Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA REIS SILVA | ||
Descritores: | PEAP RECUSA HOMOLOGAÇÃO EXEQUIBILIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1 – Nos termos do art.º 215º do CIRE, aplicável ao Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) ex vi art.º 222º-F nº5 do mesmo diploma, o tribunal pode e deve recusar a homologação de qualquer acordo, mesmo aprovado por unanimidade, que viole de forma não negligenciável norma procedimental ou aplicável ao respetivo conteúdo, porque é o guardião da legalidade em função dos interesses de um universo muito mais vasto de credores que aquele que se apresenta a aprovar o referido acordo. 2 – O art.º 207º nº1, al. c) do CIRE contém uma norma imperativa aplicável ao conteúdo do plano e que se traduz na exigência de que o plano/acordo seja exequível e cuja violação obsta à homologação judicial do mesmo. 3 – A averiguação da manifesta inexequibilidade do plano, passa por apurar, em juízo de probabilidade, se o que é pretendido com o plano é objetivamente possível, tendo em conta os meios indicados para satisfação dos credores no próprio plano. Haverá manifesta inexequibilidade se for evidente que as prestações do plano não podem ser realizadas. 4 – O juízo de inexequibilidade não se confunde com a avaliação do mérito do plano para obstar à insolvência do devedor. 5 – Um plano/acordo de pagamento no qual dois devedores consignam que os meios de satisfação dos credores serão gerados pelos seus rendimentos e que se propõem pagar, desde já cerca de 2.600 euros mensais, após um ano, cerca de 3.400 euros mensais e, em um ano de meio, cerca de € 4.400 euros mensais é manifestamente inexequível, quando os rendimentos declarados são o equivalente a dois salários mínimos nacionais e subsídio de alimentação. (Da responsabilidade da relatora – art.º 663º nº 7 do CPC.) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório RS e MS intentaram o presente processo especial para acordo de pagamento. Foi nomeado Administrador Judicial Provisório e efetuadas as publicações previstas no nº 5 do art.º 222º-C do CIRE. Foram reclamados créditos, nos termos do nº 2 do art.º 222º-D do CIRE, vindo o Administrador Judicial Provisório a apresentar lista provisória de credores. Foi apresentada uma impugnação à lista provisória de credores a qual foi julgada improcedente por despacho de 03/04/2024. Foi prorrogado o prazo de negociações. Foi apresentada proposta de acordo de pagamento pelo devedor. EO, SA veio pedir a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 216º nº 1, al. a) do CIRE, alegando que o seu crédito é garantido por hipoteca, pendendo execução contra os devedores, suspensa por efeito deste processo e que naquele obterá, com a venda do imóvel, o total ressarcimento do seu crédito, enquanto que, nos termos do plano obtém o pagamento parcial e desfasado no tempo. Os devedores responderam ao pedido de não homologação, pedindo a respetiva improcedência, alegando que a credora não impugnou a lista provisória de créditos, sendo o seu crédito comum, e que não foram alegados e provados factos que permitam a conclusão prevista na al. a) do nº 1 do art.º 216º do CIRE. Banco A, SA veio pedir a não homologação do acordo de pagamento invocando que os devedores se encontram em situação de insolvência atual e que não está demonstrada a exequibilidade do plano atentos os rendimentos dos devedores, os montantes a satisfazer e a satisfação das suas necessidades básicas. Mais alega que a sua situação ao abrigo do plano é mais desfavorável que na ausência de qualquer plano. Os devedores responderam ao pedido de não homologação negando estarem em situação de insolvência e invocando que não foram alegados e provados factos que permitam a conclusão prevista na al. a) do nº 1 do art.º 216º do CIRE. O Sr. Administrador Judicial Provisório juntou aos autos o resultado da votação do plano, nos termos da qual o acordo de pagamento foi aprovado com os votos favoráveis de 57,22% dos votos emitidos, tendo votado credores representando 100% do total dos créditos relacionados com direito a voto, correspondendo todos a créditos não subordinados, nos termos da al. b) do nº 3 do art.º 222º-F do CIRE. Em 23/07/2024 foi proferida a seguinte decisão: “Face ao exposto, nos presentes autos de processo especial de acordo de pagamento, nos termos do 222.º-F, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, recuso a homologação do acordo de pagamento apresentado pelos devedores RS e MS, por violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano. * Custas pelos devedores com taxa de justiça reduzida a 1/4 - arts. 222.º-F, n.º 9, e 302.º, n.º 1, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - sendo o valor da acção para efeitos de custas equivalente ao da alçada da Relação, nos termos do art.º 301.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Registe, notifique e publicite nos termos dos arts. 37.º e 38.º, ex vi n.º 8, do art.º 222.º-F, todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.” Inconformados apelaram os devedores pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que homologue o plano aprovado, apresentando as seguintes conclusões: “i. O processo especial para acordo de pagamento é um processo de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, em que se privilegia o controlo pelos credores, restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual, e procura criar as condições para que o devedor e os credores negoceiem, de boa fé e de forma equilibrada e tentem chegar a um acordo, seja ela através de deferimento do pagamento, plano prestacional, e/ou de reconfiguração/reestruturação do passivo, que permita ao devedor, nesse tempo, superar as suas dificuldades. ii. Porém, entendeu, o Tribunal “a quo” e à revelia do facto da clara e retumbante maioria de credores ter negociado e votado favoravelmente o plano de revitalização dos devedores), que o plano é viola negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, por no seu entender, ser o plano inexequível, contudo, limita-se o Douto Tribunal a fazer meras conjeturas e projeções futuras, sem que tal demonstre (prove) nem sequer justifique a razão de o afirmar, fundamentado a recusa do plano em conclusões e interpretações “pessoais” . iii. O Douto Tribunal não teve suficientemente em conta na sua análise, tal como se impunha, o facto de os devedores terem a possibilidade de recorrer a ajuda financeira de familiares e amigos para cumprir as prestações estabelecidas no plano de pagamentos, que os devedores são proprietários de um imóvel que, quando vendido no futuro próximo, permitirá a redução substancial do seu passivo e dos encargos mensais. iv. Partindo da premissa errada que os rendimentos do agregado familiar dos devedores se vão manter iguais ad aeternum, não ponderando, sequer, a possibilidade de as duas filhas dos devedores maiores de idade apoiarem financeiramente os devedores, o que lhes permite, por sua vez, acumular poupanças durante o período de carência de 18 meses estabelecido no plano de pagamentos, v. Assim, não pode o Tribunal fazer juízos de eventuais rendimentos, sem que para tal tenha prova bastante que sustente a sua teoria, pois se o Meritíssimo Juiz tinha dúvidas quanto à capacidade dos devedores no cumprimento das obrigações propostas no plano de pagamentos, deveria ter procurado recolher prova suficiente para fundamentar a sua decisão, vi. Para além de que, não compete ao Tribunal, mas sim aos credores sindicar a verosimilhança do cumprimento do plano. “Essa é matéria que, excluída inexequibilidade pura e simples, não compete ao tribunal sindicar. A viabilidade e a aptidão do plano para evitar a situação de insolvência dos devedores, em PEAP (única finalidade possível, dada a natureza dos devedores, pessoas físicas) são a ponderar pelos credores para saber se votam favorável ou desfavoravelmente o plano.” Ac. Da Relação de Lisboa prolatado em 18.10.2022 no processo n.