Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | SANDRA HERMENGARDA VALLE-FRIAS | ||
| Descritores: | DECLARAÇÕES DE MENORES DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA APRECIAÇÃO DA PROVA LIVRE CONVICÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/08/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I. Na criminalidade que envolva menores de idade que devam ou tenham prestado declarações como ofendidos, o julgador deve ter especial atenção ao facto de estar perante declarações de pessoa de pouca idade e sem a experiência de vida que lhe permita graduar a complexidade e gravidade das circunstâncias pelas quais passou. II. As consequências traumáticas, conhecidas ou não, desses momentos de vida podem estar na base da incapacidade do menor em desenvolver um discurso coerente, do ponto de vista do tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram. III. Essa circunstância não impede que, procurando-se na conjugação dessas declarações com outros elementos de prova que estejam disponíveis [ou sejam determinados], se consiga atingir a circunstancialização mínima para concluir pela real verificação do crime. IV. O que o julgador não pode é, em vista de um depoimento que, mercê da pouca idade da vítima, se revela menos concretizado naquelas circunstâncias, até pela repetição e frequência dessas circunstâncias, retirar do depoimento a conclusão [precipitada] de que ele se limita a fazer imputações genéricas que inviabilizam a defesa do arguido. V. A redução do sofrimento e lembrança do menor – que já se confronta com o abalo emocional decorrente da sujeição aos factos – à sua irrelevância é legalmente inadmissível. VI. Numa circunstância em que o depoimento de testemunhas [mesmo que não tenham assistido aos maus tratos a que ele foi sujeito] vem dar credibilidade às declarações do menor, ainda que por via da prova de factos acessórios, e independentemente do que possa daí resultar em termos de prova concreta do crime, é nula a decisão que não se pronuncie sobre a compatibilidade destes elementos de prova, esclarecendo porque os valora, ou não, em determinado sentido, limitando-se a extrair das declarações do menor que elas não são corroboradas por ninguém. VII. A decisão incorre em verdadeiro erro de julgamento quando, confundindo a impossibilidade de maior concretização das circunstâncias pelo menor com a inadmissibilidade da imputação de factos genérica, não retire daquelas declarações as consequências que, da sua conjugação com a restante prova, aquelas consentem e impõem. VIII. O princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art.º 127º do CPP, faz assentar essa liberdade na responsabilidade de uma apreciação crítica da prova que se impõe ao julgador, e não na possibilidade de escolher fazê-la ou não. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da Secção Criminal (3ª) do Tribunal da Relação de Lisboa. Relatório Pelo Juízo Local Criminal da Amadora – J4 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo: (…) Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga a acusação improcedente e, em consequência, decide absolver a arguida, pela prática, como autora, na forma consumada, e em concurso real, dois crimes de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. d), nº 2, al. a), e nºs 4 e 5, do Código Penal e do pagamento de indemnização, nos termos do artigo 82ºA do Código de Processo Penal. Sem custas. (…) Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: 1. O Tribunal a quo absolveu a arguida CY da prática, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica agravados, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a) e n.ºs 4 e 5, do Código Penal, por não ter ficado convencido da responsabilidade penal da arguida, aplicando o princípio in dubio pro reo. 2. O Ministério Público não concorda com o teor da sentença recorrida já que entende, face à prova junta aos autos e produzida em sede de audiência de julgamento, que se impunha ao Tribunal a quo que considerasse provada a factualidade integradora da prática, pela arguida, dos crimes que lhe foram imputados. Deveria, por isso, a arguida ter sido condenada pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica agravada, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e), n.º 2, al. a) e n.º 4, do Código Penal. 3. Considera, por isso, o Ministério Público que a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, nos temos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, em virtude de o Tribunal a quo ter absolvido a arguida da prática dos referidos crimes. 4. Discorda o Ministério Público da sentença recorrida quanto à factualidade considerada como não provada. Entende, pois, que, em obediência à prova produzida, deveria o Tribunal a quo ter dado como provado: a. Desde dezembro de 2017 até dezembro de 2019 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência quase diária, na residência familiar, a arguida zangou-se com a sua filha NY e bateu-lhe com uma calçadeira ou com uma colher de pau, desferindo-lhe pancadas em várias zonas do corpo. b. Também desde dezembro de 2017 até dezembro de 2019 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência semanal, na residência familiar, a arguida zangou-se com o seu filho EY e bateu-lhe com uma calçadeira ou com uma colher de pau, desferindo-lhe pancadas em várias zonas do corpo. c. No dia 10 de dezembro de 2019, ao final do dia, na residência de família, quando a menor já estava deitada a dormir, a arguida chegou a casa e apercebeu-se de que a cama da NY estava suja. d. De imediato, a arguida foi buscar uma calçadeira e, fazendo uso da mesma, desferiu várias pancadas nas costas da sua filha NY, à data com 10 anos de idade. e. Após a menor afastou-se da arguida para evitar que esta lhe continuasse a bater. f. Em seguida, a arguida castigou a menor NY e exigiu que ela fizesse cinco cópias de um texto. g. Cerca das 03h00 ou 04h00 da madrugada, a menor NY já estava com muito sono, mas a arguida não permitiu que ela fosse dormir enquanto não acabasse as cópias. h. Como consequência dessa situação, a menor NY ficou com dores na zona lombar e com dois hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda. i. Com a prática das condutas descritas, a arguida, de modo direto, fez com que a NY e o EY se sentissem frequentemente ansiosos e receosos das atitudes que a arguida pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que lhes batesse ou castigasse com prejuízo para a sua saúde. j. Ao agir do modo descrito, a arguida sabia que, de um modo persistente, molestava, física e psiquicamente, e amedrontava os seus filhos NY e EY, atuando sempre de molde a atingir e desrespeitar a dignidade das suas pessoas, assente numa posição de domínio e controlo, bem como a sua saúde física e psíquica, tal como representou, quis e conseguiu. k. A arguida agiu de forma livre, consciente e deliberada e bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 5. As declarações para memória futura prestadas pela testemunha NY (gravado na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 09 de março de 2020, cujo início ocorreu pelas 10:56:27 horas e o seu termo pelas 11:30:31 horas), o depoimento prestado pela testemunha MM, Coordenadora na Escola SMBA (depoimento gravado na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 07 de março de 2023, cujo início ocorreu pelas 10:24:01 e o seu termo pelas 10:41:21) e o depoimento prestado pela testemunha SS, professora no Agrupamento de Escolas de Benfica, à data dos factos professora na Escola SMBA (depoimento gravado na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 07 de março de 2023, cujo início ocorreu pelas 10:42:09 e o seu termo pelas 10:56:22) revelaram-se no seu essencial, consistentes e coerentes entre si, sustentando de forma segura e indubitável a versão factual plasmada na acusação. 6. Relativamente ao episódio ocorrido no dia 10-12-2019, é notória a forma fluida, espontânea, segura, lógica e objetiva como a testemunha NY o relatou, mesmo tendo apenas dez anos de idade. 7. Quanto aos depoimentos prestados pelas testemunhas MM e SS, crê-se que é consensual a imparcialidade e objetividade dos respetivos depoimentos e, assim, desde logo, a credibilidade que lhes deverá ser conferida. 8. É possível concluir que o relato efetuado pela menor NY perante as aludidas testemunhas é, no seu essencial, idêntico ao relato efetuado por aquela nas suas declarações para memória futura, designadamente, no que diz respeito à situação do dia 10-12-2019 e à existência de situações anteriores semelhantes envolvendo a arguida. 9. Entre ambos os relatos efetuados pela menor NY, primeiro às referidas testemunhas e depois ao tribunal, decorreram cerca de três meses. Como a prova produzida demonstrou, esse hiato temporal não foi suficiente para que a menor alterasse, na essência, o seu relato, o que é fortemente indiciador de que a mesma viveu aquilo que contou e que se socorreu da sua memória ao relatar a situação. 10. De facto, caso fosse mentira, seria altamente provável que a menor, com o tempo decorrido, ou alterasse significativamente a sua versão uma vez que seria uma história da sua imaginação, ou então voltasse atrás com a acusação contra a própria mãe e não quisesse prestar declarações, cerca de três meses depois, perante uma autoridade assustadora e desconhecida para uma criança como é o tribunal. 11. Além disso, não é, de todo, de desvalorizar as perceções das supraditas testemunhas que ouviram em primeira mão o relato da menor. Dadas as suas experiências em lidar com crianças e, inclusive, a antiga experiência profissional da testemunha SS como técnica da CPCJ durante vários anos, afigura-se bastante relevante e significativo que ambas as testemunhas tenham ficado perfeitamente convictas de que a NY estava a falar a verdade e a contar uma situação verosímil, que a afetava muito. 12. Não é, de todo, plausível que, para além do que já referimos, uma criança de dez anos de idade crie todo este contexto de angústia reiteradamente, de forma credível aos olhos de uma professora com experiência neste tipo de situações, e insista com a sua história de ficção durante vários dias (cerca de uma semana de acordo com o depoimento da menor), perante a figura de autoridade de uma professora, acusando a própria mãe. Tal não é, de forma nenhuma, razoável de pressupor, tendo em conta as regras da ciência e da experiência comum. 