Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALFREDO COSTA | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/08/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
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Sumário: | Se o Tribunal, a partir da matéria acusada/pronunciada que se provou em julgamento, efetua um enquadramento jurídico-penal diverso do que constava da acusação, por força da simples interpretação e aplicação da lei, para um “minus”, sem prévia comunicação ao arguido nos termos do artigo 358º, números 1 e 3 do Código de Processo Penal, não pratica nenhum vício processual. Independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante, para que se verifique o crime do artº 153º do CP, é a possibilidade do anúncio contido na mensagem ser idóneo a provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afete ou prejudique a sua liberdade de determinação e ação. Sendo a falta de acusação particular (com prévia constituição de assistente) insuscetível de suprimento, a sua verificação na fase de julgamento ou de recurso impede o prosseguimento do procedimento criminal pelo crime respetivo se a questão se colocar até ao encerramento da audiência ou a condenação do arguido nas hipóteses em que a questão se coloque depois daquele, nomeadamente em resultado da qualificação jurídica dos factos provados operada na sentença. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 3ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa: I -RELATÓRIO 1.1. Nos autos de Processo Comum Singular, com o n.º 56/17.7T9OER, a correrem termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Oeiras - JL Criminal - Juiz …, em que é arguido ND…, com TIR de fls. 268, foi proferida acusação pelo Ministério Público de fls. 302 a 310 para a qual remete a decisão instrutória a fls. 424, por factos que consubstanciam a prática pelo arguido, como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea a) e n.º 2, al. a) do Código Penal. O tribunal recorrido decidiu: Pelo exposto e decidindo, julga-se a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente, ABSOLVE-SE o arguido ND… da prática como autor material de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 al. a) e 2 al. a) do Código Penal, que lhe era imputado; mas convola-se tal crime para um crime de ameaça simples e um crime de ameaça agravada e CONDENA-SE o arguido ND… pela prática como autor material, em concurso efetivo, de: A) um crime de ameaça simples p. e p. nos artigos 153º n.º 1 do Código Penal, na pena de 60 (SESSENTA) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 10€ (DEZ EUROS) o QUE PERFAZ UM TOTAL DE 600€ (SEISCENTOS EUROS); E B) um crime de ameaça agravada p. e p. nos artigos 153.º n.º l e 155º n. 1 alínea a), ambos do Código Penal, na penas de 120 (CENTO E VINTE) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 10€ (DEZ EUROS) O QUE PERFAZ UM TOTAL DE 1.200€ (MIL E DUZENTOS EUROS); e) operando o cúmulo jurídico (artigo 77.º do Código Penal), decide-se condenar o arguido na pena única de 150 (CENTO E CINQUENTA) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 10€ (DEZ EUROS) O QUE PERFAZ UM TOTAL DE 1.500€ (MIL E QUINHENTOS EUROS). Custas criminais pelo arguido as quais se fixam em 3 (três) UC de taxa de justiça (artigo 8º n.º 5 do Regulação das Custas Processuais e tabela III anexa a este diploma) e nos demais encargos do processo (cf. artigo 16º do Regulamento das Custas Processuais). Proceda ao depósito. * Após trânsito, remeta boletins à DSIC. * 1.2. O arguido ND… inconformado com a decisão, interpôs recurso para este Tribunal da Relação com os fundamentos constantes da respectiva motivação e apresentou as seguintes conclusões: A) DA NULIDADE DO DECISÓRIO- Da alteração da qualificação jurídica do crime imputado ao arguido- decisão surpresa- incorreta aplicação do Art.º. 358 do CPPenal 1. Conforme é bem de ver, o libelo acusatório dirigido ao Arguido, imputava-lhe ( e mal..), um crime de violência doméstica p.p. pelo artigo.... do CPenal. 2. Sucede que, mercê da produção de prova em sede de audiência de julgamento, veio a Juiz “A quo”, entender, condenar o arguido não por um crime, mas antes sim por dois crimes (Ameaça simples e Ameaça agravada), sem em qualquer momento, esboçar a menor intenção de “avisar” o Arguido da sua intenção ou desiderato. 3. Tanto é que, “apagando” o disposto no artigo 358 do CP Penal, guarda para o Tribunal e para si, a “Surpresa”, que viria a notificar o Arguido unicamente no momento da leitura da sentença condenatória, i.e., 4. O Arguido preparara a sua defesa técnica e jurídica num determinado sentido (face a complexidade jurídica do crime de violência doméstica), sendo depois surpreendido, sem apelo nem agravo, no momento da decisão, com a imputação de 2 crimes, de natureza diga-se menos complexa, mas divergentes no bem jurídico tutelado, assim como a tipologia técnica da defesa a apresentar em sede de julgamento ( que o mesmo, tinha por bem, não poderem ser considerados na sua individualidade, por se mostrarem precludidos para fins criminais). 5. Como é de linear entendimento, os bens jurídicos tutelados pelos crimes em confronto (violência doméstica e ameaça), são absolutamente diferentes, pelo que tal entendimento, levado em raciocínio jurídico puro, permitiria sempre e a bom entender técnico, “ reavivar” ad eternum factos mortos para o direito criminal. 6. Recebendo o Ministério Público, denuncia criminal de uma bateria de factos dependentes de queixa crime ou de acusação particular, considerados per si individualmente, em que a falta de queixa no prazo de queixa (6 meses) ou a falta de constituição de assistente ou dedução de acusaçao particular, teriam estabilizado a realidade jurídica tout court, não permitindo mais perseguição criminal. 7. Facilmente ultrapassaria tais “detalhes”..... Coligiria os vários crimes em desfile (ameaça simples; injurias simples, etc), juntando-os num caldo jurídico, bastando a final, concluir pela imputação de um crime de violência doméstica ao Arguido.[1] 8. Acresce ainda o absoluto viés criado pela metodologia vinda de citar, ao nível da prova: Em qualquer tipo de crimes mais simples (ameaça simples; injurias, etc), o visado assume o papel de queixoso, sendo as suas declarações nos autos tomadas em tal qualidade, o mesmo se aplicando em sede de audiência de julgamento; NO ENTANTO, CAPEANDO OS AUTOS, com as vestes de crime público complexo ( violência doméstica), a posição processual do Réu, é reduzida a mais simples impossibilidade de defesa 9. Pelo que, sempre caberia ao Juiz “A Quo”, em cumprimento da lei e, por forma a evitar “decisões surpresa”, antes de proferir sentença, lançar mão do preceituado no artigo 358 do CP Penal. 10. A tal não ter feito, inquinou de nulidade a sentença ora em sindicância, por violação do disposto no artigo 358 do CPPenal (al. 1 a 3), consequência que desde já se requer o seu decretamento, com as legais consequências. B) A sentença em sindicância, relativamente à condenação pelo crime de ameaça simples viola os art.s 115, 118 do CPPenal e 153. N.2 do C.Penal- Caducidade do direito de queixa e falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução criminal. Incorreta aplicação do Direito ( Normas jurídicas). 11. Conforme resulta da sentença em sindicância, foi dado como provado pelo Tribunal “A Quo” , nos pontos 9 e 10 o seguinte ( fls. 3 da Douta Sentença). 12. Em consequência de tal bateria de factos dados como provados, entendeu o Tribunal “A Quo”- Fls 16 e 17 da Sentença Condenatória, condenar o Arguido por um crime de ameaça simples, a uma pena de 60 dias de multa, á razão diária de 10 euros/dia. 13. Efetivamente, o aludido procedimento criminal – ameaça simples 153. CPP, depende de queixa por parte do alegado ofendido- n. 2 do preceito vindo de citar. 14. Nos termos do artigo 118.º do C.P.Penal, a queixa deverá ser apresentada no prazo de 6 meses após a concretização do facto ( genericamente). 15. Assim sendo, dando-se por assente que os factos imputados remontam a janeiro/fevereiro de 2015 ( cfr matéria de facto provada) e que a denuncia/ queixa apresentada ao Ministério Público, data pelo menos do ano de 2017 ( que deu origem aos presentes autos), é por demais evidente, que o direito de Acão do Ministério Público face ao crime de ameaça simples, já se havia esgotado aquando da prolação da acusação em causa. 16. Assim sendo, sobre tal factualidade que culmina em condenação do Réu, o mesmo teria de forçosamente ter sido arquivado, por se mostrar postergado o direito de queixa por parte do visado- artigos 115 e segs do C.Penal, o que inquina de nulidade a presente Sentença por violação dos artigos 115, 118 do CPenal. 17. De igual sorte, sempre se imporia ao Tribunal “A quo” abster-se de condenar o Arguido pelo Crime de Ameaças simples, porquanto o mesmo sempre dependeria de Queixa efectuada nos 6 meses subsequentes- Arts. 115 e 118 do C.P.Penal, sendo que entendimento diverso, discorre incorrecta aplicação das normas jurídicas vindas de citar. C) Do crime de ameaça Agravado- Erro de julgamento e Erro na aplicação do direito - Art.s 153 e Segs. Do C.Penal 18. Conforme se recorta da sentença em sindicância, o Tribunal “A Quo” deu como provado sob o ponto 14. da matéria assente, (fls. 4 da sentença condenatória). 19. Em virtude de tal, entendeu o Tribunal “A quo”, condenar o Arguido a uma pena de 120 dias de multa, pelo crime de ameaça agravada, sendo que , andou mal o Tribunal “A quo . Estabelece o art. 153º nº 1 do C. Penal: “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias”. 20. O bem jurídico aqui protegido é a liberdade de decisão e de acção. 21. Parece linear entendimento, que a expressão proferida,(o mal com que o arguido ameaçou a ofendida) NAO ERA DEPENDENTE DA VONTADE DO AGENTE ! 22. A expressão usada pelo arguido, condiciona o anúncio desse mal a uma conduta específica da ofendida “Juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer um deles ” 23. Este é pois um anúncio de um mal que só ocorrerá se a ofendida agir de determinada forma, portanto um anúncio destinado a dissuadir a mesma de adotar determinado comportamento. 24. Ou seja, em momento algum o controlo esta dependente do agente, antes sim condicionado a uma conduta eventual na livre disponibilidade da Ofendida. 2 25. O arguido quis constranger a ofendida a uma omissão, a de esta deixar de coartar os direitos dos seus filhos, através do “descarregar” física e mentalmente as suas frustrações pessoais nos filhos do casal 26. Na verdade, no contexto em que o arguido proferiu a expressão- discussão via e-mail, com conhecimento de 3.os nesse mesmo e-mail, não se revela adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação da ofendida, dado que 2 Tale quale, quando um policia de choque, avisa os adeptos de um estádio que se voltam a passar determinada barreira, o mesmo agirá contra eles! apenas constitui um anúncio que a motivará a conformar-se com o direito, de modo a respeitar a integridade física e mental dos filhos de ambos. 27. O crime de ameaça não se compadece com a subordinação da concretização do mal ameaçado a uma condição dependente da vontade do próprio agente, realidade que cremos por lapso, escapou à analise do Tribunal “ A Quo”. 28. Pelo que, o Tribunal “A quo” fez uma incorrecta aplicação do direito- mormente do artigo 151 do CPPenal, sendo certo que, pelos fatos dados como provados, não se mostra preenchido o elemento objetivo do crime de ameaça agravada, porquanto o condicionamento da ameaça a uma omissão da Queixosa, não se enquadra no tipo criminal em causa, impondo-se a absolvição do arguido, porquanto deve ser entendido, que na presente situação não se mostra preenchido um dos elementos objectivos do crime de ameaça ( livre disposição do agente). * 1.3. O Ministério Público respondeu ao recurso com as seguintes conclusões: 1.º - Quando a alteração da qualificação jurídica subjacente a uma condenação represente apenas um minus em relação à incriminação da acusação (ou seja quando os elementos constitutivos dos crimes pelos quais o arguido vier a ser condenado estejam abrangidos na tipicidade do crime pelo qual tinha sido acusado) não se impõe a realização de qualquer comunicação ao arguido nos termos e para os efeitos do artigo 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. 2.º - Nos presentes autos, os factos dados como provados na sentença recorrida constavam todos eles da acusação e os tipos de crime pelos quais o arguido veio a ser condenado (ameaça simples e ameaça agravada) constituem apenas um minus, quando comparados com aquele pelo qual vinha acusado (violência doméstica) na exacta medida em que, todos os elementos constitutivos dos concretos crimes de ameaça pelos quais o arguido foi condenado se encontram integrados (numa relação de especialidade) na tipicidade do crime de violência doméstica pelo qual o arguido vinha acusado. 3.º - Por conseguinte, a sentença recorrida não padece de qualquer nulidade por omissão do cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (artigo 379.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal). 4.º - Não foi exercido, no prazo legal de seis meses previsto no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, o direito de queixa por parte da ofendida CS… relativamente aos factos elencados nos pontos 9 e 10 da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida, integradores do crime de ameaça simples pelo qual o arguido foi condenado. 5.º - Deve, por conseguinte, revogar-se a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pelo crime de ameaça simples, por carecer o M.º P.º de legitimidade para exercer a acção penal relativamente aos factos subsumíveis a esse ilícito. 6.º - O sentido da expressão “juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer deles, te mando por a cabeça no Tejo” (ponto 14 da matéria de facto), pelo subjectivismo e abstracção que comporta, não permite configurar qualquer conduta concreta (conforme ou não ao direito) a cuja prática ou omissão o arguido visasse constranger a ofendida. 7.º - No seu conjunto, tal expressão tem, para qualquer cidadão médio colocado no papel e contexto da vítima, o sentido unívoco: “se não agires como eu entendo que deves agir em relação aos nossos filhos, mando-te matar” 8.º - Nesta perspectiva, o mal anunciado pelo arguido está única e exclusivamente dependente da sua vontade, assim se verificando todos os elementos integradores objectivos do tipo de crime de ameaça agravada pelo qual o arguido foi condenado, pelo que, nessa parte, deverá manter-se a sentença recorrida. 9.º - A sentença recorrida não violou o disposto nos artigos 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e 153.º, n.º 1 do Código Penal. * 1.4. Nesta instância, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o art. 417º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de dever ser dado provimento parcial ao recurso interposto. Entende o Exmº. Procurador-Geral Adjunto que deve ser revogada a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de ameaça simples, por falta de legitimidade do MP para exercer a ação pena no que concerne a este crime. * Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta. * 1.5. Foi proferido despacho a convidar os recorrentes a apresentaram conclusões em conformidade com o disposto no 412.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal. Cumprindo o ordenado, vieram os recorrentes apresentar novas conclusões em conformidade com o artigo 412º, números 1 e 2 do Código de Processo Penal. * 1.6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. b) do citado código. * II – FUNDAMENTAÇÃO 2. 1. – Objeto do Recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3]. Assim sendo e face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes: a) Da alteração da qualificação jurídica do crime imputado ao arguido; b) Caducidade do direito de queixa e falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução criminal; c) Erro de julgamento e Erro na aplicação do direito; * 2.2. – A sentença recorrida na parte que importa tem o seguinte teor: “II. FUNDAMENTAÇÃO A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO FACTOS PROVADOS Com relevância e interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido foi casado com CI… entre 25 de setembro de 2004 e 15 de janeiro de 2014. 2. Desse casamento nasceram dois filhos: RM… (em 26/05/2007) e FM… (em 11/11/2011). 3. Durante o casamento, residiram na Av. …, n.º …, ….º C, em Carnaxide, concelho de Oeiras. 4. Desde o início do casamento que o arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso, aparentando, por várias vezes, estar embriagado, e iniciava discussões com CS…. 5. Devido ao desgaste da relação, o arguido e CS… acabaram por se separar em finais de 2013 e o divórcio ocorreu em 15 de janeiro de 2014. 6. Desde então, e apesar de existir um acordo homologado judicialmente quanto à regulação das responsabilidades parentais dos menores, o arguido e CS… passaram a discutir por motivos relacionados com os filhos de ambos. 7. Assim, desde então, e por várias vezes em discussões que tiveram acerca dos filhos de ambos, o arguido apelidou CS… de «maluca» e «puta» e disse-lhe «não me chateies», «mete-te na tua vida», «vais ficar sem os teus filhos». 8. Nalgumas destas situações a queixosa retorquia apelidando o arguido de «porco», «ordinário», «javardo». 9. Em data não concretamente apurada, mas situada em janeiro/fevereiro de 2015, na sequência duma discussão com CS… quando esta foi buscar os filhos menores e, na presença do menor R…, o arguido disse-lhe: «o que é que tu queres sua puta?». 10. De seguida, após CS… ter ido deixar o menor ao carro, o arguido disse a esta: «qualquer dia parto-te as rótulas». 11. Em data não concretamente apurada, mas situada em meados de julho ou agosto de 2015, num telefonema o arguido disse a CS… que não ia pagar o que lhe devia referente à pensão de alimentos dos menores, nomeadamente: «pensas que vou sustentar a tua vida de puta, andas a passear às minhas custas». 12. Em 3 de setembro de 2015, pelas 18h22, no decurso de uma troca de mensagens referente às visitas dos menores, o arguido enviou a seguinte mensagem a CS…: «Andas mesmo a brincar!!! Acredita que isto vai acabar mal mesmo». 13. Em meados de setembro de 2015, ao ser confrontado por CS…, por telefone, de que havia adormecido e causado preocupação ao filho mais velho, o arguido disse àquela: «Oh pá, não me chateies» e desligou o telefone, tendo de seguida dito ao menor R…: «desaparece tu também daqui, estás sempre a chatear-me.» 14. No dia 10 de abril de 2016, às 18h30, o arguido, através do email …@gmail.com, enviou a CS…, para o email desta (…@gmail.com), com o conhecimento de terceiras pessoas (que faziam parte do conselho de família criado no acordo de regulação das responsabilidades parentais), o seguinte email: «(…) Juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer um deles te mando por a cabeça no Tejo. (…) Comigo diz, faz, reporta, abanas o que quiseres que eu mando-te para onde bem entendo.» 15. No dia 13 de fevereiro de 2017, pelas 13h26, na sequência de uma troca de emails referente à alimentação dos filhos menores, o arguido enviou a CS… um email, dizendo-lhe, nomeadamente: «(…) Deverás ponderar bem a questão das acções judiciais antes das apresentares! Sabes que ligo pouco a atoardas mas… mesmo a parvoíce terá de ter limites (…)». 16. No dia 23 de maio de 2017, pelas 22h03, na sequência de uma troca de mensagens escritas, o arguido enviou a CS… a seguinte: «Andas a ligar para a portaria da minha casa cito “muito nervosa” para tentares montar mais um processo crime??? Tens de ser melhor!!! Parece que vai sair mais um arquivozinho daquele processo parvinho que montaste anteriormente contra mim serzinho». 17. No dia 14 de junho de 2017, pelas 22h19, na sequência de uma troca de emails referente às férias dos filhos menores e a faltas dos mesmos na escola, o arguido enviou a CS… um email com o seguinte conteúdo: «Tens razão. Eu sou pouco diligente e tu és muito caprina, cada um com as suas características». 18. No dia 6 de março de 2018, pelas 19h45, o arguido dirigiu-se à Rua …, em Carnaxide, e ao ver que aí se encontrava CS…, estacionou a sua viatura automóvel de modo a impedir a saída da viatura daquela, e quando esta lhe pediu que retirasse o veículo, disse-lhe: «vai-te foder, vai para a puta da tua mãe, tu vais ver o que te vai acontecer». 19. Encontra-se a correr processo n.º …/…T8CSC no Juízo de Família e Menores de Cascais J…, de Alteração de Regulação das Responsabilidades Parentais dos menores R… e F… e, em 7 de novembro de 2018, foi fixado um regime provisório, tendo sido estipulado que os menores ficam confiados à guarda e cuidados da mãe, com quem residirão, e as responsabilidades parentais serão exercidas exclusivamente pela mãe em virtude de o arguido não ter comparecido à audição de partes. 20. Nestas ocasiões, agiu o arguido com intuito de molestar psicologicamente a sua ex-mulher, perturbá-la, atemorizá-la e diminuir a sua honra e consideração, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a causar medo e inquietação de que pudesse atentar contra a sua vida ou integridade física, como efetivamente causaram, de lhe limitar a sua liberdade de movimentação e de lhe causar sentimentos de ansiedade, vergonha e humilhação. 21. Ao proferir as expressões supra descritas, quis também o arguido causar-lhe sofrimento e humilhação, o que conseguiu, sabendo que as mesmas atingiam a honra e consideração pessoal da CS…, que a vexavam e perturbavam, bem sabendo que lhe devia especial consideração, por esta ter sido sua mulher e ser a mãe dos seus filhos. 22. Agiu em todas as condutas acima descritas de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e punidas pela lei penal. 24. O arguido é consultor de investimento auferindo mensalmente cerca de 1.200€. 25. Reside sozinho numa casa arrendada pela qual paga mensalmente a quanta de 400€. 26. É licenciado. 27. O arguido foi condenado nos autos de processo sumaríssimo n.º …/…PATVR que correram os seus termos no Juízo de Competência Genérica de Tavira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, por factos praticados a 9 de maio de 2014 e sentença transitada em julgado a 29 de abril de 2016, pela prática de um crime de falsas declarações, na pena de 150 dias de multa à razão diária de 8€, pena esta que foi já declarada extinta pelo cumprimento. 28. Mais foi condenado nos autos de processo comum singular n.º …/…PEAMD que correram os seus termos no Juiz … do Juízo Local Criminal de Oeiras do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, por factos praticados a 1 de setembro de 2015 e sentença transitada em julgado a 6 de junho de 2017, pela prática de um crime de violação da obrigação de alimentos, na pena de 120 dias de multa à razão diária de 10€, pena esta que foi já declarada extinta pelo pagamento. 29. O arguido foi ainda condenado nos autos de processo comum coletivo n.º …/…TDLSB que correram os seus termos no Juiz … do Juízo Central Criminal de Lisboa, por factos praticados em 2015 e acórdão transitado em julgado a 20 de dezembro de 2017, pela prática de um crime de contrafação de documentos de um crime de prevaricação de advogado, na pena de 2 anos e 9 meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período com regime de prova. * FACTOS NÃO PROVADOS Nada mais se provou com interesse ou relevância para a decisão da causa e designadamente que, a) Por diversas vezes, dirigindo-se a CS…, o arguido disse: «vai à merda», «não vales nada», «nem sabes o que te vai acontecer», «és um nojo». b) Nas circunstâncias descritas em 9. o arguido disse ainda «Deves julgar que eu tenho medo de ti! Vai para o caralho, quero lá saber, desaparece daqui». c) Numa ocasião, situada no início de 2017, pelas 19h00, porque CS… lhe telefonou para saber onde se encontrava, uma vez que os filhos deveriam estar na natação, o arguido disse-lhe: «vai à merda, mete-te na tua vida», desligando-lhe o telefone. d) No dia 25 de março de 2017 (Sábado), quando CS… foi entregar os seus filhos a casa do arguido, sita na Av. …, …, …º Dt.º, em Algés, e lhe disse que o filho mais novo estava doente, o arguido respondeu-lhe: «deves estar é maluca». e) Em 8 de junho 2018, pelas 17h00, devido a questões relacionadas com o período de visitas dos menores ao progenitor, o arguido disse a CS…, no decurso de uma chamada telefónica efetuada em alta voz, e na presença do filho R…: «puta do caralho, é sempre a mesma merda com esta vaca.» f) Como CS… chamou o arguido à atenção pelo facto de o menor estar a ouvir a conversa, o arguido disse-lhe: «quero lá saber, quero que te fodas». g) O arguido não se coibiu de atuar como descrito, ao longo de vários anos, sabendo que o fazia na presença dos filhos menores e em desconsideração de ambos, podendo afetar o normal e são desenvolvimento destes. * MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO No apuramento da factualidade provada o Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e, designadamente, nas declarações do arguido e da queixosa, nos depoimentos das testemunhas inquiridas e nos documentos juntos aos autos. Assim e concretizando, a factualidade vertida nos pontos 1. a 3. e 5., resultou provada da conjugação das declarações do arguido com o depoimento da queixosa, os quais foram consentâneos, e ainda da análise do teor dos assentos de nascimento e de casamento juntos a fls. 296 a 298 e 300. No que respeita ao ponto 4., pese embora tenha sido negado pelo arguido que durante a constância do casamento ingerisse bebidas em excesso, alegado que ambos bebiam em ocasiões sociais, tal resultou provado quer do depoimento da queixosa quer do depoimento das testemunhas LS… e AC…, suas amigas, com as quais a queixosa confidenciava durante o casamento e confidenciou na sequência da separação, as quais depuseram de forma clara, coerente e circunstanciada, merecendo credibilidade. O ponto 6. resultou provado da conjugação das declarações do arguido com o depoimento da queixosa, CS…, tendo ambos sido unânimes em confirmar as discussões que amiúde se verificavam e ainda verificam, ainda que cada um atribua a culpa pelas mesmas ao outro (a assistente acusa o arguido de negligência e o arguido acusa a queixosa de se estar sempre a meter entre ele e os filhos, estando sempre a arranjar motivos para haver conflitos sem qualquer razão). Os factos descritos no ponto 7. resultaram provados da conjugação das declarações do arguido que admitiu ter proferido algumas das expressões que lhe eram imputadas na sequência de discussões tidas com a queixosa, com o depoimento da queixosa e das testemunhas EJ…, PM…, LSV… e AC…. Assim, o arguido admitiu apelidar a queixosa de «maluca» e lhe dizer «não me chateies» e «mete-te na tua vida». A assistente confirmou as expressões «puta» e «vou-te tirar os filhos». A testemunha AP…, secretária da queixosa confirmou a expressão «puta» (ouvida em telefonemas colocados pela queixosa em alta voz), EJ… (pai da queixosa) a expressão «puta», a qual foi igualmente confirmada pela testemunha PM… (irmão da queixosa), tendo ambos ouvido o arguido dirigir tal expressão à queixosa em telefonemas colocados pela mesma em alta voz. A testemunha LSV…, por seu turno, confirmou ter ouvido o arguido a apelidar