Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15096/20.0T8PRT.L1-6
Relator: VERA ANTUNES
Descritores: ADMISSÃO DE DOCUMENTOS EM RECURSO
MÚTUO PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DO IUC
INDEMNIZAÇÃO POR PERDA TOTAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Para além dos pressupostos para a junção de documentos em sede de recurso, a qual reveste um carácter excepcional, há que considerar ainda a admissibilidade dos documentos em causa nos termos do artigo 423º, n.º 1 do Código de Processo Civil; concluindo-se que o documento não se destina a fazer prova dos fundamentos da acção, pelo que não se verifica qualquer utilidade na sua junção aos autos nesta fase, o mesmo não deve ser admitido.
II - No caso, a actividade prosseguida pelo R. não é a da compra e venda de veículos, mas a de financiamento bancário; no âmbito desta concedeu um mútuo destinado à aquisição pelo A. do veículo em causa; por incumprimento por parte do A., o R. resolveu o contrato; este contrato é o contrato de mútuo e não o de compra e venda.
III - Desta forma, a resolução do contrato de mútuo não pode afastar, como pretende o A., a aquisição da propriedade do veículo por parte deste; tal resulta da presunção decorrente do registo, que se mantém; mantendo-se a garantia até que o R. visse satisfeito o seu crédito (ou, no caso, esgotadas todas as possibilidades para tanto, dada a insolvência do A.).
IV – Compete ao proprietário do veículo a responsabilidade pelo pagamento do IUC e diligenciar pelo abate da matrícula.
V - Sendo reprovável a atitude do A. (que incumpriu o contrato de mútuo celebrado com o R. e que mesmo após o recebimento de indemnização pela Seguradora não solveu a sua responsabilidade – antes terá dado outro destino à indemnização recebida e posteriormente veio mesmo a ser declarada a sua insolvência) sucede que o facto de ter omitido o recebimento de tal indemnização, para efeitos do que se discutia nos presentes autos, não é relevante para a decisão da presente causa, em que estavam peticionadas outras quantias e o que se discute é a cláusula de reserva de propriedade e a quem competia, após a resolução do contrato de mútuo e o acidente em que foi considerada a perda total do veículo, pedir o cancelamento da matrícula, pelo que não está preenchido o requisito previsto pelo art.º 542º, n.º 2, b) do Código de Processo Civil, pelo que não há lugar à condenação do A. como litigante de má fé.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
P... intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “B...SA”, pedindo a final a condenação do Réu:
a. A pagar ao Autor, a quantia €3.787,03, referentes ao IUC, respectivas coimas e taxas, devidos pelos anos de 2012 a 2019.
b. A pagar ao Autor, a quantia de €4.950,00, devidos pelo aparcamento da viatura, desde Julho de 2012 até Setembro de 2020.
c. A pagar ao A. a quantia mensal de €50,00, devida pelo aparcamento do veículo, e que se continuar a vencer desde Outubro de 2020 e até ao momento em que proceda à rebocagem da mesma.
d. No pagamento do IUC – Imposto Único de Circulação, respectivas coimas, taxas e demais encargos, com referência ao veículo em crise nos presentes autos, que sejam liquidados ao A., com referência aos anos de 2019 e até ao momento em que a Ré proceda à inscrição do veículo no seu património, valores a serem calculados em execução de sentença.
e. A proceder ao registo no seu património do veículo de marca Audi, modelo A4 2.0TDI, com a matrícula ....
f. Ser arbitrada cláusula penal de €500,00 por mês ou fracção, em que a Ré omita a obrigação de registrar o veículo no seu património.
Para o efeito alegou, em resumo, ter celebrado com o R. um contrato de mútuo destinado a adquirir um veículo automóvel ligeiro de passageiros, a 2 de Junho de 2011, no montante de €28.582,24.
O Autor adquiriu o veículo de marca Audi, modelo A4 2.0 TDI., matrícula …, tendo o R. constituído, sobre o mesmo, reserva de propriedade. Mais convencionaram que a quantia mutuada, respectivos juros e demais encargos contratualmente estabelecidos, haveriam de ser pagos em 48 prestações mensais e sucessivas de €686,64 cada.
Em 29 de Maio de 2012, o veículo adquirido pelo A. sofreu um acidente, participado pelo A. à Companhia de Seguros Tranquilidade, SA.
Tendo-se verificado que o custo estimado para a reparação ascendia a €56.506,59, montante considerado excessivamente oneroso face ao valor de mercado do veículo, pelo que entendeu a companhia de seguros estar na presença de uma situação enquadrável no regime da perda total.
Após o acidente a viatura tinha sido rebocada para a oficina concessionária da marca sita na zona Industrial da Varziela, em Vila do Conde.
Após avaliação da seguradora o veículo foi rebocado para uma oficina, em ordem a ser guardado, a qual cobrava €50,00 mensais.
Algum tempo após o início da execução do contrato, o A., por dificuldades financeiras, começou a incumprir o contrato celebrado com o R., atrasando-se no pagamento das prestações que mensalmente se iam vencendo. Até que, por carta datada de 21/11/2012, o R. resolveu o contrato. À data da resolução, o capital que se achava em divida ascendia a €25.005,73.
Após a ocorrência do sinistro e a constatação da perda total do veículo, por inviabilidade de reparação, o R. foi informado de tal factualidade e o A. solicitou para que o R. diligenciasse pela recolha do veiculo do local onde se encontrava aparcado e procedesse junto do IMTT - Instituto da Mobilidade dos Transportes Terrestres, ao abate de matrícula.
O A. continuou no entanto a pagar a quantia de €50,00 pelo aparcamento do veiculo, e a ser onerado com o pagamento do IUC, bem como as prestações devidas pelo mútuo.
Pese embora as várias missivas do Autor a solicitar as diligências referidas, o R. entendeu que, uma vez que o crédito existente ainda é exigível e, como tal a manutenção por parte do Banco de tal garantia é perfeitamente legitima, não podendo dai resultar as responsabilidades assacadas pelo Autor.
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Citado, o R. impugnou os factos e peticionou a condenação do A. como litigante de má fé.
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Cumprido o contraditório, foi realizada a audiência prévia, foi posteriormente elaborado despacho saneador, no qual foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova, do que o Autor reclamou; decidida a reclamação, procedeu-se à realização da audiência de julgamento, e, a final, foi proferida Sentença onde se decidiu:
a. Absolver o R. “B...SA” dos pedidos formulados pelo Autor;
b. Condenar o Autor P... como litigante de má fé na multa de 3 (três) UCs.
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Dessa Sentença recorre o A., formulando as seguintes Conclusões:
“I – O A. peticionou a condenação da Ré, no pagamento de determinadas quantias, provenientes da liquidação de IUC pela AT, e de parqueamento de viatura.
II – Para tanto alegou a factualidade considerada relevante, em ordem a demonstrar a responsabilidade da Ré.
III – O A. havia adquirido uma viatura, no ano de 2012, com recurso e financiamento concedido pela Ré, com constituição de reserva de propriedade.
IV – A viatura sofreu acidente de viação que a destruiu.
V – Em virtude do incumprimento do A., no pagamento das prestações mensais, a Ré resolveu o contrato, por carta datada de 21/11/2012.
VI – A partir deste momento temporal, todo e qualquer acto a levar a cabo sobre a viatura, cabia em exclusivo à Ré.
VII – Atento o facto da viatura não poder circular, nem ser viável a sua reparação, o A. pretendeu abater a matricula, e assim terminar com o lançamento de IUC`s que eram anualmente liquidados.
