Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | FLORBELA SANTOS A. L. S. SILVA | ||
| Descritores: | CHEQUE SEM PROVISÃO PREENCHIMENTO DO CRIME VALOR PATRIMONIAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 02/24/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I. São requisitos legais necessários ao preenchimento do crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo artº 11.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, na redacção do D.L. 316/97 de 19/11: - que seja emitido e entregue a outrem um cheque, de valor superior a 150 euros; - que o respectivo valor constante do cheque não seja pago, em especial, por falta de provisão, devendo a data de emissão coincidir com a data de entrega; - resultar um prejuízo patrimonial ao tomador (ou terceiro) do cheque equivalente ao valor do mesmo. II. O conceito de valor patrimonial inclui a situação em que o cheque visa ser meio de pagamento de uma dívida já existente | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal singular que corre termos pelo Juiz 10 do Juízo Local Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, após abertura de conclusão para efeitos de prolação do despacho previsto no artº 311º do Código Processo Penal, foi proferido despacho em 07-09-2020, com a refª 397377240, junto a fls. 181 e ss nos seguintes termos: “Autue como processo comum, com a intervenção do Tribunal Singular. O tribunal é competente internacionalmente, em razão da hierarquia do território, e da matéria. O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal. Questão prévia: Da acusação manifestamente infundada: Garantem-me os autos que HR______ foi acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo art.º 11.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, na redacção do D.L. 316/97 de 19/11, com referência à al. a) do art. 202.º do Código Penal, sendo-lhe imputada a prática dos seguintes factos: - “No dia 24.10.2017, o arguido preencheu, assinou e entregou à Autoridade Tributária, o cheque n.º 6505748912, sacado sobre a conta n.º ... da Caixa Geral de Depósitos, com o valor inscrito de 15.230,26€, apondo-lhe a data de 24.10.2017, sem que tivesse, no banco sacado, fundos disponíveis para pagar esse cheque. - Tal cheque foi entregue à ofendida Autoridade Tributária – Serviço de Finanças de Lisboa 8, sito na Rua Centro Cultural, n.º 12, R/C, para pagamento duma dívida de imposto. (…) - No entanto, apresentado a pagamento, no dia 27.10.2027, no balcão dos CTT, em Lisboa, o mesmo foi devolvido pelos serviços de compensação do Banco de Portugal, no dia 30.10.2017, sem ser pago, por falta/insuficiência de provisão na conta do sacador. (…)” Comete o crime de emissão de cheque sem provisão quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro emitir e entregar a outrem cheque que não seja integralmente pago por falta de provisão [...]; se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque. São, assim, elementos constitutivos do tipo legal de crime em questão: - A emissão e entrega a outrem de cheque para pagamento de quantia superior a 150,00€ - A recusa de pagamento por falta de provisão; - A verificação do prejuízo patrimonial; e - O dolo do agente. Emitente do cheque é aquele que o subscreve, isto é, aquele que dá a ordem de pagamento. Diremos, também, que a entrega para pagamento «não significa [...] simplesmente o desapossamento material do cheque, mas que o cheque é confiado a outrem com poderes para receber o valor da prestação que o cheque se destina a pagar». A recusa de pagamento deve resultar da falta de provisão, podendo esta ser definida como a «existência de fundos colocados à disposição do sacador por parte de um banqueiro, tendo preexistido o contrato de depósito entre estes últimos». Quanto ao momento exacto em que deve existir essa provisão, Germano Marques da Silva entende que [...] «nos termos do artigo 29º da LURC, os prazos para apresentação a pagamento começam a contar-se do dia indicado no cheque como data de emissão e, por isso, é defensável que só a partir dessa data a conta deva estar provisionada». Ponto é que a provisão exista, de modo suficiente e disponível, no momento em que o cheque deva ser apresentado a pagamento, pois, se assim for, «o cheque cumprirá, na íntegra, a sua função, ficando excluída a superveniência de qualquer prejuízo patrimonial». Outro elemento constitutivo essencial do ilícito criminal em causa é o prejuízo patrimonial, o qual consiste «na frustração do direito do portador do cheque de receber, na data da sua apresentação a pagamento, a