13. Atente-se ainda ao discurso fluido e nada mecanizado de NY, com as autocorreções próprias de quem se vai recordando das situações que descreve, situações essas, ainda por cima, de natureza tendencialmente traumática e stressante para a depoente que é simultaneamente vítima. Não podemos olvidar que estamos perante uma criança de dez anos de idade que depôs sobre factos que incriminam a própria mãe, pilar e porto de abrigo de qualquer criança e, em especial, de uma criança cujo único ponto de referência e de apoio, num país ainda quase desconhecido, era a sua mãe. 14. De salientar também que, segundo a Ficha Síntese de Acompanhamento de Menor elaborada pelo GAT e na falta de um relatório pericial mais aprofundado, a menor NY consegue sempre distinguir a verdade da mentira e possui um discurso livre e espontâneo. 15. A NY relatou, de novo, as situações de maus tratos vivenciadas no Hospital, a chorar, perante a sua mãe, ora arguida. De acordo com as regras de experiência comum e da ciência, torna-se ainda mais difícil de conceber que a menor, após ter contado o sucedido perante as testemunhas MM e SS, tenha voltado a mentir e a afirmar factos contra a sua mãe perante as assistentes sociais e a equipa médica no Hospital Fernando Fonseca e, sobretudo, perante a própria mãe, muito provavelmente a principal figura de referência para esta criança. 16. Tal como demonstram diversos estudos, a existência de uma relação afetiva próxima com a pessoa acusada traz uma maior ambivalência emocional para a criança, receio da reação da restante família e do próprio agressor face à revelação da situação e um maior receio quanto às consequências que possam decorrer dessa revelação (Carvalho, Lígia, A valoração do testemunho da criança vítima de abuso sexual intrafamiliar no contexto da avaliação forense - Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, 2007). 17. Apesar desse medo, ainda assim a menor NY falou e voltou a contar o sucedido no Hospital. 18. Não se discerne qualquer origem alternativa para a informação relatada pela menor sem ser a experiência do próprio acontecimento. 19. Não se concebe qualquer influência externa ou sugestionamento no seu discurso, assim como não se identificou qualquer problema ou mal-estar entre a menor NY e a arguida que justificasse a criação de um móbil vingativo e a invenção de tal história contra esta última por parte da sua filha, de dez anos, ou ainda uma terceira pessoa que incitasse aquela a depor contra a sua mãe. 20. Relativamente à vítima NY, não restam dúvidas de que resulta cabalmente dos elementos de prova a contextualização e concretização do episódio que sucedeu no dia 10 de dezembro de 2019, a nível temporal, espacial, modal e motivacional. 21. Quanto às demais situações, anteriores àquela, que a menor indicou que ocorreram, temos que a mesma concretizou a frequência com que ocorreram - quase todos os dias. Logo com base nesse fator, não será realista esperar que a vítima consiga fornecer uma pormenorizada contextualização de cada um desses episódios, ainda para mais tratando-se de uma criança com dez anos de idade. 22. No entanto, a menor NY referiu que a arguida lhe batia, com recurso à calçadeira ou à colher de pau, quando ela se portava mal ou quando a arguida não acreditava em si quando lhe dizia que não tinha sido ela, mas sim a irmã, a fazer determinado disparate. Assim, é possível concluir, das palavras da NY, a motivação, o modo, a frequência e ainda o local (na residência familiar, uma vez que se socorria de instrumentos de uso doméstico) que caracterizam as restantes ocasiões. 23. Relativamente ao menor EY, sabemos igualmente, através das declarações para memória futura da NY, a frequência com que a arguida lhe batia (cerca de uma ou duas vezes por semana), a motivação (a mesma que a menor NY descreveu quanto a si, pois ela acrescentou, no final da resposta, a mim e ao meu irmão), o modo (o mesmo, com recurso à calçadeira ou à colher de pau) e o local. 24. Pelo exposto, foram, no nosso entender, encontrados os possíveis fatores concretizadores das situações aqui em causa, não sendo exigível que a menor NY indicasse o dia em que cada uma delas ocorreu ou os pormenores de cada uma, estando as mesmas balizadas temporalmente entre dezembro de 2017 e dezembro de 2019. 25. A capacidade para distinguir a verdade da mentira e a fantasia da realidade constitui um fator relevante para a avaliação do testemunho da criança. 26. De acordo com os ensinamentos que a psicologia nos pode dar nesta matéria, não poderá qualquer discrepância, contradição ou hesitação presente num depoimento ser apta a descredibilizar todo um discurso, especialmente de uma criança. 27. Com efeito, teremos de analisar o discurso em causa na sua globalidade, ponderando os fatores a favor e contra a respetiva credibilidade. 28. É possível identificar vários fatores em favor da credibilidade do depoimento da menor NY, desde logo na sua consistência ao longo do tempo e na riqueza dos detalhes, das sensações e dos discursos que descreveu. Aos quais se acrescentam outros, como a espontaneidade com que a menor respondeu às questões, utilizando inclusive expressões próprias do léxico de uma criança. 29. Por todos os fatores em favor da credibilidade do discurso da menor NY já explanados, é forçoso concluir que as discrepâncias apontadas pela sentença recorrida são de menor relevância. Como vimos, existem várias explicações que poderão ser avançadas para justificar o facto de a menor ter primeiramente dito às testemunhas MM e SS que as pancadas foram desferidas pela arguida nas costas (e na planta dos pés, não ficando claro que a menor tivesse referido que essa dor derivasse do episódio ocorrido no dia anterior) e, posteriormente, em sede de declarações para memória futura, que atingiram as nádegas e, depois, corrigindo para as pernas (zonas não tão distantes assim). 30. Essa confusão poderá facilmente justificar-se, por exemplo, com o facto de eventos dessa natureza, em que a arguida batia com a calçadeira no corpo da menor, terem acontecido múltiplas vezes. Não será, por isso, de estranhar que a ofendida NY confunda a zona do corpo em que foi atingida no dia 10 de dezembro de 2019 com a zona do corpo em que foi atingida também com a calçadeira noutro dia anterior a esse, visto que essas situações se sucediam quase diariamente. 31. Certo é que as lesões identificadas no corpo da NY no dia 11 de dezembro de 2019 e que foram vistas pelas testemunhas MM e SS e, posteriormente, pela equipa médica do Hospital Fernando Fonseca, são perfeitamente compatíveis com o relato que a menor fez sobre o sucedido no dia anterior a essas mesmas pessoas, assim como são compatíveis com o utensílio utilizado, que potencia as marcas no corpo. 32. No relatório clínico de urgência faz-se, de facto, referência a dois hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda (fls. 65), tal como é mencionado na sentença recorrida. Essa zona é totalmente compatível com o relato da vítima NY, que contou na escola ter sido atingida, por duas vezes, com a calçadeira nas costas. 33. Escalpelizando as declarações para memória futura da menor NY e os depoimentos das referidas testemunhas da acusação e atendendo à análise crítica de toda a prova, testemunhal e documental, supra, entendemos que não se pode deixar de considerar que os depoimentos são coerentes e uniformes entre si, nos seus traços gerais e essenciais, caracterizando-se pela espontaneidade, e coerentes com a demais prova. E acrescente-se que a existência de algumas contradições ou autocorreções nos depoimentos é natural e até de salutar, demonstrativo de que o relato é real, sendo fruto do decurso do tempo e da seleção de memória. Certo é que essas contradições não afetam o núcleo essencial e coerente dos depoimentos em causa. 34. No que respeita à testemunha EL, para além de não constituir uma testemunha imparcial visto ser amiga há vários anos da arguida, o próprio depoimento demonstrou a sua tendência para apenas afirmar factos em favor da arguida. Desde logo porque, uma vez que não residia em casa desta, não poderia afirmar que a arguida não castigava os filhos, batendo-lhes com uma calçadeira ou uma colher de pau. 35. Ora, nenhum destes argumentos é credível, no sentido de justificar a invenção, por parte de NY, do que relatou. 36. Mesmo a situação da doença de que a menor NY sofre não o justifica. O facto de eventualmente ter, com frequência, dores no corpo devido à doença, tal não explica o aparecimento de dois hematomas no corpo da noite para o dia. 37. Além disso, a arguida, apesar de terem existido várias tentativas nesse sentido, nunca conseguiu explicar o que é que aconteceu, segundo a sua versão, no dia 10 de dezembro de 2019. Somente disse que não sabia, furtando-se às perguntas e evitando responder diretamente, o que descredibiliza bastante a sua versão. 38. Mas, sobretudo, as explicações avançadas pela arguida não são congruentes com a demais prova, em especial os depoimentos prestados. 39. Entende, por isso, o Ministério Público que o Tribunal a quo formou a sua convicção sem correspondência com a prova produzida ao descredibilizar a versão dos factos apresentada pela ofendida, o que abrange os factos relativos à menor NY, mas também ao menor EY, seu irmão. 40. Por tudo quanto foi dito, não restam dúvidas de que a arguida praticou os factos que deveriam ter sido dados como provados que referimos supra. Resulta da prova produzida, interpretada conforme as regras da lógica, da ciência e da experiência, que a arguida batia, com frequência quase diária, no caso da menor NY, e com frequência semanal, no caso do menor EY, fazendo uso de uma calçadeira ou de uma colher de pau, deixando-os com dores e hematomas no corpo. 41. Em conclusão, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com a prova documental constante dos autos (maxime, a informação do Hospital e o relatório clínico de urgência) e, bem assim, as regras da lógica e da experiência comum, impunham que se dessem como provados – e não como não provados – todos os pontos da matéria de facto acima apontados, condenando-se a arguida pela prática de dois crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e), n.º 2, al. a) e n.º 4, do Código Penal. 42. A douta sentença recorrida padece, assim, de erro notório na apreciação da prova, o qual se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal. 43. A pena de prisão a aplicar por cada crime deverá situar-se no espectro médio da moldura penal, não sendo inferior a três anos de prisão. A pena única resultante do cúmulo jurídico poderá ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, prevendo-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão possam realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 44. Deverá a arguida ser ainda condenada na pena acessória de obrigação de frequência de um programa específico de prevenção da violência doméstica, prevista no artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal, e no pagamento de uma indemnização às vítimas, ao abrigo do art.º 82.º-A, conjugado com os artigos 1º, al. j) e 67.º-A, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, e do art.º 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16-09. 45. Deve ser revogada a douta sentença recorrida e em consequência ser substituída por outra que considere provados os factos acima descritos e condene a arguida pela prática dos crimes de violência doméstica agravados nos termos supramencionados. Pelo que deve o presente recurso ter provimento, revogando-se a douta sentença recorrida. A arguida, notificada para o efeito, não respondeu ao recurso. O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo. Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso. Proferido despacho liminar e colhidos os Vistos, teve lugar a conferência. Objecto do recurso De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art.º 410º do Cód. Proc. Penal. Em face das conclusões do recurso, as questões que importa analisar são as de saber a) se houve erro de julgamento quanto aos factos não provados e se os mesmos devem ser considerados provados, e b) se a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º, nº 2, al. c) do Cód. Proc. Penal e, havendo, quais as suas consequências. Fundamentação Na decisão recorrida consignou-se quanto à matéria provada e não provada: A. Factos Provados: Apreciada a prova produzida e discutida em audiência, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa: 1. A arguida é mãe de três filhos menores: a. NY, nascida a 25 de setembro de 2009. b. EY, nascido a 16 de agosto de 2011; e c. NTY, de 2 anos de idade. 2. No dia 17 de Dezembro de 2017, a arguida veio residir para Portugal com os seus três filhos, para que a sua filha NY efetuasse tratamentos médicos. 3. Desde essa data, a arguida passou a residir com os menores na residência sita na Rua …, nº 2, 3º esq., na Amadora. 4. A arguida não tem antecedentes criminais. B. Factos não provados: Da produção da prova e discussão da causa, resultaram os seguintes factos como não provados, com interesse para a decisão da causa: a. Desde dezembro de 2017 até dezembro de 2019 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência quase diária, na residência familiar, a arguida zangou-se com a sua filha NY e bateu-lhe com uma calçadeira e com uma colher de pau, desferindo pancadas por todo o corpo. b. Também desde dezembro de 2017 até dezembro de 2019 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência semanal, na residência familiar, a arguida zangou-se com o seu filho EY e bateu-lhe com uma calçadeira e com uma colher de pau, desferindo pancadas por todo o corpo. c. No dia 10 de dezembro de 2019, ao final do dia, na residência de família, quando a menor já estava deitada a dormir, a arguida chegou a casa e apercebeu-se que o quarto estava desarrumado. d. De imediato, a arguida foi buscar uma calçadeira e desferiu com a calçadeira duas pancadas nas nádegas e nas pernas da sua filha NY, de 8 anos de idade. e. Depois da segunda pancada, a menor levantou-se da cama para evitar que a mãe lhe continuasse a bater. f. Em seguida, a arguida castigou a menor NY e exigiu que ela fizesse cinco cópias de um texto da escola. g. Cerca das 03h00 da madrugada, a menor NY já estava com muito sono, mas a arguida não permitiu que ela fosse dormir enquanto não acabasse as cópias. h. Como consequência dessa situação, a menor NY ficou com dores na perna e na região dorsal, dois hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda e três escoriações lineares nas pernas. i. Com a prática das condutas descritas, a arguida, de modo direto e necessário, fez com a NY e o EY se sentissem tristes, ansiosos e receosos pelas atitudes que a arguida pudessem tomar em relação a si, nomeadamente que lhes batesse ou castigasse. j. Ao agir do modo descrito, a arguida sabia que, de um modo persistente, molestavam física e psiquicamente, e amedrontava os seus filhos NY e EY, atuando sempre de molde a atingir a dignidade humana e a saúde física e psíquica deles, como pretendia e conseguiu. k. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento. A restante matéria alegada não foi considerada provada ou não provada, por consubstanciar matéria de direito ou matéria conclusiva. O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo: (…) C. Motivação: A decisão do Tribunal tem de assentar na convicção da verdade dos factos apurados em audiência de julgamento, convicção essa formada apenas com os elementos probatórios de que é lícito recorrer-se (cfr. artigos 125º, 126º e 355º do Código de Processo Penal). O juiz deve decidir sob a impressão de quanto viu e ouviu, com o contributo dialéctico dos sujeitos processuais (princípio do contraditório, consagrado na lei processual penal e na Lei Fundamental). Exige-se, pois, ao tribunal, a partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a sua convicção, a enunciação das razões de ciência extraídas daquelas, os motivos porque optou por uma das versões em confronto (quando as houver), os motivos de credibilidade dos depoimentos, os fundamentos dos documentos ou exames que privilegiou na sua convicção – cfr. artigo 205º da Constituição da República Portuguesa e artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Tudo de forma a permitir a reconstituição e análise crítica do percurso lógico que seguiu na determinação dos factos como provados ou não provados (cfr. artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal). Assim, considerando os pressupostos supra enunciados e tendo presente as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal (cfr. artigo 127º do mesmo diploma), cumpre proceder à análise da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, no caso sub judice, salientando o mais relevante e decisivo. Presente em audiência de julgamento, a arguida declarou, desde logo, pretender prestar declarações após a produção de prova em audiência de julgamento, tendo, então, nesse momento posterior confirmado os factos descritos de 1 a 3 e negado a prática de qualquer dos factos vertidos no libelo acusatório. Esta posição da arguida obrigou à procura da verdade material nos meios de prova produzidos em audiência de julgamento, nomeadamente a prova testemunhal e documental. Prova que, como é consabido, deve ser plena e esclarecida, sem alegação de factos incertos, porquanto, em caso de dúvida, prevalece o princípio in dubio pro reo, enformador do direito processual penal e com consagração constitucional. E, adianta-se, dúvida que, no caso vertente, acabou por prevalecer, porquanto não se achou nos autos prova categórica no sentido de concretizar de forma segura e inequívoca o ocorrido. Tomadas declarações para memória futura à testemunha NY esta confirmou que, à data, residia com dois irmãos, de dois e oito anos de idade, com sua mãe e um tio, que é irmã de sua mãe, bem assim que em 17.12.2007 veio para Portugal - factos provados 1 a 3. Destas declarações realizadas a 09-03–2020 (cfr. auto de fls. 57 e ss.) resulta, por um lado, a afirmação vaga e genérica da imputação de que a sua mãe bate nela e no irmão com uma calçadeira ou uma colher de pau, em datas que não concretizou, mas frequência diária; o que impede, além do mais, o pleno exercício do direito de defesa e do contraditório à arguida, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32º da Lei Fundamental, porquanto tais factos correspondem a um lapso temporal impreciso, sendo apenas sendo sustentados pelo depoimento desta testemunha, que não logrou concretizar e esclarecer cabalmente qualquer dessas circunstâncias de tempo, lugar e modo. Neste particular, salienta-se que não é susceptível de produzir-se qualquer outra prova afim de esclarecer tais circunstâncias. Por outro lado, a testemunha NY relatou que numa terça feira (tendo posteriormente, no minuto 7:10, mencionado que era quarta-feira), a sua irmã mais nova pegou no seu brinquedo “slime” e sujou a cama, que ficou molhada, tendo aí adormecido e sido acordada pela mãe quando ali chegou. Neste contexto, a menor relatou, então, os comportamentos adoptados pela mãe, fazendo-o de forma hesitante e contraditória, sendo disso evidente a descrição, no minuto 2:30 da sua inquirição, a reacção da mãe: a mãe gritou… não gritou, falou só… não falou nada, mas olhou e depois ficou um bocadinho zangada; ou ainda quando a menor relatou que, nesse dia da irmã ter mexido no slime, a mãe lhe bateu duas vezes no rabo com a calçadeira, para de seguida mencionar que consequentemente lhe começou a doer a perna, pese embora posteriormente (já ao minuto 5:10 da sua inquirição) ter afirmado que a mãe lhe desferiu uma pancada em cada perna. Do depoimento da testemunha assim prestado perpassa um discurso confuso e contraditório, sem lograr pormenorizar e concretizar de forma segura e cabal os factos que terão sido praticados por sua mãe, nessa ocasião em que a sua irmã mais nova pegou no seu brinquedo “slime”, reportando à situação como sendo a última ou mais recente. Certo é, contudo, que como a própria testemunha afirma, ao minuto 7:40 da sua inquirição, tal episódio não foi contado à sua professora de ciências. Com efeito, nenhuma das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento relata tal episódio; concretizando. A testemunha MM relatou, em suma, ter sido chamada por uma colega, SS, a fim de ouvir a menor, NY, que então contou ter sido acordada durante a noite com sua mãe a bater-lhe nas costas, após o que também lhe bateu com uma calçadeira nos pés, por ter adormecido e sua avó também, pelo que ninguém estava a tomar conta da irmã mais nova. Esta testemunha afirmou ter visualizado uma marca nas costas da menor, por referência às omoplatas, acrescentando que também se queixava ao toque no pé, tendo sido encaminhada para o Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, E.P.E. para observação. A testemunha SS relatou, tal-qualmente, que em entrevista com a menor, realizada no âmbito do projecto EPIS, esta contou que sua mãe lhe batera nas costas e cm uma calçadeira nos pés. A testemunha afirmou ainda ter visualizado marcas nas costas e nas palmas dos pés, razão pela qual decidiu dar disso conhecimento à Coordenadora da escola, MM. Compulsados os autos, verifica-se que a menor foi observado no dia 11 de Dezembro de 2019, no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, E.P.E., tendo sido consignado no seu processo clínico de urgência, junto a fls. 64 e ss., que a menor não apresentava lesões traumáticas na região dorsal, local onde se queixa de dor, mas apenas foram registados 2 hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda (fls. 65). Por fim, a testemunha EL, amiga da arguida, afirmou não ter presenciado nenhuma agressão, descrevendo o contexto em que presenciou momentos da relação entre a arguida e seus filhos, nomeadamente a menor NY, e a postura adoptada por aquela. Os restantes elementos probatórios, designadamente a informação social do Hospital de fls. 5 e 6, ficha síntese de acompanhamento junta a fls. 75 e ss. ou da informação escolar de fls. 105 e 106, por si só ou ainda que conjugados, são insuficientes para, sobre os mesmos, o tribunal fundar a convicção segura e inabalável da realidade histórica ocorrida nas circunstâncias descritas na acusação. De todo o exposto, conclui-se que não se logrou formar convicção clara, segura e inequívoca acerca da realidade história tal-qualmente vertida no libelo acusatório, bem assim como dos factos integradores dos elementos psicológicos, volitivos e emocionais imputados à arguida. Com efeito, apreciadas as declarações tomadas à menor, revelando-se inconsistentes à luz das regras da lógica e das máximas da experiência comum e quando conjugadas com a restante prova produzida em audiência de julgamento, suscitam-se fundadas dúvidas acerca da prática dos factos imputados à arguida tal-qualmente descritos no libelo acusatório. Considerando o relato efectuado pela arguida e o discurso trazido a juízo pela testemunha NY, que merece reservas nos termos supra expostos, o Tribunal depara-se com versão manifestamente inconciliáveis entre si. Salienta-se que não é susceptível de produzir-se qualquer outra prova, que possa eliminar tais dúvidas e incertezas. Assim, da globalidade da prova produzida em julgamento, não se logrou conferir maior credibilidade à testemunha NY do que à arguida; antes pelo contrário. Desta forma, impõe-se que a convicção do Tribunal se forme tendo em conta os princípios de prova em Direito Processual Penal, nomeadamente o princípio da presunção de inocência, segundo o qual enquanto não for demonstrada a culpabilidade de uma pessoa não é admissível a sua condenação (artigo 32º, nº 2 da Lei Fundamental), ou seja, a dúvida sobre os factos resolve-se sempre a favor do arguido. Em cumprimento do princípio “in dubio pro reo”, não se consideram como provados factos cuja prova não se logrou fazer, uma vez que tal actuação iria contra outro princípio imanente ao direito processual penal: o princípio da descoberta da verdade material. Efectivamente, através deste princípio pretende-se valorar de forma favorável ao arguido um facto relativamente ao qual se suscitam dúvidas sobre a sua ocorrência, salientando a possibilidade do decurso dos acontecimentos ter ocorrido conforme a posição que mais o favorece. Assim sendo, por aplicação do princípio “in dubio pro reo” e dos princípios acima referidos, impõe-se valorar de forma favorável à arguida o facto relativamente ao qual não foi produzida prova suficiente de modo a não se suscitaram dúvidas, considerando a possibilidade do decurso dos acontecimentos ter ocorrido conforme a posição que mais a favorece. (…) Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do Ministério Público recorrente. Começamos por notar que a acusação deduzida contra a arguida, imputando-lhe a prática de 2 crimes de violência doméstica (art.º 152º, nº 1, al. d) e nº 2, al. a), 4 e 5 do Cód. Penal), indicou como prova: - as declarações para futura memória da ofendida NY (ofendida); - o depoimento de MM (coordenadora da escola frequentada pela referida ofendida); - o depoimento da testemunha SS (professora da ofendida na referida escola). Tendo o Tribunal a quo contado ainda com as declarações da arguida (mãe dos indicados ofendidos) e de uma amiga sua (testemunha EL). E tendo, ainda, à sua disposição a prova documental constante dos autos. Como sabemos, há apenas duas formas de atacar a matéria de facto que a decisão do Tribunal a quo fixou: ou pela invocação de vícios ou pedindo a reapreciação. O Tribunal da Relação deve conhecer do RECURSO DE FACTO pela seguinte ordem: - primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada; - depois, e se for o caso, dos vícios do nº 2 do art.º 410º do Cód. Proc. Penal (a chamada impugnação restrita ou revista alargada da matéria de facto). Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. O erro de julgamento – previsto no art.º 412º, nº 3 do citado diploma - ocorre quando o Tribunal recorrido considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em segunda instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art.º 412º. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa, no entanto, a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria. Como acentua Jorge Gonçalves[1], o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões). E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP [2]. Assim, essa especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Na segunda das formas, o pedido subordina-se à disciplina do art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal. Na impugnação restrita (respeitante exclusivamente a todos os vícios contidos no art.º 410º, nº 2) a apreciação de vícios da decisão confina-se, exclusivamente, à letra da decisão proferida pelo Tribunal a quo, só por si ou conjugada com regras de experiência comum, não interferindo na análise quaisquer outros dados, ainda que resultantes do julgamento ou documentados nos autos. O art.º 410º nº 2 do Cód. Proc. Penal prevê que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou c) O erro notório na apreciação da prova. O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto que prescinde da análise da prova produzida para, como se disse, se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos. Assim, apenas se verifica quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria, com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Conforme anotam os Juízes Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos[3] este vício verifica-se, designadamente, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. É por essa razão que, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar a exposição dos motivos de facto que fundamentam a mesma, completa e concisa ainda que seja, e com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, tal como é exigência do art.º 374º, nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal. O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, de modo tal que não escape a um homem/mulher de uma cultura média. O vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o Tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se, assim, o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, qual seja o juiz, sendo este dotado da cultura e experiência que deve advir-lhe do exercício da função de julgar[4]. Vista a motivação da decisão de facto constante da Sentença recorrida, se bem que faça referência ao suporte probatório que ponderou, verifica-se, por confronto com a impugnação resultante do recurso interposto, que as conclusões a que chegou a Sentença ficam muito aquém daquelas que a prova consente e impõe. Ora, o Ministério Público, cumprindo ainda as exigências legais quanto à impugnação por via do art.º 412º do Cód. Proc. Penal, invocou também a violação da al. c) do nº 2 do art.º 410º citado. Vejamos então: Na motivação da sentença recorrida pode ler-se: (…) Tomadas declarações para memória futura à testemunha NY esta confirmou que, à data, residia com dois irmãos, de dois e oito anos de idade, com sua mãe e um tio, que é irmã de sua mãe, bem assim que em 17.12.2007 veio para Portugal - factos provados 1 a 3. Destas declarações realizadas a 09-03–2020 (cfr. auto de fls. 57 e ss.) resulta, por um lado, a afirmação vaga e genérica da imputação de que a sua mãe bate nela e no irmão com uma calçadeira ou uma colher de pau, em datas que não concretizou, mas frequência diária; o que impede, além do mais, o pleno exercício do direito de defesa e do contraditório à arguida, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32º da Lei Fundamental, porquanto tais factos correspondem a um lapso temporal impreciso, sendo apenas sendo sustentados pelo depoimento desta testemunha, que não logrou concretizar e esclarecer cabalmente qualquer dessas circunstâncias de tempo, lugar e modo. Neste particular, salienta-se que não é susceptível de produzir-se qualquer outra prova afim de esclarecer tais circunstâncias. Por outro lado, a testemunha NY relatou que numa terça feira (tendo posteriormente, no minuto 7:10, mencionado que era quarta-feira), a sua irmã mais nova pegou no seu brinquedo “slime” e sujou a cama, que ficou molhada, tendo aí adormecido e sido acordada pela mãe quando ali chegou. Neste contexto, a menor relatou, então, os comportamentos adoptados pela mãe, fazendo-o de forma hesitante e contraditória, sendo disso evidente a descrição, no minuto 2:30 da sua inquirição, a reacção da mãe: a mãe gritou… não gritou, falou só… não falou nada, mas olhou e depois ficou um bocadinho zangada; ou ainda quando a menor relatou que, nesse dia da irmã ter mexido no slime, a mãe lhe bateu duas vezes no rabo com a calçadeira, para de seguida mencionar que consequentemente lhe começou a doer a perna, pese embora posteriormente (já ao minuto 5:10 da sua inquirição) ter afirmado que a mãe lhe desferiu uma pancada em cada perna. Do depoimento da testemunha assim prestado perpassa um discurso confuso e contraditório, sem lograr pormenorizar e concretizar de forma segura e cabal os factos que terão sido praticados por sua mãe, nessa ocasião em que a sua irmã mais nova pegou no seu brinquedo “slime”, reportando à situação como sendo a última ou mais recente. Certo é, contudo, que como a própria testemunha afirma, ao minuto 7:40 da sua inquirição, tal episódio não foi contado à sua professora de ciência. (…) Da motivação de recurso interposto pelo Ministério Público consta: (…) i. Declarações para memória futura prestadas pela testemunha NY (que se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 09 de março de 2020, cujo início ocorreu pelas 10:56:27 horas e o seu termo pelas 11:30:31 horas), a qual relatou que: - …a minha mãe, foi numa terça-feira, deixou-me em casa com a minha irmã mais pequena e depois ela foi lá levar o meu irmão aos treinos e depois eu e a minha irmã já estávamos a dormir… e depois eu escondi o meu slime em cima da mesa e a minha irmã foi lá pegar (….) e começou a borrar a cama toda (…) eu estava a sentir a cama um bocadinho fria e molhada (…) e depois eu estava a dormir e a minha mãe (…) viu aquilo, depois ela gritou… não gritou, falou só… não falou nada, mas olhou e ficou um bocadinho zangada. Depois ela foi pegar numa sapateira grande (…) a minha mãe usava isso para nos bater, a mim e ao meu irmão. Depois ela pegou na sapateira e me deu duas no rabo (a partir do minuto 01:38 da gravação) - Juiz: Deu-te duas vezes no rabo? Ao que a menor NY afirmou que sim. (minuto 03:17 da gravação) - E depois aquilo estava-me a doer porque eu estava de pijama e (…) começou a estalar e quando estalou começou-me a doer aqui na perna. E depois eu fui lá limpar o que ela mandou e depois ela mandou-me fazer cópias, (…) cinco cópias porque eu não tive tempo para fazer na escola. (…) eu não ia dormir sem acabar. Eram 3h da manhã, eu estava cheia de sono. 4h, 5h eu ainda estava cheia de sono e ela disse que era para acabar, porque eu não ia para a cama sem acabar as cinco. (a partir do minuto 03:17 da gravação) - Juiz: Olha a mãe bateu-te com a calçadeira, duas pancadas que ela te deu? Foi em que sítio do teu corpo? (…) Ah nas duas pernas, uma em cada perna, foi? Tu estavas a fugir ou a mexer-te? Ao que a menor NY respondeu: (…) Na segunda eu fugi da cama para ela não me bater mais. (a partir do minuto 05:09 da gravação) - Juiz: Ela usa sempre a calçadeira quando vocês se portam mal?; e a menor respondeu: A calçadeira e uma colher de pau assim grande também. (a partir do minuto 05:55 da gravação) - Depois no dia seguinte eu fui falar com a professora de Ciências Naturais que me perguntou isso tudo. (…) Foi numa quarta-feira (…) e depois passou mais outra quarta-feira e ela foi-me buscar e levou-me à sala dela que era para conversar. (a partir do minuto 06:50 da gravação) - Juiz: A mãe já não bate dessa maneira? (…) Como é que a mãe tem feito quando vocês se portam mal? (…). E a menor respondeu: Ela às vezes conversa connosco ou às vezes diz se nós queremos ficar de castigo ou então vamos portar bem. Juiz: (…) Que castigos é que a mãe diz que podem ser?. E a menor esclareceu: Ficar sem televisão, sem telemóvel e sem computador e também… ficamos um mês ou dois sem dinheiro (…). (a partir do minuto 08:27 da gravação) - Ao ser perguntada acerca da frequência com que a mãe lhe batia, se tinha uma ideia, a menor NY respondeu: Não. Mas ao irmão? Ela bateu hoje antes de virmos para aqui. (…) Com a mão. (…) Nas costas. (…) Porque ele queria levar às escondidas dos pais e levou dois lanches para a escola. (…) ele estava a levar o pão, para a escola, da minha irmã bebé. (a partir do minuto 10:08 da gravação) - Juiz: Consegues dizer quantas vezes a mãe pode ter batido em ti e no teu irmão com esses objetos?; e a menor NY respondeu: Essa foi a última vez em que ela me bateu. (a partir do minuto 12:17 da gravação) - Juiz: E para trás?. NY: Foram muitas antes disso acontecer, foram muitas. Foram quase todos os dias. Juiz: E porquê?. NY: Às vezes quando eu me porto mal e outras vezes em que ela não acredita em mim e me bate, a mim e ao meu irmão. (…) (a partir do minuto 12:35 da gravação) - Juiz: E era com a colher de pau e com a calçadeira?. NY: Quando ela descobriu para nos bater com a calçadeira… A minha irmã estava a brincar com a calçadeira e a minha mãe estava chateada comigo e queria-me bater e estava à procura da colher de pau e a colher de pau não estava a aparecer. Então a minha irmã estava a brincar com a calçadeira (…) depois ela pegou na calçadeira e começou-me a bater a mim e depois bateu ao meu irmão. E depois agora ela guarda a calçadeira que é para nos bater. (a partir do minuto 13:49 da gravação) - Quando lhe foi questionado sobre a frequência com que a mãe batia no irmão EY, a menor NY respondeu menos vezes. Juiz: Quantas vezes por semana?. NY: Um dia, um dia ou dois. (a partir do minuto 14:44 da gravação) - E, a instâncias da patrona da menor NY, foi-lhe perguntado o tamanho da colher de pau que referiu no seu depoimento, ao que a mesma respondeu que tinha dois tamanhos, média e maior. Mas ela usava a média. (a partir do minuto 15:19 da gravação) (…) Como se percebe do que antecede, e muito embora possa decorrer do texto da decisão a errada avaliação da prova em determinados pontos [como quando desvaloriza determinada declaração porque, por exemplo, a menor refere ter sido agredida numa parte do corpo e o exame refere lesões noutra, sem que se explique cabalmente porque se desvaloriza aquelas num contexto em que esta conclusão não as invalida], o facto é que do confronto do que se diz na sentença com o que resulta da prova produzida [e que devia ter sido valorada ou devidamente explicado o seu afastamento, e não foi] resulta muito mais do que a motivação conclui. E isto, extravasando os limites do erro invocado no âmbito do art.º 410º do Cód. Proc. Penal, consubstancia já uma situação de verdadeiro erro de julgamento, nos termos do art.º 412º, nº 2 do referido Cód. Proc. Penal. Tentando concretizar de forma mais esclarecedora. A prova que o Ministério Público indica na motivação do seu recurso permite, pelo menos, discutir aspectos de facto que a sentença do Tribunal a quo não levou sequer em consideração. Veja-se, para citar já o exemplo mais flagrante [nada tendo sido também requerido em julgamento a este respeito, note-se], que a sentença - muito embora se imputem à arguida dois crimes, um por cada um dos seus filhos -, dando como não provados os factos relativos ao ofendido EY, limita-se a dizer que o depoimento da irmã [ofendida NY] não chega para a prova daqueles. Acontece, no entanto, que o Tribunal não é mero espectador no processo penal, tendo o poder de, para apuramento da verdade dos factos, favoráveis e desfavoráveis ao arguido, e caso se lhe suscitem dúvidas, como refere na fundamentação, diligenciar para que as mesmas sejam ultrapassadas, de forma a absolver ou condenar. É essa impossibilidade que está na base do princípio in dubio pro reo. Só a dúvida persistente, esgotados os meios disponíveis de prova, é idónea a provocar tal conclusão. Quanto aos factos respeitantes à menor NY, o Tribunal a quo escuda-se, para explicar porque os não considera provados, na explicação teórica sobre a imputação genérica e contradições das declarações daquela. Ora, nem uma coisa e nem outra se mostram correctas. Comecemos sobre a referência a imputações genéricas não contraditáveis. Como sabemos, a jurisprudência tem debatido essa questão, sobretudo no âmbito dos crimes de tráfico[5]. Como se extrai do acórdão do STJ, de 06-05-2004, processo 908/04-5ª - Não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“procediam à venda de estupefacientes”, “essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína”, “utilizavam também correios”, “utilizavam também crianças”, etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses “factos” provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem; o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32º da CRP. [6] Muito embora perfilhemos este entendimento, não é, no entanto, o que temos em causa neste processo. Vejamos. A menor NY foi ouvida e relata factos que concretiza como consegue. Como se compreende, estamos perante uma criminalidade que reveste algumas características especiais – as vítimas são pessoas [menores ou maiores de idade] com fragilidade emocional, desde logo decorrente dos factos de que são alvo, que são, por seu turno, factos que ocorrem quase sempre no recolhimento de casa, longe da vista de terceiros, traumáticos, a que acresce, nesta circunstância concreta, o facto de esta ofendida ter [à data dos imputados factos, idade inferior a dez anos]. Como decorre destas circunstâncias, não é a mesma coisa avaliar as declarações de uma vítima com este perfil do que uma outra qualquer, adulta por exemplo. Note-se que está no processo um relatório do GAT (fls. 75) que faz uma avaliação positiva sobre as capacidades da menor de distinção entre verdade e mentira, realidade e fantasia, recomendando no fim o seu acompanhamento psicológico. Para além disso, como é do conhecimento geral, os factos emocionalmente traumatizantes ou, pelo menos, que causam sofrimento, são mais facilmente deixados pela memória nos seus cantos mais esconsos, precisamente porque o bloqueio emocional pode funcionar como processo de gestão quotidiana das emoções. Assim, a simples circunstância de uma vítima deste tipo de crime, com estas características, não conseguir datar os factos, recordando-os com pormenores de tempo e lugar, é normal e até indicativo de autenticidade do seu depoimento. Por outro lado, as circunstâncias que esta menor refere, ao contrário do que se diz na sentença do Tribunal a quo, encontram respaldo nas declarações das testemunhas ouvidas. Só para mencionar o acontecimento mais concretizado pela menor: - a decisão diz que a menor não concretiza os factos e se contradiz, desde logo, nas eventuais datas – ora, a menor diz que os factos se terão passado a uma terça feira e que no dia seguinte falou com a professora, numa quarta-feira, e que, depois, a conversa com a professora passou para a outra quarta-feira; a testemunha MM diz que teve uma conversa com a menor, decorrendo da conjugação das suas declarações com as da testemunha SS que o tempo da mesma coincide com o relato da menor [altura em que lhe viram marcas nas costas, embora na omoplata, mas dores mais abaixo e nos pés, aqui sem marcas] e que foram ao hospital nesse mesmo dia [tendo a menor repetido, desde a triagem aos médicos, sempre a mesma história]; a testemunha SS diz que [confirmando a declaração da testemunha anterior] na referida data viu marcas na menor mas não lhe pareceram conclusivas por causa da cor da sua pele e que esta conversa aconteceu, não da primeira vez que tentou falar com a menor, mas num outro dia próximo [no que coincide com o relato da menor]; a menor foi levada ao hospital nessa data pela escola, cujas fichas se mostram juntas, datadas de 11.12.2019 [consultando o calendário respectivo, verifica-se ter sido uma quarta-feira], de cuja documentação consta que manteve a versão sucessivamente, mesmo na presença da mãe que se mostrou, nessa ocasião, agressiva para a filha – esta prova não foi toda considerada pelo Tribunal a quo; - a decisão diz que a menor não concretiza factos e se contradiz quanto ao que esteve na origem da agressão da mãe naquele concreto dia – ora, a menor refere que, tendo ficado em casa com a irmã, esta pegou num brinquedo e sujou a cama e, por isso, a mãe lhe bateu com a calçadeira porque devia ter tomado conta da irmã; a testemunha MM confirma isso e a testemunha SS também – as testemunhas, além da ofendida, não têm, ao contrário do que diz a decisão recorrida, que relatar este acontecimento, porque a ele não assistiram e não é facto de que tenham conhecimento directo, sabendo apenas o que a menor relatou; - a decisão diz que a menor não soube concretizar a parte do corpo em que foi agredida: a menor diz que a mãe lhe bateu no rabo [duas vezes] e depois lhe doeu a perna [não é a menor que diz, ao contrário do que consta da decisão recorrida, que foi agredida uma vez em cada perna, é a Sra. Juiz que isso conclui, como resulta claro da gravação]; a testemunha MM diz que a menor lhe disse que a mãe lhe bateu nas costas e ficou com dores no corpo; a testemunha SS diz que procuraram marcas nas costas [certamente porque alguém falou em costas]; o relatório hospitalar menciona dois hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda e dores