VIII – Tal legitimidade para requer o cancelamento, recai em exclusivo sobre a Ré.
IX – A Ré foi informada de tal circunstancialismo e, apesar de aceitar emitir documento que permitisse o abate, não o fez.
X – A Ré só emitiu o documento que confere a possibilidade ao A. de abater o veículo, em 27 de Abril de 2023, e em momento, posterior à prolação da sentença em crise.
XI – A Ré, reiteradamente, inviabilizou o cancelamento da matrícula, agravando os prejuízos do A., que viu serem lançados, anualmente, IUC`s com referência ao veículo que estava sinistrado e que não podia circular.
XII – o Tribunal “a quo” ao ter dado como provado que o negócio celebrado, entre A. e Ré, foi resolvido, desde 2012, tinha que proferir sentença a condenar a Ré no pedido.
XIII – Em sede de fundamentação, o Tribunal “a quo” defende que o beneficiário da reserva pode exercer a restituição do bem, desde que resolva o contrato, o que sucedeu.
XIV – Assim, ocorre contradição entre fundamentação e decisão, consubstanciador de nulidade, o que se invoca.
XV – O A. peticionou, ainda, a condenação da Ré no pagamento de €50,00 mensais, devidos ao parqueamento da viatura da Ré, cujo contrato resolveu.
XVI – O A. foi declarado insolvente, tendo o Administrador Judicial comunicado à Ré que não pretendia cumprir o negócio, e solicitando a esta Ré o levantamento da viatura das instalações onde estava aparcada.
XVII – A Ré não procedeu ao levantamento da viatura e sua inércia causou um prejuízo mensal ao A. de €50,00.
XVIII – Estando provado que a Ré não procedeu ao levantamento da viatura porque não quis, apresar de se tratar de um bem cujo contrato estava resolvido a favor da Ré, impunha-se a sua condenação.
XIX – Devia, pois, a sentença recorrida ter condenado a Ré no petitório.
XX- Violados pois, por erro de interpretação e de aplicação o vertido nos art.ºs 615, n.º 1, al. b) do CPC, artigo 5º, nº 1, alínea b), e, artigo 29 do Decreto-Lei n.º 5475, e art.ºs 10 e 13 do Código do Registo predial.
XXI – O Tribunal “a quo” condenou o A., como litigante de má fé, por entender, MAL, que este não carreou para os autos toda a matéria que na sua óptica deveria ter efectuado, nomeadamente, o recebimento de determinada quantia, paga pela companhia de seguros, em virtude do acidente de viação que destruiu o veículo financiado pela Ré.
XXII – Tal recebimento nenhuma influência produzia na presente acção, sendo matéria verdadeiramente inócua.
XXIII – Acresce que, o A. nunca escondeu as vicissitudes que ocorreram com o veículo, tanto mais que ao demandar a Ré, esta era sabedora de tudo.
XXIV – O A., para receber a indemnização da seguradora, teve que demandar judicialmente a companhia de seguros, tendo o próprio A., deduzido incidente de intervenção principal provocada que o Tribunal indeferiu.
XXV – Posteriormente, a Ré foi reclamar créditos na insolvência do A., sendo sabedora de todo o circunstancialismo que envolveu o recebimento e destino do valor.
XXVI – Como pode o Tribunal chegar a uma qualquer conclusão que não foi transmitida toda a informação, ou que a Ré não obteve informação tempestiva?
XXVII - Assim, a sustentação de teses controvertidas, bem como a interpretação de regras de direito, pode consubstanciar uma lide temerária ou ousada, mas não integra a litigância de má-fé, pois que tal não basta para que se presuma uma actuação dolosa ou com culpa grave;
XXVIII - O Recorrente limitou-se a alegar factos que ocorreram e que se demonstravam relevantes.
XXIX - O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamorosa, chocante ou grosseiro dos meios processuais, por tal forma que se sinta que, com a mesma conduta, se ofendeu ou pôs em causa a imagem da justiça.
XXX - A má-fé pressupõe, além do mais, a intenção de alterar a verdade dos factos e não a mera circunstância de a parte não ter provado os factos que alegou – vide Acórdão da Relação de Lisboa de 29/06/2006.
XXXI - Não é por o Tribunal não considerar os factos alegados pelo Recorrente como não provados, que estes não sejam verdadeiros.
XXXII - Não significando também, que o Recorrente agiu com dolo ou negligência grave, violando assim o princípio da cooperação.
XXXIII - Ainda que, por mero exercício de raciocínio académico, se admita que se possa considerar que se está diante de uma lide imprudente, em que se excedeu os limites da prudência normal, mas sem que se vislumbre uma actuação com culpa grave, consentânea com a lide temerária, enquanto violadora dos deveres de verdade e de cooperação.
XXXIV - Face ao exposto, dúvidas não existem de que não se pode considerar a conduta do Recorrente censurável de acordo com os parâmetros da litigância de má fé como se demonstrou.
XXXV - Portanto, não pode haver a sua condenação como tal.
XXXVI - Violados, pois, por erro de interpretação e de aplicação, o previsto nos artigos 542º, 266º, todos do CPC, e artigo 20º da CRP.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, proferido Douto Acórdão que julgue a acção procedente, por provada, condenando a Ré no petitório, e, consequentemente, pela inexistência de litigância de má-fé do Recorrente.”
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O Recorrente junta ainda um documento com as suas alegações, uma carta registada com A/R enviada pela R., com data de 27/4/2023, remetendo modelo de registo automóvel para extinção de reserva de propriedade, referindo o Recorrente nas suas alegações:
“31. Veja-se que, a Ré, após a prolacção da sentença em crise, por carta datada de 27/04/2023, dirigiu comunicação ao mandatário do A., remetendo modelo de registo automóvel para extinção de reserva de propriedade, quando já havia resolvido o contrato em 2012, conforme se alcança do documento que ora se junta ao abrigo do disposto no art.º 425 do CPC.
32. Ou seja, a Ré podia ter emitido o documento, desde o momento em que lhe foi solicitado, e não o fez.
33. Mas agora, admitiu fazê-lo quando o contrato se encontra resolvido, desde 2012...”
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Contra-alegou o R., Concluindo como se segue:
“I. Por sentença datada de 17 de abril de 2023, foi a ação instaurada pelo Autor julgada parcialmente procedente e em consequência, absolver a Ré B...SA dos pedidos formulados pelo Autor e condenar o Autor P... como Litigante de má-fé na multa de 3 (três) UCs.
II. Inconformado com a decisão proferida, o Autor P... apresentou recurso da mesma, apresentando as respetivas conclusões.
III. A douta sentença deve ser mantida a qual, quer na sua fundamentação, quer na sua decisão, é escorreita, aplicando criteriosamente o direito, fazendo assim a correta subsunção dos factos ao mesmo.
IV. É, pois, uma sentença justa e clara, sendo inconcebível que se refira que a mesma é desacertada e provida de contrariedades.
V. Pois que, da correta análise da mesma, dúvidas não podem restar de que a mesma especificou os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão proferida, pronunciando-se acerca das várias questões controvertidas aplicando corretamente as leis ao caso em concreto.
VI. Sendo assim totalmente desprovida de fundamento e de razoabilidade a conclusão formulada pelo Recorrente quando afirma a decisão ora recorrida padece de nulidade e violadora dos art.º 615º nº1 CPC, art.º 5º nº 1 b), art.º 29º do DL 54/75 e art.ºs 10º e 13º do Código de Registo Predial.