quantia a que tem direito em razão da obrigação subjacente e para cujo pagamento o cheque serviu». Convirá notar, todavia, que património, enquanto bem jurídico-criminal, e segundo a concepção jurídico-económica, a que aderem a doutrina e a jurisprudência dominantes, «é constituído pela globalidade das situações e posições com valor ou utilidade económica, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cuja fruição não é desaprovada por essa mesma ordem jurídica». Por sua vez, a apresentação do cheque a pagamento e a aposição da nota relativa à falta de provisão são meras condições objectivas de punibilidade (cf. artigo 11º, nº 1, do DL 454/91, de 28/12, com a redacção introduzida pelo DL 316/97, de 19/11, assim como os artigos 40º e 29º da LURC). Diga-se, ainda, que de acordo com o que se dispõe no nº 3 do artigo 11º do citado diploma legal, o legislador exige que a data de emissão do cheque coincida com a data de entrega do mesmo a terceiro, assim se excluindo da tutela penal os denominados cheques de garantia, os pós-datados e todos os que se não destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente (vd. o relatório preambular do DL nº 316/97, de 19/11). No que tange ao elemento subjectivo do tipo legal de crime em questão, exige-se que o agente actue com dolo, bastando, porém, o dolo genérico, podendo este revestir qualquer das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal, com preponderância diferenciada dos seus elementos intelectual e volitivo – o agente tem, pois, de ter consciência de que o seu comportamento é proibido por lei e causará ou poderá causar a outrem um prejuízo patrimonial, actuando com intenção de realizar o facto típico ou, simplesmente, aceitando o prejuízo patrimonial como consequência necessária do seu comportamento ou conformando-se com a eventualidade de verificação desse prejuízo. Enunciados os antecedentes princípios, cumpre efectuar uma breve alusão á teoria geral do facto punível, defendida pela doutrina e jurisprudência maioritária, segundo a qual, nos crimes de resultado – tal como o que analisamos – para que o agente seja punido criminalmente é necessário a verificação de um nexo causal entre a acção típica e o resultado previsto no tipo de crime. No caso do crime de emissão de cheque sem provisão, a lei prevê como comportamento típico objectivo: - A emissão e entrega a outrem de cheque, por banda do sacador ou de quem legitimamente o represente; - Que tal cheque apresentado a pagamento seja devolvido sem pagamento, além do mais, com fundamento em falta de provisão; - E que, por consequência das antecedentes circunstâncias, o beneficiário do cheque sofra um prejuízo patrimonial correspondente ao seu valor. Em síntese, exige o legislador que exista um nexo causal entre a conduta do agente – in casu emissão e entrega do cheque - e o resultado previsto no tipo – in casu o acto de disposição que cause prejuízo patrimonial. Ora, no caso dos autos, tendo presente que se imputa a emissão do cheque para pagamento de “divida de imposto”, impõe-se a conclusão de que não foi o acto de emitir e entregar o cheque à ofendida, que causou à autoridade tributária o prejuízo patrimonial correspondente ao valor inscrito no título, não obstante a sua devolução por falta de provisão. Na realidade, é facto do conhecimento geral (dado que o cheque se destinava a pagar divida de imposto), que a obrigação fiscal reflectida no montante do cheque se venceu em data anterior à sua emissão e entrega e independentemente dessa emissão e entrega. Ou seja, dito por outras palavras, a emissão e entrega do cheque não determinou qualquer acto de disposição patrimonial, sendo certo que o prejuízo se verificou pelo incumprimento da obrigação de pagamento na data de vencimento do imposto e não pela emissão, entrega e subsequente devolução do cheque não pago. Não se discute que, no plano civil, o contribuinte onerado com a divida de imposto é responsável pelo seu pagamento, no entanto, cremos que no plano da responsabilidade penal o legislador é mais exigente, no sentido de apenas punir comportamentos que constituem causa directa do resultado previsto no tipo de crime. Assim, não pode assacar-se ao emitente do cheque dos autos, responsabilidade penal pela ocorrência de um resultado típico para cuja verificação, a emissão e entrega do cheque não foi determinante. Em face do exposto, conclui-se que os factos imputados ao arguido não preenchem integralmente os elementos típicos do crime, razão pela qual a acusação deduzida é manifestamente infundada – cf. art.