º 28316/21.5T8LSB-A.L1-1. vii. Não obstante, sempre se dirá que salvo douto melhor entendimento, jamais poderia o Tribunal, com base na sua interpretação subjectiva da situação económica dos devedores (diferente, refira-se, da interpretação dos devedores, dos credores interessados) ditar a morte dos devedores, porque o poder jurisdicional não se pode sobrepor ao poder Legislativo, em clara violação do art.º 2º da CRP. viii. Pois na verdade, se fosse intenção do legislador que o Tribunal aferisse efetivamente dos factos que justificariam a situação económica difícil uma vez recebida pelo Tribunal a comunicação do devedor a informar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação, a Lei não mandaria que o juiz nomeasse de imediato o Administrador Judicial Provisório e permitiria sim que este, naquele momento, ou, no limite, imediatamente após a publicação da lista provisória de créditos, pudesse fiscalizar tais pressupostos, rejeitando liminarmente o pedido. O que não acontece! ix. Assim, se a Lei não o permite de início, por maioria de razão não o permite no decurso do mesmo, quando o procedimento foi já iniciado, com taxas de justiça pagas, com os seus trâmites legais devidamente observados, e com as expectativas legítimas criadas (nos devedores e seus credores), culminando na apresentação de um plano, votado e aprovado pela maioria dos credores. x. Por último, sempre se dirá que não podia o Douto Tribunal determinar que esta sua convicção se subsumisse em qualquer das violações nos termos do art.º 215º do CIRE (violação de regras procedimentais ou de normas de conteúdo) xi. Acresce que, como a própria lei indica, as regras procedimentais e normas de conteúdo, que podem ser violadas, dizem respeito ao processo propriamente dito, e não ao que lhe está a jusante. São, pois, coisas distintas: o antes do processo e o processo de revitalização propriamente dito. xii. Assim a convicção do tribunal de que o Tribunal não vislumbra como poderão os devedores cumprir com o plano prestacional, não cabe em qualquer das supra referidas violações, porquanto se trata de uma alegada ausência de pressuposto de acesso ao Processo, não podendo consubstanciar por isso nenhuma das violações do 215º já que as mesmas dizem respeito ao próprio plano apresentado no âmbito deste processo. xiii. Decidindo em claro arrepio da lei e da jurisprudência, pois a violação não negligenciável será “apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro a violação pode ser negligenciada.” xiv. O Tribunal decidiu recusar a Homologação do plano aprovado pela retumbante maioria de credores, com base numa convicção que não tem cabimento legal nem factual, sendo consequentemente abusiva quando para este instituto é trazida. xv. Constituindo a douta sentença um atentado grave às garantias legais que norteiam o Processo Especial de Acordo de Pagamento – em particular ao princípio da legalidade, da liberdade e da autonomia dos credores e do Princípio do Estado de direito democrático assente numa clara separação de poderes- princípios institucional e constitucionalmente consagrados. xvi. Ademais, padece ainda a sentença recorrida da nulidade que se assaca à falta de fundamentação do pressuposto onde o Tribunal consubstancia a recusa da homologação -de que houve violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano. Tal afirmação é absolutamente omissa de qualquer fundamento legal ou factual, sendo proferida de forma cabalmente abstrata. xvii. Assim, a presente decisão mais não é senão uma condenação dos devedores à insolvência, mas também e sobretudo uma sentença de morte à única esperança dos credores de ainda poderem ser pagos nem que seja de parte do seu crédito.” Banco A, SA respondeu ao recurso, pedindo lhe seja negado provimento, mantendo-se a decisão recorrida e concluindo: “I. O juiz deve verificar, mesmo oficiosamente, da legalidade do acordo aprovado, podendo recusar a sua homologação (artºs 222º-F nº 5 e 215º, ambos do CIRE); II. Dos 6 credores reconhecidos na lista provisória, 3 votaram favoravelmente e os outros 3 contra, pelo que não corresponde à verdade que o acordo foi aprovado pela “retumbante maioria dos credores”; III. O tribunal a quo analisou o acordo de pagamento submetido à votação dos credores, do qual não constam quaisquer ajudas financeiras de familiares ou amigos, nem qualquer proposta de venda de imóvel; IV. Pelo que, logica e naturalmente, o tribunal de primeira instância não considerou nem se pronunciou sobre quaisquer outras hipotéticas fontes de rendimento, apenas agora alegadas em sede de recurso pelos devedores- vd. Art.º 608º n.º 2 do CPC; V. Tendo, a propósito, dado como assente os factos, a propósito, alegados e demonstrados pelos devedores, relativos aos seus (parcos) vencimentos e composição do agregado familiar – vd pontos 2, 3 e 4 da dos factos dados como assentes; decisão de matéria de facto não impugnada pelos devedores; VI. Não tendo sido, em momento algum, alegado e muito menos demonstrado, que os devedores contariam com uma ajuda (certa, regular e efectiva) de terceiros, está vedada a sua apreciação pelo tribunal de recurso, que só pode apreciar as questões oportunamente alegadas pelas partes na instância recorrida; VII. O tribunal a quo tomou em consideração os factos dados como assentes – não só os supra referidos pontos 2, 3 e 4, mas também, e entre o mais, os elencados nos pontos 7, 9, 10 – e indicou as normas jurídicas aplicáveis aos mesmos; VIII. Fundamentando até muito detalhadamente a sua decisão, quando evidencia que o plano será cumprido por via dos rendimentos dos devedores e que estes são insuficientes sequer para cumprir com o plano proposto quanto aos créditos da Fazenda Nacional e do Instituto da Segurança Social IX. Inexiste qualquer “falta de fundamentação”, não merecendo o despacho recorrido qualquer reparo. * Não foi apresentada qualquer outra resposta ao recurso. O recurso foi admitido por despacho de 09/09/2024 (refª 438097729). Foram colhidos os vistos. Cumpre apreciar. * 2. Objeto do recurso Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma. Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir: - nulidade da decisão recorrida; - inexequibilidade do plano enquanto causa de não homologação do plano de pagamentos aprovado. * Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 617º do CPC, se a nulidade da sentença for suscitada no âmbito do recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la, no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso. No caso presente tal apreciação foi omitida pelo tribunal recorrido, mas, por dispensável para a apreciação do objeto do recurso, clarifica-se que não foi ordenada a baixa do processo para apreciação da nulidade da sentença arguida pela recorrente, a qual se passará a apreciar (art.º 617º, nº 5 do CPC). * 3. Fundamentos de facto Com relevância para a decisão do recurso mostram-se assentes os factos constantes do relatório e ainda os seguintes, fixados na sentença recorrida e resultantes dos termos dos autos: 1) RS e MS, casados, entre si, sob o regime da comunhão de adquiridos, intentaram o presente processo especial para acordo de pagamento em 21/02/2024. 2) O devedor RS exerce as funções de produtor e realizador de televisão e rádio, auferindo como vencimento base o valor de € 820,00, acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 9,60. 3) A devedora MS exerce as funções de auxiliar de limpeza, auferindo como vencimento base o valor de € 820,00, acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 6. 4) O agregado familiar dos devedores é composto pelos próprios e a filha nascida em 27/09/2007. 5) Os devedores são proprietários da fracção 34 do prédio urbano descrito na CRP de … sob o n.º …, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo …. 6) Sobre o referido imóvel mostram-se inscritas duas hipotecas a favor de Banco A, S.A., para garantia dos valores máximos de € 343.845,00 e € 38.205,00. 7) Na lista provisória de créditos foram incluídos 6 credores, ascendendo a globalidade dos créditos ao montante de € 713.401,78. 8) A impugnação apresentada foi julgada improcedente por despacho de 03/04/2024, pelo que a lista definitiva de créditos contempla os seguintes: i) CG - € 16.500 – natureza comum; ii) EO, S.A. - € 64.423,60 – natureza comum; iii) Fazenda Nacional - € 107.154,95 – € 868,59 natureza garantida e o remanescente comum; iv) Instituto da Segurança Social, I.P. - € 284.531,67 – natureza comum; v) Banco A, S.A. - € 221.260,74 – natureza garantida; vi) TC, S.A. - € 19.530,82 – natureza comum. 9) Corre termos sob o processo n.º 8235/16.8T8ALM, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Almada – Juiz 1, acção executiva na qual é exequente EO, S.A., e são executados os ora devedores e outros. 10) Encontram-se pendentes execuções fiscais nas quais são executados os ora devedores. 11) Os devedores apresentaram em 27/06/2024 plano de pagamentos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, no essencial do seguinte teor: “5.2. Plano de Reembolso dos Créditos no âmbito do Plano de Pagamentos Os meios de satisfação dos credores serão obtidos através da Recuperação dos Requerentes, ou seja, o que se perspetiva é que os credores dêem o seu acordo ao Plano e especificamente quanto aos prazos de reembolso traçados, que se estimaram como os que se afiguram como compatíveis atento à capacidade estimada dos Devedores para libertar fundos de tesouraria. Neste sentido apresenta-se de seguida os referidos Planos de amortização das dívidas dos Requerentes às diversas entidades. 5.2.1. Autoridade Tributária e Aduaneira A regularização ocorrerá nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 30º e nº 3 do artigo 36º da LGT e artigos 196º e 199º do CPPT, ou seja: 1 – Regime legal aplicável aos Créditos Tributários Pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja: a) As prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no nº 5 do artigo 222-D do CIRE. b) Número máximo de prestações: i. Até ao máximo de 36 prestações, não podendo nenhuma delas ser inferior a 1 unidade de conta (atualmente €102) ii. Até 150 prestações mensais, não podendo nenhuma delas ser inferior a 10 unidades de conta (atualmente €1.020); A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do Decreto-Lei n.º 73/99 de 16 de Março, aceitando-se as taxas que vierem a ser acordadas para a Segurança Social, face à renúncia dos demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir; Não haverá lugar à redução de coimas e custas; Não haverá lugar a qualquer moratória. Para os efeitos previstos do nº 1 do artigo 222-E do CIRE, determina-se, nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do CPPT. A suspensão prevista naquele normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro, com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das mesmas (n.º 5 do artigo 222 – D do CIRE). 5.2.2. INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL A regularização da dívida do Instituto da Segurança Social deverá ocorrer da forma que de seguida se discrimina: • O pagamento da dívida reconhecida no presente PEAP será regularizada no âmbito da execução fiscal, em 150 prestações, as prestações são mensais, iguais e sucessivas, com o vencimento da 1ª prestação a ocorrer no mês seguinte mês ao da votação do plano. • Nos termos da legislação em vigor são devidos juros vencidos e vincendos calculados de acordo com a taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades públicas; • As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à segurança social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas, sendo suspensas, nos termos do artigo 194.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, na sequência da presente autorização e até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado. • Dispensa de prestação de garantia nos termos do artigo 199.º, nº 13, do CPPT a requerer em sede executiva após a votação do plano; 5.2.4. Credores Comuns A regularização da dívida Credores Comuns deverá ocorrer da forma que de seguida se discrimina: 1. Perdão integral de juros vencidos e vincendos; 2. Perdão de 60% do valor do capital em dívida; 3. Estabelecimento de um período de carência de pagamentos de 18 meses após o trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente plano; 4. Pagamento de 40% do capital reclamado em 30 prestações semestrais iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia do 18º mês posterior ao do trânsito em julgado da decisão de homologação do presente plano, e as seguintes em igual dia dos semestres subsequentes, a ratear pelos credores na proporção relativa e direta dos seus créditos. 5. Os credores comuns devem indicar no prazo de 30 dias após a votação do plano os dados bancários para o pagamento das prestações periódicas referidas no presente plano que lhe couberem em rateio. A não indicação desta informação impede o início da contagem do prazo referido em 4. 5.2.5. Credores Garantidos A regularização da dívida Credores Garantidos deverá ocorrer da forma que de seguida se discrimina: • Pagamento nos exactos termos inicialmente contratados, quer quanto ao valor de capital, juros, prazo, montante e periodicidade das prestações e garantias prestadas; • Perdão dos juros de mora e outras despesas decorrentes da mora ou incumprimento dos créditos garantidos; • Perdão de juros moratórios vencidos entre a data da reclamação de créditos e a data do trânsito em julgado da Sentença de Homologação do Plano; • Estabelecimento de um período de carência para pagamento de capital e juros moratórios vincendos de um ano com início no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente acordo de credores.” 12) Prevê-se, também, no plano, sob a epígrafe “6.6 Cumprimento do Plano” que: “O presente Plano para acordo de pagamento prevê a satisfação dos credores através da Recuperação da situação económica difícil em que se encontram os devedores, efetivando-se os pagamentos aos credores através dos rendimentos que por si vierem a ser auferidos no decurso do Plano da Amortização das suas dívidas. O cumprimento integral do plano exonera os devedores”. 13) Colocado a votação, o acordo de pagamento proposto mereceu votação favorável dos credores Fazenda Nacional e Instituto da Segurança Social, I.P., representando 57,22% dos votos, e desfavorável dos demais credores, representando 42,78% dos votos. * 4. Fundamentos do recurso 4.1. Nulidade da sentença Os recorrentes arguiram a nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação alegando “falta de fundamentação do pressuposto onde o Tribunal consubstancia a recusa da homologação - de que houve violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano,” alegando que “Tal afirmação é absolutamente omissa de qualquer fundamento legal ou factual, sendo proferida de forma cabalmente abstrata.” A recorrida contrapôs que a sentença recorrida se encontra devida e detalhadamente fundamentada, de facto e de direito. Apreciando: Dispõe o n.º 1 do art.º 615º do CPC: «1 - É nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; (…).» O art.º 615º do CPC prevê o elenco taxativo de nulidades que podem afetar a sentença. Como é uniformemente prevenido pela doutrina e jurisprudência, importa sempre distinguir as nulidades de processo e as nulidades de julgamento, sendo que o regime deste preceito apenas se aplica às segundas. No tocante à previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC relativa à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, importa ter em conta que a elaboração da sentença deve respeitar determinadas exigências formais, que o legislador contempla no art.º 607º do CPC. O nº 3 deste artigo impõe ao juiz que na sentença faça a discriminação autónoma dos factos que considera provados e que indique, interprete e aplique as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final, acrescentando o nº 4 a exigência de análise crítica das provas. Esta obrigação de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão reflete o dever de fundamentação das decisões imposto pelo nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa (nos termos do qual «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei»), também regulamentado no art.º 154º do CPC. O art.º 154.º do CPC sob a epígrafe “dever de fundamentar a decisão”, estabelece: “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.” As partes têm o direito de saber as razões da decisão do tribunal, o que lhes permitirá avaliar a mesma e ponderar a sua impugnação. O dever de fundamentação assenta na necessidade de esclarecimento das partes e constitui uma fonte de legitimação da decisão judicial. O grau de fundamentação exigível dependerá tanto da complexidade da questão sobre a qual incide a decisão, como da controvérsia revelada pelas partes sobre a situação a decidir. Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros[1], a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão. Tem vindo a ser entendido, que só a absoluta falta de fundamentação pode determinar a nulidade da sentença, não se bastando tal vício com uma fundamentação menos exaustiva - neste sentido, entre muitos outros, os Acs.[2] STJ de 08/02/2024 (Nuno Pinto Oliveira – 995/20), 10/05/2021 (Henrique Araújo - 3701/18), 06/07/2017 (Nunes Ribeiro - 121/11), de 10/07/2008 (Sebastião Póvoas - 08A2179) e os Acs. TRL de 18/04/2024 (Carla Cristina Figueira Mato – 7115/20), 11/03/2021 (Inês Moura - 1074/18) e de 18/04/2024 (José Manuel Monteiro Correia – 1912/21)[3], entre muitos outros. A fundamentação da sentença deve ser de facto e de direito: com a indicação dos factos provados e não provados e com a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes. Só assim poderá ser compreensível pelos destinatários. Assim, além da total ausência ou inexistência de fundamentação, esta nulidade ocorrerá também se a referida fundamentação, pela sua formulação, não permite apreender qual o processo lógico seguido pelo julgador na formação da sua convicção, não sendo possível aferir as razões que levaram a decidir de um determinado modo, colocando em crise a construção do silogismo judiciário (e não o erro de julgamento, que leva à alteração ou revogação e não à nulidade). No caso concreto é evidente que a sentença se encontra fundamentada – o tribunal elencou os factos com base nos quais veio a entender ser o plano inexequível, o que qualificou como vício respeitante ao conteúdo do plano, e com base no qual recusou a homologação do plano aprovado. Os recorrentes discordam da fundamentação da sentença – e expõem ao longo da sua peça recursória as razões dessa discordância – o que não consubstancia nulidade, mas antes constitui o objeto do recurso, ou seja, a análise de mérito a efetuar sobre o erro ou acerto dessa fundamentação, pelo que, sem mais, improcede a arguida nulidade. * 4.2. Fundamentos de direito O processo especial para acordo de pagamento (PEAP) é um dos processos especialíssimos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30 de junho. Este diploma, concretizando o denominado Programa Capitalizar[4] que elegia como uma das medidas “Reservar o recurso ao PER a pessoas coletivas”[5], criou um novo regime pré-insolvencial para devedores em cuja titularidade não se encontre uma empresa, declarando no seu preâmbulo “Apostou-se na credibilização do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação, reforçou-se a transparência e a credibilização do regime e desenhou-se um PER dirigido às empresas, sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes.” Ao tempo a jurisprudência divergia sobre a possibilidade de o PER poder ser usado por pessoas singulares, vindo claramente a pender para a respetiva inadmissibilidade, como resulta da jurisprudência do STJ nesta matéria, que decidiu, de forma uniforme, no sentido de inaplicabilidade às pessoas singulares, não comerciantes, não empresários, do processo especial de revitalização[6]. O Decreto-Lei n.º 79/2017 “criou” o novo PEAP por decalque do antigo PER[7] aplicando algumas medidas do PER tal como ficou desenhado em 2017 (no essencial a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade oponíveis pelo devedor, a proibição de suspensão de prestação de serviços públicos essenciais, o efeito parcialmente suspensivo da sentença do recurso de não homologação e o regime de encerramento e de cessação de funções do administrador judicial provisório), e diferenciando-o pelos respetivos sujeitos – pessoas jurídicas e singulares não titulares de empresas e por uma particularidade relativa aos devedores singulares, em caso de não aprovação, com a obrigatoriedade de concessão de oportunidade para apresentação tempestiva de plano de pagamentos ou requerimento de exoneração do passivo restante. Tal tem a vantagem, para o intérprete-aplicador, de ter já presentes e, em muitos casos discutidos e trabalhados, os aspetos essenciais deste novo regime. Não podemos, porém, deixar de ter em conta as diversidades de um e de outro procedimentos: nomeadamente, no PER visa-se a recuperação dos devedores, empresas, no PEAP visa-se a aprovação de um plano de pagamentos. As pessoas naturais, por definição, não se recuperam, logram ou não pagar os seus créditos, sendo este um procedimento híbrido para obter o acordo (e negociar) com os seus credores o pagamento dos seus créditos. A questão a recurso é a sindicância da decisão proferida pelo tribunal recorrido de não homologação do plano. Prescreve o nº5 do art.º 222º-F do CIRE[8]: «O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação (…) aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º.» Trata-se de norma não alterada pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, que entrou em vigor em 11 de abril de 2022[9], diploma que introduziu profundas alterações no regime do PER, deixando, porém, com modificações pontuais, essencialmente incólume o regime do PEAP tal como delineado pela lei nº 79/2017. A decisão recorrida começou por entender que não se verificavam quaisquer violações não negligenciáveis de normas procedimentais aplicáveis ao plano. Passou, seguidamente, à análise das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, e concluiu que não se mostrava violado o princípio da igualdade, analisando então a inexequibilidade do plano. Na análise da inexequibilidade do plano após indicar e caraterizar a regra constante o art.