na zona lombar e três escoriações nos membros inferiores [ora, caso dúvidas haja, confirma-se que a chamada crista ilíaca se estende ao longo do topo da pelve, pelo que a dor pode bem reflectir-se nos membros inferiores, daqui nada decorrendo que contrarie o que a menor diz ter sentido] – ao contrário do que parece aceitar a decisão recorrida, ainda que marcas não houvesse [e há] ou elas até respeitassem a outras agressões, ou a lesões feitas pela própria menor em brincadeiras, ou mesmo decorressem da doença de que padece [o que também não foi sequer apurado], tal facto não significava obrigatoriamente que não tivesse ocorrido a agressão; mas esta explicação também não fica dada, nem num sentido e nem noutro. Mesmo com as evidentes coincidências que assim se retiram da prova que a decisão menciona e mal avaliou, ou com recurso à prova que nem sequer refere [até decorrente dos mesmos meios de obtenção] o Tribunal a quo limitou-se a dizer que há contradições e generalizações, desvalorizando a prova que menciona e que pode concorrer para a credibilização do depoimento da própria menor, e valorizando as da mãe, arguida no processo, sem que esclareça porque razão o faz, em face daquilo, e as de uma amiga desta que nada viu ou sabe. Nada tendo feito também o Tribunal recorrido para esclarecer os factos relativos ao menor EY e que também estavam imputados à arguida, sendo completamente omissa a decisão sobre a valoração da [existente ou não] prova quanto a isso. Não está em causa que o Tribunal a quo possa fazer a avaliação da prova com a liberdade que impõe, quando assim seja, a livre apreciação. O que está em causa é que, em face da prova existente, o Tribunal tenha dela retirado uma conclusão de facto que fica muito aquém da prova, sendo-lhe mesmo oposta parcialmente, não explicando devidamente porque razão o faz, porque razão desvaloriza uma prova em favor de outra, tanto mais quando seja possível sopesar essa prova dela retirando a conclusão exactamente oposta àquela que retira a decisão recorrida. Esta opção, que assentará num processo lógico de raciocínio e ponderação, aliada aos princípios e permissões contidos no art.º 340º do Cód. Proc. Penal, deve conjugar-se com as regras de experiência e normalidade. Por outro lado, também não avaliou criteriosamente toda a prova disponível. Concretizamos as notas que deixámos supra com o que da prova se pode destacar[7]: Declarações para memória futura prestadas pela ofendida NY (que se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 09 de março de 2020, cujo início ocorreu pelas 10:56:27 horas e o seu termo pelas 11:30:31 horas): - …a minha mãe, foi numa terça-feira, deixou-me em casa com a minha irmã mais pequena e depois ela foi lá levar o meu irmão aos treinos e depois eu e a minha irmã já estávamos a dormir… e depois eu escondi o meu slime em cima da mesa e a minha irmã foi lá pegar (….) e começou a borrar a cama toda (…) eu estava a sentir a cama um bocadinho fria e molhada (…) e depois eu estava a dormir e a minha mãe (…) viu aquilo, depois ela gritou… não gritou, falou só… não falou nada, mas olhou e ficou um bocadinho zangada. Depois ela foi pegar numa sapateira grande (…) a minha mãe usava isso para nos bater, a mim e ao meu irmão. Depois ela pegou na sapateira e me deu duas no rabo (a partir do minuto 01:38 da gravação) - Juiz: Deu-te duas vezes no rabo? Ao que a menor NY afirmou que sim. (minuto 03:17 da gravação) - E depois aquilo estava-me a doer porque eu estava de pijama e (…) começou a estalar e quando estalou começou-me a doer aqui na perna. E depois eu fui lá limpar o que ela mandou e depois ela mandou-me fazer cópias, (…) cinco cópias porque eu não tive tempo para fazer na escola. (…) eu não ia dormir sem acabar. Eram 3h da manhã, eu estava cheia de sono. 4h, 5h eu ainda estava cheia de sono e ela disse que era para acabar, porque eu não ia para a cama sem acabar as cinco. (a partir do minuto 03:17 da gravação) - Juiz: Olha a mãe bateu-te com a calçadeira, duas pancadas que ela te deu? Foi em que sítio do teu corpo? (…) Ah nas duas pernas, uma em cada perna, foi? Tu estavas a fugir ou a mexer-te? Ao que a menor NY respondeu: (…) Na segunda eu fugi da cama para ela não me bater mais. (a partir do minuto 05:09 da gravação) - Juiz: Ela usa sempre a calçadeira quando vocês se portam mal?; e a menor respondeu: A calçadeira e uma colher de pau assim grande também. (a partir do minuto 05:55 da gravação) - Depois no dia seguinte eu fui falar com a professora de Ciências Naturais que me perguntou isso tudo. (…) Foi numa quarta-feira (…) e depois passou mais outra quarta-feira e ela foi-me buscar e levou-me à sala dela que era para conversar. (a partir do minuto 06:50 da gravação) - Juiz: A mãe já não bate dessa maneira? (…) Como é que a mãe tem feito quando vocês se portam mal? (…). E a menor respondeu: Ela às vezes conversa connosco ou às vezes diz se nós queremos ficar de castigo ou então vamos portar bem. Juiz: (…) Que castigos é que a mãe diz que podem ser?. E a menor esclareceu: Ficar sem televisão, sem telemóvel e sem computador e também… ficamos um mês ou dois sem dinheiro (…). (a partir do minuto 08:27 da gravação) - Ao ser perguntada acerca da frequência com que a mãe lhe batia, se tinha uma ideia, a menor NY respondeu: Não. Mas ao irmão? Ela bateu hoje antes de virmos para aqui. (…) Com a mão. (…) Nas costas. (…) Porque ele queria levar às escondidas dos pais e levou dois lanches para a escola. (…) ele estava a levar o pão, para a escola, da minha irmã bebé. (a partir do minuto 10:08 da gravação) - Juiz: Consegues dizer quantas vezes a mãe pode ter batido em ti e no teu irmão com esses objetos?; e a menor NY respondeu: Essa foi a última vez em que ela me bateu. (a partir do minuto 12:17 da gravação) - Juiz: E para trás?. NY: Foram muitas antes disso acontecer, foram muitas. Foram quase todos os dias. Juiz: E porquê?. NY: Às vezes quando eu me porto mal e outras vezes em que ela não acredita em mim e me bate, a mim e ao meu irmão. (…) (a partir do minuto 12:35 da gravação) - Juiz: E era com a colher de pau e com a calçadeira?. NY: Quando ela descobriu para nos bater com a calçadeira… A minha irmã estava a brincar com a calçadeira e a minha mãe estava chateada comigo e queria-me bater e estava à procura da colher de pau e a colher de pau não estava a aparecer. Então a minha irmã estava a brincar com a calçadeira (…) depois ela pegou na calçadeira e começou-me a bater a mim e depois bateu ao meu irmão. E depois agora ela guarda a calçadeira que é para nos bater. (a partir do minuto 13:49 da gravação) - Quando lhe foi questionado sobre a frequência com que a mãe batia no irmão EY, a menor NY respondeu menos vezes. Juiz: Quantas vezes por semana?. NY: Um dia, um dia ou dois. (a partir do minuto 14:44 da gravação) - E, a instâncias da patrona da menor NY, foi-lhe perguntado o tamanho da colher de pau que referiu no seu depoimento, ao que a mesma respondeu que tinha dois tamanhos, média e maior. Mas ela usava a média. (a partir do minuto 15:19 da gravação) Depoimento prestado pela testemunha MM, Coordenadora na Escola SMBA (depoimento que se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 07 de março de 2023, cujo início ocorreu pelas 10:24:01 e o seu termo pelas 10:41:21): Relativamente ao dia em que a menor NY reportou as situações em causa na escola: - Foi num dia de manhã em que a minha colega (…) estava a fazer a recolha de informação da aluna, da NY, (…) que relatou algumas situações que tinham acontecido em casa e a minha colega chamou-me. (…) Foi nesse momento que a aluna nos falou, na presença das duas (…) (a partir do minuto 02:00 da gravação) - Nessa conversa, a NY relatou que, em dezembro de 2019, não sabendo especificar o dia, foi acordada com a mãe a bater-lhe nas costas e que estava com algumas dores no corpo. Referiu também que a mãe lhe batia com a calçadeira nos pés (a partir dos 03m09s da gravação). - Eu e a colega fomos observar-lhe o corpo. Lembro-me que ela tinha uma marca nas costas vermelha, avermelhada, não sei precisar se era do lado esquerdo, se era do lado direito, na zona das omoplatas. Referiu que também tinha uma dor um bocado mais abaixo nas costas, mas marca não tinha. (a partir do minuto 03:59 da gravação) - Pedimos-lhe para mostrar o pé (…) porque ela queixava-se de dor, mas não tinha marca, mas ao toque reagia. (…) na planta de um dos pés. (a partir do minuto 04:25 da gravação) - O que ela referiu que tinha levado a que a mãe a tivesse acordado a bater-lhe foi que a mãe tinha saído com o irmão de 8 anos e tinha ficado com a irmã de dois e com a avó. Entretanto ela adormeceu e a avó também adormeceu e parece que quando a mãe chegou a casa, a irmã mais nova deve ter feito algum disparate e ela disse-me que a mãe a acusava de não ter tomado conta… de ser a responsável por a irmã tomar estas atitudes (a partir dos 05m06s da gravação). Às perguntas que se seguem colocadas pela Procuradora da República, seguiram-se as seguintes respostas dadas pela testemunha: - Então relativamente à mãe a menor só se referiu ao dia anterior? (05m50s da gravação) - Não, referiu que já noutras situações a mãe lhe costumava bater (05m56s da gravação). - O discurso da menor pareceu-lhe credível ou a menor já foi apanhada noutras situações? Qual foi a credibilidade que deu ao seu discurso? (06m15s da gravação) - Eu não a apanhei a mentir em situação nenhuma (…) pelo menos que a professora me tivesse comunicado. (…) (06m28s da gravação). - Qual era o estado anímico em que a menor NY se encontrava quando contou essa situação? - Estava transtornada. Ela parecia ser uma menina (…) introvertida, para estar a falar daquelas situações, não é? Não seria… como deve calcular… (07m07s da gravação) - Então foram no próprio dia ao Hospital Fernando Fonseca. E lá o que é que aconteceu? Portanto a menor relatou alguma outra situação, quem é que lá se encontrava…? - Fomos para o gabinete da assistente social (…). Sei que a seguir fomos novamente para um corredor onde era os gabinetes da triagem (…) ela foi chamada para o consultório médico e eu estive presente. E o que a NY nos relatou foram as mesmas situações. - E relatou a quem? - A quem estava presente. Julgo que estavam as duas assistentes sociais, estava uma médica e estou na dúvida se estaria um terceiro médico (…) Entretanto a mãe também chegou. Só não me recordo se quando entrámos no gabinete se a mãe se já acompanhou a NY se não, isso já não tenho presente. (…) sim, entretanto dirigiu-se ao hospital. Não tenho a certeza se ainda antes de a NY ser observada pelo médico. (dos 08m26s aos 10m08s da gravação) - E ouviu os relatos da NY? Portanto a NY voltou a relatar e a mãe estava presente? - Depois sim, depois sim. Dentro do gabinete médico. (dos 10m31s aos 10m47s da gravação) Em