a queixosa de «puta» em várias situações, quando se encontrava com a mesma e esta colocava o telemóvel em alta voz e que esta retorquia apelidando-o de «porco» e «ordinário». A testemunha AC… confirmou igualmente ter assistido ao arguido a apelidar a queixosa de «puta» em conversas telefónicas acerca dos filhos de ambos (situações em que estavam no carro e a chamada estava, por isso, em alta voz), referindo ainda que a queixosa retorquia apelidando-o de «porco», «javardo». Os pontos 9. e 10. resultaram provados da conjugação do depoimento da queixosa com a demais prova produzida da qual decorre patente um contexto de conflituosidade relacionado com o exercício das responsabilidades parentais dos filhos do arguido e da queixosa, na sequência da separação e subsequente divórcio. Efetivamente, pese embora o arguido tenha negado ter proferido tais expressões referindo não dizer asneiras à frente dos filhos, a verdade é que tendo a queixosa revelado recordar-se da situação em apreço e tendo deposto de forma clara, coerente e circunstanciada, mereceu o seu depoimento mais credibilidade do que o depoimento do arguido uma vez que não só o epíteto utilizado foi confirmado como sendo comummente usado pelo arguido dirigindo-se à queixosa nos telefonemas em que surgiam discussões acerca dos menores, como dada a conflituosidade existente é plausível que o arguido tenha proferido tais expressões. Temos, pois, que ainda que o arguido tenha negado tal factualidade, dúvidas não nos restaram em dar a mesma como provada. O ponto 11. resultou provado do depoimento da queixosa que revelou recordar-se da situação em apreço, sendo que ainda que o arguido não tenha admitido ter proferido a expressão em concreto confirmou ter dito à queixosa que não iria pagar a pensão de alimentos dos meses de julho e agosto em virtude dos filhos de ambos irem passar 15 dias com cada um e como tal entender que não havia lugar ao pagamento da pensão de alimentos. Referiu ainda o arguido que depois de ter falado com o padrinho do filho, um dos membros do «conselho de família» que acordaram constituir aquando da regulação das responsabilidades parentais, acabou por pagar esses dois meses, tendo apenas deixado de pagar em outubro seguinte. Ora, considerando o clima de animosidade vivenciado por arguido e queixosa e considerando ainda que a queixosa confirmou o teor da expressão utilizada o que fez de forma clara e espontânea, dúvidas não nos restaram, igualmente, em dá-la como provada. No que respeita ao ponto 12., resultou o mesmo provado do teor da mensagem constante de fls. 48 conjugado com as declarações do arguido que a confirmou ter enviado à queixosa. Os factos constantes do ponto 13. resultaram provados da conjugação das declarações do arguido que os confirmou, referindo ter adormecido ao adormecer o seu filho mais novo e ter sido acordado pelo filho mais velho, ao telefone com a mãe, que o confrontou, exaltada, com o sucedido. Baseou ainda o tribunal a sua convicção no depoimento da queixosa que confirmou tal factualidade. O ponto 14. resultou provado da conjugação das declarações do arguido que confirmou ter remetido o email em causa, tendo explicitado que o fez por sentir que o filho estava a ser demasiado pressionado pela mãe para praticar um desporto que não gostava, situação que o revoltava, com o teor do email junto aos autos a fls. 7 do Apenso I. O ponto 15. resultou provado das declarações do arguido que confirmou que enviou o email em causa com o teor do documento junto a fls. 138. No que respeita à factualidade vertida no ponto 16. resultou a mesma provada da conjugação das declarações do arguido com o teor de fls. 191. Efetivamente, o arguido referiu ter enviado o email em causa na sequência da queixosa ter ligado para a portaria do seu prédio, muito nervosa, a perguntar por ele e pelos filhos, referindo que o fez na sequência dele ter saído de casa para os deixar em casa da queixosa por volta das 21h38 estando de regresso por volta das 22h03. Segundo o arguido apesar de ter sido definido na regulação das responsabilidades parentais a entrega dos menores em casa da mãe às 22h, costumava ir levá-los por volta das 21h30 mas nesse dia saiu um pouco mais tarde de casa e foi logo motivo para a queixosa ligar para a portaria do prédio à usa procura. Relativamente ao ponto 17. resultou o mesmo provado da conjugação das declarações do arguido, que confirmou o seu teor e autoria (referindo que a referência caprina se ficou a dever às características «ruminantes» da queixosa por estar sempre a repisar as mesmas questões) e ainda o documento junto a fls. 203. No que concerne ao ponto 18., resultou o mesmo provado da conjugação das declarações do arguido que confirmou que no dia em questão se deslocou à piscina onde os filhos têm natação e que a queixosa o informou que não poderia levar consigo os filhos para casa, suspendendo de forma unilateral o regime de visitas acordado. Ora, considerando qua situação terá, muito provavelmente, causado irritação ao arguido, afigura-se-nos plausível que o mesmo tenha proferido as expressões em causa, as quais foram, na sua essência confirmadas pela assistente, sendo, pelo que ficou dito, dadas como provadas. O ponto 19. resultou provado quer das declarações do arguido, quer do depoimento da queixosa, conjugadas ainda com fls. 286 a 295. Os pontos 20. a 23. resultaram provados da conjugação de toda a prova produzida com as regras da experiência comum de acordo com as quais o arguido tinha conhecimento do carater ilícito e censurável da sua conduta, desde logo por tal ser do conhecimento do homem médio e o arguido encontrar-se, atenta desde logo a sua formação académica, acima da média. A situação pessoal e profissional do arguido decorreu das declarações prestadas pelo mesmo as quais pela sua espontaneidade mereceram credibilidade e os seus antecedentes criminais resultaram provados do teor do certificado de registo criminal junto a fls. 430 a 432. * No que respeita à matéria dada como não provada, resultou a mesma de não ter sido produzida qualquer prova, não ter sido produzida prova suficiente. Efetivamente, as expressões vertidas nas alíneas supra resultaram não provadas em virtude do arguido ter negado tê-las proferido e as mesmas não terem sido confirmadas pela queixosa ou por qualquer das outras testemunhas inquiridas em audiência. * B. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Vem o arguido acusado da prática como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea a) e n.º 2 al a) do Código Penal. Estabelece o artigo 152.º n.º 1 al. a) e 2 do Código Penal que, «1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; ; (…) é punido com pena de prisão até 5 anos se pena mais grave não lhe couber por forma de outra disposição legal. 2. No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.» Segundo Taipa de Carvalho (IN «COMENTÁRIO CONIMBRICENSE AO CÓDIGO PENAL», TOMO I, P. 332) «… o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afectado por uma multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge…». «Os bens protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e auto-determinação sexual e até a honra» como refere Paulo Pinto de Albuquerque (IN COMENTÁRIO DO CÓDIGO PENAL, UNIVERSIDADE CATÓLICA LISBOA, 2008, P. 404) O tipo assim definido tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflição de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar. O tipo objetivo do ilícito em apreço exige que a vítima seja sujeita a “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos, incluindo, segundo o dizer da própria norma, “castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais”, sendo que, com reiteração ou não, as concretas circunstâncias em que ocorreu a conduta é que serão determinantes para, a partir delas, se apurar se os factos ilícitos cometidos, valorados à luz do relacionamento entre agressor e vítima, são suscetíveis de constituir um verdadeiro atentado à dignidade desta, para além de ofenderem a integridade física ou a honra, ou atentarem contra a liberdade ou a autodeterminação sexual. Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 7 de fevereiro de 2017 (PROCESSO N.º 1816/14.6PFLRS.L1-5, IN WWW.DGSI.PT) «É essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal actuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objecto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar.» Sucede que, ainda que da matéria de facto apurada tenha resultado provado que o arguido remeteu à queixosa as mensagens e os emails com o teor dado como provado e que proferiu as expressões dadas como provadas em telefonemas efetuados, consubstanciando algumas delas a imputação à queixosa de expressões injuriosas ou a ameaças, mais ou menos veladas ou diretas, a verdade é que com todo o contexto de litigiosidade que tem pautado a relação entre ambos ao longo dos últimos anos derivada das discordâncias existentes relativamente exercício das responsabilidades parentais, não se nos afigura que se possa concluir que na relação entre ambos exista uma superioridade, supremacia exercidas pelo arguido sobre a assistente e uma subjugação desta para com o arguido caracterizadora do ilícito em apreço. Efetivamente, não só resultou provado que a queixosa retorquia às injurias contra si dirigidas apelidando o arguido de «porco», «javardo», «ordinário», o que sedimenta a convicção de estarmos perante uma relação pautada pela paridade e não pela inferiorização ou subjugação por parte da queixosa (e até de alguma preponderância da queixosa que chega a tomar decisões unilaterais de alteração do regime acordado da regulação das responsabilidades parentais), como não se pode concluir que, atento todo o contexto em que as expressões em causa foram proferidas as mesmas tenham atingido “o âmago da dignidade” da queixosa ou o “livre desenvolvimento da sua personalidade”. Assim, resultando da conjugação de toda a prova produzida que as mensagens e os emails remetidos e os telefonemas efetuados o foram no âmbito do conflito existente relativamente ao exercício do regime de visitas estipulado relativamente aos filhos de ambos e ponderando todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, o período de tempo em que decorreram e teor das expressões em causa, não se nos afigura que as mesmas, ainda que possam consubstanciar a prática doutros ilícitos (injúria e/ou ameaça), preencham o elemento objetivo do crime de violência doméstica. Como se pode ainda ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de fevereiro de 2018 (PROCESSO Nº 663/16.5 PBCTB.C1, IN WWW.DGSI.PT): «1 – A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. II - O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. III - O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.» E, bem assim, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1 de junho de 2017 (PROCESSO N.º 3/16.0PAPST.L1-9, IN WWW.DGSI.PT) que: «I - O crime de violência doméstica, autonomizado pela primeira vez pelo legislador, através da Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que alterou o Código Penal, visa proteger, em nossa opinião, não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes, ao nível do bem jurídico, a integridade pessoal, prevista no artigo 25º da Constituição da República Portuguesa, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, em que se funda o Estado Português. II - Tendo em conta a definição do tipo legal, verifica-se que o crime de violência doméstica não exige a prática reiterada dos actos objectivos previstos no mesmo por parte do agente, mas exige que os mesmos se traduzam na humilhação da vítima ou numa especial desconsideração pela mesma». Temos, pois, por tudo quanto fica dito, que não se pode deixar de concluir que ainda que o arguido e a assistente tenham tido ao longo dos últimos 5 anos uma relação muito conflituosa, com acusações mútuas acerca da forma como cada um trata os filhos de ambos, revelando uma grande dificuldade em compatibilizar as posturas adotadas e de conseguir a pacificação desejável ao saudável desenvolvimento dos mesmos em termos do exercício das responsabilidades parentais, a mesma não é subsumível ao ilícito em apreço, não podendo o arguido deixar de ser absolvido do mesmo. No entanto, subsistem os comportamentos do arguido que são, a nosso ver, integradores da prática de outros ilícitos, a saber, o crime de injúria, o crime de ameaça e o crime de ameaça agravada. Vejamos então. DO CRIME DE INJÚRIA Prescreve o artigo 181.º n.º 1 do Código Penal que, «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.» Como bem se vê, o bem jurídico protegido por estas tipificações é a honra e consideração. A proteção de tais bens é um reflexo do direito ao bom-nome e reputação constitucionalmente previstos no artigo 26.º da Lei Fundamental. O artigo 181.º tem afinidades com o crime de difamação previsto no artigo 180.º. Como referem Leal Henriques e Manuel S. Santos no seu Código Penal anotado, em comentário ao artigo 181º, «Este artigo é no fundo, o art. 180º, tendo a particularidade de se exigir aqui que a conduta seja endereçada ao próprio ofendido e na sua presença...». Assim para preencher a previsão do artigo 181.º há primeiro que fazer esta destrinça entre a ofensa à honra e consideração por interposta pessoa (difamação) e a ofensa imputada diretamente a outra pessoa (injúria). A conduta, para integrar o tipo legal, deve ser ainda adequada a produzir a ofensa nos bens jurídicos tutelados. A adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deve ser feita, não de acordo com a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja (o direito penal protege direitos fundamentais dos cidadãos e não particularidades deste ou daquele sujeito), mas sim tendo em conta a dignidade individual a que todos têm direito (dependente no entanto das diferenças no significado das expressões de região para região). Da prova produzida resulta que o arguido, dirigindo-se à queixosa, apelidou-a de «maluca» e de «puta», não pudendo deixar de concluir-se que a forma como o fez é objetivamente ofensiva da sua honra e consideração, encontrando-se, enquanto tal, preenchido o tipo objetivo do crime de injúria. O crime de injúria é um crime doloso, só estando arredadas do seu âmbito as condutas negligentes e não já as imputações baseadas tão só em dolo eventual. Deve, ainda, salientar-se que, perante a atual norma incriminadora já não é exigido um dolo específico, ou seja, não é necessário que o agente atue com o propósito de ofender, bastando por si só, que as palavras proferidas pelo agente sejam consideradas como objetivamente injuriosas. Ora, ficou igualmente provado que atuou da forma descrita, querendo sempre atingir, como atingiu, a assistente, no seu bem-estar emocional o que alcançou, tendo agido voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei, estando, assim, preenchido o elemento subjetivo do tipo de ilícito e provada a sua culpa. Não se verificam quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade. Sucede que, sendo o crime de injúria um crime particular e dependendo, por isso, da constituição como assistente a ofendida e da dedução de acusação particular, considerando que a ofendida não se constituiu como assistente, carece o Ministério Público de legitimidade para a prossecução da ação penal. Temos, pois, que em relação a este ilícito não podo o arguido ser condenado. * DO CRIME DE AMEAÇA E AMEAÇA AGRAVADA Resultou ainda provado que em data não concretamente apurada, mas situada em janeiro/fevereiro de 2015, o arguido iniciou uma discussão com CS… quando esta foi buscar os filhos menores e, na presença do menor R…, disse-lhe: «o que é que tu queres sua puta?». De seguida, após CS… ter ido deixar o menor ao carro, o arguido disse a esta: «qualquer dia parto-te as rótulas». Mais se provou que no dia 10 de abril de 2016, às 18h30, o arguido, através do email …@gmail.com, enviou a CS…, para o email desta (…@gmail.com), com o conhecimento de terceiras pessoas, o seguinte email: «(…) Juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer um deles te mando por a cabeça no Tejo. (…) Comigo diz, faz, reporta, abanas o que quiseres que eu mando-te para onde bem entendo.» Dispõe o artigo 153.º n.º 1 do Código Penal que, «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.» O bem jurídico protegido pela norma em apreço é a liberdade de decisão e de ação. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade. Segundo Taipa de Carvalho, (IN «COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL» TOMO 1, P. 343), são três as características essenciais do conceito de ameaça: a) um mal, b) futuro, c) cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de ser futuro («O mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça») e tem ainda de depender da vontade do agente, ou seja, de estar apenas na disponibilidade deste. Por outro lado, o crime é doloso, isto é, o agente tem de agir com a consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade do ameaçado. Ora, a factualidade dada como provada permite a subsunção da conduta do arguido no ilícito em apreço. Efetivamente, ao proferir as expressões supra transcritas o arguido não podia desconhecer que as mesmas eras adequadas a causar receio à queixosa e assim atingir o seu bem-estar emocional, razão pela qual não se pode deixar de concluir que o arguido preencheu o elemento objetivo deste tipo de ilícito, na sua forma simples (ao ameaçar a sua integridade física) e, bem assim, agravada na medida em que a ameaçou com a prática de um crime punido com pena de prisão superior a 3 anos ao ameaçar matá-la (cf. artigo 155.º n.