VII. Aliás, só enviesando e deturpando o raciocínio, se permite a construção de um silogismo, de modo a chegar à conclusão pretendida pelo Recorrente.
VIII. Pois que, o presente recurso é apenas mais uma utilização maliciosa e abusiva do processo, de modo a protelar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão.
IX. Primeiramente, entende a aqui Recorrida que o Recorrente não pode proceder à junção de documento na fase de recurso, por aplicação dos artigos 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º, dos quais resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excecional, depende da alegação e da prova pelo interessado do seguinte:(1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
X. Nessa senda, não deverá ser considerado o documento junto pelo Recorrente no recurso apresentado, bem como desconsiderado qualquer efeito que o mesmo pretendia retirar com a aludida junção, não entendendo a recorrida o alcance da junção de tal documento no presente momento processual.
XI. Ora, considerando os factos provados e não provados escorreitos supra não consegue a Recorrida entender o alcance da conclusão retirada pelo Recorrente quando refere que a aludida sentença padece de nulidade.
XII. Porquanto, tendo o Tribunal a quo subsumido os factos provados e aqui elencados, às concretas normas de direito não poderia ter chegado a outra decisão que não aquela que foi efetivamente proferida e absolvendo a Ré B...SA dos pedidos formulados pelo Autor e ainda condenar o Autor P... como litigante de má-fé,
XIII. Posição abusiva em que persiste.
XIV. São assim destituídas de qualquer fundamentação as pretensas razões do Recorrente, que continua a fazer um uso abusivo das suas ideologias, numa tentativa de subverter e trapacear os institutos legais como o da propriedade, da insolvência, da exoneração do passivo restante e sobretudo o da reserva de propriedade.
XV. Ora, dúvidas não podem subsistir, até porque tal factualidade ficara assente por acordo, foi celebrado um contrato entre as partes que pressupôs a constituição de uma reserva de propriedade sobre a viatura financiada.
XVI. Sendo que, a obrigação assumida pelo Recorrente não foi cabalmente cumprida.
XVII. Todavia, o Recorrente parece apenas usufruir das vantagens inerentes à titularidade da viatura em apreço, como sendo, uso, fruição e disposição da viatura, eximindo-se assim das obrigações, essas, pretende imputá-las unicamente à Recorrida.
XVIII. Ora, considerando a versão do Recorrente de que a Recorrida é sim a proprietária plena da viatura em crise, muito se estranha que não tenha defendido tal posição aquando do recebimento da indemnização paga pela seguradora.
XIX. Verdade é que, como bem salienta a douta sentença, o Autor não logrou comunicar à Ré a destruição do veículo aquando do acidente, tendo-o apenas feito quando lhe interessou.
XX. Ademais reitera-se como bem referido na douta sentença recorrida, sendo o Recorrente o único proprietário do veículo, é igualmente a este que incumbe a responsabilidade de cumprimento das obrigações civis e fiscais como sendo o Imposto Único de Circulação, pois que, saliente-se que é a este que a Autoridade Tributária pretende cobrar tal obrigação e não ao reservante.
XXI. A este propósito chama-se à colação o disposto no art.º 3º nº1 do Código de Imposto único de Circulação, onde estabelece que são sujeitos passivos do imposto são os proprietários dos veículos, considerando-se como tais, as pessoas singulares e coletivas de direito público ou privado em nome das quais os mesmos se encontrem registados, presumindo-se que o titular do registo automóvel é o seu proprietário.
XXII. Por fim, quanto a esta temática, muito se estranha que o Autor, confrontado com dividas fiscais, cujas consequências são deveras nefastas, não tenha utilizado a indemnização de 35.000,00€, para liquidar as responsabilidades inerentes à viatura em causa.
XXIII. No que concerne ao abate da viatura e valores de parqueamento, obrigações que o Recorrente tenta mais uma vez imputar à Recorrida, cumpre salientar o seguinte:
• É o próprio recorrente que afirma que a viatura sofreu um acidente de viação, tendo, em virtude do posicionamento por parte da seguradora, OPTADO POR NÃO REPARAR A VIATURA.
• “porque o veículo não ia ser objeto de reparação, o concessionário exigiu a retirada da viatura sob pena de cobrança diária de 10,00€.” – versão do Autor na petição inicial
• “o que motivou uma nova rebocagem, agora para uma outra oficina mecânica de “AP Lda e que gira comercialmente sobre a designação de Eurcar, (…) que cobrava apenas 50,00 € mensais”
XXIV. Ora, as referidas decisões, foram totalmente praticadas pelo Autor, sem qualquer intervenção ou conhecimento por parte da Ré, nem poderiam ter, pois que, o Autor é quem figura como proprietário da viatura em crise.
XXV. Caso contrário, teria sido requerido o consentimento da Ré para as várias desmobilizações do veículo e inclusivamente para celebrar os alegados contratos que originaram os custos de parqueamento que o Recorrente tenta agora imputar à Ré.
XXVI. Nessa medida, cumpre salientar que é bastante parca a prova que o Autor faz dos factos por si aventados.
XXVII. Por outro lado, e como bem decidido, o autor não logrou provar, conforme lhe competia, que terá tentado proceder ao eventual cancelamento da matrícula.
XXVIII. Posto isto e considerando o estado da viatura, bem decidiu o tribunal a quo quando chamou à colação o disposto no art.º 119º nº1 alínea b), que refere que a matrícula de um veículo deve ser cancelada quando o veículo fique inutilizado. Acrescenta ainda o nº2 que compete ao proprietário a apresentação de requerimento para efeitos de cancelamento da matrícula.
XXIX. Por outro lado, salienta ainda a aplicação do art.º 41º nº 5 da lei de seguro automóvel, o art.º 119º do Código da Estrada, art.º 3º do Decreto-Lei nº78/2008 e o art.º 149º do CIRE.
XXX. Ora, perfilha-se na integra da fundamentação legal produzida pela douta sentença.
XXXI. Nessa senda, o prejuízo reclamado pelo Recorrente não advém de atitudes de terceiros, muito menos da Recorrida, resultando diretamente da conduta do Recorrente, uma vez que são obrigações imputáveis ao proprietário e não ao reservante.
XXXII. Ademais, não poderemos olvidar que o Recorrente não alegou provar o motivo pelo qual apenas se limitou a entrar em contacto com a Recorrida em 2018!
XXXIII. Em face do exposto, muito se estranha que, o homem médio, perante as circunstâncias verificadas nos autos, não tenha logrado honrar as dividas associadas com a viatura em crise com a indemnização recebida pela perda total da viatura.
XXXIV. Foi por isso negligente, mantendo-se unicamente na inércia e incrementando os valores aqui em causa, apenas porque criou a falsa e completamente infundada teoria de que apenas se constituiu como titular da viatura para que pudesse usar, fruir e receber a choruda indemnização, eximindo-se das obrigações que bem sabe serem suas e que conscientemente assumiu, como sendo o financiamento da viatura e as despesas que agora se arroga como credor.
XXXV. No que à atuação da Ré respeita, resulta do acervo fáctico dos autos, sempre agiu no estrito cumprimento da lei, não se furtando às suas responsabilidades, como faz crer o Recorrente na sua fábula.
XXXVI. Pois que, reitera-se como na contestação, o Autor não só deduziu pretensão cuja falta e fundamento não ignorava, como também omitiu conscientemente, a verdade de factos essenciais.
XXXVII. Assim, dúvidas não podem restar de que o Autor fez dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, entorpecendo a ação da justiça, designadamente com uma dupla retribuição pelas despesas associadas ao sinistro decorrido.
