7)- Pelo menos desde o tempo dos avós do A., o acesso ao prédio identificado em 1) é feito através de um caminho, em terra batida, com a largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio identificado em 4), com início na Rua do M....., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171».
2É aditado aos factos provados o ponto 22-A com a seguinte redação:
«22-A O caminho referido em 15) permite o trânsito de veículos do tipo trator agrícola ou florestal, com ou sem reboque, e máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal».
3O ponto 23) dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
«23)- O caminho referido em 15) permite a circulação de pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant, com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação adequada a outros tipos de veículos automóveis, sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1).
4É eliminado o facto constante da alínea f) dos factos não provados da sentença recorrida.
b)-Quanto à parte dispositiva da sentença, é a mesma alterada no ponto (ii) alínea a), que passa a ter a seguinte redação:
«(ii) Condenar os R.R. a reconhecerem a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do prédio do autor referido na alínea anterior (prédio dominante), sobre o prédio dos réus sito na Barreira P....., Lugar de Rocha....., na Freguesia de L....., no concelho do C_____, inscrito na matriz sob o artigo Nº ... da secção T e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o Nº 1... (prédio serviente), servidão essa, constituída por caminho, em terra batida, com largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio dos réus identificado em 4), com início na Rua do M....., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171, e que é destinada ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas».
c)-No mais é mantida a sentença recorrida.
- Custas pelos Apelantes (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 21 de junho de 2022


Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva