Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL FONSECA | ||
Descritores: | ACÇÃO POPULAR LEGITIMIDADE CONCORRÊNCIA INTERESSES DIFUSOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/04/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Distinguindo entre interesses difusos stricto sensu, interesses coletivos e interesses individuais homogéneos, vem a doutrina e jurisprudência admitindo que todos podem ser abrangidos pela ação popular, afigurando-se, pois, correta a asserção de que esta tem, assim, por objeto a tutela de interesses difusos (latu sensu); 2. Uma associação sem fins lucrativos que tem, estatutariamente, “como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa” – e, “designadamente”, “intentar e promover ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente com recurso à ação popular ou a qualquer outro meio processual de defesa dos interesses difusos ou coletivos, nos termos da lei em vigor” –, tem legitimidade popular para instaurar ação tendente a reconhecer o direito de indemnização por infração ao direito da concorrência, assim prosseguindo a defesa dos consumidores. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa I.RELATÓRIO Ação Ação declarativa cível com forma de processo comum, instaurada ao abrigo da Lei 83/95 de 31-08 [ [1] ] [ [2] ]. Autor/apelante O..., Associação, com sede na F..., Alameda da U..., C..., em Lisboa. Réu/apelado S…, S.A., com sede na Rua P…, Lisboa Pedido “a) Ser declarado que a ré violou os artigos 101.º e/ou 102.º do TFUE e, sucessivamente, os artigos 4.º, n.º 1, e/ou 6.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e os artigos 9.º, n.º 1, e/ou 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio: i. ao fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de venda dos canais S…, S.A. aos utilizadores finais, e/ou ao interferir na sua determinação pelo livre jogo do mercado; ii. ao fixar, de forma directa ou indirecta, outras condições de transacção dos canais S…, S.A. aos utilizadores finais; iii. ao subordinar a contratação de um dos seus canais à aceitação da contratação dos outros canais, sem que tal se justificasse por razões práticas ou técnicas; iv. ao aplicar aos operadores de televisão por subscrição, de forma sistemática ou ocasional, condições discriminatórias de preço ou outras relativamente a prestações equivalentes, criando entraves e distorcendo a concorrência no mercado da televisão por subscrição, em detrimento dos utilizadores finais; e/ou v. ao limitar a produção, distribuição, o desenvolvimento técnico e/ou os investimentos nos serviços de televisão por subscrição, em detrimento dos utilizadores finais; b) Ser a ré condenada a indemnizar os utilizadores finais lesados pelos comportamentos acima descritos, em termos a determinar em fase de liquidação de sentença”. Causa de pedir “Na presente ação popular, o O..., Associação pede que se declare que a S…, S.A. violou continuamente o direito da concorrência europeu e português, entre janeiro de 2005 e junho de 2013, período em que era monopolista, causando danos aos utilizadores finais dos canais S…, S.A. e a todos os clientes da televisão por subscrição, e que seja condenada a indemnizá-los. Mostrar-se-á que a S…, S.A. violou as proibições de acordos restritivos da concorrência e de abuso de posição dominante, ao induzir artificialmente a subida dos preços no mercado retalhista da televisão por subscrição, ao limitar o desenvolvimento e investimento neste e ao excluir utilizadores finais do benefício dos canais S…, S.A., nomeadamente: • proibindo os operadores de realizarem campanhas comerciais ou promocionais envolvendo os canais S…, S.A. sem autorização prévia da S…, S.A.; • recusando, pelo menos ocasionalmente, a realização de campanhas promocionais envolvendo canais S…, S.A.; • obrigando os operadores a apresentarem-lhe um conjunto de informações comerciais sensíveis (incluindo promoções planeadas), às quais o maior operador de televisão por subscrição, seu acionista (atualmente, N...), tinha acesso, assim aumentando a transparência no mercado e dissuadindo uma concorrência mais agressiva, por lhe retirar eficácia; • usando um sistema de cálculo de preços grossistas ligado ao PVP recomendado que, em conjunto com as suas outras práticas e com as características do mercado da televisão por subscrição, implicava que os preços recomendados funcionassem, na prática, como preços de revenda impostos; • usando um sistema de cálculo de preços grossistas discriminatório, que implicava prejuízos para alguns operadores na venda dos canais S…, S.A. aos preços recomendados, dissuadindo a oferta desses canais a valores abaixo dos preços recomendados e a pressão para a descida generalizada dos preços da S…, S.A. no mercado retalhista; • conduzindo, pelo conjunto destas práticas, à subida artificial dos preços retalhistas; • recusando a venda individualizada de canais S…, S.A., obrigando à aquisição do pacote de canais e inviabilizando a aquisição de um único canal por um preço muito inferior; • discriminando sistematicamente os outros operadores de televisão por subscrição, em favor da sua acionista (atualmente, N…), causando-lhes prejuízos que impediram a prática de preços mais reduzidos e o desenvolvimento e investimento no mercado da televisão por subscrição e geral. Serão representados nesta ação popular todos os consumidores lesados pelas práticas anticoncorrenciais em causa da S…, S.A., a não ser que expressamente indiquem que não desejam ser representados. No período em causa, os canais S…, S.A. tiveram um número total de subscritores que variou entre cerca de 450.000 e 675.000, e o número total de clientes da televisão por subscrição em Portugal cresceu constantemente, de 1,79 para 3,14 milhões. Pede-se que sejam indemnizados os utilizadores finais lesados pelos comportamentos acima descritos, em termos a determinar em fase de liquidação de sentença” [ [3] ]. Contestação [ [4] ] A autora não goza de legitimidade para instaurar a ação. O O..., Associação tem atribuições para a proteção dos interesses difusos relacionados com a “defesa da concorrência em Portugal”, a “proteção dos consumidores”, o “bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa”, mas já não tem atribuições para atuar no âmbito da defesa ou proteção de interesses individuais homogéneos, como são aqueles relacionados com o ressarcimento de danos concretos e efetivos sofridos por determinadas pessoas, na qualidade de consumidores. Analisando os Estatutos do O..., Associação, constata-se que esta associação não é uma associação de defesa ou proteção dos consumidores mas sim uma associação de defesa da concorrência e que, por isso, terá como fim último e necessário o “bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa” – já que é esse o derradeiro propósito subjacente a qualquer regra ou sistema que vise a salvaguarda da concorrência no mercado. A única vez que os Estatutos do O..., Associação menciona o “ressarcimento de danos causados a consumidores” é no âmbito do diálogo que o O..., Associação pode promover com empresas e associações para a remoção de obstáculos concorrenciais; mas “dialogar” nada tem que ver com intentar ações judiciais. Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, nas ações populares, constitui requisito da legitimidade ativa das associações “o incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate”. Se, por um lado, o O..., Associação intentou a presente ação com o propósito de proteger interesses difusos – em suma, a defesa da concorrência –, por outro lado, o ressarcimento de danos causados aos utilizadores finais só se compreende na medida em que, com a presente ação, se vise proteger os interesses individuais homogéneos dos clientes da S…, S.A. ou dos utilizadores finais em geral. “Pois bem, tendo presente (i) as atribuições do O..., Associação expressamente previstas no artigo 2.º dos seus Estatutos; (ii) a regra concernente à legitimidade ativa das associações no âmbito de ações populares, estabelecida pelo artigo 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, (iii) os interesses em causa na presente ação e que a própria Autora confessa e reconhece (iv) e o tipo de ação judicial em causa, conformada pela causa de pedir e pelos pedidos formulados,…” “…bem se vê que o O..., Associação carece de legitimidade para os pedidos formulados na presente ação” (arts. 146º e 147º). Dir-se-á que o O..., Associação terá legitimidade para o primeiro pedido formulado (um pedido meramente declarativo), uma vez que respeita à declaração da violação do Direito da Concorrência, e, nessa medida, estará incluído na expressa atribuição de “defesa da concorrência em Portugal”. Porém, não se poderá olvidar que a autora configurou a presente ação como ação de responsabilidade civil, tendo pedido expressamente a condenação da S…, S.A. na indemnização dos utilizadores finais. Assim, o primeiro pedido mais não é do que o juízo conclusivo sobre os factos alegadamente ilícitos dos quais decorrerá o direito à compensação peticionada no segundo pedido. Apesar de determinante para aferir da legitimidade do O..., Associação, o primeiro pedido apenas pode ser compreendido e contextualizado no âmbito da análise do segundo pedido, na medida em que a utilidade, para o O..., Associação, da procedência do primeiro pedido decorre da procedência do segundo – visto ter configurado a presente ação como ação de responsabilidade civil. Ora, a verdade é que a autora não formulou qualquer pedido que tenha como objetivo direto a proteção da concorrência em Portugal. Em termos práticos, nenhum benefício resultará para a concorrência em Portugal da simples declaração da violação de determinadas regras do Direito da Concorrência – donde resulta que, mesmo que se entenda que a Autora tem legitimidade para formular o primeiro pedido, já não terá interesse em agir, o que se invoca para todos os efeitos legais. Note-se que a compensação por supostos danos sentidos no passado e que, de acordo com o exposto na petição inicial, já não são sentidos pelos utilizadores finais atualmente, além do puro efeito compensatório que poderá ter para esses utilizadores, não produz qualquer efeito prático de proteção ou defesa da concorrência. Até porque, de acordo com o exposto na petição inicial, a concorrência deixou de ser afetada por qualquer comportamento da S…, S.A. a partir de julho de 2013 (cfr. artigo 299.