º 1 al. a) do Código Penal). Tendo-se ainda dado como provado que o arguido agiu com intuito de molestar psicologicamente a sua ex-mulher, perturbá-la, atemorizá-la, o que conseguiu, bem sabendo que as expressões por si proferidas são adequadas a causar medo e inquietação de que pudesse atentar contra a sua vida ou integridade física, como efetivamente causaram, de lhe limitar a sua liberdade de movimentação, tendo agido em todas as condutas acima descritas de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as mesmas eram proibidas e punidas pela lei penal, encontra-se igualmente preenchido o elemento subjetivo do ilícito em apreço, estando igualmente provada a sua culpa Não se verificam quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade. * Entre o crime de violência doméstica e os crimes ameaça e ameaça agravada existe uma relação de especialidade, atenta a natureza complexa daquele tipo de crime. Assim, não se tendo provado a especial censurabilidade que envolve a prática do crime de violência doméstica mas tendo-se provado que o arguido, com a sua conduta, preencheu tanto o elemento objetivo como o elemento subjetivo dos crimes de ameaça (simples) e de ameaça agravada e considerando ainda estes menos gravosos que aquele, convola-se a imputação do crime de violência doméstica na imputação, em concurso efetivo por se terem tratado de suas situações distintas e afastadas no tempo, configurando, pois, duas resoluções criminosas distintas, dos crimes de ameaça simples e de ameaça agravada.” * 2.3. – Da alteração da qualificação jurídica do crime imputado ao arguido O recorrente ND… vem invocar a nulidade da sentença em virtude da inobservância, pelo tribunal recorrido, do preceituado no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal (não notificação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos). Importa ter presentes os normativos essenciais à resolução da questão equacionada. Assim, dispõe-se no Código de Processo Penal: Artigo 1.º (Definições legais) Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: “(…) f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; (…)” Artigo 358.º (Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia) 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Artigo 359.º (Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia) 1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário. Artigo 379.º (Nulidade da sentença) 1 - É nula a sentença: “(…) b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; (…)” Artigo 283.º (Acusação pelo Ministério Público) “(…) 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)” Artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa (Aplicação da lei criminal) “(…) 5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. (…)” Artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (Garantias de processo criminal) 1. O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. (…) 5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. Artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa (Independência) Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. In casu o arguido mostrava-se acusado/pronunciado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. a), e n.º 2 do Código Penal. Veio a ser condenado, em concurso material, pela prática de um crime de ameaça simples p. e p. nos artigos 153.º n.º 1 do Código Penal e um crime de ameaça agravada p. e p. nos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al a), ambos do Código Penal. A questão, como vimos, é a de saber se, ao decidir desta forma, se impunha ao tribunal recorrido a prévia comunicação ao arguido de uma alteração da qualificação jurídica, nos termos e para os efeitos previstos nos nºs 1 e 3 do acima transcrito artigo 358º do Código de Processo Penal. Ou seja, in casu, importa saber se há ou não uma obrigação de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica, mesmo quando essa nova qualificação consubstancie um minus em relação à anterior. O acórdão do TRG, processo nº 93/05-1, de 14-03-2005[4], sobre a questão da alteração não substancial de factos pronunciou-se: “(…) V – Ora, omitindo-se o mecanismo do artigo 358°, n° 3, omitiu-se do mesmo passo - e definitivamente, já que a lei não determina a reabertura da audiência, e a estrutura do processo, de raiz basicamente acusatória, não o consente - a efectiva possibilidade de o arguido, que em dado momento se viu comprometido com os novos factos, os discutir, contestar e valorar adequadamente. VI – Esta omissão, determina, por um lado, a nulidade da sentença, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358° e 359°, como se retira da norma do artigo 379°. nº 1 alínea b), do CPP, a qual, no entanto, não arrasta consigo a nulidade do julgamento, enquanto fase de produção - em regime de contraditoriedade - de todos os meios de prova cujo conhecimento se mostre necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, (…)” Nos termos do decidido no referido acórdão uma condenação que viole o disposto nos artºs. 358º e 359º CPP consubstancia uma nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º nº1 alínea b) CPP, mas, essa nulidade não conduz a uma nulidade do julgamento. Efetivamente, e como referido no enquadramento jurídico desta questão, a consequência para a violação do preceituado nos artºs. 358 e 359º, ambos do Código de Processo Penal tem a consequência jurídica a nulidade da sentença. Essa nulidade, na parte que ora nos importa, poderá resultar do não cumprimento da obrigação de comunicação ao arguido, nos termos do art. 358º nº 3 CPP. Sobre esta matéria, a nossa jurisprudência tem-se dividido relativamente a essa obrigação, discutindo-se se ela é sempre imposta ou se, por outro lado, há casos em que essa comunicação não é exigível.[5] O Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 0077379, nº convencional: JTRL00039137, Relator: SILVEIRA VENTURA, datado de 31-01-2002, in www.dgsi.pt decidiu que “ocorrendo, durante a audiência de julgamento, alteração dos factos que represente um "Minus" em relação à incriminação da acusação e da pronúncia, terá de cumprir-se o disposto no artigo 358, do CP, sob pena de nulidade da sentença.”. Neste mesmo sentido, veio a decidir por acórdão o TRG, procº nº 1335/05-1, sendo relator: TOMÉ BRANCO, datado de 17.10.2005, in www.dgsi.pt: I – Vindo a arguida acusada pelo crime de receptação na sua forma dolosa e tendo sido condenada pelo mesmo crime, mas na forma negligente, não se verifica uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, pois da qualificação jurídica dos factos feita, resultou incriminação num crime menos gravoso, como se pode constatar pelas molduras penais constantes nos nºs 1 e 2 do artº 231º do C. Penal. II – E, conforme refere Dr. Marques Ferreira, - in “ Alteração dos Factos objecto do processo Penal, RPCC, Ano I, n° 2, pág. 221 e segs. – “ Se no decurso da audiência se fizer prova de factos que representem uma alteração da acusação ou pronúncia, mas contudo sem qualquer relevo para a alteração do crime ou do máximo das penas, haverá então lugar aplicação do artº 358° do C.P.P., cujos dispositivos são um imperativo do princípio contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz por parte do arguido”. III – Ora, como da imputação feita no acórdão não resulta incriminação mais grave, estamos perante uma alteração não substancial dos factos. IV – É certo que se poderá argumentar em defesa da decisão impugnada dizendo que se trata de um “minus” relativamente à acusação, para defender a desnecessidade do cumprimento do artº 358° do C.P. V – Mas tal argumento carece de fundamento, pois como refere Maia Gonçalves – in Código de Processo Penal anotado Ed. 2000, pág. 677 - relativamente a esta questão: «Sucede que o C.P. exige que o arguido tenha consciência da ilicitude do facto para que possa ser condenado. E sendo obrigatória a indicação na acusação ou na pronúncia, da lei que proíbe e pune os factos, não se trata certamente de mero preciosismo, mas de normativo destinado a esclarecer o tribunal e principalmente o arguido sobre a imputação jurídico-penal que sobre ele impende.» VI – Assim, mesmo considerando-se que a nova incriminação represente um “minus” em relação à incriminação da acusação e da pronúncia, terá de ser cumprido o artº 358° do C.P.P. VII - Esta doutrina vem de encontro ao estipulado pelo Assento n° 3/2000, publicado no DR de 11.02.2000, que refere, “antes de encerrada, a respectiva audiência, deve providenciar-se pela possibilidade de ser dada a oportunidade de defesa ao arguido, contra a alteração da qualificação jurídica que o Tribunal entenda dever verificar-se”. VIII - Concluímos, assim, que tendo a arguida sido acusada por factos integradores de crime de receptação do artº 231°, nº 1 do C.P., e vindo a ser condenada por factos integradores do no nº 2 do citado preceito do mesmo Código, operou-se uma alteração não substancial dos factos, pelo que nos termos do nº 1 do artº 358° do C.P.P., deve o Juiz comunicar à arguida tal alteração e conceder-lhe tempo estritamente necessário para a preparação da sua defesa, pelo que não tendo sido comunicada a alteração operada pelo Colectivo, verifica-se a nulidade do acórdão prevista no artº 379°, nº 1, b) do C.P.P. Também, nesta linha de entendimento, o Ac. do TRC processo nº 19/16.0GAFIG.C1, de 22-02-2017, in www.dgsi.pt, decidiu: I - A alteração da qualificação jurídica, desde que feita fora da hierarquia do crime base que visa a protecção do mesmo bem jurídico, fazendo a convolação para uma forma menos grave que o crime pode revestir (condenação por crime de furto simples, em vez de crime de fruto qualificado ou condenação por crimes de homicídio simples em vez de crime de homicídio qualificado), deve ser comunicada previamente ao arguido, tanto na 1.