A Recorrida vem por isso pugnar pela manutenção da douta sentença de 1ª instância, a qual, quer na sua fundamentação, quer na sua decisão, aplica criteriosamente o direito, fazendo uma correta subsunção dos factos ao mesmo, e faz, por isso, a mais sã e diáfana Justiça.”
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Da Junção de documentos.
Com as suas alegações o Recorrente vem requerer a junção aos autos de uma carta enviada pelo R. e datada de 27/4/2023, ou seja, após a prolacção da Sentença nos autos, anexando o modelo de registo automóvel para extinção de reserva de propriedade.
Pretende o A. que tal demonstra que “… a Ré podia ter emitido o documento, desde o momento em que lhe foi solicitado, e não o fez.… Mas agora, admitiu fazê-lo quando o contrato se encontra resolvido, desde 2012...”
Estipula o artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que:
“1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
2 - As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.”
Sendo que o art.º 425º do Código de Processo Civil refere que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Decorre das normas que se acabaram de citar que a junção de documentos em sede de recurso reveste um carácter excepcional, dependendo da verificação de um de dois pressupostos:
a) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; ou
b) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
Relativamente à impossibilidade de junção do documento, aquela que o recorrente sustenta a sua pretensão, esta pode ser objectiva ou subjectiva.
A impossibilidade objectiva afere-se no confronto entre a data de produção do documento e a data do encerramento da discussão, sendo que se deve entender que esta se reporta à conclusão do julgamento.
Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado. Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação pela parte de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.
No caso dos autos, resulta a superveniência objectiva do documento em causa.
Aqui chegados, porém, resulta que a questão que se coloca no caso dos autos é prévia a estas considerações; de facto, a questão é a de uma verdadeira admissibilidade dos documentos em causa nos termos do artigo 423º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Dispõe o art.º 423º do Código de Processo Civil:
“1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”
Ora, o que estava aqui em causa era, sumariamente, a alegação pelo A. que competia ao R. diligenciar pelo cancelamento do registo da propriedade do veículo e que este não o fez oportunamente, apesar de solicitado para tanto, o que causou prejuízos ao A.
Nada disso prova o documento em causa; antes coincide com o alegado pelo R. em sede de contestação: não lhe competia diligenciar pelo cancelamento do registo de propriedade e tão somente facultar o cancelamento do registo da reserva de propriedade.
Quanto ao demais alegado – solicitação do A. e demora do R., igualmente nada disso resulta do documento agora em causa.
Assim conclui-se que o documento não se destina a fazer prova dos fundamentos da acção; não se verifica desta forma qualquer utilidade na sua junção aos autos nesta fase, pelo que não se admite o mesmo.
Com o desentranhamento ou eliminação electrónica dos documentos deverá ainda o Recorrente ser condenado nas custas do incidente a que deu azo com tal conduta processual.
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III. Questões a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso e porquanto os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que no caso concreto cumpre apreciar:
- Da nulidade da Sentença nos termos do art.º 615º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil;
- Se estando o contrato resolvido a favor do Ré, se impunha a sua condenação no pedido;
- Da inexistência de fundamentos para a condenação do recorrente como litigante de má fé.
***
III. Fundamentação de Facto:
São os seguintes os factos considerados provados na 1ª Instância:
A. Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. A 2 de Junho de 2011, o Autor e a Ré celebraram um acordo que denominaram de “contrato de mútuo 2651593”, mediante o qual, a Ré entregou ao Autor a quantia de 28.582,24€, destinado à aquisição do veiculo automóvel matricula ,,, – conforme documento junto a 3.07.2021 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
2. Mais acordaram que a quantia mutuada, respectivos juros e demais encargos contratualmente estabelecidos, haveriam de ser pagos em 48 prestações mensais e sucessivas de €686,64 cada, com início a 05.07.2011 e fim a 05.06.2015 – conforme documento junto a 3.07.2021 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
3. Encontra-se registada a favor do Autor, desde 4.07.2011, a aquisição do veículo ‘Audi’ de matrícula ... e, a favor da Ré e desde a mesma data, a reserva de propriedade, – conforme documento nº 1 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
4. O veículo ..., no dia 29 de Maio de 2012, pelas 04h10m, na Auto-estrada A28, ao km 36,1, na freguesia de Laúndos, concelho de Póvoa de Varzim, foi interveniente num acidente – conforme documento nº 2 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
5. Seguido de deflagração de incendio que destruiu parcialmente a viatura, ficando impossibilitada de circular.
6. O incendio consumido toda a parte frontal do veículo, painel de instrumentos, e bancos dianteiros.
7. A viatura foi rebocada para a oficina concessionária da marca Audi, denominada ECAR, sita na zona Industrial da Varziela, em Vila do Conde.
8. A 29 de Maio de 2012, encontrava-se em vigor o contrato de seguro titulado pela apólice …, celebrado entre o ora A. e a R “…” - relativo ao veículo supra (e com cobertura de danos próprios) – conforme documento nº 3 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
9. O Autor participou o sinistro à companhia seguradora Tranquilidade.
10. A 14 de Junho de 2012, a companhia de seguros remeteu ao Autor, carta com o seguinte conteúdo:
“Exmo/a.(s) Senhor/a(s):
No seguimento da vistoria efectuada constatámos que a viatura de V. Exa. sofreu danos cuja reparação se toma excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente.
Na situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação de €56.506,59 na oficina Ecar Comercio Automóveis SA, a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (€1.210,00), bem como o valor seguro é data do sinistro de €36.685,74, e embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, colocamos condicionalmente à sua disposição a quantia de €34.975,74, já deduzida a franquia contratual de €500,00 mantendo V. Exa(s). a posse do veículo com danos, pelo que aguardamos que nos remeta fotocópias do bilhete de identidade, cartão de contribuinte do proprietário e documentos da viatura.
Na eventualidade de pretender comercializar o veículo sinistrado no estado em que ele se encontra, peio valor de 0,00€, indicamos desde já a seguinte entidade que deverá contactar: …./…” – conforme documento nº 4 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
11. Porque o veículo não ia ser objecto de reparação, o concessionário exigiu a retirada da viatura, sob pena de cobrança diária de €10,00.
12. O veículo foi rebocado para a oficina mecânica, denominada de “AP, Lda” na Maia, em ordem a ser guardada,
13. Que cobrava €50,00 mensais.
14. O Autor não procedeu ao pagamento na data de vencimento das prestações, tendo a Ré, por carta datada de 21/11/2012, a Ré resolvido o contrato – conforme documento nº 5 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
15. À data da resolução, o capital que se achava em divida ascendia a €25.005,73.