º da petição inicial). Em face do exposto, deve a exceção dilatória de ilegitimidade ativa ser julgada totalmente procedente e, em consequência, ser a S…, S.A. absolvida da instância. Resposta Mantém a posição assumida na petição inicial, remetendo para os arts. 264º a 302º. Como se referiu no artigo 1.º da Petição Inicial, a Autora tem, nos termos dos seus Estatutos, “como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa, designadamente: a) intentar e promover ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente com recurso à ação popular…”. Insere-se, expressa e claramente, no seu objeto estatutário a promoção de ações populares para a defesa da concorrência e para a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do seu bem-estar, missão esta que necessariamente abarca a defesa de interesses difusos, mas também dos interesses individuais homogéneos dos consumidores, cuja proteção é indissociável da proteção dos interesses difusos de proteção da concorrência e que também se insere no âmbito das ações populares, como tem vindo a ser repetidamente reconhecido pela jurisprudência do STJ. Conclui pela improcedência da exceção. Incidente Em 19-07-2017 a autora apresentou o requerimento de fls. 5050 a 5053, concluindo como segue: “À luz do que antecede, a Autora Requer que o douto Tribunal: (i) Proceda à retificação do lapso material no formulário online de registo do processo, passando-se a indicar a presente ação como “Outro processo declarativo especial – Ação Popular”; (ii) Dê cumprimento ao disposto no artigo 15.º da LAP; (iii) Notifique o Ministério Público de todos os atos adotados no âmbito dos presentes autos, até agora e futuramente, para que este possa exercer as suas prerrogativas ao abrigo do artigo 16.º da LAP”. Decisão recorrida Em 14-12-2017 proferiu-se decisão com o seguinte teor: “Requerimento de fls. 5050 O..., ASSOCIAÇÃO, autora nestes autos, veio por via do requerimento supra identificado pedir que se: - proceda à rectificação do lapso material no formulário online do registo do processo passando a indicar a presente acção como “Outro processo declarativo especial – Ação Popular”; - dê cumprimento ao disposto no art. 15º da LAP; - notifique o Ministério Público de todos os actos adoptados no âmbito dos presentes autos, até agora e futuramente, para que este possa exercer as suas prerrogativas ao abrigo do art. 16º da LAP, nos termos e com os fundamentos constantes daquele requerimento e que aqui se dão por reproduzidos. Relembre-se o que já se referiu noutra decisão proferida nestes autos: “A presente acção deu entrada e foi distribuída como acção de responsabilidade civil por factos ilícitos, sob a forma comum. Daí a ré ter sido citada e não ter sido a presente acção submetida a despacho liminar, como deveria, se do formulário constasse tratar-se de uma acção popular. Nos termos da lei a primeira intervenção do tribunal nas acções que seguem a forma comum acontece findos os articulados para proferir despacho nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 590º do CPC ou designar dia para realização da audiência prévia. É na audiência prévia, ou no despacho que segue à dispensa da mesma, que o tribunal pode e deve pronunciar-se sobre todas as questões designadamente, qualificar a acção como acção popular ou acção comum e, qualificando-a, determinar o prosseguimento dos autos num sentido ou noutro, ou julgar a acção manifestamente inviável (caso em que a intervenção do M.P. se impõe), ou conhecer de eventuais excepções invocadas (ou não invocadas mas de conhecimento oficioso) determinando o prosseguimento da acção ou pondo-lhe fim.” Concatenando o que então se referiu com o que ora se requer cabe dizer o seguinte: Administrativamente, e sem que este tribunal conheça a razão, foi criada no formulário uma opção de “ação popular” na categoria de acções declarativas especiais. Tal significa que se tal opção existisse à data em que a presente acção deu entrada em juízo não poderia esta acção, independentemente do valor que a autora lhe atribuísse, ser distribuída à então Instância Central Cível pois tratando-se de acção declarativa especial não tem este tribunal competência para da mesma conhecer e tramitar, dado que a competência da Instância Central Cível, agora Juízo Central Cível, se restringe às acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000, tal como se refere no art. 117º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26.8). Contudo, não foi esse o caso e a acção foi distribuída como acção declarativa cível de processo comum e valor superior a 50.000,00 euros. Nos termos do art. 12º nº 2 da LAP “A acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”, o que significa que pode ser tramitada como acção de processo comum ou acção especial, não distinguindo a lei nem impondo que seja uma ou outra forma de processo. Considerando o que consta da LAP quanto aos actos a praticar na tramitação da acção popular cabe desde já dizer, que não se nos afigura de todo desassisado que se possa considerar a tramitação da acção popular como acção declarativa especial. Na verdade, e ao contrário do que sucede no processo comum de declaração, a LAP impõe a prolação de despacho liminar e preceitua que” Na acção popular e no âmbito das questões fundamentais definidas pelas partes, cabe ao juiz iniciativa própria em matéria de recolha de provas, sem vinculação à iniciativa das partes.” – art. 17º, norma que se aproxima do que se dispõe no CPC para os processos de jurisdição voluntaria, também eles processos especiais. Assim, tal posição não será de afastar in limine em futuras causas, mas impondo um melhor e mais aprofundado estudo da questão. No caso presente, e considerando todo o circunstancialismo então existente, vamos entender que a acção popular pode seguir como acção de processo comum, o que determinaria o juiz, como se referiu supra, a que em sede de audiência prévia proferisse despacho conformando a tramitação da acção comum ao disposto na LAP, nomeadamente dando cumprimento ao art.15º da LAP e ordenando a notificação do M.P. O que, porém, não se determinará nesta acção porquanto a presente acção não pode prosseguir, por entender este tribunal, como melhor se explicitará de seguida, que a autora não goza de legitimidade para os termos da mesma. Proceder à citação das pessoas referidas no art. 15º da LAP, nos termos e para os efeitos aí indicados, para intervirem numa acção que não vai prosseguir não é de todo acto que se possa praticar, por inútil e como tal proibido (art. 130ºdo CPC “Não é lícito realizar no processo actos inúteis”) Quanto à notificação ao MP, uma vez que não se mostra verificada qualquer das situações referidas no art. 16º da LAP, mormente as referidas na parte final do seu nº 3, igualmente se revela desnecessária a notificação do mesmo nos termos requeridos, sendo certo que a decisão proferida nestes autos ser-lhe-á notificada como são todas as sentenças proferidas em sede cível. Assim e por tudo o exposto indefere-se o requerido pela autora por via do requerimento supra identificado. Notifique. Atento o preceituado no art. 306º do CPC, inexistindo razões que imponham diferente entendimento, fixa-se em 60.000,00 euros o valor da acção. O tribunal é competente. Não existem nulidades principais. As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, perfilando-se a ré como parte legítima. - Da invocada excepção dilatória de ilegitimidade activa – (…) Donde, considerando tudo o exposto, julga-se procedente a invocada excepção dilatória pelo que, ao abrigo do disposto nos arts. 576º nºs 1 e 2, 577º alínea e) e 278º nº 1 alínea d) todos do CPC, se absolve a ré, S…, S.A. Portugal, S.A., da instância. Sem custas por delas estar isenta a autora. Notifique”. Recurso Não se conformando a autora apelou formulando as seguintes conclusões: “1. O presente recurso tem por objeto a supra referida sentença de 14 de dezembro de 2017, proferida pelo douto Tribunal a quo, que, em primeiro lugar, julgou procedente a exceção dilatória invocada pela Ré relativa à legitimidade ativa da Autora e absolveu a Ré da instância, e, em segundo lugar, recusou a notificação dos consumidores representados e do Ministério Público antes da realização da audiência prévia. 2. A título preliminar, a Autora lamenta profundamente que, quase três anos depois da apresentação da Petição Inicial, ainda se esteja a discutir a legitimidade ativa da Autora, sem qualquer incidente que tenha suspendido o processo e justificado o seu atraso, e sem que se tenha sequer notificado os consumidores e o Ministério Público, passo indispensável e que poderia ter tornado supérflua esta discussão. Facto tão mais lamentável quando se verifica que a Autora se vê obrigada a recorrer de uma decisão assente em manifestos erros de facto e erros de Direito, que atrasam por vários meses adicionais a prossecução da justiça, numa ação popular intentada em defesa de interesses de toda a comunidade e que poderá, num momento subsequente, levar, pela primeira vez em Portugal, à indemnização de consumidores lesados por práticas anti concorrenciais. 3. Quanto à primeira questão, com a devida vénia, o douto Tribunal a quo comete dois erros manifestos na apreciação da matéria de facto, na medida em que os factos tidos como assentes pelo próprio tribunal e os meios probatórios constantes do processo – a saber, os Estatutos da Autora – impunham decisão diferente: a) Não é verdade, como conclui a sentença recorrida, que a Autora é uma “associação de defesa da concorrência, não (…) uma associação de defesa de consumidores”, porque o artigo 2.º dos Estatutos da Autora afirma, expressamente, que o O..., Associação é uma associação que “tem como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores” (nosso destaque); b) Sem prejuízo da discussão infra sobre a qualificação dos interesses prosseguidos pela presente ação, não é verdade, como conclui a sentença recorrida, que a Autora “não tem estatutariamente poderes para intentar ações de defesa de interesses individuais homogéneos peticionando indemnizações com base em responsabilidade civil”, porque o artigo 2.