ª instância como em sede de tribunal de recurso, por imposição legal do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP. II - A defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem-lhe de ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório. III - A condenação do arguido por crime de ameaça agravada, o qual vinha acusado por um crime de violência doméstica, do qual foi absolvido, sem que o tribunal a quo tenha comunicado previamente a alteração da qualificação jurídica, nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, para aquele se pronunciar sobre o novo enquadramento penal dos factos, tem como consequência a nulidade da sentença, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal. Em sentido contrário o TRE, no acórdão do processo nº 43/09.9GBRDD.E1, de 05-3-2013, in www.dgsi.pt, entendeu: “1. O crime de ameaça é um minus relativamente ao crime de violência doméstica. 2. Não carece de ser comunicada nos termos do artº 358º do CPP a alteração resultante da imputação de um crime menos grave (ameaça) que o constante da acusação (violência doméstica), em consequência da simples redução da matéria de facto na sentença”. Também no mesmo sentido o Ac. do TRC, no acórdão do processo nº 290/12.6TAACN.C1, de 14-05-2014 in www.dgsi.pt decidiu: A condenação de arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. b), e 2, por referência à al. b) do n.º 2 do art. 132.º (todas estas normas são do CP), num contexto em que, pelos mesmos factos, ao mesmo estava imputado, na acusação pública, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do referido diploma legal, consubstancia tão só alteração de qualificação jurídica, que não carece de comunicação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, porquanto, constituindo o primeiro dos ilícitos um “minus” em relação ao segundo, o visado teve necessariamente conhecimento de toda a factualidade integrante dos seus elementos constitutivos. Também por parte da doutrina esta temática não tem sido pacifica no que concerne à estipulação das linhas mestras que importa observar. Na verdade, basta atentar na leitura das posições assumidas por diversos autores, como sejam Frederico Isasca[6], Paulo Pinto de Albuquerque[7], Germano Marques da Silva[8] e Damião da Cunha[9] para verificarmos que, também, nesta temática, as divergências são constantes. Considerando, pois, que o tema não é pacifico, propendemos para considerar que a alteração da qualificação jurídica realizada nos autos não carecia de prévia comunicação ao arguido, nos termos do disposto no invocado art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, considerando que convolar a acusação por um crime de violência doméstica em dois crimes de ameaças, sendo um deles na forma agravada, não implica a necessidade de nova defesa, considerando que o crime de violência doméstica já continha na sua previsão condutas que se traduziam em ameaças. Na nossa perspetiva, a inexistente obrigação de comunicação prevista no referido artigo 358º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, no que concerne a esta situação, não põe em causa as garantias de defesa do arguido. Na verdade, não se pode dizer que um arguido, pronunciado pela prática de factos a que foi dado determinado enquadramento jurídico, pode ficar surpreendido e em situação de desfavor perante um diferente enquadramento ulterior feito na respectiva qualificação final. É que, na acusação ou na pronúncia são-lhe imputados, nos termos do transcrito artigo 283.º [alínea b)] do Código de Processo Penal, factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, narrados ainda que sinteticamente. E são, também, indicadas as disposições tidas por aplicáveis das quais resulta a ilicitude penal da conduta. Defende-se, assim, o arguido dos factos, tidos por penalmente ilícitos num juízo provisório. E é certo que, como impõe a transcrita alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, os factos narrados são os relevantes penalmente, ao que deve estar atento o arguido, que não poderá depois sustentar que não se apercebera da significância normativa de determinado(s) facto(s) que lhe foram imputados e de que teve toda a possibilidade de se defender em tempo útil e adequadamente. Acrescenta-se, ainda, sufragando e aqui reproduzindo o entendimento do Ministério Público na resposta ao recurso interposto: “Por outro lado, os tipos de crime pelos quais o arguido veio a ser condenado (ameaça simples e ameaça agravada) constituem apenas um minus, quando comparados com aquele pelo qual foi acusado (violência doméstica) na exacta medida em que, conforme se referiu supra, todos os elementos constitutivos dos concretos crimes de ameaça pelos quais o arguido foi condenado se encontram integrados (numa relação de especialidade) na tipicidade do crime de violência doméstica pelo qual o arguido vinha acusado. As penas e respectivas molduras abstactas aplicáveis aos ditos crimes de ameaça são, aliás, reveladoras disso mesmo, já que ambos são puníveis com pena de multa ou com pena de prisão, tendo esta limites, mínimo e máximo, muitos inferiores ao crime de violência doméstica que vinha imputado ao arguido na acusação, punível, em abstrato, com pena de 2 a 5 anos de prisão e não tendo como alternativa a pena de multa.” Em suma, se o Tribunal, a partir da matéria acusada/pronunciada que se provou em julgamento, efetua um enquadramento jurídico-penal diverso do que constava da acusação, por força da simples interpretação e aplicação da lei, para um “minus”[10], e sempre dentro dos limites fixados pelas disposições legais supraindicadas, sem prévia comunicação ao arguido nos termos do artigo 358º, números 1 e 3 do Código de Processo Penal, não pratica nenhum vício processual. Não tendo, pois, a sentença recorrida condenado o arguido por factos diversos dos descritos na acusação/pronúncia e fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do C.P.P., não se reconhece a invocada nulidade da sentença recorrida, nos termos do art. 379.º, n.º1, al. b), do C.P.P. Por tal razão, naufraga a primeira pretensão do recorrente. * 2.4. Da caducidade do direito de queixa e falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução criminal Parte dos factos imputados na acusação/pronúncia vieram a ser considerados como não provados, o que conduziu a um diferente enquadramento jurídico-penal dos factos provados sobrantes. Assim, o tipo de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. a), e n.º 2 do Código Penal imputado na acusação/pronúncia deu lugar aos crimes de ameaça simples p. e p. nos artigos 153.º n.º 1 do Código Penal e ameaça agravada p. e p. nos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al a), ambos do Código Penal. Entendem o recorrente, o próprio Ministério Público na resposta ao recurso interposto e o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, que a sua condenação pelo crime de ameaça simples não poderá subsistir porquanto não foi tempestivamente exercido o direito de queixa quanto a esse ilícito por parte da legitima titular da mesma. Os elementos objetivos do crime de ameaça simples pelo qual o arguido foi condenado encontram-se enunciados nos pontos 9 e 10 da matéria de facto dada como provada na sentença, tendo ocorrido em janeiro/fevereiro de 2015. O crime de ameaça em causa reveste-se de natureza semipúblico, atento o disposto no artigo 153.º, n.º 2 do Código Penal, tornando-se assim exigível, para o prosseguimento do procedimento criminal, o exercício tempestivo do direito de queixa por parte do titular da mesma, no caso a vítima do ilícito CM… (artigo 113.º, n.º 1 do Código Penal). Conforme decorre do artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o seu titular tiver tido conhecimento dos factos. No caso, a vítima teve, forçosamente, conhecimento dos factos na data em que foram contra si proferidas as expressões subsumíveis ao crime de ameaça, ou seja, em janeiro/fevereiro de 2015. E a verdade é que, compulsados os autos, verifica-se que, quanto a esse facto, a arguida numa formalizou denúncia/queixa especifica, sendo que a única queixa que apresentou (fls. 3 a 7 do apenso I) deu entrada já muito para além dos 6 meses de que dispunha para apresentar queixa relativamente aos factos ocorridos em janeiro/fevereiro de 2015 e dizem respeito a factualidade diversa, ocorrida em 10 de Abril de 2016. Assim, cremos que assiste inteira razão ao recorrente. Com efeito, o procedimento criminal tem por objeto um crime de natureza particular, no qual a legitimidade do Ministério Público para desencadear, prosseguir, e concluir o inquérito, encontra-se dependente de um pressuposto prévio, a apresentação de queixa por parte da ofendida. Em suma, forçoso se torna concluir que, nesta parte, assiste razão ao recorrente, devendo revogar-se a sentença na parte em que condenou o arguido pelo crime de ameaça simples, por carecer o M.º P.