16. A 26 de Setembro de 2012 o Autor instaurou uma acção declarativa contra a seguradora “…, S.A.” (PC nº 2058/12.0TBPVZ) – pedindo o pagamento de indemnização no valor total de 40.835,74€ (por danos resultantes de ‘despiste’ ocorrido em 29.05.2012). – conforme certidão junta a 22.10.2021 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
17. Por despacho de 19 de Fevereiro de 2013 na acção supra, foi indeferida a “intervenção principal provocada” da ora R., requerida pelo aí Autor. – conforme certidão junta a 22.10.2021 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
18. Por sentença de 22 de Janeiro de 2014 na acção supra, foi homologada a transacção – tendo o A. reduzido o pedido para 35.000€, e a R. “…, S.A.” aceite pagar tal quantia (o que fez, em 14.02.2014). – conforme certidão junta a 22.10.2021 e documento junto a 9.11.2020 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
19. A 18 de Setembro de 2014 o Autor foi declarado insolvente. – conforme documento junto a 30.09.2021 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
20. A Autoridade Tributária e Aduaneira tributou ao Autor o Imposto Único de Circulação relativo ao veículo ... referente aos autos de 2013, 2014, 2015, 2016, 2016, 2017 – que não procedeu ao seu pagamento – conforme certidão emitida a 23 de Julho de 2018 por aquela junta como parte do documento 6 junto com a Petição Inicial cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
21. A 5 de Setembro de 2018 o Autor, através do seu mandatário, enviou à R. a carta com o seguinte conteúdo “(…)
No ano de 2011, o m/ constituinte supra mencionado, adquiriu, por compra, um veiculo automóvel ligeiro de passageiros de marca Audi, modelo A4 2.0TDI, com a matricula ....
Para o efeito, solicitou a concessão de crédito a essa instituição, que concedeu, ficando o veículo onerado com reserva de propriedade V. Favor.
Sucedeu que, em 29 de Maio de 2012, o veiculo aqui em crise, esteve envolvido em acidente de viação, em consequência de despiste, seguido de deflagração de incendio que destruiu a viatura na sua quase totalidade.
Após o acidente, esteve a viatura apartada em instalações de um concessionário Audi, e atento o grau de destruição, que desaconselhava a reparação, foi a mesma apartada numa garagem particular, pertença de terceiros.
Ocorreu que, em virtude de dificuldades financeiras que assolaram o m/ constituinte, este requereu a insolvência singular, a qual concedida, por processo n.º … que correu termos pela 2ª Secção de Comercio de Vila Nova de Famalicão - J1.
Nesses autos, foi indicada a V. Instituição, como credora do m/ constituinte, pelo montante concedido para aquisição do veículo, e referida a existência de reserva de propriedade de veículo.
Essa instituição reclamou créditos, através de mandatário constituído, nomeadamente, o Ilustre Colega Sr. Dr. ….
Na decorrência dos autos, o m/ constituinte solicitou o levantamento da viatura a V. Exas., em ordem a desocupar as instalações onde se achava e acha apartado o veículo em crise.
Mais solicitou que, procedessem ao cancelamento da matrícula, junto do IMTT, já que os IUC`s continuavam a ser processados e o m/ constituinte não gozava de legitimidade para tal acto, ou que admitissem vender o veículo por valor simbólico que permitisse ultrapassar as questões de imposto e de aparcamento.
A verdade é que, a despeito das comunicações de 2016 e 2017, nada foi feito até à presente data.
Tal conduta está a causar prejuízos ao m/ constituinte que, para além de estar a ser demandado para pagar aparcamento, à razão mensal de €50,00, desde o inicio da ocupação, vê também sobre si incidirem impostos do IUC e respectivas coisas que, presentemente, ascendem a 2.750,93, conforme podem verificar pelo documento que ora se anexa.
Tais prejuízos advêm, em exclusivo, da V. conduta de absoluta indiferença, face às interpelações que lhe são dirigidas e que advertem das consequências.
Ora, o m/ Constituinte não pode, nem admite manter o estado de coisas actual.
Razão pela qual, já requereu a concessão de apoio judiciário, que foi concedido, conforme podem verificar do documento que ora junto, e que tem por finalidade a propositura de acção contra essa instituição a pedir ressarcimento de prejuízos e condenação diária, até que procedam ao levantamento do veículo e paguem os impostos que a V. conduta deu causa.
Todavia, antes da propositura da acção, vem-se conceder a possibilidade de resolução das questões pendentes, de forma extra-judicial, evitando-se gastos e incómodos, que se pretendem de todo em todo evitar.
Deste modo, dirijo-me a V. Exa.s, solicitando se dignem informar se estão receptivos à resolução das questões relatadas, e em que moldes.
Aguardarei pelas V. prezadas notícias, até ao dia 15 de Setembro de 2018, findo o qual e na ausência de notícias, intentarei sem mais delongas o procedimento judicial. - conforme documento nº 6 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
22. Respondeu a Ré a 10.09.2018, com o seguinte conteúdo:
“Acusamos a recepção da carta enviada por V.Exa. no passado dia 06-09-2018 a qual mereceu a melhor atenção por parte da n/ Instituição.
O financiamento concedido ao Constituinte de V. Exa foi garantido pela constituição de uma reserva de propriedade sobre a viatura financiada para garantir o pagamento das responsabilidades assumidas, facto que não veio a ocorrer.
Assim sendo recordamos que o crédito existente ainda é exigível e, como tal a manutenção por parte do Banco de tal garantia é perfeitamente legitima, não podendo dai resultar as responsabilidades assacadas por V. Exa ao B...SA, De notar que as responsabilidades fiscais com a viatura são da exclusiva responsabilidade do proprietário e, bem assim, as despesas resultantes de um aparcamento da viatura numa oficina / garagem, porquanto o veículo foi aí entregue pelo Cliente de V. Exa. e não pela nossa Instituição Financeira.
Ainda assim, e porque nos ternos da Lei em 2019 o crédito do Sr. P... deixará de ser exigível por força da concessão definitiva da exoneração do passivo restante, informamos que a Administração do Banco autorizou a emissão antecipada do modelo de registo automóvel que permitirá a extinção da reserva de propriedade.
Informamos que o Banco não assume, contudo, qualquer outra responsabilidade e não emitirá nenhum outro documento, porquanto a legitimidade e obrigação para o cancelamento da matrícula reside na esfera jurídica do proprietário do bem.
Face ao supra exposto, ficaremos a aguardar que nos comunique se pretende que seja emitido o mencionado documento, sendo certo que reiteramos que não assumirá o Banco qualquer outro encargo ou responsabilidade quanto a este processo.
Não hesite em contactar-nos para a Direcção de Contencioso através do nº…, fax nº … ou através do endereço de correio eletrónico: …@....pt, caso necessite de algum esclarecimento adicional. - conforme documento nº 7 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
23. O Autor remeteu à Ré outra carta, datada de 11 de Setembro de 2018 - conforme documento nº 7 junto com a Petição Inicial cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
24. O valor do parqueamento acordado (cf. facto 13) - desde o mês de Julho de 2012 – não foram pagos e continuam a vencer.
25. A Ré reclamou créditos no valor de 33.128,22€, a 21.10.2016, no processo de insolvência identificado em 19 – conforme certidão daquele processo junta a 16.12.2021.
Mais se provou que:
26. O veículo foi retirado da Oficina identificada no facto 12, em Dezembro de 2021.
*
B. Da discussão da causa – com relevância para a decisão - não resultaram provados os seguintes factos:
27. Logo após a ocorrência do sinistro o Autor informou a Ré e solicitou-lhe para que diligenciasse pela recolha do veículo do local onde se encontrava aparcado.
28. Bem como solicitou, logo após a ocorrência do sinistro, à Ré, que procedesse junto do IMTT - Instituto da Mobilidade dos Transportes Terrestres, ao chamado abate de matrícula.
***
V. Da Nulidade da Sentença.
No seu recurso, o Recorrente invoca a nulidade da Sentença com base no art.º 615º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil, alegando porém: “O Tribunal “a quo” ao ter dado como provado que o negócio celebrado, entre A. e Ré, foi resolvido, desde 2012, tinha que proferir sentença a condenar a Ré no pedido. (…) Em sede de fundamentação, o Tribunal “a quo” defende que o beneficiário da reserva pode exercer a restituição do bem, desde que resolva o contrato, o que sucedeu. (…) Assim, ocorre contradição entre fundamentação e decisão, consubstanciador de nulidade, o que se invoca.”