º dos Estatutos da Autora afirma, expressamente, que o O..., Associação é uma associação que tem por fim, inter alia, a proteção da concorrência, “designadamente”, podendo “intentar e promover ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente, com recurso à ação popular ou a qualquer outro meio processual” (nosso destaque), sendo que o conceito constitucional de ação popular inclui a possibilidade de “requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização”. 4. Ainda quanto à primeira questão, o douto Tribunal a quo comete vários erros de Direito, violadores do artigo 52.º(3)(a) CRP, artigos 2.º e 3.º da LAP e artigo 31.ºdo CPC, nos seguintestermos: a) Ao contrário do que conclui o Tribunal a quo, os dois pedidos da presente ação não respeitam exclusivamente à “defesa de interesses individuais homogéneos”,mas sim, em primeiro lugar, à defesa de interesses difusos. Aliás, nos termos da jurisprudência nacional, só é possível a defesa de interesses coletivos ou de interesses individuais homogéneos na medida em que se prossiga a proteção de interesses difusos, surgindo a defesa daqueles como um (eventual) reflexo da defesa destes. Não podia, assim, o Tribunal a quo excluir a legitimidade ativa da Autora, na medida em que o artigo 2.º dos seus Estatutos consagra expressamente a possibilidade de intentar ações populares, para defesa dos interesses difusos de promoção da defesa da concorrência em Portugal e da proteção dos consumidores. b) Ao contrário do que conclui o Tribunal a quo, para além da componente principal de prossecução de interesses difusos, os interesses que se prosseguem nos dois pedidos da presente ação são qualificados por jurisprudência recente do STJ e do STA como “interesses coletivos” (e não como “interesses individuais homogéneos”). Esta jurisprudência entende como “interesses coletivos” os interesses/direitos detidos, a título individual, por um conjunto de pessoas, que são idênticos e indivisíveis, no sentido em que a satisfação do interesse de um membro do grupo importa a satisfação do interesse dos restantes membros do grupo, afirmando o STJ que este conceito inclui a proteção de situações individuais, chegando mesmo a poder incluir uma análise individualizada, desde que seja possível a sua defesa através de uma “apreciação indiferenciada”. Assim é quanto aos dois pedidos na presente ação. Pelo menos, ad arguendum, assim é quanto ao primeiro pedido, pelo que, no mínimo, a ação teria de ter prosseguido só com o primeiro pedido. Não podia, assim, o Tribunal a quo excluir a legitimidade ativa da Autora, na medida em que o artigo 2.º dos seus Estatutos consagra expressamente a possibilidade de intentar ações populares, para defesa dos interesses coletivos associados à promoção da defesa da concorrência em Portugal e à proteção dos consumidores. c) Ad arguendum, mesmo que se concluísse que a presente ação visa a proteção de interesses individuais homogéneos, a Autora tem legitimidade para intentar ações populares em defesa de interesses individuais homogéneos. A posição do Tribunal a quo implica que, para que uma associação tenha legitimidade ativa num caso como o presente, não basta que os seus Estatutos digam (como dizem, neste caso) que esta visa defender a concorrência e proteger os consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores, designadamente através da promoção de ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente, com recurso à ação popular ou a qualquer outro meio processual de defesa dos interesses difusos ou coletivos, nos termos da lei em vigor. Esta interpretação é contrária à letra e espírito da Constituição e da lei, inter alia, pelos principais motivos de seguida resumidos. O conceito constitucional de ação popular inclui o direito de pedir indemnizações, pelo que é ilegal afirmar que os Estatutos que prevêem a promoção de ações populares não incluem o direito de pedir indemnizações. Em Portugal, a ação popular implica sempre, necessariamente, a defesa de interesses difusos, sendo que a defesa de interesses individuais homogéneos se subsume, necessariamente, na defesa de interesses difusos, pelo que é contrário à lei afirmar que os Estatutos que prevêem ações populares para defesa de interesses difusos não incluem a defesa de interesses individuais homogéneos. A Constituição e a LAP definem como requisitos da legitimidade ativa a previsão nos Estatutos das associações da “defesa dos interesses em causa”, sendo que ambas utilizam este conceito apenas referindo-se ao tipo de interesses que são interesses difusos com sede constitucional que podem ser defendidos através da ação popular(e.g., proteção dos consumidores ou defesa da concorrência), pelo que, ao impor como requisito de legitimidade ativa a indicação expressa da possibilidade de defender interesses individuais homogéneos, o Tribunal a quo está, assim, a ir para além da letra da lei e a impor um requisito que não é legalmente exigível. Por último, a interpretação do Tribunal a quo quanto à necessidade de prever expressamente pedidos de indemnização implicaria que, para terem legitimidade ativa em qualquer tipo de processo, os Estatutos das associações tivessem de indicar, expressamente, o pedido concreto (e.g. declaração de nulidade, providência cautelar…), não bastando uma previsão geral do poder para intentar ações judiciais, o que é manifestamente contrário à lei nacional e ao modo como esta tem sido interpretada pelos tribunais. 5. Por último, ainda quanto à primeira questão, a interpretação defendida pelo Tribunal a quo viola os artigos 52.º(3)(a) e 20.º(1) da Constituição da República Portuguesa. É inconstitucional qualquer interpretação do artigo 52.º(3)(a) da CRP que imponha como requisito adicional de legitimidade para a ação popular a indicação expressa da possibilidade de defender interesses individuais homogéneos, para além da indicação da defesa dos interesses difusos em causa (e.g. proteção dos consumidores ou defesa da concorrência), assim como é inconstitucional qualquer interpretação da qual resulte que a afirmação do poder para intentar ações populares não inclui o direito de requerer para os lesados a correspondente indemnização. Esta interpretação do direito constitucional de ação popular implica também uma restrição injustificada e inconstitucional do direito de acesso à justiça previsto no artigo 20.º(1) da Constituição. 6. Quanto à segunda questão, o douto Tribunal a quo cometeu um erro de facto e erros de Direito, em violação dos artigos 15.º e 16.º da LAP, ao recusar a notificação dos consumidores representados e do Ministério Público antes da realização da audiência prévia: a) A presente ação segue, nos termos da lei, a respetiva forma prevista no CPC, que é a da ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, sob a forma comum, mas com as adaptações impostas pelo exercício da legitimidade ativa decorrente da ação popular, estando, por este motivo, o Tribunal a quo obrigado a proceder à necessária adaptação das regras processuais aplicáveis, aplicando as regras especiais da LAP; b) O Tribunal a quo adaptou as regras do processo comum e aplicou as regras especiais da ação popular quanto à taxa de justiça inicial e consequência de recusa/admissão da Petição Inicial, mas não aplicou as regras especiais da ação popular quanto à notificação dos consumidores representados e do Ministério Público antes da audiência prévia; c) Constitui um erro de facto afirmar o Tribunal a quo que não teve oportunidade para conhecer desta questão antes da audiência prévia, nomeadamente porque a Autora submeteu dois requerimentos a este respeito antes da audiência prévia, tendo o Tribunal decidido adiar para a audiência prévia a decisão desses requerimentos; d) Constitui um erro de Direito o Tribunal a quo ao afirmar que a presente ação devia ter seguido as regras aplicáveis ao processo comum até à audiência prévia, só aí se determinando se se tratava duma ação popular e passando-se a aplicar, só nesse momento, as regras da ação popular. Nos termos do artigo 15.º(1) da LAP, a citação dos interessados deve ser feita “recebida petição de ação popular”, e não após a realização da audiência prévia, sendo essa notificação, nesse momento, indispensável à plena eficácia dos direitos conferidos pela LAP aos consumidores representados. E a notificação do Ministério Público, recebida petição de ação popular, é indispensável ao exercício dos seus direitos-deveres ao abrigo da LAP, que podem ter de ser exercidos ainda antes da audiência prévia, nos termos do artigo 16.º(1) e (3) da LAP (na versão então vigente; artigo16.º(1) na versão hoje em vigor). e) Cometeu outro erro de Direito o Tribunal a quo, por ser incorreta a sua conclusão de que a notificação dos consumidores e do Ministério Público em momento anterior à audiência prévia era supérflua, no presente caso, por pretender concluir pela ilegitimidade ativa da Autora. Bastaria que um consumidor representado, após a notificação, tivesse decidido intervir no processo a título principal, aceitando-o na fase em que se encontrava, para que se tivessem alterado decisivamente os parâmetros da sentença recorrida, podendo a ação prosseguir. Também a não notificação do Ministério Público impossibilitou, ilegalmente, o exercício dos seus direitos-deveres ao abrigo da LAP, que poderiam ter levado à substituição da Autora e, assim, à prossecução da ação. 7. Face ao que antecede, impõe-se revogar a sentença recorrida, na parte em que recusa a notificação dos consumidores e do Ministério Público antes da realização da audiência prévia,e na parte em que declara a ilegitimidade ativa da Autora e, em consequência, ordenar a prossecução do processo n.º 7074/15.8T8LSB. Nestes termos e nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V/Exas., deve a sentença recorrida, de 14 de dezembro de2017, ser revogada: a) na parte em que declarou a ilegitimidade ativa da Autora; e b) na parte em que recusou a notificação dos consumidores e do Ministério Público antes da realização da audiência prévia; ordenando-se que os autos voltem à 1ªinstância, que se notifiquem os consumidores e o Ministério Público da apresentação da petição inicial, e que o processo n.º 7074/15.8T8LSB prossiga os seus ulteriores termos, admitindo-se a Autora como parte legítima”. A ré apresentou contra alegações, com as seguintes conclusões: “a) A acção popular pode ter por objecto interesses difusos, interesses colectivos ou interesses individuais homogéneos, que são interesses distintos, relacionados com diferentes pretensões e que incidem sobre bens juridicamente tutelados. b) A acção popular, tal como prevista na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, não tem apenas por objecto a defesa de interesses difusos, mas pode visar também a tutela de interesses individuais homogéneos sem qualquer relação com interesses difusos e, por isso, puramente egoísticos. c) A Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, consagra duas modalidades de acção popular – a acção popular proprio sensu e a acção de grupo ou class action –, que visam a tutela de tipos de interesses diferentes, sendo mais fácil compreender os tipos de interesses que podem estar causa nas acções populares por referência a essas duas modalidades de acção popular reconhecidas na LAP. d) De acordo com o disposto nos Estatutos da Autora, ora Recorrente, esta tem como fins estatutários “promover a defesa da concorrência” e “proteger os consumidores”, que correspondem a interesses difusos, interesses sem sujeito ou sem titulares, insusceptíveis de apropriação individual, mas faltam-lhe atribuições para actuar no âmbito da defesa ou protecção de interesses individuais homogéneos, como são aqueles relacionados com o ressarcimento de danos concretos e efectivos sofridos por determinadas pessoas. e) A Autora, ora Recorrente, não formulou qualquer pedido que tenha como objectivo directo a prossecução dos interesses difusos que constituem o seu fim estatutário, em especial a protecção da concorrência em Portugal, pelo que, de acordo com o disposto na alínea b) do artigo 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, carece de legitimidade activa para a presente acção popular. f) Tendo presente (i) as atribuições da Recorrente expressamente previstas no artigo 2.º dos seus Estatutos; (ii) a regra concernente à legitimidade activa das associações no âmbito de acções populares, estabelecida pelo artigo 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, (iii) os interesses em causa na presente acção e que a própria Autora, ora Recorrente, confessa e reconhece (iv) e o tipo de acção judicial em causa, conformada pela causa de pedir e pelos pedidos formulados, andou bem o Tribunal a quo ao absolver a Ré, ora Recorrida, da instância. g) No caso concreto, o Tribunal a quo não tinha que dar cumprimento ao disposto no artigo 15.º da LAP, não só porque a acção não iria prosseguir, o que poderia ter sido logo decidido ao abrigo do disposto no artigo 13.º da LAP, como porque o artigo 15.º não prevê que um titular dos interesses em causa possa intervir no processo para se substituir ao autor. h) O Ministério Público não tem que ter intervenção na presente acção popular civil, porquanto não se verifica qualquer das situações previstas no artigo 16.º da LAP, na versão vigente à data da propositura da presente acção (12 de Março de 2015) e aplicável ao caso, em especial nenhuma das situações que permitem ao Ministério Público substituir-se ao autor. i) As questões agora levantadas pela Recorrente referentes à omissão de formalidades previstas nos artigos 15.º e 16.º da LAP reconduzem-se, na verdade, a uma nulidade por omissão de formalidades que a lei prescreve e cuja omissão pode influir no exame ou na decisão da causa (cfr. artigo 195.º do Código de Processo Civil), que, como não foi atempadamente invocada pela Recorrente, se encontra sanada, o que basta para resolver a “segunda questão” do recurso, com o mesmo resultado alcançado pelo despacho-saneador-sentença recorrido. Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Ex.as, deve o presente recurso ser jugado totalmente improcedente e, em consequência, ser mantida a sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!” Cumpre apreciar. II. FUNDAMENTOS DE FACTO Releva o seguinte circunstancialismo, que esta Relação dá por assente: 1. Em 17-11-2014 Miguel de Sousa Ferro e Catarina Baptista Gomes constituíram uma associação que identificaram como O..., Associação, inscrita no Registo Nacional de Pessoas Coletivas com o nº 513309659. 2. Tal associação rege-se pelos Estatutos a que alude o documento junto com a petição inicial como doc. 1. (fls. 60-62), aí se indicando, nomeadamente, que se trata de uma “associação, sem fins lucrativos”, com “sede na (…) F...”, “e constitui-se por tempo indeterminado” (art. 1º, sob a epígrafe “[d]enominação, sede e duração”). 3. E ainda que: “A associação tem como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa, designadamente: a) Intentar e promover ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente com recurso à ação popular ou a qualquer outro meio processual de defesa dos interesses difusos ou coletivos, nos termos da lei em vigor; b) Intervir, nos termos da lei, como terceiro interessado em processos administrativos ou judiciais que afetem os fins visados pela associação; c) Mobilizar os cidadãos para participarem ativamente na prossecução e defesa dos fins visados pela Associação; d) Cooperar com as autoridades nacionais e europeias responsáveis pela defesa e regulação da concorrência em qualquer setor económico em Portugal; e) Promover e submeter petições a autoridades nacionais e europeias com vista à promoção do objeto da Associação; f) Dialogar com empresas e associações de empresas para promover a remoção de obstáculos concorrenciais e o ressarcimento de danos causados a consumidores; g) Dinamizar e promover atividades compreendidas no fim da Associação, incluindo investigação e produção doutrinária (art. 2º, sob a epígrafe “[f]im”). III- FUNDAMENTOS DE DIREITO 1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo CPC [ [5] ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma. No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar, ainda que não pela ordem que se enuncia: - Do cumprimento do disposto nos arts. 15º e 16º do Dec. Lei 83/95 de 31 de agosto, alusivo ao “Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular” [ [6] ] (doravante, LAP); - Da legitimidade ativa. 2. Com a sua constituição, a autora adquire personalidade jurídica (art. 158º, nº1 do Cód. Civil) e a sua capacidade “abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins” (art. 160º nº 1 do Cód.Civil); o que significa que, por força do princípio da coincidência (art. 11º nº2 do CPC) [ [7] ], a autora goza de personalidade judiciária, sendo que tem, igualmente, capacidade judiciária (art. 15º do CPC). A questão que se coloca é saber se tem legitimidade (processual) para a instauração da ação. Genericamente, quando se afere da verificação desta exceção dilatória, tratamos de avaliar se o demandante “tem interesse direto em demandar”, aferindo-se este pressuposto processual, em ultima ratio, em função da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor (art. 30º, nºs 1 e 3 do CPC). Porém, no caso da chamada ação popular, hipótese aqui colocada ponderando os contornos da ação, releva o disposto no art. 31º do CPC que, no âmbito das “[a]ções para a tutela dos interesses difusos”, confere legitimidade a determinadas entidades para “propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços”. Mais se especifica quais as entidades em causa, a saber “qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei” [ [8] ] [ [9] ]. O direito de ação popular está constitucionalmente consagrado, dispondo o art. 52º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para, no que ao caso interessa, promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra os direitos dos consumidores – nº 3, alínea a) Positivando tal garantia a LAP, na enunciação dos bens jurídicos protegidos, para além da remessa para o art. 52º, nº3 da CRP – art. 1º, nº1 – especifica “a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público” – nº2. Quanto à “[t]itularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, estabelece art. 2º, nº1 da LAP que são titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular: - Quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos; - As associações e fundações defensoras dos “interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”. Dispondo o art. 3º, expressamente, sobre a “[l]egitimidade activa das associações e fundações”, nos seguintes termos: “Constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações: a) A personalidade jurídica; b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate; c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais” [ [10] ]. A exigência de inclusão nas atribuições ou objetivos estatutários da associação a defesa de determinado tipo de interesses, coincidentes com aqueles que se colocam na ação, como requisito de legitimidade processual, é corolário do princípio da especialidade do fim. Dissidem as partes sobre o tipo de interesses em causa nos autos e, paralelamente, sobre a estrutura da ação, mais precisamente a sua espécie, ponderando o seu fim. Distinguindo entre interesses difusos stricto sensu, interesses coletivos e interesses individuais homogéneos, socorremo-nos da formulação de Sérvulo Correia. Refere o autor, aludindo que “a aplicação da LPPAP suscita problemas desde logo quanto ao modo de articular a qualificação de interesses tutelados com a legitimidade do autor em nome individual” que “quando sejam interesses difusos em sentido estrito trata-se de situações materiais insusceptíveis de uma apropriação individual. A sua titularidade revela-se indivisível. A sua dimensão é irredutivelmente supra-individual”. Quanto ao “interesse colectivo e quanto ao interesse individual homogéneo, entendidos como refracções em alguma medida personalizadas do interesse difuso ou, se se preferir, como categorias, a par do interesse difuso em sentido estrito, de um interesse difuso em sentido amplo”, temos que “[d]enominam-se interesses colectivos, os interesses categoriais ou interesses de classe, isto é, um conjunto de interesses individuais dos membros de uma categoria enquanto tais. Mas um elemento que se afigura indispensável para a sua mais precisa caracterização (em particular, em face dos interesses individuais homogéneos) é o facto dos interesses colectivos serem protegidos por uma associação de categoria ou classe, um ente esponenziale sem cuja intervenção tais interesses não podem ser defendidos na sua dimensão grupal”. Quanto aos interesses individuais homogéneos “[s]ão interesses passíveis de individualização autónoma, mas que surgem em situações de massa e em termos de perfeita identidade de natureza. Será, por exemplo, o caso de pretensões individualizadas a indemnização por parte de elementos de uma população intoxicada por uma fuga de gases num estabelecimento industrial”[ [11] ]. A doutrina e jurisprudência vem admitindo que todos podem ser abrangidos pela ação popular [ [12] ] [ [13] ] [ [14] ], afigurando-se, pois, correta a asserção de que esta tem, assim, por objeto a tutela de interesses difusos (latu sensu) [ [15] ] [ [16] ]. Acrescente-se que o legislador se reporta, em alguns diplomas, a esta caraterização, como acontece com a Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31-07 [ [17] ] [ [18] ] [ [19] ] [ [20] ]. Segundo Miguel Teixeira de Sousa a legitimidade popular deve ser aferida em função de dois elementos, a saber, o poder de representação do autor popular, ou seja, a faculdade que cabe ao demandante de representar os titulares do interesse difuso [ [21] ] e o interesse em demandar do autor popular, isto é, a vantagem que o demandante retira da procedência da ação. A respeito deste último elemento refere que “é necessário que esse autor tenha uma relação com aquele interesse que justifica que, no caso concreto, ele possa instaurar a acção popular. Não é qualquer defensor dos interesses difusos (…) que possui legitimidade popular, mas apenas aquele que mostra uma relação pessoal ou estatutária com o interesse difuso” [ [22] ]; e ainda que “a legitimidade popular é um pressuposto processual, pelo que deve ser apreciada em função do objecto da acção popular. Mais em concreto: se a pessoa singular ou a entidade colectiva que propôs a acção popular não tiver qualquer relação com o interesse difuso – ou seja, se não for titular deste interesse, nem for uma organização defensora desse mesmo interesse – o autor popular deve ser considerado parte ilegítima” [ [23] ] [ [24] ]. Vejamos. O bem jurídico protegido, em causa na presente ação, é o direito dos consumidores, reconhecido como direito fundamental no capítulo dos direitos e deveres económicos (art. 60º da CRP) [ [25] ] sendo um dos principais eixos da proteção dos consumidores o da “protecção do consumidor contra práticas comerciais desleais e abusivas” [ [26] ]. “Numa economia de mercado, um dos principais instrumentos de defesa dos interesses económicos dos consumidores são as instituições de defesa da concorrência, sancionando-se, designadamente as práticas restritivas da concorrência e os abusos de posição dominante. De facto, as principais vítimas da violação das regras da concorrência são os consumidores, através de preços mais altos, limitação da liberdade de escolha, etc” [ [27] ]. Noutra vertente, temos o direito dos consumidores à reparação dos danos, aqui se inserindo com particular relevância a Diretiva 2014/104/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia (Texto relevante para efeitos do EEE), publicada no Jornal Oficial da União Europeia - L 349 em 05-12-2014, com entrada em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação (art. 23º) e que devia ser transposta pelos EMs até 27-12-2016 (art. 21º). Consubstanciando Direito Europeu derivado, a Diretiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios (art. 288º do Tratado). Para além dos casos em que, por incumprimento da obrigação de transposição, os particulares podem invocar perante o EM – em sentido muito amplo, abrangendo, nomeadamente, a administração pública, os municípios, as empresas públicas – a aplicação da diretiva, desde que esta reúna determinadas características (isto é, quando as suas disposições são incondicionais, claras e precisas) (efeito direto no sentido vertical), assim afastando o direito nacional não consentâneo com a regulação imposta pela diretiva [ [28] ], o TJ tem afastado a possibilidade dos particulares fazerem valer a diretiva perante outros particulares rejeitando, pois, o efeito direto horizontal da diretiva, invocando razões de segurança jurídica e legalidade [ [29] ]. A Directiva incide numa das áreas em que os tribunais nacionais são cada vez mais convocados a pronunciarem-se, isto é, sobre acções em que são formulados pedidos de indemnização pelos prejuízos (latu sensu) resultantes de práticas anti concorrenciais, definindo o art. 1º o seu objecto e âmbito de aplicação: a directiva estabelece as regras relativas ao exercício do direito de indemnização por infração às regras da concorrência, tendo em vista a reparação integral dos danos (nº 1), estabelecendo ainda a articulação entre o public e o private enforcement (nº2). Os EM são soberanos na regulação das condições substantivas e processuais para a aplicação do DUE (princípio da autonomia processual nacional) com salvaguarda, no entanto, dos princípios da equivalência e da efectividade (art. 4º). Portugal procedeu à transposição da Diretiva pela lei nº23/2018 de 05-06 – com significativo atraso, portanto – alusiva ao “Direito a indemnização por infração ao direito da concorrência”. Saliente-se que, pese embora o assinalado objetivo de transposição, o diploma vai mais longe, estabelecendo-se no Capítulo III (“[p]roteção dos consumidores”) um artigo, (19º), com incidência na questão que ora se nos coloca e a que adiante melhor se aludirá. Assim delimitado o bem tutelado, vejamos, então, os interesses aqui refletidos e “visados na presente acção” (Cfr. III das contra alegações de recurso), perspetivados em função da pretensão formulada na petição inicial e factos que a suportam, retomando a matéria a que supra se fez referência, quanto ao conceito de interesses difusos. A ré apelada considerou na contestação, retomando essa posição nas contra alegações de recurso, sem avançar qualquer novo argumento, que a autora peticionou expressamente a condenação da ré no pagamento de indemnização aos utilizadores finais, pelo que está em causa, exclusivamente, a defesa de interesses individuais homogéneos; o primeiro pedido formulado, “um pedido meramente declarativo”, único para cuja formulação a ré admite que a autora teria legitimidade, não tem autonomia; esse pedido “mais não é do que o juízo conclusivo sobre os factos alegadamente ilícitos dos quais decorrerá o direito à compensação peticionada no segundo pedido. Ou seja, o primeiro pedido apenas pode ser compreendido e contextualizado no âmbito da análise do segundo pedido, na medida em que a utilidade, para a Recorrente, da procedência do primeiro pedido decorre da procedência do segundo – visto ter configurado a presente ação como ação de responsabilidade civil. Por outras palavras, a pretensão da Recorrente reconduz-se, em rigor, ao pedido indemnizatório ou ao reconhecimento do direito à indemnização (…) (nº 18 do corpo das contra alegações de recurso). Ora, esta tese, que a primeira instância acolheu como resulta da fundamentação expressa na decisão recorrida [ [30] ], peca, em nosso entender, por redutora, sem prejuízo de se concordar com a classificação da presente ação como de condenação, visando uma finalidade essencialmente reparatória, ponderando o disposto no art. 10º do CPC [ [31] ] [ [32] ], não tendo sentido configurar a ação, simultaneamente, como de simples apreciação – tendo por referência o pedido enunciado sob a alínea a) – e de condenação, tendo por base o pedido enunciado em b). “O que caracteriza a acção de simples apreciação e a distingue da acção de condenação é a ausência de lesão ou violação do direito. A acção de condenação pressupõe um facto ilícito, isto é, que o direito já foi violado; a acção de simples apreciação é anterior à violação do direito ou tudo se passa como se o fosse. Por outras palavras, a acção de condenação representa uma reacção contra determinada violação da ordem jurídica, contra a falta de cumprimento de uma obrigação.