º de legitimidade para exercer a ação penal relativamente aos factos subsumíveis a esse ilícito. Ainda que assim se não entendesse, atribuída natureza particular a este crime pelo art.º 153.º, n.º 2 do Código Penal, a dedução de acusação particular, imposta pelo art.º 50.º do CPP, constitui pressuposto processual do procedimento criminal respetivo, ou seja, condição positiva daquele mesmo procedimento que, do mesmo modo, condiciona a responsabilidade penal. Sendo a falta de acusação particular (com prévia constituição de assistente) insuscetível de suprimento, a sua verificação na fase de julgamento ou de recurso impede o prosseguimento do procedimento criminal pelo crime respetivo se a questão se colocar até ao encerramento da audiência ou a condenação do arguido nas hipóteses em que a questão se coloque depois daquele, nomeadamente em resultado da qualificação jurídica dos factos provados operada na sentença, como no caso presente. Não sendo passível de suprimento a falta de acusação particular, carece, também, o Ministério Público de legitimidade para o prosseguimento do processo pelo referido crime de ameaças p. p. pelo artigo 153º, nº 1 do CP, impondo-se também por esta via revogar a sentença na parte em que condenou o arguido pelo cometimento deste crime. * 2.5. Erro de julgamento e erro na aplicação do direito Sustenta o recorrente que a factualidade dada como provada na sentença, em particular o ponto 14 da matéria de facto (fls. 4 da sentença condenatória), é insuscetível de se subsumir aos elementos objetivos do tipo de crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal pelo qual o arguido foi condenado. Argumenta que, a expressão por si usada condiciona o anúncio desse mal a uma conduta específica da ofendida “juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer deles, te mando por a cabeça no Tejo”. Defende ainda que o anúncio do referido mal visou constranger a ofendida a respeitar a integridade física e mental dos filhos de ambos, conformando-se com o Direito. O Ministério Público discorda deste entendimento porquanto, é evidente que a conduta do arguido é suscetível de criar receio como criou, sendo irrelevante que a ocorrência do mal esteja na dependência da ofendida. Preceitua o art. 153º nº 1 do C. Penal: 1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. (…)” É um tipo legal que tutela a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação individual (liberdade de ação e de decisão), que são postas em causa mediante o constrangimento exercido sobre a vítima para que esta faça ou deixe de fazer algo, ou suporte uma actividade que não deseja. Liberdade pessoal que, nas palavras de Nelson Hungria[11] “compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, à sua tranquila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa”. São, assim, elementos integradores deste crime: a) O anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal, que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; b) Que o mal anunciado seja futuro e que dependa da vontade do agente; c) Que esse anúncio seja adequado a provocar, na pessoa a quem se dirige, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; d) Que o agente tenha atuado com dolo, que se basta com a representação e conformação com a adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado. De que lado está a razão de acordo com o quadro legal, considerando que se delinearam duas posições nos autos, no que concerne a saber se o mal com que o arguido ameaçou a ofendida estava, ou não, dependente da vontade do agente. Não temos dúvidas em entender que a expressão dirigida à ofendida “juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer deles, te mando por a cabeça no Tejo” é um anúncio de um mal que só ocorrerá se a ofendida agir de determinada forma. Como soe dizer-se, um anúncio destinado a dissuadir a ofendida de adotar determinado comportamento. Na verdade, o arguido quis constranger a ofendida a uma omissão: a de deixar de impor as frustrações a qualquer um dos filhos. Contudo, independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante, para que se verifique o crime do artº 153º do CP, é a possibilidade do anúncio contido na mensagem é idóneo a provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afete ou prejudique a sua liberdade de determinação e ação. Considerando os elementos típicos do crime de ameaça, já acima descritos, e não exigindo a lei a ocorrência de dano (efectiva perturbação da liberdade ou causação de medo ou inquietação no ameaçado), bastando-se com a simples ameaça, desde que adequada a provocar medo ou inquietação, ou a perturbar a liberdade, temos que a ameaça é um crime de perigo concreto. Por outro lado, importa reter, no que concerne ao preenchimento do elemento subjetivo que a lei exige o dolo em qualquer das suas modalidades, que aqui se caracteriza pela consciência de que o comportamento assumido é suscetível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade da ofendida. Considerando o expendido, a seguir o entendimento do arguido não temos dúvidas que seria violar frontalmente o espírito e o bem jurídico que subjaz ao artº 153º, qual seja a tutela penal da liberdade pessoal. Efetivamente, independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante é a possibilidade da “mensagem” que é transmitida pela ameaça provoque ou seja suscetível de provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afete ou prejudique a sua liberdade de determinação e ação. Não podemos deixar de concordar com o MP quando refere: «Ao contrário do sustentado pelo recorrente, o sentido da expressão “juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer deles”, pelo subjectivismo e abstracção que comporta, não permite configurar qualquer conduta concreta (conforme ou não ao direito) a cuja prática ou omissão o arguido visasse constranger a ofendida. Efectivamente, no seu conjunto, a expressão “juro pelos meus filhos que se as tuas frustrações se voltam a impor a qualquer deles, te mando por a cabeça no Tejo” tem, para qualquer cidadão médio colocado no papel e contexto da vítima, o sentido unívoco: “se não agires como eu entendo que deves agir em relação aos nossos filhos, mando-te matar”. Nesta perspectiva, parece-nos manifesto que o mal anunciado está única e exclusivamente dependente da vontade do agente, ora arguido, assim se verificando todos os elementos integradores do tipo de crime de ameaça agravada pelo qual o arguido foi condenado.». Pelo exposto, é de concluir que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, deverá nesta parte improceder o recurso, mantendo-se a sua condenação pela prática do crime de ameaça agravada. * III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido ND…, e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pelo crime de ameaça simples, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, confirmando-se, no mais, a sentença recorrida. Sem tributação. Lisboa e Tribunal da Relação, 8 de janeiro de 2020 Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP). Alfredo Costa Vasco Freitas _______________________________________________________ [1] Realidade perfeitamente espelhada nos presentes autos: factos relativos aos anos de 2014, 2015 e 2016, que na sua qualificação jurídica independente, dependeriam de queixa ou de acusação particular, constituição como assistente e acusação particular, que são “reanimados”, através de um golpe de asa legal: Junta- se uns factos mortos e uns vivos....... esperar um pouco e .... acusar o Arguido de violência doméstica para passar a ser crime público e aproveitar anos de factos! Voilá! [2] cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada. [3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [4] In http://www.dgsi.pt/ [5] Na jurisprudência mais antiga, no que concerne a esta temática, confronte-se os seguintes acórdãos: Da Relação de Coimbra, de 14 de Dezembro de 1988, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 382, pág. 539, processo n.º 426/88, de 22 de Fevereiro de 1989, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 384, pág. 669, processo n.º 13 246, de 12 de Setembro de 1989, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 389, pág. 658, processo n.º 377/89; da Relação do Porto, de 25 de Maio de 1988, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 377, pág. 551, processo n.º 7050, e da Relação de Évora, de 7 de Novembro de 1989, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 391 pág. 725. [6] ISASCA, Frederico (1999) – Alteração Substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra, Livraria Almedina Coimbra. [7] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de (2011) – Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora. [8] SILVA, Germano Marques da (1999) – Direito de Defesa em Processo Penal, Direito e Justiça, Vol. XIII, 1999. [9] CUNHA, José Manuel Damião da (2002) – O Caso Julgado Parcial, Porto, Publicações Universidade Católica, distribuído por Coimbra Editora, [10] Portanto mais favorável ao arguido [11] citado por Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos in “Código Penal Anotado”, 2.º vol., Rei dos Livros, 1996, pág. 184 |