º 311º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea d) do CPP. Em conformidade, ao abrigo do disposto na disposição citada rejeito a acusação publica deduzida porque manifestamente infundada. Pedido de indemnização civil: O Ministério Publico, em representação do Estado Português deduziu pedido de indemnização civil contra HM________ e “Crown Pier Correctores de Seguros, S.A.”, peticionando a sua condenação destes no pagamento da quantia inscrita no cheque cuja emissão imputa ao primeiro, alegando que “o arguido não entregou a quantia total de 15.230,26€ (quinze mil duzentos e trinta euros e vinte e seis cêntimos) relativa ao montante do imposto exigível, com o consequente prejuízo em termos da pretensão fiscal do Estado. Prejuízo esse que ficou a dever-se a actos criminosos do arguido, acima descritos. Tal não impede porém que se deva considerar o arguido obrigado a indemnizar o Estado português, nos termos gerais de direito, pela totalidade dos prejuízos que lhe causou através da prática da sua conduta criminalmente ilícita e dolosa (arts. 483.º, do Código Civil e 564.º, do Código de Processo Penal)”. Flui do disposto no artigo 71º do Código de Processo Penal o princípio da adesão ao processo penal, do pedido de indemnização civil fundado na prática de crime. Deste princípio decorre que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, está limitado pela sua conexão com a matéria criminal em apreciação no processo em que é deduzido, de modo que, nos termos do artigo 377º, n.° 1, do mesmo diploma, a decisão sobre esse pedido só pode abranger os danos causados pelo crime praticado, não podendo ser aqui tomados em conta outros aspectos da obrigação de indemnizar não conexionados com esse crime (cf. Assento do STJ n° 7/99, publicado no DR, Série I-A, de 3.8.99). Ora, considerando o teor do despacho que antecede o presente, no sentido de rejeitar a acusação porque os actos imputados não constituem crime (acuação manifestamente infundada), de imediato se conclui não ser possível assacar aos demandados responsabilidade por factos ilícitos de natureza criminal, porquanto, os factos que lhes são imputados não constituem crime à luz da lei vigente. Assim, sem prejuízo do demandante poder fazer uso de uma acção declarativa comum, alegando para tanto causa de pedir distinta da fundada em responsabilidade por factos ilícitos de natureza criminal, ou até de lançar mão de eventual titulo executivo de que seja portador, em face do exposto, conclui-se que, na presente instância cível enxertada em procedimento criminal, ocorreu uma impossibilidade da lide por facto superveniente não imputável aos sujeitos processuais - descriminalização da conduta. Tal circunstância fundamenta a extinção da instância cível, nos termos dos artigos 287º, alínea e) do CPC aplicável ex. vi. do art.º 4º do CPP, o que pelo presente despacho se declara. Sem custas, por se entender que a impossibilidade superveniente da lide não é imputável às partes. Notifique. Após trânsito, arquive.” II. Inconformado com o despacho de 07-09-2020, que rejeitou a acusação pública por manifestamente infundada, veio o Ministério Público interpor recurso em 14-10-2020, com a refª 27396523, junto a fls. 187 e ss, através do qual oferece as seguintes conclusões: “1. O Ministério Público vem recorrer da decisão da Mma Juiz que rejeitou a acusação que o Ministério Público deduziu contra o arguido HM________ sa pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, na redacção do D.L. 316/97 de 19/11, com referência à al. a) do art. 202.º do Código Penal. 2. Igualmente se opõe e recorre da decisão de extinção da instância quanto ao pedido cível deduzido pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 71º, 73º. 74º, e 77º do CPP. 3. Ora, no que diz respeito à alegada falta de prejuízo patrimonial, não podemos deixar de discordar da posição assumida pela Mma Juiz a quo. 4. Como se refere no Acórdão do TRP, processo nº 2209/06.4TDPRT.P1(in dgsi.pt): 5. O crime de emissão de cheque sem provisão é hoje um crime de dano que tem por valor primordialmente tutelado o património do tomador do cheque[1] ainda que, num segundo plano, se continue a tutelar a credibilidade do cheque enquanto meio de pagamento. 6. Enquanto meio de pagamento, apenas tem tutela penal, face ao disposto no n.º 3 do artigo 11.º, o cheque que se destina a pagamento imediato, sendo excluídos dessa tutela, como se pode ler no relatório preambular do DecretoLei n.º 316/97, de 19 de Novembro, os denominados cheques de garantia, os cheques pós-datados e todos os que não se destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente. 7. Quer isto dizer que não tem tutela penal o cheque cuja data de emissão seja posterior à da sua efectiva entrega ao tomador, o cheque destinado a funcionar como instrumento de crédito ou como instrumento de garantia penal do pagamento ou do cumprimento (futuro) de uma obrigação contratual. 8. O que importa é que o portador do cheque, na data em que este lhe foi entregue, tenha direito a receber o montante nele inscrito, o que sucede no caso dos créditos em causa e não é posto em causa pela recorrente. 9. Os cheques foram emitidos para pagamento imediato de uma dívida que efectivamente existia e era exigível (impostos e contribuições devidas à Fazenda Nacional). Ao recebê-los a ofendida criou uma expectativa legítima de obtenção económica, a qual se frustrou com o não pagamento pela respectiva instituição bancária. Houve, pois, um prejuízo patrimonial, independentemente da anterioridade temporal da constituição da dívida, naufragando a argumentação contrária desenvolvida pela recorrente. 10. Subscrevemos inteiramente esta última conclusão e que se aplica integralmente ao caso subjudice, ou seja, o cheque dos autos foi emitido para pagamento imediato de uma dívida que efectivamente existia e era exigível (impostos e contribuições devidas à Fazenda Nacional). 11. Houve, pois, um prejuízo patrimonial, independentemente da anterioridade temporal da constituição da dívida, caindo a argumentação contrária desenvolvida pela decisão judicial recorrida. 12. Face ao exposto, foram violados os artigos 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do D.L. n.º 454/91, de 28/12, [com as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2005 de 29/08], 283.º, n.º 3, 313.º e 311.º n.º 2 al. a) e n.º 3 al. d), todos do Código de Processo Penal. 13. Também o pedido cível deduzido deve ser recebido, porquanto, através da conduta descrita na acusação o arguido não entregou a quantia total de 15.230,26€ (quinze mil duzentos e trinta euros e vinte e seis cêntimos) relativa ao montante do imposto exigível, com o consequente prejuízo em termos da pretensão fiscal do Estado. 14. Prejuízo esse que ficou a dever-se a actos criminosos do arguido, acima descritos. 15. Foram, assim, violados os artigos 71º e 377º do CPP. 16. Assim, deve, pois, revogar-se o douto despacho recorrido, e determinar a sua substituição por outro que receba a acusação e o pedido cível e designe data para julgamento. Contudo V. Ex.as., decidindo, farão, como sempre JUSTIÇA” III. O recurso foi admitido por despacho de 27-10-2020 (refª 399648728), de fls. 195, tendo sido fixado efeito devolutivo. IV. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta aposto o seu visto. V. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. VI: Analisando e decidindo. O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1] Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem: 1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP; 2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP; 3º: as questões relativas à matéria de Direito. O Digno Recorrente entende que o despacho recorrido, viola os artºs 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do D.L. n.º 454/91, de 28/12, [com as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2005 de 29/08], 283.º, n.º 3, 313.º e 311.º n.º 2 al. a) e n.º 3 al. d), todos do Código de Processo Penal, devendo o Tribunal a quo ter admitido liminarmente a acusação, bem como o pedido de indemnização cível, uma vez que se mostram preenchidos todos os elementos do tipo legal imputado ao arguido. Vejamos qual a solução imposta pelo quadro legal, doutrinal e jurisprudencial, tendo em atenção o teor da acusação (transcrição): “3. Da acusação pública O Ministério Público deduz acusação, nos termos do art. 283.º, do CPP, para julgamento em processo comum e por tribunal de estrutura singular, contra HM_______, Porquanto: 1. No dia 24.10.2017, o arguido preencheu, assinou e entregou à Autoridade Tributária, o cheque n.º 6505748912, sacado sobre a conta n.º ... da Caixa Geral de Depósitos, com o valor inscrito de 15.230,26€, apondo-lhe a data de 24.10.2017, sem que tivesse, no banco sacado, fundos disponíveis para pagar esse cheque. 2. Tal cheque foi entregue à ofendida Autoridade Tributária – Serviço de Finanças de Lisboa 8, sito na Rua Centro Cultural, n.º 12, R/C, para pagamento duma dívida de imposto. 3. A conta sacada era titulada pela sociedade Crown Pier Correctores de Seguros, S.A., da qual o arguido era à data Administrador Único, e em representação e benefício da qual agiu, tendo poderes para emitir cheques sobre essa conta e para a movimentar. 4. A Autoridade Tributária, na posse do referido cheque, contava, mediante a sua apresentação no banco sacado, obter o pagamento das referidas quantias. 5. No entanto, apresentado a pagamento, no dia 27.10.2027, no balcão dos CTT, em Lisboa, o mesmo foi devolvido pelos serviços de compensação do Banco de Portugal, no dia 30.10.2017, sem ser pago, por falta/insuficiência de provisão na conta do sacador. 6. Causou o arguido, desta forma, à Autoridade Tributária, um prejuízo patrimonial pelo menos equivalente ao valor nominal do cheque acima referido, já que deixou de receber o valor do imposto devido. 7. O arguido, ao emitir o cheque acima referido, sabia que a quantia existente no banco sacado era insuficiente para o seu pagamento e, mesmo assim, não renunciou à sua emissão, consciente de que, desse modo, causava um prejuízo patrimonial à ofendida de valor pelo menos igual ao do saque. 8. Agiu de forma livre e consciente, sabendo a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação. Incorreu o arguido, como autor material e na forma consumada, na prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. no art. 11.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, na redacção do D.L. 316/97 de 19/11, com referência à al. a) do art. 202.º do Código Penal. PROVA: a dos autos, designadamente Documental: PROVA: a dos autos, designadamente Documental: 1. Cheque de fls. 24. 2. Relação dos documentos de fls. 5. 3. Cópia de fichas de assinatura de fls. 37 a 42. 4. Extractos bancários de fls. 22 a 36. 5. Notificação de fls. 53. 6. Certidão permanente de fls. 8 a 16. Testemunhal: 1. _______, melhor id. a fls. 60. 3. Situação processual do arguido Não se verificando qualquer das circunstâncias enumeradas no art. 204.º do Código de Processo Penal, promovo que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a Termo de Identidade e Residência, a prestar logo que for conhecido o seu paradeiro (art. 196.º, do Código de Processo Penal). 4. Pedido de indemnização civil O Ministério Público, em representação do Estado Português, vem deduzir pedido de indemnização civil, nos termos dos arts. 71.º, 73.º, n.º 1, 74.º e 77.º, n.º 1 do CPP e dos arts. 1.º, 3.º, n.º 1, al. a) e art. 9.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 68/2019 de 27 de Agosto, contra: - HM________ e “Crown Pier Correctores de Seguros, S.A.”, já identificados supra, nos termos e com os seguintes fundamentos: 1.º Através da conduta descrita na acusação supra, que aqui se dá por reproduzida para os devidos efeitos, o arguido não entregou a quantia total de 15.230,26€ (quinze mil duzentos e trinta euros e vinte e seis cêntimos) relativa ao montante do imposto exigível, com o consequente prejuízo em termos da pretensão fiscal do Estado. 2.º Prejuízo esse que ficou a dever-se a actos criminosos do arguido, acima descritos. 3.º Tal não impede porém que se deva considerar o arguido obrigado a indemnizar o Estado português, nos termos gerais de direito, pela totalidade dos prejuízos que lhe causou através da prática da sua conduta criminalmente ilícita e dolosa (arts. 483.º, do Código Civil e 564.º, do Código de Processo Penal). Nestes termos, deve o presente pedido ser considerado provado e procedente, e por via dele ser o arguido condenado a pagar à Fazenda Nacional a quantia de 15.230,26€ (quinze mil duzentos e trinta euros e vinte e seis cêntimos), bem como juros vencidos e vincendos até final. Requerendo-se o chamamento da sociedade Crown Pier Correctores de Seguros, S.A., com sede na Avenida da Igreja, n.º 42, 1.º piso, em Lisboa, solidariamente responsável pelo pagamento das multas, custas e indemnizações em que o arguido venha a ser condenado – art. 11.º, n.º 4, do D.L. n.º 454/91, de 28/12. Valor: 15.230,26€ (quinze mil duzentos e trinta euros e vinte e seis cêntimos) Prova: A já indicada na acusação. - Cumpra o disposto no art. 277.º, n.º 3, “ex vi” art. 283.º, n.º 5, ambos do CPP relativamente a este despacho e ao despacho de fls. 123 e ss.. - Após, caso nada seja requerido no prazo constante do n.º 1 do art. 287.º do CPP, remeta seguidamente os autos para julgamento.” O crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artº11º do DL nº 454/91 de 28-12[2] é cometido nos seguintes termos: “1 - Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro: a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a (euro) 150 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque; b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; ou c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento integral referidas nas alíneas anteriores; se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com a pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se valor elevado o montante constante de cheque não pago que exceda o valor previsto no artigo 202.º, alínea a), do Código Penal. 3 - O disposto no n.º 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador. 4 - Os mandantes, ainda que pessoas colectivas, sociedades ou meras associações de facto, são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento de multas e de indemnizações em que forem condenados os seus representantes pela prática do crime previsto no n.º 1, contanto que estes tenham agido nessa qualidade e no interesse dos representados. 5 - A responsabilidade criminal extingue-se pela regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1.º-A. 6 - Se o montante do cheque for pago, com reparação do dano causado, já depois de decorrido o prazo referido no n.º 5, mas até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena pode ser especialmente atenuada.” São, assim, requisitos legais necessários ao preenchimento do tipo legal em causa: - que seja emitido e entregue a outrem um cheque, de valor superior a 150 euros; - que o respectivo valor constante do cheque não seja pago, em especial, por falta de provisão, devendo a data de emissão coincidir com a data de entrega; - resultar um prejuízo patrimonial ao tomador (ou terceiro) do cheque equivalente ao valor do mesmo. Ora, no caso em apreço, o entendimento do Tribunal a quo é no sentido de que, existindo já uma dívida fiscal, e visando o cheque emitido pelo arguido, pagar essa dívida, a falta de provisão verificada a posteriori não traduz um prejuízo para o Estado porquanto esse prejuízo já resultava da dívida fiscal. E, assim, conclui que não pode haver o crime de emissão de cheque sem provisão, tendo acabado por rejeitar a acusação, e respectivo pedido de indemnização civil, por manifestamente infundados. Não podemos, contudo, sufragar esse entendimento. Pois existe o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1/2007 de 31-11-2006 (DR Iª Série, 14-02-2007) que determinou o seguinte acerca de casos idênticos aos dos presentes autos[3]: “Integra o conceito de «prejuízo patrimonial» a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente á obrigação subjacente relativamente á qual o cheque constituía meio de pagamento.” Assim, não havendo dúvida que o valor aposto no cheque emitido e entregue pelo arguido era para satisfazer uma dívida fiscal, isto é, uma obrigação pre-existente, ao vir devolvido o cheque por falta de provisão há que considerar que existe prejuízo patrimonial para o Estado no respectivo valor constante do cheque. Conforme se esclarece no referido Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1 de 2007: “IX - Mas, aqui chegados, importa ainda distinguir entre: Prejuízo derivado do não pagamento da obrigação cartular que o cheque consubstancia; Prejuízo derivado do não pagamento da obrigação subjacente à emissão do cheque. X - Se se entendesse que estava em causa apenas o não pagamento da obrigação cartular, ficaria por compreender a necessidade de referência ao prejuízo patrimonial no corpo do artigo, já que a alínea a) daquele n.º 1 alude a “cheque que não seja integralmente pago”, a alínea b) ao impedimento do “pagamento do cheque” e a alínea c) ao endosso do cheque não pago. Seria redundante a exigência se o prejuízo patrimonial, coincidisse com o que é referido em tais alíneas. Haveria uma repetição incompreensível e, assim concluindo, estaríamos a violar as regras interpretativas, mormente a do n.º 3, 2.ª parte, do artigo 9.º do Código Civil. Por outro lado, este afastar da relação cambiária para estes efeitos encontra eco no teor do n.º 2 do artigo.º11.