Vejamos.
Dispõe o artigo 615.º do Código de Processo Civil:
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”
Resulta desde logo das alegações do Recorrente que o vício invocado não se trata de qualquer nulidade por falta de fundamentação, nos termos do art.º 615º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 154.º n.º 1 do Código de Processo Civil que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, acrescentando o seu n.º 2 que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição…”.
Conforme vem sendo decidido uniformemente pela doutrina e jurisprudência, a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, motivo de nulidade da decisão, é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão.
Nesse sentido ainda o Acórdão da Relação de Guimarães de 17/11/2004 (in www.dgsi.pt) no qual se faz apelo ao «Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), (que) repetidamente aconselha que: a extensão da obrigação de motivação pode variar consoante a natureza da decisão e deve analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto; a motivação não deve revestir um carácter exageradamente lapidar, nem estar por completo ausente (cf. Vincent e Guinchard, Procédure Civile, Dalloz, §1232, e arestos aí citados). Mostra-se ainda útil esclarecer, a este propósito, que a exegese do disposto no art.º 668º nº 1 al. b) C.P.Civ., de há muito vem entendendo que a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso(…). Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão. Ao aludir-se a “ausência de qualquer fundamentação” quer referir-se a falta absoluta de fundamentação, a qual, porém pode reportar-se seja apenas aos fundamentos de facto, seja apenas aos fundamentos de direito.».
Também a doutrina se pronuncia em sentido idêntico. Veja-se Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221) ao referir que «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208.º, n.º 1 CRP e artigo 158.º, n.º 1 CPC) …o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».
Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, pág. 669, refere que «há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação».
De igual modo Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 687, entende que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.
Ora, lida a Sentença proferida, é evidente que a mesma não padece da invocada nulidade; a mesma enuncia os factos e faz a aplicação do Direito aos factos, terminando com uma decisão.
Mas igualmente alega o recorrente que “Em sede de fundamentação, o Tribunal “a quo” defende que o beneficiário da reserva pode exercer a restituição do bem, desde que resolva o contrato, o que sucedeu. (…) Assim, ocorre contradição entre fundamentação e decisão, consubstanciador de nulidade, o que se invoca.”
O vício invocado pelo recorrente poderia isso sim ter acolhimento na alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
Nos termos do citado art.º 615º, n. 1, c) do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando “c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”
Uma sentença é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado, traduzindo-se a obscuridade na ininteligibilidade e a ambiguidade na possibilidade de à decisão serem razoavelmente atribuídos dois ou mais sentidos diferentes (conf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/4/2002, Proc. n.º 01P3821).
A ambiguidade ou a obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível e só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos art.ºs 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” – neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/5/2021, Proc. n.º 69/11.2TBPPS.C1.S1.
Já quando a norma, no art.º 615º nº 1, al. c), refere contradição entre os fundamentos e a decisão, está a referir-se aos fundamentos jurídicos, aos elementos e passos do raciocínio jurídico que o juiz foi explanando na fundamentação da sentença. Isto é, o erro de contradição relevante reporta-se raciocínio que o juiz foi expondo na sentença: o julgador segue determinada linha de raciocínio que, em termos lógicos, aponta para uma determinada conclusão, mas, em vez de a tirar decide noutro sentido, oposto ou divergente - Cf. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, pág. 298.
Portanto, o vício de contradição ocorre em sede de raciocínio e argumentação lógica silogística que leva à decisão: há uma incompatibilidade entre a argumentação utilizada e a decisão tomada.
Vejamos.
Lidas as alegações de recurso, a questão colocada pelo recorrente prende-se com a interpretação que faz do que ficou exposto em sede de fundamentação jurídica na Sentença e a conclusão e decisão que a final se veio a tomar.
É o seguinte o segmento da sentença que importa considerar:
“Retornando ao caso que nos ocupa, verifica-se que está demonstrado nos autos que se mostra constituída a favor da Ré uma reserva de propriedade sobre o veículo interveniente num acidente que determinou a sua destruição e total inutilização.
A cláusula da reserva de propriedade encontra-se prevista no artigo 409º nº 1 do Código Civil: permite que o alienante reserve para si a propriedade da coisa até ao cumprimento (total ou parcial) das obrigações pela outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento.
Quando o facto de que depende a transmissão da propriedade é o pagamento do preço, a reserva exerce, na prática e em termos económicos, a função de garantia desse pagamento, visto que não pode ser alienada, nem pelo devedor, nem por um credor, enquanto essa se mantiver. Mas esta “garantia” tem que ser entendida em termos hábeis, visto que não é legalmente reconhecida como tal, funcionando essencialmente em termos práticos: pois permite a manutenção da titularidade do direito, que impede a sua venda judicial por terceiros e por isso vale mesmo contra aqueles que disponham de garantias reais.
O que a doutrina tem entendido é que, nesse caso, o comprador adquire uma expetativa real de aquisição e que esta lhe permite gozar todas as faculdades que assistem ao proprietário, a qual deriva da sua posse em nome próprio.
É certo que a doutrina mais antiga considerava que a cláusula condicionava a verificação do efeito - a transmissão da propriedade - a um evento futuro, pelo que se deveria considerar o negócio sujeito a condição ou termo inicial. No entanto, nem tal cláusula tem os efeitos de tal termo ou condição, porquanto desde logo se transmite a posse e faculdade de uso e gozo, como o preenchimento dos efeitos da condição não se retrotraem ao momento de celebração do negócio, como decorreria do artigo 276.º do Código Civil. Por outro lado, o pagamento do preço é um elemento central do negócio e não uma cláusula acessória; é uma obrigação, judicialmente exigível, e não um ónus do comprador, cuja inobservância o impediria apenas de alcançar uma vantagem. Acresce que, mesmo que se verifique o não pagamento do preço, o contrato pode manter-se, se o vendedor o não resolver, sustentando a exigência do seu pagamento.
Apesar da função económica da reserva de propriedade, esta mesma não é um verdadeiro direito real de garantia (embora tenha vindo a ser utilizada para esse fim no comércio jurídico, mormente em Portugal no âmbito de contratos de financiamento para a aquisição de veículos automóveis), quer porque assim não foi elencado na lei, onde vigora o principio da tipicidade dos direitos reais, quer porque o que permite é que o seu titular (o proprietário do bem que o alienou) resolva o contrato, retomando o direito de propriedade na sua plenitude, na falta do pagamento do preço.
Ora, um direito de garantia é aquele que permite ao seu beneficiário obter com preferência sobre os outros o pagamento de uma dívida de que é titular ativo pelo valor da coisa ou seus rendimentos, sendo, pois, situação diversa da desenhada na cláusula de reserva de propriedade.
Com efeito, o alienante beneficiário da reserva de propriedade só pode exigir a restituição do bem, no caso de incumprimento da contraparte, se exercer o seu direito de resolução do mesmo, fundado nos pressupostos gerais de resolução ou no preenchimento dos requisitos do artigo 934.º do Código Civil (compra e venda a prestações com reserva de propriedade). Resolvido o contrato, o alienante pode obter a restituição do bem e exercer todos os meios de defesa do direito de propriedade.
No entanto, esta resolução do contrato pressupõe a restituição das prestações já pagas pelo comprador, nos termos dos artigos 433º e 289º do Código Civil. Tudo isto, claro, sem prejuízo do alienante poder optar por não resolver o contrato, mantendo a reserva da propriedade e o direito real, embora, como se viu, despojado do seu recheio.
O comprador pode opor àquele a sua posse baseada no contrato, enquanto o mesmo não for cumprido: a resolução do contrato não é automática, não bastando qualquer incumprimento para a fazer operar e nem uma eventual cláusula resolutiva expressa dispensa a deliberação do credor em a fazer operar, através da respetiva exteriorização da vontade.
Em termos fáticos, o perecimento ou deterioração da coisa prejudica o comprador, que vê desaparecer ou diminuírem as qualidades do bem que utiliza, assim como o vendedor que perde ou vê diminuir o valor da coisa que, como vimos, na prática funciona como uma garantia do seu direito.
No entanto, é, há muito, pacífico que juridicamente o risco pelo perecimento e deterioração da coisa se transfere para o adquirente quando esta lhe é entregue, recorrendo aos princípios ínsitos no artigo 796º do Código Civil, no sentido de que quem detém e por isso usa a coisa, é que faz com que ela crie o risco ou se coloque em situação dele e o deve suportar.
Não há dúvida que o proprietário do veículo é o Autor, pois para além do registo nessa qualidade, o seu direito ainda contém das normais faculdades que integram o direito de propriedade (uso, fruição e disposição), como se verá.
Destarte, o direito do beneficiário da reserva da propriedade não pressupõe que o Autor esteja “em dia” com as prestações “de aquisição do veículo à entidade financiadora e titular da respetiva reserva de propriedade”, nem pressupõe que o Autor venha a proceder ao pagamento atempado das prestações vincendas, respeitantes à aquisição da viatura, mas sim que o contrato de alienação tenha sido resolvido (caso em que a cláusula perderia causa e estaria caducada).”
Ora, se bem que a Sentença proferida não prime pela clareza na exposição, não se pode dizer que a mesma padeça de nulidade, sendo clara a referência a que: “Não há dúvida que o proprietário do veículo é o Autor, pois para além do registo nessa qualidade, o seu direito ainda contém das normais faculdades que integram o direito de propriedade (uso, fruição e disposição), como se verá” e sendo com base nessa interpretação que na mesma Sentença infra se considera caber ao A., proprietário do veículo, diligenciar pelo abate de matrícula. Com base nesse raciocínio, concluiu-se pela improcedência da acção, no que não se verifica contradição.
Desta forma, improcede a invocada nulidade da Sentença.
***
VI. Do Direito.
Cumpre agora apreciar os restantes fundamentos do Recurso, nomeadamente, pela invocação do recorrente que “… estando provado que a Ré não procedeu ao levantamento da viatura porque não quis, apesar de se tratar de um bem cujo contrato estava resolvido a favor da Ré, se impunha a sua condenação”.
Está assente nos autos que a 2 de Junho de 2011, o Autor e a Ré celebraram um acordo que denominaram de “contrato de mútuo 2651593”, mediante o qual, o R. entregou ao Autor a quantia de 28.582,24€, destinado à aquisição do veiculo automóvel matricula ....
Mais acordaram as partes que a quantia mutuada, respectivos juros e demais encargos contratualmente estabelecidos, haveriam de ser pagos em 48 prestações mensais e sucessivas de € 686,64 cada, com início a 5/7/2011 e fim a 5/6/2015.
A aquisição do veículo encontra-se registada a favor do Autor, desde 4/7/2011.
Está igualmente registada a favor do R., desde a mesma data, a reserva de propriedade, a qual foi constituída como garantia do montante financiado pelo R.
O contrato veio a ser resolvido pelo R., com fundamento em incumprimento por parte do A. do pagamento das rendas devidas, facto que se verificou logo em 21/11/2012.
No art.º 409º, n.º 1 do Código Civil dispõe-se que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento”.
Tem sido amplamente discutida na doutrina e jurisprudência a validade e a interpretação, sentido e alcance a conferir a uma cláusula de reserva de propriedade quando se está perante uma relação tripartida; isto é; o credor que constituiu para si a reserva de propriedade não é o alienante do bem, estando a sua intervenção circunscrita ao financiamento da compra e venda em causa, sendo essa operação aquela que se insere no âmbito da sua actividade.
Como pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 9/1/2020, Proc. n.º 11755/19.9T8LSB.L1-2 disponível em www.dgsi.pt, podem considerar-se três diferentes posições:
“1ª – a que admite a constituição, ab initio, da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora do contrato de alienação;
2ª – a que considera que a cláusula de reserva de propriedade só pode ser estipulada a favor do alienante, mas que tal não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante/financiador, sendo posteriormente transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor/alienante;
3ª – a que apenas admite a estipulação de cláusula de reserva de propriedade em benefício do alienante/vendedor, não admitindo a transmissão da mesma cláusula, por parte do alienante/vendedor, por cessão da posição contratual ou por sub-rogação dos seus direitos, para o mutuante/financiador.”
Fazendo de seguida este Acórdão uma resenha exaustiva das posições assim elencadas com referência a abundante jurisprudência e doutrina no sentido de cada uma delas.
No caso, desde logo não está em causa a validade da cláusula, nem resulta da factualidade apurada em qual destas posições se deveria enquadrar a situação dos autos.
Apenas é possível concluir que, no caso, a actividade prosseguida pelo R. não é a da compra e venda de veículos, mas a de financiamento bancário; no âmbito desta concedeu um mútuo destinado à aquisição pelo A. do veículo em causa; por incumprimento desse contrato de mútuo o R. resolveu o contrato.
Mas qual contrato? A resposta só pode ser uma – o contrato de mútuo
Nada resultou quanto ao contrato de compra e venda.
Desta forma, a resolução do contrato de mútuo não pode afastar, como pretende o A., a aquisição da propriedade do veículo por parte deste; tal resulta da presunção decorrente do registo, que se mantém.
Assim, a verdade é que a pretensão do A. não pode proceder, atendendo à factualidade que resultou Provada e Não Provada, acompanhando-se aqui o que se escreveu na Sentença proferida a propósito do cancelamento de matrícula, e que aqui se transcreve:
“Como refere a Ré, sendo o Autor o proprietário do veículo, é igualmente a este que incumbe a responsabilidade de pagamento do IUC, atento desde logo o disposto no art.º 3º nº 1 do Código de Imposto Único de Circulação (Lei n.º 22-A/2007, de 2007-06-29, onde estabelece que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos. Reiterando-se ainda que se consideram como tais, as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados, sendo que o examinado art.º 3º nº 1 do Código citado consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário.
E quanto ao abate da matrícula? (…)
O estado do veículo, atentos os factos, preenche o disposto no art.º 119º, nº 1 alínea b) que refere que a matrícula de um veículo deve ser cancelada quando o veículo fique inutilizado. Acrescenta o nº 2 que compete ao proprietário o requerimento para cancelamento da matrícula, quando, diz a alínea a) o veículo fique inutilizado. Mas a lei acrescenta uma outra indubitável possibilidade: a da alínea e): quando deixe de ser utilizado na via publica (flagrante actualidade!). Situação cujo ónus também recai sobre o titular.
A própria lei do seguro obrigatório no seu art.º 41, nº 5 refere que “nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.” Sendo “perda total” (no citado art.º 41º do Dec.-Lei 291/07 de 21 de Julho) considerado quando: “b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.” – competindo aferir para o efeito a carta enviada pela seguradora constante do facto 10. Veja-se ainda o disposto no art.º 3º do Dec.-Lei nº 78/2008.