(…) Na acção de simples apreciação não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termos a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência dum direito ou dum facto. A acção de condenação é também uma acção de apreciação; antes de condenar na prestação o juiz tem de apurar se o direito do autor existe. Mas a apreciação aprece aqui como meio para se chegar a um fim último; ao passo que na acção de simples apreciação, o fim único da actividade jurisdicional é a apreciação” [ [33] ]. No caso, a autora parte da afirmação da conduta ilícita da ré e da violação de direitos juridicamente tutelados (direitos individuais homogéneos, ou direitos subjetivos fracionados) para, pretendendo o reconhecimento judicial dessa violação, concluir pela condenação da ré no ressarcimento de danos, verificados que estejam todos os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art. 483º do Cód. Civil) [ [34] ]. A ação consubstancia, pois, uma típica ação declarativa de condenação, prevista no art. 10º, nº3, alínea b) do CPC, a isso não obstando o facto de a autora pretender fazer verter na parte dispositiva da sentença aquele juízo declarativo que sempre seria pressuposto da condenação e sem o qual, em raciocínio silogístico, esta nunca seria possível ou viável. Acrescente-se que a própria autora indica, no cabeçalho da petição inicial, apresentar uma “ação declarativa de condenação com processo comum”, pelo que não é difícil reconhecer-se que assim seja. Aqui chegados, afigura-se-nos que não se retira do exposto qualquer argumento que juridicamente releve no sentido pretendido pela ré e a que a primeira instância aderiu. Efetivamente, mesmo que se concluísse estar em causa a defesa de interesses individuais homogéneos – exclusivamente, tese da ré –, sempre seria de entender, como a autora propugna, que esta tem legitimidade para demandar a ré, nos termos em que o fez. Estando assente que a autora é uma associação que “tem como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa”, temos para nós que é quanto basta, no quadro legislativo a que se aludiu, para concluir que a autora tem legitimidade popular para instaurar a ação. “Os interesses difusos caracterizam-se por possuírem uma dupla dimensão: eles valem tanto num plano individual (a que corresponde o interesse individual homogéneo), como num plano supra-individual (aquele que respeita ao interesse difuso stricto sensu e ao interesse colectivo). Daí resulta que a sua tutela jurisdicional pode ser obtida em cada um destes planos, porque eles não se excluem mutuamente. Esta complementaridade entre a tutela jurisdicional dos interesses individuais e a dos interesses difusos pode ser demonstrada numa análise que se toma como exemplo os interesses relativos ao consumo e ao ambiente” [ [35] ]. O tribunal a quo fez uma leitura restritiva dos Estatutos [ [36] ][ [37] ], afigurando-se-nos que não existe razão para tal. Concordamos com Meneses Cordeiro quando refere que “[a] interpretação dos estatutos, mau grado a sua natureza negocial, obedece a regras de tipo objetivo, mais próprias da interpretação e integração da lei do que da interpretação e integração dos negócios jurídicos” [ [38] ] [ [39] ]. No caso, reconduzindo a “proteção dos consumidores” por via da instauração de ação popular, exclusivamente, à defesa de interesses difusos stricto sensu e excluindo que essa proteção possa abranger igualmente os interesses individuais homogéneos, o tribunal faz uma interpretação restritiva do negócio, fora dos casos em que tal se justifica ou a lei o permite. A interpretação restritiva aplica-se “quando se chega à conclusão de que a lei utilizou uma fórmula demasiado ampla, quando o seu sentido é mais limitado. Deve-se proceder então à operação inversa: restringir o texto para exprimir o verdadeiro sentido da lei” [ [40] ] – no caso, leia-se, os estatutos. Ou quando “o resultado da interpretação literal não coincide com o da interpretação lógica. Há divergência entre um e outro. Não estão de harmonia a palavra e o pensamento”, estando então o intérprete “autorizado a fazer como que uma rectificação” [ [41] ]. Não é esse, manifestamente o caso dos autos. Constando dos Estatutos da autora que a associação “tem como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa” e sendo a enunciação constante das alíneas a) e seguintes meramente exemplificativa e não taxativa – como ressalta da utilização do advérbio “designadamente” –, afigura-se-nos que se mostra preenchido o pressuposto de intervenção enunciado no art. 3º, alínea b) da LAP, quando refere que constitui requisito de legitimidade ativa das associações “o incluírem nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate”. Em suma, aceitando-se, como referido pelo tribunal de primeira instância, que o legislador da LAP, com o art. 3º, quis significar que cada associação “apenas tem legitimidade para agir como autora na defesa dos interesses, bens ou valores que se insiram no seu objeto social, no cumprimento das finalidades e objetivos para que foi constituída”, então temos que, no caso, tendo a autora por finalidade a “promoção da defesa da concorrência em Portugal” e a “proteção dos consumidores” – como a autora indica, as expressões proteção/defesa têm conteúdo similar – isso significa que pode usar da ação popular para os efeitos visados. Não se alcança, pois, para o que ora interessa, a pertinência da caraterização da autora como uma associação de defesa da concorrência e/ou de uma associação de defesa dos consumidores, bastando-nos a constatação de que a autora é uma associação defensora de interesses difusos, na aceção a que supra se aludiu; só não teria legitimidade processual se a associação não tivesse qualquer relação com o interesse difuso em presença, o que, como se viu, não acontece. Por último, tem de assinalar-se – retomando análise anterior –, o disposto no art. 19º da Lei 23/2018, que, inserido no Capítulo III (“[p]roteção dos consumidores”), sob a epígrafe “[a]ção popular”, preceitua como segue: 1 - Podem ser intentadas ações de indemnização por infração ao direito da concorrência ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redação atual, sendo-lhes ainda aplicável o disposto nos números seguintes. 2 - Têm legitimidade para intentar ações de indemnização por infração ao direito da concorrência ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redação atual, para além das entidades nela referidas: a) As associações e fundações que tenham por fim a defesa dos consumidores; e b) As associações de empresas cujos associados sejam lesados pela infração ao direito da concorrência em causa, ainda que os respetivos objetivos estatutários não incluam a defesa da concorrência. 3 - A sentença condenatória determina os critérios de identificação dos lesados pela infração ao direito da concorrência e de quantificação dos danos sofridos por cada lesado que seja individualmente identificado. 4 - Caso não estejam individualmente identificados todos os lesados, o juiz fixa um montante global da indemnização, nos termos do n.º 2 do artigo 9.º 5 - Quando se conclua que o montante global da indemnização fixado nos termos do n.º 3 não é suficiente para compensar os danos sofridos pelos lesados que foram entretanto individualmente identificados, o mesmo é distribuído pelos mesmos, proporcionalmente aos respetivos danos. 6 - A sentença condenatória indica a entidade responsável pela receção, gestão e pagamento das indemnizações devidas a lesados não individualmente identificados, podendo ser designados para o efeito, designadamente, o autor, um ou vários lesados identificados na ação. 7 - As indemnizações que não sejam reclamadas pelos lesados num prazo razoável fixado pelo juiz da causa, ou parte delas, são afetas ao pagamento das custas, encargos, honorários e demais despesas incorridos pelo autor por força da ação. 8 - As indemnizações remanescentes que não sejam pagas em consequência de prescrição, ou de impossibilidade de identificação dos respetivos titulares revertem para o Ministério da Justiça, nos termos do n.º 5 do artigo 22.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redação atual [ [42] ]. O diploma entrou em vigor em data muito posterior à instauração da ação e a disposição assinalada não se aplica ao presente processo [ [43] ], mas evidencia de forma muito clara o posicionamento do legislador quanto ao âmbito de atuação das associações que tenham por fim a defesa dos consumidores, atribuindo-lhes legitimidade para instaurar ações com vista ao ressarcimento dos prejuízos decorrentes de infração ao direito da concorrência – cfr. os arts. 1º e 3º - no âmbito da aludida Diretiva. Em suma, entende-se, ao contrário do tribunal de primeira instância, que a autora tem legitimidade (processual) para a presente demanda, pelo que procedem as conclusões de recurso. 3. Ponderando o exposto, impondo-se a revogação da decisão recorrida, que julgou a autora parte ilegítima, com a consequente absolvição da ré da instância, entendemos mostrar-se prejudicada a apreciação do mérito do despacho que indeferiu o requerimento da autora no sentido de dar cumprimento, na fase processual em que o processo se encontrava, ao disposto nos arts. 15º e 16º da LAP, despacho contra o qual também se insurge a autora. Impondo-se o prosseguimento do processo, necessariamente, soçobra o aludido despacho, impondo-se o estrito cumprimento do processado a que alude a LAP, mormente os seus arts. 15º e 16º; efetivamente, esse despacho foi proferido no pressuposto de que ocorria o terminus do processo em virtude do juízo a formular acerca da legitimidade das partes, em função de razões de economia processual e ponderando a proibição da prática de atos inúteis, como expressamente indicado na fundamentação do despacho. Sem prejuízo, salienta-se que, ao contrário do que a apelante parece entender, a citação dos interessados ao abrigo do art. 15º da LAP não teria a virtualidade de suprir eventual ilegitimidade processual da autora, se fosse esse o caso, e não é, como se indicou. É que, ressalvadas as hipóteses de litisconsórcio necessário – que obviamente não se coloca no caso em apreço –, o chamamento ao processo de outros interessados na lide não se destina a suprir eventuais vícios de que a lide padeça, em ordem a operar a substituição de uma parte (ilegítima) por outra (legítima). Em todo o caso e pelas razões apontadas, a questão mostra-se ultrapassada. * Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação pelo que, revogando a decisão recorrida, decide-se que a autora tem legitimidade (processual) para instaurar a presente ação, determinando- se, consequentemente, o normal prosseguimento dos autos, devendo dar-se cumprimento ao disposto nos arts. 15º e 16º da Lei nº83/95 de 31-08. Custas pela ré/apelada. Notifique. Lisboa, _________________________________________ (Isabel Fonseca) _________________________________________ (Maria Adelaide Domingos) _________________________________________ (Ana Isabel Pessoa) [1] Ação instaurada em 12 de março de 2015. [2] É nestes termos que a ação é identificada no cabeçalho da petição inicial, tendo a ação sido distribuída como “acção declarativa cível de processo comum e valor superior a 50.000,00 euros”, conforme referido no despacho de fls.5059 a 5061. [3] Reproduz-se o texto com que inicia a petição inicial, sob a epígrafe “[s]umário”, porquanto assim se exprime, de forma linear, o fundamento da ação; o articulado em causa, com 406 artigos, peca pela prolixidade. [4] Circunscrevemo-nos à única matéria em apreciação no processo, ponderando a decisão recorrida; a contestação da ré tem 950 artigos, padecendo do mesmo vício que o articulado da autora. [5] Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013. [6] O diploma foi objeto da retificação nº 4/95 de 12/10 e sofreu as alterações resultantes do Dec. Lei nº 214-G/ 2015 de 02-10. [7] Com idêntica redação ao art. 5º da lei processual anterior. [8] Salienta-se que o preceito corresponde, integralmente, ao art.