resposta à questão do advogado de defesa: Diante da experiência (…) em lidar com menores e com estas situações, é habitual o menor mentir que foi agredido pelos pais, pelos parentes e ocasionar todo este tipo de procedimento? Isto já aconteceu? (11m40s da gravação), a testemunha respondeu: - Para originar este procedimento não. Quando nós desencadeamos este procedimento é porque temos a convicção de que o aluno está a dizer a verdade. (11m57s da gravação) A testemunha ainda acrescentou, aos 12m32s da gravação: - O que eu lhe posso dizer é que após a menor ter saído do gabinete médico, ficou cá fora no corredor comigo enquanto a mãe foi levada pela assistente social. Aí ela voltou a relatar que tinha medo da mãe, tinha medo que quando chegasse a casa a mãe se fechasse com ela no quarto e a obrigasse a dizer que tudo aquilo era mentira. Depoimento prestado pela testemunha SS, professora no Agrupamento de Escolas de Benfica, à data dos factos professora na Escola SMBA (depoimento que se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 07 de março de 2023, cujo início ocorreu pelas 10:42:09 e o seu termo pelas 10:56:22): - Relatou que, em dezembro de 2019, era mediadora no projeto EPIS, ligado à inclusão social, e que, nesse âmbito, colocou algumas questões numa entrevista inicial à NY. - O projeto EPIS faz um primeiro questionário aos alunos cujos Encarregados de Educação deram a autorização. É um questionário que analisa as vertentes do aluno, da escola e também da família. Esta entrevista é feita individualmente (..). E depois houve respostas, em que lhe perguntavam se ela estava bem, ela dizia que não e começou logo a chorar e dizia que não se sentia bem. (minuto 02:20 da gravação) - Ela estava muito triste e percebia-se que estava angustiada. (…) (03m14s da gravação). - Naquele momento, a aluna disse que não queria [falar]. Num segundo momento, noutro dia (…) mas foi pouco tempo [depois], foi próximo (…). (05m00s da gravação) - Depois a aluna, nesse dia, voltou a dizer que estava triste e a chorar e que a mãe lhe tinha batido no dia anterior. A mãe tinha saído e ela tinha ficado com a irmã em casa e com a avó que estava a dormir e quando a mãe chegou a casa, ela estava a dormir porque ela tomou medicação que ela tomava e a irmã estava a mexer numas coisas que ela não queria e que lhe bateu nesse momento. Ela depois também contou que a mãe lhe batia noutras alturas. (a partir dos 05m29s da gravação) - Já não me recordo se foi com uma calçadeira… Ela tinha umas marcas nas costas, queixou-se das costas (…) como ela era escurinha não era muito conclusivo. (…) chamei a Coordenadora da escola para lhe contarmos (…). (minuto 06:09 da gravação) - Parecia ter umas marcas mais escuras, mas como ela também é escurinha, não eram conclusivas. Nas costas e também contou que… nas palmas dos pés. (a partir dos 06m44s da gravação) - A verdade é que a NY estava a fazer um pedido de ajuda, ela não estava bem emocionalmente. Estava num soluçar constante (…) e chorava. (…) Depois nós juntamos as peças e… (07m28s da gravação) - O que me parecia era uma menina que claramente estava a pedir ajuda, não sei se era o caso de maus tratos físicos, mas que estava muito instável e precisava de ajuda. (13m15s da gravação) - À pergunta da Procuradora da República, Então já havia situações de alerta anteriores?, a testemunha respondeu Sim. A aluna também disse que houve uma vez em que a mãe (…) disse que ela tinha de fazer treze cópias e que não conseguiu fazer e foi para a cama sem jantar. (a partir dos 07m53s da gravação) - Trabalhei vários anos numa CPCJ e, portanto, tinha também aqui alguma sensibilidade, acho eu, para perceber alguns sinais. (11m31s da gravação) - Para finalizar o seu depoimento, a testemunha quis, por sua iniciativa, acrescentar: O que gostava de realçar é que de facto (…) ela estava muito frágil, chorava muitas vezes e via-se que não estava bem. E acho que a mãe desvalorizou um bocadinho este mal-estar da menina. (13m39s da gravação) A juntar a esta prova por declarações, temos ainda no processo: Informação do Hospital Fernando Fonseca: Nos documentos clínicos remetidos pelo Hospital Fernando Fonseca, é descrito que se encontravam presentes, no Hospital, durante a entrevista à menor NY, no dia 11-12-2019, a equipa médica, a coordenadora da Escola, MM, e a arguida, mãe da menor. É também referido, nessa informação do Hospital, que a NY relatou os factos enquanto chorava e sempre a olhar para a mãe, ora arguida. Mais se reporta, em nota, que a atitude da arguida perante os relatos da menor foi pautada por muita agressividade para com a equipa médica e pela desvalorização constante de todas as queixas e verbalizações da menor. Relatório clínico de urgência, fls. 64-67: Do relatório clínico de urgência derivado do episódio ocorrido no dia 10-12-2019 (fls. 64-67), consta que a menor NY apresentava dois hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda, dores na zona lombar e três escoriações nos membros inferiores. Ficha Síntese de Acompanhamento de Menor – Declarações para Memória Futura, elaborada pelo GAT (fls. 75-78): Atente-se ainda ao relatório elaborado pelo Gabinete de Assessoria Técnica, onde se constata, relativamente à menor NY, que “Com a utilização de técnicas para verificar se sabe distinguir a verdade da mentira e a realidade da fantasia, foi possível constatar que a mesma não apresenta dificuldades a [esse] nível” (fls. 76 v.). Dá-se igualmente nota, mais adiante, de que a NY distingue sempre aquelas realidades e que apresentou uma narrativa livre e espontânea (fls. 77). A arguida negou os factos. A amiga dela, testemunha EL, nada viu e nada sabe, tendo falado sobre trivialidades e suposições. Como resulta do que acime se deixou, a prova no processo impõe que dela se retirem conclusões opostas àquelas que tirou o Tribunal a quo. Esta prova, assim resumida, não apenas impõe que se considerem provados os factos relativos à ofendida NY como também os relativos ao seu irmão, o ofendido EY e que a decisão do Tribunal a quo considerou não provados. Estes depoimentos, conjugados com os elementos documentais e médicos constantes do processo permitem concluir tal como constava da acusação. E esta conclusão não deixa qualquer margem para dúvidas. Assim, impõe-se considerar provados os factos dali constantes quanto à ofendida NY, e também quanto ao seu irmão EY, porque as declarações da ofendida NY esclarecem esses factos e mostram-se credíveis, tendo sido reforçado o seu pressuposto de veracidade por toda a restante prova produzida, excluindo a arguida [que negou os factos e que ainda tentou imputar as lesões da menor a uma doença de que a mesma padece, conclusão essa que nem os médicos retiram] e uma amiga da mãe [que não tinha conhecimento directo de qualquer facto e se limitou a tecer considerações sobre suposições]. Temos, como tal, verificado o vício consistente num erro de julgamento, por verificação dos pressupostos do art.º 412º do Cód. Proc. Penal, com referência específica ao seu nº 3, al. a). No entanto, e porque o Recorrente assim também invocou, do que antecede resulta evidente que o Tribunal a quo incorreu ainda em erro notório na apreciação da prova (art.º 410º, nº 2, al. c) do mesmo diploma), uma vez que ainda quando nos circunscrevamos ao texto da decisão, da mesma sempre resulta que o Tribunal a quo retirou da prova que ele mesmo pondera, na sua própria fundamentação, a conclusão oposta àquela que a prova ponderada permite e mesmo impõe que, no entanto, aqui fica prejudicado pela verificação anterior do erro de julgamento. Finalmente, importa ter em atenção que a acusação imputa um crime por cada ofendido, sendo certo que relativamente a cada um deles desdobra a imputada actuação da arguida em diversos factos. Sabemos também que, estando nós perante bens jurídicos de natureza pessoal, a cada facto violador da norma de protecção corresponde um crime. Só assim não acontecendo se o Tribunal concluir que apenas consegue, no contexto da actuação do agente, como no caso, concretizar uma factualidade concretizada e criminalmente relevante. Tendo isto em consideração, impunha-se também ao Tribunal a quo que desse disso uma explicação na fundamentação, para que fosse perceptível a razão pela qual reconduziu toda a factualidade a um episódio concreto e que, ainda assim, considerou não ter ficado esclarecido para além da dúvida razoável. Resumindo. O Tribunal de primeira instância pode valorar a prova com a liberdade que impõe o art.º 127º do Cód. Proc. Penal quando em causa esteja prova livremente apreciável. O Tribunal de primeira instância pode, mesmo em face da prova existente, considerar que a mesma não chega para estabelecer uma convicção para além da dúvida que, inultrapassada, se revele razoável. O Tribunal de primeira instância pode, no uso dessa liberdade de apreciação, valorar uma determinada prova em detrimento de outra. O que o Tribunal não pode, nem o de primeira instância e nem o de recurso, é deixar de fundamentar de forma consistente as suas opções, precisamente porque dessa fundamentação decorre o processo lógico de raciocínio que o levou a determinada decisão. O Tribunal de primeira instância deve, deparando-se-lhe uma qualquer dúvida, socorrer-se dos mecanismos que tem ao seu dispor [desde logo, através do art.º 340º do referido diploma] para tentar ultrapassar a mesma, e apenas quando não o consiga é que deve optar pela aplicação do princípio in dubio pro reo. Este princípio não pode servir para aligeirar as obrigações do julgador. Pelo contrário, exige-lhe ainda um maior esforço de averiguação. A situação trazida a recurso neste processo prefigura-se como uma insuficiente apreciação da prova possível e disponível – art.º 412º, nº 3 do mesmo diploma -, pois que o Tribunal a quo não valorou correctamente a prova que estava disponível e nem ordenou, caso entendesse necessário, meios complementares de prova. Para além de se prefigurar um erro notório na apreciação da prova – art.º 410º, nº 2, al. c) do Cód. Proc. Penal -, pois que da própria decisão resulta ter sido erradamente apreciada a prova mencionada. Nos termos do art.º 431º als. a) e b) do Cód. Proc. Penal, em face da procedência da impugnação ampla e porque se verifica também erro notório na apreciação da prova, sendo certo que o processo contém todos os elementos de informação necessários à decisão, no que concerne também ao seu enquadramento jurídico penal procede-se à fixação da matéria provada do seguinte modo: 1. A arguida é mãe de três filhos menores: a. NY, nascida a 25 de Setembro de 2009. b. EY, nascido a 16 de Agosto de 2011; e c. NTY, de 2 anos de idade. 2. No dia 17 de Dezembro de 2017, a arguida veio residir para Portugal com os seus três filhos, para que a sua filha NY efectuasse tratamentos médicos. 