º 207º, nº 1 al. c) do CIRE, aplicável ex vi art.º 222º-F nº5 do mesmo diploma, o tribunal fundamentou pela seguinte forma: “Da leitura do plano de pagamento aprovado, conjugado com os elementos juntos aos autos, parece-nos ser este manifestamente inexequível. Esclarece-se no plano de pagamento que os pagamentos aos credores serão realizados através dos rendimentos que por si vierem a ser auferidos no decurso do plano da amortização das suas dívidas. Ora, os devedores auferem, cada um, remuneração base correspondente a um salário mínimo nacional, a que acresce subsídio de alimentação, e o respectivo agregado familiar é composto pelos próprios e uma filha de 16 anos de idade. Constitui facto notório, não carecendo de prova (art.º 412.º do Código de Processo Civil), que o agregado familiar dos devedores terá as despesas comuns para um agregado familiar daquela dimensão (dois adultos e uma criança), com água, gás, electricidade, alimentação, vestuário, higiene e despesas de saúde. Atendendo, desde logo, ao proposto no que respeita ao pagamento dos créditos da Fazenda Nacional e do Instituto da Segurança Social, não se vislumbra como poderão os devedores sequer cumprir o pagamento prestacional que se propõem junto daqueles. Considerando apenas os valores incluídos na lista de créditos (ou seja, sem contabilizar os juros de mora que serão devidos), os devedores propõem-se pagar mensalmente àqueles credores, durante 150 meses, as quantias de € 714,37 e € 1.896,88, respectivamente (resultantes da divisão dos valores reconhecidos por 150). Ora, estes valores prestacionais excedem significativamente os rendimentos que os devedores auferem, sendo certo que, em momento algum, foi alegado, ou/e demonstrado, que os rendimentos dos devedores irão incrementar de modo a possibilitar o cumprimento das suas obrigações. Acresce que, ainda na pendência do acordo prestacional relativamente àqueles credores, findos os períodos de carência previstos no acordo de pagamento, haveria que ser iniciado o pagamento aos demais credores, garantidos e comuns, o que importaria um expressivo aumento das responsabilidades mensais dos devedores, às quais, manifestamente, não conseguiriam dar resposta. Aliás, esta manifesta inexequibilidade do acordo de pagamento justifica, por certo, o resultado da votação expressa. Note-se que apenas votaram favoravelmente o acordo de pagamento os credores públicos e estes, naturalmente, porquanto, tratando-se de créditos indisponíveis, foram respeitadas as normas previstas na Lei Geral Tributária. Todos os credores privados votaram desfavoravelmente o acordo de pagamento, incluindo os garantidos. Entendemos, assim, que, in casu, ocorre violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano que impede a homologação do acordo de pagamento, porquanto este é manifestamente inexequível (arts. 207.º, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa aplicável ex vi art.º 222.º-F, n.º 5, in fine, do mesmo diploma).” Ainda foram conhecidos e julgados improcedentes, sem prejuízo, os pedidos de não homologação formulados nos termos do disposto no art.º 216º nº 1, al. a) do CIRE, em parte da decisão que não foi questionada em sede de recurso, encontrando-se, assim, coberta pelo caso julgado. Os recorrentes pretendem ver revogada a decisão recorrida alinhando para o efeito os seguintes argumentos, em síntese: - foi posta em causa a autonomia dos credores, não podendo o tribunal sobrepor-se à vontade destes que, por clara maioria, aprovaram o plano, tendo qualificado o seu próprio entendimento, e não o interesse de qualquer dos credores, em causa de não homologação; defendem que o tribunal não podia recusar a homologação de um plano debatido e negociado com os credores e apresentado em resultado dessas negociações; - o tribunal partiu da premissa errada de que os rendimentos dos devedores se irão manter iguais e que os rendimentos do agregado familiar serão apenas os dos devedores: a sua filha mais velha Margarida ou ainda uma outra filha maior (com o mesmo nome), que apoiarão, e a mãe da devedora que integra o agregado, também contribui com a sua pensão, tendo ainda o apoio de outros familiares como a mãe do devedor; - se o tribunal tinha dúvidas sobre a capacidade de cumprimento dos devedores deveria ter recolhido prova para fundamentar a sua decisão; - os devedores poderão amealhar poupanças no período de 18 meses de carência; - os devedores são proprietários de um imóvel cuja venda num futuro próximo contribuirá para diminuir o passivo e os seus encargos mensais; - não compete ao tribunal, mas sim aos credores, sindicar a verosimilhança do cumprimento do plano como decidido no Ac. TRL de 18/10/2022; - o tribunal não poderia, com base na sua interpretação subjetiva sobre a situação económica dos devedores, recusar a homologação, e tendo-o feito incorreu em violação do art.º 2º da CRP, dado que, se a lei não permite a fiscalização dos factos que consubstanciam a situação económica difícil dos devedores no momento liminar ou após a publicação da lista provisória de credores, por maioria de razão, não o permite no final do procedimento, quando o plano foi já votado e aprovado, pois que tal violaria o princípio da segurança jurídica; além disso os vícios previstos no art.º 215º do CIRE respeitam ao processo propriamente dito e não ao que fica a jusante; a convicção do tribunal de que não vislumbra como poderão os devedores cumprir com o plano prestacional, não é violação de qualquer das regras procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano, previstas no art.º 215º porque se tratam de uma alegada ausência de pressuposto de acesso ao Processo; - a decisão tomada, foi fundada numa convicção sem base legal e factual e nem sequer foi acompanhada de parecer do AJP sobre a matéria. A credora que respondeu alegou, sinteticamente: - o controlo do plano mediante o juízo de homologação, mesmo após aprovado, não é meramente processual, cabendo ao juiz, mesmo oficiosamente, controlar a legalidade do plano aprovado; - o plano não foi aprovado pela maioria dos credores, mas sim por uma maioria de créditos; - os devedores não alegaram outras fontes de rendimentos senão as referidas na matéria de facto provada, pelo que está agora vedado ao tribunal de recurso conhecer do agora alegado quanto a outros rendimentos e produto da venda de imóvel, por se tratarem de questões novas. Apreciando: O primeiro argumento a recurso é rebatido pela própria letra da lei. Pretendem os recorrentes que um plano negociado e aprovado pelos credores não pode ser recusado, no sentido de não homologado pelo juiz, dado que tal violaria a autonomia dos credores. Ora, recordando, o art.º 222º-F nº 5 do CIRE remete expressamente para o art.º 215º do mesmo diploma, no qual se estabelece expressamente, na devida adaptação nos termos do art.º 222º-A nº3, que o juiz recusa oficiosamente a homologação do acordo de pagamento aprovado nos termos dos nºs 2 e 3 do art.º 222º-F no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza. Esta norma concede este amplo poder-dever ao juiz sem o subordinar ao interesse dos credores intervenientes e sem o hierarquizar às negociações havidas entre os devedores e os credores, que acabaram de aprovar o plano por uma das maiorias previstas por lei, porque o acordo obtido[10] carece de homologação judicial como condição necessária para que seja eficaz não só entre aqueles que o aprovaram como para os que o não aprovaram e mesmo para aqueles que nem sequer votaram ou intervieram no processo. É o que resulta do artigo 222º-F nº8 do CIRE[11], onde se estabelece que A decisão de homologação vincula o devedor e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data da decisão de nomeação do administrador judicial provisório. Ou seja, e respondendo diretamente ao argumento dos apelantes, o tribunal pode e deve recusar a homologação de qualquer acordo, mesmo aprovado por unanimidade[12], que viole de forma não negligenciável norma procedimental ou aplicável ao respetivo conteúdo, porque é o guardião da legalidade em função dos interesses de um universo muito mais vasto de credores que aquele que se apresenta a aprovar o referido acordo. O que importa aferir é se o fundamento erigido pelo tribunal em causa de não homologação se subsume a estes conceitos, não havendo qualquer dúvida sobre a amplitude do papel do tribunal neste domínio. São os próprios devedores que, ao apresentarem-se a PEAP, pedem ao tribunal que estenda aos demais credores os efeitos de acordo a que cheguem com alguns desses credores. Se não desejarem submeter tal acordo a este escrutínio, podem simplesmente acordar condições de pagamento com (apenas) alguns deles, ficando integralmente salvaguardada a autonomia privada dos intervenientes nesse negócio jurídico. O que não podem é pretender tornar este acordo vinculativo para terceiros sem um controlo formal e material garantístico. Como se escreveu no Ac. TRP de 24/09/2024 (João Ramos Lopes - 291/22): “A aprovação do plano pela maioria dos credores não aporta limitação ao poder cognitivo em que se traduz o controlo jurisdicional estabelecido no art.º 215º do CIRE - a violação das regras aplicáveis ao conteúdo do plano impõe a recusa de homologação oficiosa pelo tribunal, não podendo ter-se tais vícios por supridos por ter havido uma manifestação de vontade maioritária dos credores traduzida na aprovação do plano.” Vejamos então se a causa de não homologação que o tribunal concluiu existir se subsume ao disposto no art.º 215º do CIRE. Uma das regras aplicáveis em PEAP, com as devidas adaptações, nos termos do disposto no nº 5 do art.º 222º-F do CIRE, é o disposto no art.º 207º do mesmo diploma, no qual se estabelece, no nº1, al. c), que o juiz não admite a proposta de plano insolvência «Quando o plano for manifestamente inexequível». Em PEAP, tal como em PER, a lei, em obediência aos propósitos da celeridade, concentração e desjudicialização que imprimiu aos meios pré-insolvenciais, suprimiu o momento processual da admissão do plano ou acordo pelo juiz. O que significa que o que ali se prevê como causa de não admissão, deve ser ponderado a final, como causa de não homologação, como aliás sucede em processo de insolvência mesmo após a prolação de despacho de admissão. Existe, em processo de insolvência, um duplo controlo, a admissão e a homologação – na doutrina Maria do Rosário Epifânio[13] e, na jurisprudência, os Acs. TRC de 09/05/2017 (António Carvalho Martins – 1006/15), TRP de 24/09/2024 (João Ramos Lopes – 291/22), e TRC de 09/05/17 (António Carvalho Martins – 1006/15) o primeiro, mais ligeiro e com uma dose de prognóstico e o segundo rigoroso, não tendo o primeiro qualquer efeito de caso julgado[14]. Tendo a lei suprimido o primeiro controlo, mais ligeiro e sem efeito de caso julgado[15], a valoração das circunstâncias que, em processo de insolvência, não permitiriam sequer que os credores discutissem e votassem o plano passa integralmente para o momento do juízo de homologação, sempre com as devidas adaptações. Assim, se em PEAP o plano não tiver sido apresentado pelo devedor, estaremos ante uma violação procedimental da regra de legitimidade para apresentação da proposta prevista nos arts. 222º-A e 222º-F nº2, cabendo aferir no caso concreto pela negligenciabilidade da mesma – al. a) do nº1 do art.º 207º do CIRE. A alínea b) do nº 1 do art.º 207º já não terá, no momento do juízo de homologação, qualquer efeito útil, dado que os credores já votaram no sentido que lhes aprouve e que é o exato momento de fazer o juízo de homologação. Não há já qualquer lugar ao exercício de prognose que a admissibilidade do plano impõe, dado que os factos já sucederam e substituíram o prognóstico. Já a al. c) é um dos claros casos de vício de conteúdo do plano que implica a respetiva não homologação. Um plano que não é exequível, que não é realizável, não deve ser imposto a todos os credores, tornado eficaz, dado que o seu cumprimento é impossível. Trata-se de “um juízo sobre o mérito da proposta apresentada, com caráter casuístico”[16], que deve igualmente ser feito sobre o mérito do plano/acordo aprovados, seja porque inexistiu momento de admissão (em PER e em PEAP), seja porque (em processo de insolvência) tal vício não era ostensivo no momento da admissão ou, por exemplo, surgiu na sequência de alterações do plano subsequentes à aprovação (art.º 210º do CIRE). Num exercício de completude do raciocínio, embora sem qualquer relevo para o caso concreto, temos por certo que a al. d) do nº1 do art.º 207º não tem qualquer campo de aplicação em PEAP (ou em PER), atento o processado previsto para estes procedimentos, que não consente a apresentação formal de segundas propostas. O art.º 207º nº 1, al. c) do CIRE contém, nestes termos, uma norma imperativa aplicável ao conteúdo do plano e que se traduz na exigência de que o plano/acordo seja exequível e cuja violação obsta à homologação judicial do mesmo. A manifesta inexequibilidade do plano, uma vez verificada, não comporta qualquer gradação suscetível de ser reconduzida a negligenciabilidade do vício: ou o plano é suscetível de ser executado ou não. Trata-se de uma situação similar à violação do princípio da igualdade, considerada, por regra, não negligenciável[17]. Trata-se de “apurar se o que é pretendido com o plano é objetivamente possível, realizando para o efeito um juízo de plausibilidade. Desde logo tendo em conta os meios indicados para satisfação dos credores. Haverá manifesta inexequibilidade se há fundamentos para dizer que é evidente que as prestações do plano não poderão ser realizadas.”[18] Entre os exemplos de manifesta inexequibilidade apontados pela doutrina estão os planos comportando medidas insuscetíveis de serem jurídica ou materialmente realizadas, seja porque não há meios para o fazer, seja porque exorbitam as competências do devedor e dos seus órgãos[19], os casos em que se prevê uma determinada atividade proibida como forma de obtenção de meios[20]. Na jurisprudência, no Ac. TRE de 25/11/2021 (342/21) foi considerada manifestamente inexequível uma proposta de plano apresentada por devedora sujeita a uma medida de suspensão de operações bancárias a débito aplicada no âmbito do regime jurídico do branqueamento de capitais, decretada em inquérito criminal em segredo de justiça, na medida em que o plano proposto dependia da reversão daquela medida; e no Ac. TRG de 30/11/2022 foi considerada manifestamente inexequível uma proposta de plano de insolvência apresentada quando a liquidação do ativo estava em curso há cerca de dois anos, com venda concretizada de parte substancial dos bens da insolvente, tendo sido declarada cessada a atividade da devedora junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e cessados todos os contratos de trabalho. O juízo de inexequibilidade não se confunde com a avaliação do mérito do plano para obstar à insolvência do devedor[21]. E foi exatamente essa ideia que afirmámos no caso tratado no Ac. TRL de 09/09/2022 (processo nº 21668/21), relatado pela aqui relatora, com coletivo diverso, no qual se escreveu a frase citada nas alegações de recurso[22]. O que ali se pretendia fosse valorado era a viabilidade do plano aprovado para evitar a insolvência dos devedores, sendo o substrato de facto o de a proposta de pagamento de quantia mensal estar contida no nível de rendimentos estáveis dos devedores. O que ali se decidiu, precisamente, foi que a viabilidade de mérito do plano para evitar a situação de insolvência dos devedores não era avaliada pelo tribunal, nomeadamente para efeitos de homologação do plano aprovado. Assinalou-se como possível exceção os casos em que tal juízo de mérito conduzisse a uma eventual inexequibilidade pura e simples. Não é de todo o caso que estamos a tratar nestes autos. Nestes autos estamos perante um caso tipicamente apontado como de inexequibilidade – quando é evidente que as prestações previstas no plano não poderão ser satisfeitas[23]. E foi exatamente o que foi analisado pelo tribunal recorrido com base no único elemento avaliável: o plano apresentado pelos devedores e aprovado pelos credores. A cláusula 6.6. do plano prevê expressamente que os meios de satisfação serão os rendimentos auferidos pelos devedores. Os rendimentos auferidos pelos devedores e declarados pelos próprios são os considerados pelo tribunal: o equivalente a dois salários mínimos nacionais – factos nºs 2 e 3. O que os devedores se propõem pagar mensalmente de imediato (sem período de carência) são os créditos dos credores públicos, que irão perfazer um montante mensal de € 2.600,00 durante 12 anos – factos nºs 8, iii) e iv) e 11, pontos 5.2.1. e 5.2.2. Depois de um período de carência de 18 meses iniciar-se-á a obrigação de pagamento aos credores comuns de € 1.000,71, mensais (total do capital x 40%/30) - factos nº 8, i), ii) e vi) e 11, ponto 5.2.4. Depois de um período de carência de um ano iniciar-se-á a obrigação de pagamento ao credor garantido nos termos contratualmente previstos, não discriminados, mas que o credor em causa computou em € 671,41 mensais até setembro de 2051 (requerimento de não homologação de 11/07/2024) – factos nº8, v) e 11, ponto 5.2.5. O que significa que os devedores, com este plano se propõem pagar desde já cerca de 2.600 euros mensais, após um ano, cerca de 3.400 euros mensais e, em um ano de meio, cerca de € 4.400 euros mensais. E propõe-se fazê-lo com os seus rendimentos que assumem ser dois salários mínimos nacionais e subsídio de alimentação. A conclusão atingida pelo tribunal recorrido, de manifesta inexequibilidade do plano, é evidente, está fundada nos factos apurados e confirma-se: é impossível que os devedores, com este nível de rendimentos, se sustentem e ao seu agregado familiar e ainda suportem, no imediato, cerca de € 2.600,00 mensais de prestações e, em ano e meio, cerca de 4.400 euros mensais de prestações. E temos que sublinhar que o acordo, a ser homologado, seria aplicável a quaisquer outros credores que surgissem e não tenham reclamado créditos (como aparentemente sucedeu com um credor – cfr. decisão da impugnação da lista provisória de 03/04/2024). Alegam os devedores que o tribunal partiu de um pressuposto errado: que o nível de rendimentos dos devedores se vai manter; e que ignorou que os rendimentos do agregado familiar não serão apenas os dos devedores, mas que terão o apoio de vários familiares, duas filhas maiores, a mãe da devedora e a mãe do devedor. O tribunal não partiu de nenhum pressuposto que não o indicado no plano apresentado pelos devedores – que os meios de satisfação dos créditos seriam os rendimentos dos devedores. Não se trata, exatamente, da questão de ser vedado ao tribunal de recurso conhecer de factos que não foram oportunamente trazidos à consideração do tribunal de 1ª instância, doutrina certeira, mas sem aplicação no caso concreto, mas sim de que a indicação de como serão obtidos os meios de satisfação dos credores é um dos elementos a juntar obrigatoriamente ao plano, nos termos do art.º 195º, nº 2, al. c) do CIRE. E nesse ponto os devedores indicaram que consta de 12 da matéria de facto provada. Uma das consequências é a improcedência do argumento de que são proprietários de imóvel que irão vender e com o respetivo produto abater o passivo: sendo conhecido nos autos serem proprietários de um imóvel, não indicaram a respetiva venda como forma de obter meios para pagamento aos credores. Mesmo que tivessem indicado, além dos seus rendimentos, os rendimentos de terceiros – os rendimentos das filhas e das mães dos devedores – esses não poderiam ser considerados, dado que quem se compromete para com os credores no plano são os devedores e não os seus descendentes ou progenitores. Mas tais rendimentos não foram indicados no plano[24]. Assim, o tribunal considerou o que podia e devia considerar: o que consta no plano apresentado pelos próprios devedores. A alegação de que os devedores dispunham de 18 meses para amealhar poupanças resulta contraditória com o facto de não estar previsto qualquer período de carência para os créditos públicos. E quanto ao argumento de que o tribunal deveria ter recolhido prova caso tivesse dúvidas sobre a capacidade de cumprimento dos devedores, não pode ser atendido. Antes de mais, e como já se referiu, o tribunal só tinha que olhar aos termos do plano e elementos que o acompanham. Depois, o tribunal a quo, tal como este, não teve dúvidas sobre a capacidade de cumprimento dos devedores. Com este nível de rendimentos e este montante de prestações mensais os devedores não conseguem cumprir o plano proposto e aprovado. E, finalmente, seria totalmente espúrio que o tribunal, em torção grave das regras de celeridade e concentração que regem os meios preventivos de recuperação, sustasse uma decisão de homologação judicial de plano/acordo de pagamento aprovado para apurar uma situação sobre a qual não tinha, objetivamente, qualquer dúvida. O último grupo de argumentos dirige-se a uma causa de não homologação que não foi sequer mencionada pelo tribunal recorrido. Alegam os recorrentes (conclusões viii a xii) que o tribunal recusou a homologação por ter aferido, no final do procedimento e após decorrido todo o processo, a situação económica dos devedores, o que não lhe era permitido sequer no início do procedimento e que a convicção do tribunal de que não vislumbra como poderão os devedores cumprir com o plano prestacional, não é violação de qualquer das regras procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano, previstas no art.º 215º porque se tratam de uma alegada ausência de pressuposto de acesso ao Processo. Sucede que o tribunal não recusou a homologação do acordo/plano apresentado pelos devedores e aprovado por uma maioria de credores por os devedores se encontrarem em estado de insolvência atual. Esse é um outro tema, bastante debatido, mas que aqui não foi tratado nem fundamentou a decisão recorrida. O tribunal apenas aferiu, dos termos do plano e elementos obrigatórios que o acompanham, se o plano era exequível, tendo concluído que, manifestamente não o era e com esse exato fundamento recusou a homologação do plano por violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano, o art.º 207º, nº1, al. c) do CIRE, nos termos do art.