º-A do mesmo DL, que estatui que a queixa deve conter a indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente. Tal, efectivamente, não pode deixar de ser interpretado como exigência de que o cheque relevante para efeitos do crime que vimos abordando, é aquele que foi emitido tendo subjacentemente uma obrigação. Assumiu, aliás, esta interpretação o próprio legislador ao escrever no preâmbulo referido “que o cheque não pago há-de ter sido emitido e entregue para cumprimento de uma obrigação”. Nos trabalhos preparatórios que estiveram na base deste Decreto-Lei, chegou mesmo a sugerir-se que se alterasse a epígrafe do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, porquanto “do que verdadeiramente se trata é de defraudação através da utilização de cheque”- Germano Marques da Silva, Regime Jurídico-Penal dos Cheques Sem Provisão, 42. Tendo este mesmo autor reiterado esta ideia ao afirmar (agora em O Novo Regime Penal do Cheque Sem Provisão, 74) que “é necessária a existência de uma relação jurídica subjacente à emissão do cheque, sem o que não se configurará o prejuízo patrimonial que constitui elemento essencial do crime de emissão de cheque sem provisão. Com esta exigência lá se foi, para efeitos penais, a característica da abstracção do título!” O cheque tem, agora, afinal, uma função de protecção do tomador quanto ao ressarcimento de obrigação subjacente. Como diz Grumecindo Bairradas, O Cheque Sem Provisão, 150 “a razão de ser da incriminação, o seu fundamento de legitimidade, está na protecção ao direito do tomador a receber o valor do crédito para cujo pagamento o cheque foi emitido.” XI – Se assim é, como é, o prejuízo patrimonial há-de situar-se na não satisfação da obrigação subjacente. É este o entendimento de Germano Marques da Silva, O Regime Jurídico-Penal dos Cheques Sem Provisão, supra já citado, páginas 52 e seguintes, de Taipa de , Crime de Emissão de Cheque sem Provisão, 49 e de Fernando Lobo, Legislação Sobre o Cheque, 37. E mesmo Grumecindo Bairradas, que, por razões de constitucionalidade, defende uma interpretação restritiva do conceito de prejuízo, não deixa de afirmar que: “o processo legislativo que deu origem ao DL n.º316/97 decorreu com ampla transparência e não há agora nenhuma dúvida de que a intenção do legislador foi a de atribuir ao conceito de prejuízo patrimonial” não apenas a “frustração do direito a receber o valor do cheque”, mas ainda que esta seja “acompanhada da frustração do pagamento da dívida derivada da relação jurídica causal” (ob. cit., 154 e 157). É, pois, na não satisfação da obrigação subjacente que se há-de situar a conceptualização do “prejuízo patrimonial” constante do texto legal. XII - Assim colocada a questão, podem considerar-se emergentes dúvidas de constitucionalidade. Ponderar-se-ia, então, se afinal não estamos a tutelar penalmente o não pagamento de dívidas, com possibilidade de invasão do campo, excluído constitucionalmente, da prisão por dívidas. Este Tribunal já decidiu pela inconstitucionalidade (Ac. de 20.1.99, processo n.º 1301/97) e, na doutrina, vozes têm vindo a lume que a defendem. Já referimos, nomeadamente, Grumecindo Bairradas e a sua posição restritiva, por razões constitucionais, do conceito de prejuízo patrimonial para estes efeitos. Representou, todavia, um marco incontornável o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º663/98, de 25.11 que, a nosso ver, afastou a inconstitucionalidade em entendimento – que subscrevemos – de que “um dos princípios constitucionais que fundamentam a proibição de prisão por dívidas é o princípio da culpa”. Por isso, o crime de emissão de cheque sem provisão, ao encerrar um comportamento doloso, não tem mácula de inconstitucionalidade. No sentido da não inconstitucionalidade pronunciaram-se também Taipa de (ob. cit. 22) e Germano Marques da Silva (Novo Regime do Cheque sem Provisão, já citado, 75).” Face ao exposto e sem necessidade mais considerandos, constata-se que o Tribunal a quo andou mal ao não admitir a acusação e pedido de indemnização civil, devendo o presente recurso proceder. Decisão: Em face do acima exposto concede-se provimento ao recurso interposto pelo MºPº, e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por um que receba a acusação bem como o pedido de indemnização civil e designa oportuna data para julgamento. Sem Tributação. Lisboa, 24 de Fevereiro de 2021. Florbela Sebastião e Silva Alfredo Costa _______________________________________________________ [1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”. [2] Com a última alteração operada pela Lei nº 66/2015 de 06-07. [3] Cfr. se anuncia no referido AFJ: “Ambas as dívidas (nos julgados opostos) tinham a natureza de fiscais, sendo credor o Estado. Mas não é nessa natureza que se situa a questão, já que ela não interfere com qualquer construção possível sobre o referido elemento essencial. A questão situa-se, pois, em saber se, preenchido e entregue um cheque para pagamento de uma dívida, o não pagamento da quantia que ele titula preenche o conceito de “prejuízo patrimonial” para efeitos do mencionado artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12.” |