Em suma, o veículo em causa preenchia as características necessárias para que o Autor, por si, pudesse pedir o cancelamento da matrícula.
E não fundamente a sua própria inacção no facto de existir uma reserva de propriedade uma vez que, o art.º 3º nº 2 (à data dos factos, actual nº 4) determina que o cancelamento da matrícula com registo de ónus ou encargos registados não prejudica os efeitos daqueles.”
Desta forma, a resolução, pelo R., com fundamento em incumprimento por parte do A. do pagamento das rendas devidas, facto que se verificou logo em 21/11/2012, diz respeito ao mútuo contratado, não tendo implicação sobre a aquisição efectuada pelo A. e registada, mantendo-se a garantia até que o R. visse satisfeito o seu crédito (ou, no caso, esgotadas todas as possibilidades para tanto, dada a insolvência do A.).
Ou seja, incumbia ao A., constatada a perda total do veículo, diligenciar pelo abate da matrícula e assim evitar as despesas que agora reclama, relativamente às quais o R. não é responsável nem, no que às despesas de parqueamento respeita, teve sequer qualquer intervenção ou conhecimento até, pelo menos, a carta de 5 de Setembro de 2018 referida no Facto 21 (única data que se apurou relativa à comunicação ao R. da pretensão do A.), sendo que o acidente ocorreu a 29 de Maio de 2012.
Desta forma as despesas que aqui reclama não são devidas pelo R., antes se imputando única e exclusivamente ao próprio A.
Improcede aqui o recurso.
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Da condenação do recorrente como litigante de má fé.
Insurge-se ainda o Recorrente contra a sua condenação como litigante de má fé, alegando que “o Tribunal “a quo” condenou o A., como litigante de má fé, por entender, mal, que este não carreou para os autos toda a matéria que na sua óptica deveria ter efectuado, nomeadamente, o recebimento de determinada quantia, paga pela companhia de seguros, em virtude do acidente de viação que destruiu o veiculo financiado pela Ré. (…) Tal recebimento nenhuma influência produzia na presente acção, sendo matéria verdadeiramente inócua. (…) Acresce que, o A. nunca escondeu as vicissitudes que ocorreram com o veículo, tanto mais que ao demandar a Ré, esta era sabedora de tudo. (…) O A., para receber a indemnização da seguradora, teve que demandar judicialmente a companhia de seguros, tendo o próprio A., deduzido incidente de intervenção principal provocada que o Tribunal indeferiu. (…) Posteriormente, a Ré foi reclamar créditos na insolvência do A., sendo sabedora de todo o circunstancialismo que envolveu o recebimento e destino do valor.”
A noção de má fé encontra-se prevista no art.º 542.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, que estipula:
“Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir, nos termos do n.º 1 da norma citada.
Observado o que dispõe o artigo 542º, do Código de Processo Civil resulta que a litigância de má fé se traduz na violação do dever de probidade que esta disposição do Código do Processo Civil impõe às partes: dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias, não fazer um uso manifestamente reprovável do processo.
Face à alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro e pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, o artigo 456º, actual 542º, do Código de Processo Civil, passou a referir-se quer ao dolo quer à negligência grave como tipificadores da litigância de má fé. Assim, passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária, de forma a atingir-se uma maior responsabilização das partes (veja-se a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 04B2279, de 30 de Setembro de 2004, relatado pelo Conselheiro Araújo Barros, disponível em www.dgsi.pt).
Note-se, antes de mais, que com a referida Reforma de 1995 se pretendeu instituir uma nova filosofia de colaboração, consagrando-se “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos (…)” (Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro).
A litigância de má fé consiste, assim, numa utilização abusiva do processo, cujos traços fundamentais são definidos no artigo em causa, atentas as quatro situações que a integram e aí previstas.
No caso, a 1ª Instância fundamentou a condenação do A. nos seguintes termos:
“No caso, pese embora, e em seu favor, não ter sido demonstrado ter faltado à verdade, certo é que foi omitindo factos relevantes para a sequência cronológica da causa e, essencialmente, para aferição dos factos essenciais e globais face aos pedidos deduzidos.
Sem prejuízo de ter construído um enredo aparentemente favorável, mas olvidando esclarecer e clarificar factos cuja essencialidade ficou desde logo patente na contestação e no despacho saneador, mormente a não alusão aos valores recebidos pela seguradora quanto ao acidente do veiculo, a ausência de informação tempestiva junto da Ré quanto aos factos ocorridos, a patente inexistência de prova (pese embora alegada) de conhecimento das ocorrências, e bem sabendo que as consequências cuja indemnização peticiona se reportam à sua própria inércia, violou o Autor o disposto no art.º 542º, nº 2 alínea a) do CPC.
Deve considerar-se a conduta do réu como negligente de má fé, justificando-se, como atitude pedagógica (na expressão da Relação de Lisboa, no citado acórdão de 23/3/1999), a sua condenação como litigante de má fé, ao abrigo do disposto no art.º 542º, nºs 1 e 2, alínea a) do CPC.
Atendendo à actuação negligente, que culminou em demanda, cuja falta de fundamento conhecia, mas, por outro lado, aos valores monetários em causa, entende-se como adequada a fixação de uma multa de 3 UC – art.º 27º do Reg. Custas Processuais.”
Em causa está essencialmente a omissão pelo A. do facto de ter recebido uma indemnização da Seguradora pela perda do veículo. No restante, trata-se de falta de prova dos factos alegados, mas sem que na verdade tenha resultado provado o seu contrário, o que desde logo afasta o fundamento para a condenação do A. como litigante de má fé.
E relativamente à omissão em causa, o que resulta da Lei é que a mesma tem de ser relevante para a decisão da causa.
Ou seja, não deixa de ser reprovável a atitude do A., que incumpriu o contrato de mútuo celebrado com o R. e que mesmo após o recebimento da indemnização em causa não solveu a sua responsabilidade – antes terá dado outro destino à indemnização recebida e veio mesmo a ser declarada a sua insolvência.
Mas o facto de ter omitido o recebimento de tal indemnização, para efeitos do que se discutia nos presentes autos, não é relevante para a decisão da presente causa, em que estavam peticionadas outras quantias e o que se discute é a cláusula de reserva de propriedade e a quem competia, após a resolução do contrato de mútuo e o acidente em que foi considerada a perda total do veículo, pedir o cancelamento da matrícula.
Os factos em causa (ou a omissão de alegação dos mesmos) em nada influenciaram a decisão proferida.
Assim, julga-se que deve ser revogada nesta parte a condenação do A. como litigante de má fé, procedendo aqui o recurso.
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Das Custas.
Vencido no Recurso, são Recorrente e Recorrido os responsáveis pelas custas devidas, na proporção dos seus decaimentos - art.º 527, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil.
Condena-se o recorrente nas custas do incidente, de indeferimento da junção de prova documental com as alegações de Recurso, em 1 UC de taxa de justiça – art.º 7º, n.º 4 e Tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
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DECISÃO:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o Recurso interposto, mantendo-se a absolvição do R. no pedido e revogando-se a condenação do A. como litigante de má fé.
Custas por Recorrente e Recorrido na proporção dos seus decaimentos.
Condena-se o recorrente nas custas do incidente, de indeferimento da junção de prova documental com as alegações de Recurso, em 1 UC de taxa de justiça – art.º 7º, n.º 4 e Tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
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Registe e notifique.

Lisboa, 26/10/2023
Vera Antunes
Teresa Soares
Octávia Viegas