º 215º do mesmo diploma. O tribunal nunca referiu que os devedores se encontravam em estado de insolvência atual ou que, por esse motivo, não podiam ter recorrido ao Processo Especial para Acordo de Pagamento. Aliás, o tribunal, apenas após não homologar o Plano/acordo, por outros motivos, ordenou ao Sr. Administrador Judicial Provisório que emitisse o parecer previstos no art.º 222º-F nº 6 e 222º-G, nº 3 do CIRE, no qual aquele concluirá se os devedores se encontram ou não em situação de insolvência, seguindo-se os demais termos legalmente previstos. Assim, porque a decisão do tribunal não foi tomada nos termos e com os fundamentos alegados nas conclusões viii a xii, não há que conhecer dos argumentos ali invocados. Os recorrentes alegam, a propósito do último núcleo de argumentos opostos à decisão recorrida, mas também em relação ao primeiro feixe de argumentos conhecidos, a violação do disposto no art.º 2º da CRP e do princípio da segurança jurídica. O denominado princípio da proteção da confiança ou da segurança jurídica foi desenvolvido desde o séc. XIX a partir da conceção do Estado como pessoa jurídica que se relaciona com os indivíduos sob sua jurisdição enquanto pessoas jurídicas titulares de direitos fundamentais. Este Estado de Direito tem ele próprio que agir como pessoa de bem, de onde deriva a sua sujeição “ao princípio geral da boa fé e à garantia da segurança jurídica e da tutela da confiança que os particulares depositam na palavra do Estado.”[25] É concebido como ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2º da CRP, mesmo não lhe dedicando a Constituição referências expressas. A segurança jurídica e a tutela da confiança são encaradas como “princípios essenciais da Constituição material do Estado de Direito, enquanto factores imprescindíveis a uma estruturação da vida social em paz jurídica e, na perspectiva dos particulares, tais princípios são condições de previsibilidade da actuação estatal enquanto pressuposto de autonomia individual na conformação de planos de vida próprios.”[26] Como se sintetiza no Ac. do Tribunal Constitucional nº 128/2009[27]: “De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição). Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.” Aplicando à situação concreta os quatro testes enunciados resulta claro que falha desde logo o primeiro: atenta a previsão expressa do art.º 215º do CIRE, nem a aceitação e decurso do procedimento nem a votação favorável por uma maioria legalmente prevista do plano que apresentaram, fundavam uma expetativa legítima e fundada dos devedores de que não viesse a ser proferida uma decisão de não homologação judicial. Os recorrentes indicam, por outro lado, como razões para fundar essa sua expetativa, argumentos que contrariam a letra da lei e a forma como tem vindo a ser uniformemente aplicada e interpretada, pelos tribunais e pela doutrina. Não estão assim reunidos os pressupostos para a proteção da confiança à luz do princípio da segurança jurídica, sem que seja sequer necessário prosseguir com os terceiro e quarto testes (obviamente também não verificados), pelo que a interpretação da decisão recorrida e aqui confirmada não sofre de inconstitucionalidade por violação deste princípio. A presente apelação é, assim, integralmente improcedente, devendo ser mantida a decisão recorrida, de não homologação. * Os apelantes, porque vencidos, suportarão integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[28]. * 5. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando integralmente improcedente a apelação, manter a decisão recorrida. * Custas de parte na presente instância recursiva pelos recorrentes. Notifique. * Lisboa, 26 de novembro de 2024 Fátima Reis Silva Ana Rute Costa Pereira Nuno Teixeira _______________________________________________________ [1] Em Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, pgs. 72 e 73. [2] Todos disponíveis em www.dgsi.pt. [3] Este último com exaustiva citação de doutrina e jurisprudência. [4] Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 42/2016, de 14/07/2016, publicado no DR. n.º 158/2016, Série I de 2016-08-18. [5] Medida 25 do eixo de reestruturação empresarial. [6] Acs. STJ de 10/12/15 (relator Pinto de Almeida - 1430715), de 05/04/16 (relator José Rainho – 979/15), de 12/04/16 (relator Salreta Pereira – 531/15), de 21/06/16 (relatora Ana Paula Boularot – 3377/15) e de 27/10/16 (relator Fernandes do Vale – 381/16), todos disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência. [7] Ver Catarina Serra em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pgs. 582 e 583. [8] Diploma ao qual pertencerão todas as normas doravante citadas sem referência. [9] Cfr. art.º 12º da referida Lei. [10] Tal como aliás o plano de recuperação aprovado em PER ou em processo de insolvência. [11] E bem assim, quanto ao PER, do art.º 17º-F nº11 e do art.º 217º quanto ao plano aprovado em processo de insolvência. [12] Não foi o caso nestes autos, nos quais votaram todos os credores que reclamaram créditos, tendo o acordo sido aprovado por cerca de 57% dos votos expressos, sendo os demais contra. [13] Em Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, 2022, pg. 377. [14] João Labareda e Carvalho Fernandes falam, para o primeiro momento, em “ostensibilidade” do vício como requisito de rejeição – local citado, pg. 759; Soveral Martins em Um Curso de Direito da Insolvência, II Vol., 3ª edição, pg. 73 refere que a exigência de que a inverosimilhança ou inexequibilidade sejam manifestas impedem que o juiz ordene a produção de prova para a formulação do juízo de admissão, devendo, em consequência, ser tal plano admitido se a medida não for manifesta. [15] Veja-se nomeadamente o disposto no art.º 207º nº2 do CIRE. [16] Maria do Rosário Epifânio, local citado, pg. 379. [17] Neste sentido, entre muitos outros, os Acs. TRC de 17/03/15 (Henrique Antunes – 338/13); TRC de 27/06/2017 (Isaías Pádua – 8389/16); TRP de 08/07/15 (Manuel Domingos Fernandes – 261/14); TRP de 30/01/2024 (Maria da Luz Seabra – 462/22); TRL de 09/06/16 (Ondina Carmo Alves - 17154/15); TRL de 28/04/2020 (Paula Cardoso - 7771/19), TRL de 11/07/2024 (Manuela Espadaneira Lopes – 8294/23). [17] Relatado por Manuel Bargado, processo nº 1228/15. [18] Alexandre Soveral Martins, local citado, pgs. 72 e 73. [19] João Labareda e Carvalho Fernandes, local citado, pg. 759 e Maria do Rosário Epifânio, local citado, pg. 379. [20] Soveral Martins, local citado, pg. 73. [21] Soveral Martins, idem, nota anterior. [22] “É a própria recorrente que alega que o plano proposto tem que o ser de forma transparente para que os credores alcancem que o plano é viável e fazível. Ou seja, não se trata exatamente do conteúdo do plano proposto mas sim da demonstração da respetiva viabilidade. Essa é matéria que, excluída inexequibilidade pura e simples, não compete ao tribunal sindicar. A viabilidade e a aptidão do plano para evitar a situação de insolvência dos devedores, em PEAP (única finalidade possível, dada a natureza dos devedores, pessoas físicas) são a ponderar pelos credores para saber se votam favorável ou desfavoravelmente o plano.” [23] Assim Soveral Martins, local citado, pg. 73 e Maria do Rosário Epifânio, local citado, pg. 379. [24] E ainda que o fossem, os terceiros não ficariam obrigados ao seu cumprimento a menos que prestassem o seu consentimento. [25] Jorge Novais em Princípios Estruturantes do Estado de Direito, Almedina 2021, pg. 148. [26] Jorge Reis Novais, local citado, pg. 149. [27] Relatora Maria Lúcia Amaral, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090128.html. [28] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/. |