º 26-A.º do CPC de 1961. [9] “A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa (cfr. L. 83/95, art. 3º). Neste sentido, entram aqui em crise as teorias tradicionais da legitimidade baseadas no «interesse directo e pessoal» ou na «protecção da norma» (segundo a qual só existiria um direito acionável quando houvesse normas que, pelo menos, pudessem ser entendidas como protectoras também de interesses individuais). Do mesmo modo, mostram-se inadequadas as chamadas «técnicas proprietaristas», conducentes à restrição da garantia judicial de bens colectivos apenas aos casos em que existisse uma relação de tipo real entre o sujeito e o bem ou um direito pessoal de gozo do mesmo. Os interesses comuns e o património público podem ser defendidos por toda a gente” (Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007) Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, Volume I, p.697 (4ª edição revista). [10] A redação dos arts. 2º e 3º não sofreu qualquer alteração com o Dec. Lei 214-G/2015. [11] (2005) Direito do Contencioso Administrativo. Lisboa: Lex, I, pp 651-653. Aludindo ao conceito e natureza de interesses difusos na perspetiva de vários autores e considerando que a “formulação que nos parece mais conseguida é a de Sérvulo Correia”, vide Carla Amado Gomes (2008) Textos Dispersos de Direito do Ambiente (e matérias relacionadas). Lisboa: aafcdl, volume II, pp. 248-251). [12] “O âmbito de protecção do direito de acção popular estende-se a todas as formas legalmente consignadas de tutela de interesses comuns, sejam difusos, sejam colectivos. Abrange ainda a defesa de interesses individuais homogéneos, na medida em que a respectiva lesão seja consequencial relativamente à infracção daqueles interesses comuns” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, (2010) Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora/Wolters Kluwer, T.I, p.1039 (2ª edição)). [13] No sentido de que a “ação popular tem como objecto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos)” cfr. o acórdão do STJ de 08-09-2016, processo: 7617/15.7T8PRT.S1 (Relator: Oliveira Vasconcelos), acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais a que se fizer referência. Lê-se nesse aresto: “O interesse invocado pelos autores consiste, fundamentalmente e em face do pedido principal formulado por estes, no interesse de “a todos os clientes da Ré, titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, entre os quais os Autores, seja reconhecido o direito a procederem ao pagamento das prestações correspondentes a esses mesmos contratos através de qualquer meio idóneo, nomeadamente, mas não exclusivamente, por débito em conta de depósitos à ordem de que sejam legítimos titulares e com poderes para movimentação junto de qualquer instituição bancária a operar em Portugal ou crédito de dinheiro em conta titulada pela Ré em Portugal com a indicação que permita identificar o contrato para pagamento”. Os autores alegam que esse interesse foi e está a não ser respeitado pela ré, daí decorrendo determinadas consequências para os autores e demais clientes da mesma e a obrigação desta ré em reconhecer esse interesse – ou os interesses constantes dos pedidos formulados subsidiariamente – ao nível do domicílio do pagamento das prestações, do enceramento de contas de depósito à ordem e de pagamento de comissões de gestão”. Cfr., ainda, os acs. STJ de 23-09-1997, processo 97B503 (Relator: Miranda Gusmão) e de 20-10-2005, processo 05B2578 (Relator: Araújo Barros), que nos parecem apontar no sentido que se propugna. [14] No mesmo sentido cfr. ainda os acórdãos do TRL de 05-06-2008, processo 2927/2008-7 (Relator: Maria Amélia Ribeiro), citado pela Meritíssima Juiz, que, no entanto, não extrai do mesmo a conclusão que em nosso entender se impunha; de 04-06-2013, processo 1437.123.8TVLSB.L1-7 (Relator: Maria do Rosário Morgado) e de 26-10-2017, processo 30822-6.4T8LSB.L1-6 (Relator: Manuel Rodrigues). Vide, ainda, o ac. TRP de 03-03-2004, processo:0430724 (Relator: Gonçalo Silvano). . [15] “Os interesses difusos possuem uma dupla dimensão individual e supra-individual, pelo que os interesses individuais homogéneos são a concretização dos interesses difusos stricto sensu e dos interesses colectivos em cada um seus titulares. Enquanto os interesses difusos stricto sensu e os interesses colectivos correspondem à dimensão supra –individual dos interesses difusos lato sensu, os interesses individuais homogéneos são a refracção daqueles mesmos interesses na esfera de cada um dos seus titulares” (Miguel Teixeira de Sousa (2003) A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos. Lisboa: Lex, p. 53). [16] Aludindo à “ambiguidade conceptual” na delimitação dos interesses difusos, nomeadamente em relação aos interesses coletivos, cfr. Rui Machete (1995) Algumas Notas sobre os Interesses Difusos o Procedimento e o Processo in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pp-651- 662. Em matéria de legitimidade, depois de referir que “não se exige interesse directo em demandar” (p. 659), refere o autor: “Por outro lado, muitos dos interesses difusos estão conexos com interesses individuais que se traduzem, do ponto de vista do ordenamento, em situações subjectivas de direitos ou de interesses legítimos. É, por isso, absolutamente necessário sermos precisos quanto às fronteiras de acção popular e quanto à delimitação do objecto do processo. É preciso também regular por forma clara as relações de conexão entre as acções populares e os processos em que se fazem valer, através dos correspondentes direitos ou interesses protegidos, interesses individuais” (p. 661). Acrescente-se que a jurisprudência dos tribunais superiores que se mostra publicada dá nota de inúmeras ações interpostas por cidadãos com vista, exclusivamente, a fazer valer os respetivos direitos individuais, ainda que a coberto da ação popular, o que não é admissível; não é essa a questão que se coloca nos presentes autos. [17] Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 85/98, de 16-12, Dec. Lei n.º 67/2003, de 08-04, da Lei n.º 10/2013, de 28-01 e Lei n.º 47/2014, de 28-07. [18] Artigo 13.º Legitimidade ativa Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores: a) Os consumidores diretamente lesados; b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto; c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos (sublinhado nosso). Saliente-se a distinção, óbvia, entre associações de consumidores e associações de defesa de consumidores. [19] No Cód. dos Valores Mobiliários aprovado pelo Dec. Lei n.º 486/99, de 13-11, com sucessivas alterações (39) alude-se aos interesses individuais homogéneos e aos interesses colectivos nos arts. 31º, nº1(“interesses individuais homogéneos ou coletivos dos investidores não profissionais em instrumentos financeiros”) e 34º, nº2 (“interesses individuais homogéneos ou coletivos dos investidores”). [20] No domínio dos valores mobiliários e aludindo à defesa dos interesses individuais pela ação popular cfr. J. Oliveira Ascensão (2001) A Acção Popular e a Protecção do Investidor. Cad. MVM, nº11, pp-1-11; Refere o autor: “A acção popular é concebida «nos casos e termos previstos na lei»; isto significa que é sempre indispensável uma lei de autorização. Assim, por exemplo, a Lei de Bases do Ambiente representa uma fonte concretizadora. Mas o art. 52/3 CRP acrescenta ainda: «incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização». Isto é perturbador. A acção popular pareceria uma acção altruísta. Afinal, com a previsão (desde logo constitucional) da indemnização dos lesados individuais, são os interesses individuais que se defendem” (p. 1-2). [21] A legitimidade popular não pode possuir qualquer outra fonte, nomeadamente de caráter voluntário, que não a lei; mesmo no caso das associações, que necessitam de um ato de constituição, “mantém-se a conclusão acima enunciada: para que as associações possuam legitimidade popular, é necessário que elas não visem apenas a defesa dos interesses dos seus próprios membros, isto é, é indispensável que elas não tenham como finalidade a prossecução de um interesse que seja, na expressão de L.Boré, «uma soma de interesses altruístas»”. Quanto ao conteúdo do poder de representação, “[o] autor popular assume a representação dos titulares do interesse difuso, mas não é o seu titular, na hipótese de a acção popular ser proposta por uma associação, fundação ou autarquia local (cfr. art.2º, nºs 1 e 2, LPPAP) (p. 204). [22] Obr. cit., p. 215. [23] Obr. cit., p. 229. [24] Do mesmo modo, sendo o autor uma pessoa singular (cidadão), exige-se algum tipo de ligação com o objeto da ação popular por si instaurada. Como se concluiu no ac. STJ de 29-11-2016, processo 135/14.2T8MDL.G1.S1 (Relator: Alexandre Reis) “[a]o atribuir o direito de acção popular a “todos”, a lei permite que qualquer pessoa defenda interesses ou bens protegidos que não são apenas seus, mas de todos os neles interessados, pelo que o específico interesse processual do autor popular não é condicionado à existência de uma conexão substantiva entre o mesmo, individualmente considerado, e o bem tutelado, antes é originário, porque baseado na lei e radicado no direito fundamental dos cidadãos a participação na condução dos assuntos públicos. Contudo, só a integração na comunidade de “interesses” visados pela acção permite assegurar a legitimidade popular e o interesse em agir, ainda que, em determinadas situações, tal interesse radique em qualquer cidadão, como sucede, p. ex., com a defesa do domínio publico”. [25] Cfr., ainda, o art. 81º, alíneas f) e i) da CRP. [26] António Carlos dos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques, (2013) Direito Económico. Coimbra: Almedina pp.55-56 (6ª edição Revista e Atualizada). [27] Gomes