3. Desde essa data, a arguida passou a residir com os menores na residência sita na Rua …, nº 2, 3º esq., na Amadora. 4. A arguida não tem antecedentes criminais. 6. Desde Dezembro de 2017 até Dezembro de 2019 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência quase diária, na residência familiar, a arguida zangou-se com a sua filha NY e bateu-lhe com uma calçadeira e com uma colher de pau, desferindo pancadas por todo o corpo. 7. Também desde Dezembro de 2017 até Dezembro de 2019 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência semanal, na residência familiar, a arguida zangou-se com o seu filho EY e bateu-lhe com uma calçadeira e com uma colher de pau, desferindo pancadas por todo o corpo. 8. No dia 10 de Dezembro de 2019, ao final do dia, na residência de família, quando a menor NY estava deitada a dormir, a arguida chegou a casa e apercebeu-se que o quarto estava desarrumado. 9. De imediato, a arguida foi buscar uma calçadeira e desferiu com a calçadeira duas pancadas nas nádegas da sua filha NY, de 8 anos de idade. 10. Depois da segunda pancada, a menor levantou-se da cama para evitar que a mãe lhe continuasse a bater. 11. Em seguida, a arguida castigou a menor NY e exigiu que ela fizesse cinco cópias de um texto da escola. 12. Cerca das 03h00 da madrugada, a menor NY já estava com muito sono, mas a arguida não permitiu que ela fosse dormir enquanto não acabasse as cópias. 13. Como consequência dessa situação, a menor NY ficou com dores na perna e na região dorsal, dois hematomas sobre a crista ilíaca posterior esquerda e três escoriações lineares nas pernas. 14. Com a prática das condutas descritas, a arguida, de modo direto e necessário, fez com a NY e o EY se sentissem tristes, ansiosos e receosos pelas atitudes que a arguida pudessem tomar em relação a si, nomeadamente que lhes batesse ou castigasse. 15. Ao agir do modo descrito, a arguida sabia que, de um modo persistente, molestavam física e psiquicamente, e amedrontava os seus filhos NY e EY, atuando sempre de molde a atingir a dignidade humana e a saúde física e psíquica deles, como pretendia e conseguiu. 16. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento. Quanto ao enquadramento jurídico dos factos: Tem-se em atenção que vêm imputados à arguida, em concurso real, dois crimes de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. d), nº 2, al. a), e nºs 4 e 5, do Código Penal. Após a entrada em vigor da lei 59/2007 de 04.09 que procedeu às alterações ao CP, não se pode exigir, para o preenchimento do tipo de crime de violência doméstica, os requisitos que antes se previam para o crime de maus tratos, não sendo necessário verificar-se a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança. O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado, ou não, inflija maus tratos físicos ou psíquicos (art.º 152º, nº 1, al. a) do Cód. Penal) no âmbito de um relacionamento filial/conjugal ou análogo e que, por força das lesões verificadas, se entenda aqueles como agressão no corpo e saúde da vítima e que a tenha ofendido na sua dignidade como pessoa. Em lado algum se exige, no tipo legal vigente, que só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito. Mas a agressão terá de consistir numa ofensa à integridade física/emocional. O que se percebe, por um lado porque esta engloba a chamada ofensa no corpo ou saúde de outrem – agressão física ou verbal – e, por outro lado, porque apenas deve o direito penal tutelar as situações em que a violação de bens jurídicos seja de tal modo intensa que justifique a sua intervenção. Neste sentido, vão os acórdãos do TRL: Rec. 3827/2002: "(...) Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos [a cônjuge], o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal" (sublinhado nosso); Rec. 256/05.2GCAVR.C1: "(...) III- Tal crime basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade pessoal e de um apoucamento da dignidade que a um qualquer ser humano é devida“[8]. O tipo objetivo de ilícito preenche-se, pois, com a acção de infligir maus tratos físicos, que se traduzem em ofensas à integridade física/emocional, seja ela no corpo ou na saúde em geral da vítima. Após a vigência da redacção dada pela Lei nº 59/2007 é legitimo sustentar que foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica. No caso concreto, houve, por diversas vezes, agressão através de actos [que também são de conteúdo psicológico e emocional] praticados sobre a saúde dos ofendidos, e mesmo agressões físicas, tudo se inscrevendo nesse contexto. Essas agressões, cada uma delas, provocaram nos ofendidos lesões (físicas e emocionais e/ou apenas emocionais) para as quais, no entanto, nem sempre foi procurada ajuda médica [a ajuda procurada foi na sequência da intervenção da escola, que levou a menor NY ao hospital]. Impõe-se dar-se por assente que a arguida praticou os factos provados num contexto de vida em comum com os menores de quem é mãe, e na habitação deles também. Tendo a arguida agido com intenção de causar dores e lesões e intimidar os ofendidos filhos nas referidas circunstâncias. Não se tratou de actos incidentais ou insignificantes. Porque esta factualidade (provada) consubstancia a colocação dos ofendidos numa situação em que se devem considerar de vítimas de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade pessoais, que deve ser considerada enquanto inserida numa realidade familiar que deve ser absolutamente respeitosa e afectuosa, está verificada a acção de violência que integra esta tipicidade. Estas considerações valem, em dobro, para o caso das agressões físicas que se aceitam genericamente, e especialmente no âmbito constitucional e criminal, como absolutamente intoleráveis e de repúdio inequívoco. Com estas actuações, por seu lado, a arguida pretendeu exercer um controlo e domínio sobre as vítimas, seus filhos, crianças menores de idade, atingindo-a na sua dignidade, saúde e bem-estar físico e emocional. A ser assim, como é, então há a concluir que os factos provados são demonstrativos e preenchem os elementos típicos do crime em causa, atenta a forma como se provam, um crime por cada um dos menores ofendidos. Os actos praticados, consubstanciados nos comportamentos que acima se deram como provados, são reveladores de tratamento insensível ou degradante da condição humana dos ofendidos EY e NY e de uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal dos mesmos por parte da arguida. Como também se refere no acórdão TRL de 12-05-2010[9], o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, (…). Assim, consideramos bem qualificados os factos ao ser imputada à arguida a prática de actos ilícitos que se inscrevem no contexto do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, als. d) e nº 2, al. a) e n.ºs 4 e 5, todos do Cód. Penal. Nestas circunstâncias, impõe-se concluir que a arguida praticou os dois crimes por que vinha acusada, devendo ser por eles condenada. Porque a decisão recorrida não contém quaisquer factos sobre a pessoa da arguida, para além dos que se prendem com a acção ilícita e culposa, com a natureza do crime e com os que decorrem do seu certificado de registo criminal, designadamente nela se não referindo os factos sobre as suas condições de vida, sociais, económicas que permitam escolher e determinar as penas parcelares e a pena única, em conformidade como os critérios impostos pelo art.º 71º e pelo art.º 77º do Cód. Penal, nem do processo constam elementos de informação disponíveis que permitam a este Tribunal suprir tal lacuna, do mesmo modo que também não se encontra demonstrada a impossibilidade de obtenção dessas informações, verifica-se o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão previsto no art.º 410º, nº 2, al. a) do Cód. Proc. Penal que impõe o reenvio parcial do processo para novo julgamento, nos termos dos arts. 426º e 426º- A do mesmo diploma, limitado, no entanto, à indagação dos factos pessoais da arguida, referentes às suas condições sociais e económicas que permitam a fixação das penas parcelares e única[10]. Impõe-se, como tal, ordenar a baixa do processo à primeira instância, atenta a matéria de facto que aqui se fixou e com a fundamentação que antecedeu, para determinar as penas parcelares e única a aplicar à arguida, bem como a forma de cumprimento da mesma, devendo ainda ser fixada a indemnização a favor das vítimas [art.º 21º, nº 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16/09 e art.º 82º-A do Cód. Proc. Penal], desde logo ordenado para esse efeito a elaboração de relatório social às condições pessoais da mesma ou/e os meios que, mostrando-se necessários, entenda ordenar com vista àquela determinação, nos termos do disposto pelo art.º 340 do Cód. Proc. Penal. Concluindo-se, pelo exposto, ser procedente o recurso do Ministério Público. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade com isso, decide: - Anular a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que, considerando provados todos os factos que agora foram fixados no presente acórdão nos pontos 1 a 16, condene a arguida CY como autora material, em concurso real, de dois crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, al. d), nº 2, al. a) e nºs 4 e 5 do Cód. Penal. - Determinar ainda o reenvio parcial para novo julgamento, restrito às questões da determinação das penas parcelares, da pena única e da compensação por danos não patrimoniais [art.º 21º, nº 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16.09 e art.º 82º-A do Cód. Proc. Penal]. Sem Custas. Lisboa, 08 de Novembro de 2023 Texto processado e revisto. Redacção sem adesão ao AO Sandra Hermengarda Valle-Frias Ana Guerreiro da Silva Cistina Almeida e Sousa _______________________________________________________ [1] Cfr. Ac. TRC de 11.03.2009 e, ainda, os Acórdãos do STJ de 14.03.2007 [Processo 07P21] e de 23.05.2007 [Processo 07P1498], disponíveis em www. dgsi.pt. [2] Ac. TRC de 08.02.2012, idem. [3] Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, 2.º Vol., p. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 4-10-2001 - CJASTJ, ano IX, 3º, p.182. [4] Veja-se também: Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., p. 341. [5] Entre todos, por exemplo, Ac. STJ de 02.04.2008 relatado pelo Conselheiro Raúl Borges – disponível em www.dgsi.pt\stj [6] Idem. [7] Os sublinhados e destaques a negro são nossos. [8] Disponíveis em www.dgsi.pt\trl.. [9] Disponível em www.dgsi.pt\trl.. [10] Cfr. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal - Notas e Comentários, 2ª Edição, Coimbra Ed., p. 1086 e Acs. TRG de 04.06.2018 [processo 2196/13.2TAGMR.G1]; TRE de 21.12.2017 [processo 101/12.2PATNV.E1] e de 07.05.2019 [processo 112/14.3TAVNO.E1] da TRC de 12.06.2019 [processo 1/19.5GDCBR.C1], todos disponíveis em http://www.dgsi.pt). |