Canotilho e Vital Moreira, obr. cit., p. 782. [28] Sendo que o inverso não é verdadeiro, isto é, a jurisprudência europeia vem considerando que o efeito direto só existe a favor dos particulares e relativamente aos EMs destinatários, mas não pode ser invocado pelo Estado (faltoso) contra o particular, isto é, uma diretiva não transporta não pode criar obrigações para um particular. [29] Sobre as fontes de direito europeu cfr. Miguel Gorjão-Henriques, in Direito da União, 7ª edição, 2014, Coimbra, Almedina, pp. 267-324 (quanto ao efeito das diretivas, cfr. p. 349). Vide, ainda, sobre o princípio do Efeito Direto, o “Comentário” de Sofia Oliveira Pais ao Ac. do TJ de 5 de Fevereiro de 1963, processo 26/62, Gend en Loos, acórdão que constitui um landmark case, in Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia, uma Abordagem Jurisprudencial, 2011, Almedina, pp.14 -35. [30] Depois de alusão, em extensa passagem, ao acórdão da RL de 05-06-2008, a que já se aludiu, lê-se na decisão recorrida: “ A autora, no dizer da própria, intentou uma acção popular sob a forma comum e com vista “a proteger os “direitos dos consumidores” ou, na formulação da LAP, a “proteção do consumo de bens e serviços”, um interesse que se encontra expressamente elencado nas normas referidas e que corresponde a uma das incumbências prioritárias do Estado (art. 81º. alínea i), da CRP), bem como proteger outro interesse coincidente com uma incumbência prioritária do Estado, a protecção da concorrência e a repressão dos abusos de posição dominante e de outras práticas lesivas do interesse geral (art81º., alínea f) da CRP).” Mais alega a autora que “os interesses que a presente ação visa proteger integram-se, portanto, no âmbito material da ação popular, regulada na LAP.” (…) A autora, dizem-no os seus Estatutos, é uma associação sem fins lucrativos e “… tem como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa, designadamente. a) Intentar ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente, com recurso à ação popular ou qualquer outro meio processual de defesa de interesses difusos ou colectivos, nos termos da lei em vigor.” Resulta claramente desta disposição estatutária que a autora tem atribuições para a protecção dos interesses difusos relacionados com a “defesa da concorrência em Portugal”, a “protecção dos consumidores”, o “bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa. Mas refere a autora na sua petição que “a presente ação tem por pedido a declaração de que a S…, S.A., com os comportamentos descritos na presente P.I., violou o direito da concorrência e que está obrigada a indemnizar os lesados por estes comportamentos. E ainda “A primeira parte do pedido, além de instrumental à segunda, corresponde a uma pretensão de decisão declarativa que se enquadra nos fins possíveis de uma ação popular. (…) A segunda parte do pedido corresponde ao exercício da faculdade expressamente prevista no artigo 52.º, n.º 3, da CRP, nos termos do qual a ação popular inclui “o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização”. Considerando a configuração da acção proposta pela autora, a causa de pedir e os pedidos formulados, não podemos deixar de concluir, como de resto faz a ré, que a autora configurou a presente acção como acção de responsabilidade civil, tendo pedido expressamente a condenação da ré na indemnização dos utilizadores finais. Na verdade, o pedido formulado na acção é só um e é o de indemnização dos utilizadores finais pela ré. O outro pedido, atinente á declaração de que a ré violou os artigos 101.º e/ou 102.º do TFUE e, sucessivamente, os artigos 4.º, n.º 1, e/ou 6.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e os artigos 9.º, n.º 1, e/ou 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, mais não é que um pedido instrumental (a autora reconhece-o), que não tem autonomia e cuja apreciação decorre exclusivamente do facto de se apresentar como um pressuposto necessário da indemnização peticionada. Tal pedido visa a defesa de interesses individuais homogéneos, como a autora reconhece e que são aqueles relacionados com o ressarcimento de danos concretos e efectivos sofridos por determinadas pessoas, na qualidade de consumidores. Trata-se de um pedido condenatório e não de um pedido meramente declarativo. Em tese nada impediria a procedência do pedido assim formulado no quadro de uma acção popular mas tendo esta sido intentada por uma associação tem de estar verificados nesta aqueles requisitos definidos no art. 3º da LAP. E, em nossa opinião, tal não se verifica. Como se referiu supra, legislador da LAP com o disposto no art. 3º “quis significar que cada associação ou fundação apenas tem legitimidade para agir como autora na defesa dos interesses, bens ou valores que se insiram no seu objecto social, no cumprimento das finalidades e objectivos para que foi constituída”. E neste caso, a autora não tem estatutariamente poderes para intentar acções de defesa de interesses individuais homogéneos peticionando indemnizações com base em responsabilidade civil. Trata-se de associação de defesa da concorrência, não de uma associação de defesa dos consumidores. Nada nos seus Estatutos contraria esta conclusão sendo certo que, a única vez que é mencionado o “ressarcimento de danos causados a consumidores” é no âmbito do diálogo que a autora pode promover com empresas e associações para a remoção de obstáculos concorrenciais. Mas como refere, e bem, a ré “dialogar” não passa por intentar acções judiciais. E nem se diga, como faz a autora, que só numa fase subsequente à sentença se accionará a responsabilidade civil da ré pois, neste momento, trata-se precisamente de determinar se a ré pode ser civilmente responsabilizada pelos danos causados aos utilizadores finais em razão de um comportamento ilícito e culposo, qual seja a violação do direito da concorrência traduzida nas práticas anticoncorrenciais que a autora descreve na petição. Assim e como decorre de tudo o que se deixa exposto, tem este tribunal de concluir pela procedência da invocada excepção. A falta de legitimidade constitui excepção dilatória que importa na absolvição da instância”. [31] Cfr., na lei processual anterior, os arts. 4º e 45º. [32] “ O art. 12º, nº2, LPPAP permite que a acção popular possa “revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”. Esta ampla formulação pretende esclarecer que a acção popular pode ser uma acção de simples apreciação, uma acção condenatória ou uma acção constitutiva (cfr. art. 4º, no 2, CPP), consoante o interesse difuso que é tutelado e a finalidade da tutela pretendida. Mais discutível é saber se a acção popular se pode concretizar noutras formas processuais” (Miguel Teixeira de Sousa, obr. cit., pp.133-134). Assinala-se que o nº 2 do preceito não sofreu qualquer alteração na sua redação com o Dec. lei 214-G/2015 de 02/10. [33] Alberto dos Reis (1960) Comentário ao Código de Processo Civil. Coimbra: Coimbra Editora, Vol. 1º, p.21 (2ª edição). [34] Especifique-se que o primeiro pedido formulado não é dirigido, per se, à cessação da conduta violadora, isto é, não é peticionado que a ré ponha termo à violação, vertente que não é colocada no processo uma vez que está assente, ponderando a posição de ambas as partes, que a ré não adota, desde 2013, o tipo de procedimento que lhe é imputado na petição inicial; acrescente-se que não fora essa particularidade, meramente circunstancial e que por isso não é suscetível de alterar a nossa análise, porventura a questão da legitimidade processual da autora nem sequer seria objeto de discussão. [35] Miguel Teixeira de Sousa, obr.cit., pp. 141-142. [36] “O acto constitutivo e os estatutos são as duas peças fundamentais criadoras do substrato da associação, que podem, aliás, reunir-se no mesmo instrumento jurídico. O primeiro lança as bases da associação; os estatutos fixam a sua regulamentação, traçam o seu regimento. Um e outros hão-se exprimir a vontade unânime dos associados” (Pires de Lima e Antunes Varela (1982), Código Civil Anotado. Coimbra: Coimbra Editora, Vol. I, p. 170 (3ª edição revista e atualizada). No caso, como resulta da factualidade assente, reuniu-se no mesmo instrumento a constituição da autora e a definição dos seus estatutos. A CRP consagra o princípio da autonomia associativa e da autorregulação das associações sem fim lucrativo. [37] Quanto aos elementos que devem constar dos estatutos de uma associação cfr. o art. 167º, nº1 do Cód. Civil. [38] (2007) Tratado de Direito Civil Português, Coimbra: Almedina, I, Parte Geral Tomo III, p.625 (2ª edição). Continua o autor: “Basta atentar no seguinte: podem ser membros de associações pessoas que nada tenham tido a ver com a outorga inicial dos seus estatutos. Em tais condições, não faz qualquer sentido confrontá-las com o sentido do declaratário normal, com a vontade real das partes ou com a sua vontade hipotética – artigos 236º e 239º do Código Civil. Além disso, verifica-se que os estatutos, quer das associações, quer das fundações, podem ser oponíveis a terceiros que, com elas, contratem. Tais terceiros não devem deparar com interpretações subjectivas que só ás partes celebrantes possam dizer respeito. Propomos, assim, que os estatutos sejam interpretados e integrados de acordo com as regras semelhantes ás legais – artigos 9º e 10º do Código Civil –, por manifesta analogia de situações”. [39] Neste sentido cfr. o acórdão do TRL de 17-12-2009, processo 1541/08-2 (Relator: Teresa Albuquerque), acessível in www.dgsi.pt; [40] José de Oliveira Ascensão (2013), O Direito. Coimbra: Almedina, p. 424 (13ª edição refundida). [41] Galvão Telles (2001) Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra: Coimbra Editora, vol. I, p. 252 (11ª edição Reimpressão). [42] Sublinhado nosso. [43] Artigo 24.º Aplicação no tempo 1 - As disposições substantivas da presente lei, incluindo as relativas ao ónus da prova, não se aplicam retroativamente. 2 - As disposições processuais da presente lei, incluindo as alterações pela mesma introduzidas à Lei da Organização do Sistema Judiciário, não se aplicam a ações intentadas antes da sua entrada em vigor. |