Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6473/22.3T8ALM.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
GESTÃO DE NEGÓCIOS
LEGITIMIDADE ACTIVA
RATIFICAÇÃO DA GESTÃO DE NEGÓCIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: INuma acção de preferência, o gestor de negócios encabeçar a petição inicial identificando-se pelo seu nome em gestão de negócios de sua mãe, bem como não indicar o nome da mãe como autora, bem como não dizer que está a agir em nome da mãe, não são circunstâncias relevantes para o apuramento da ilegitimidade activa.

IIVisto que a interposição da acção e o seu pretendido resultado – aquisição de fracção urbana por exercício de preferência – são, respectivamente, a gestão e o negócio, deve entender-se que é o lugar onde o efeito pretendido se dá que determina se o gestor age em nome próprio ou em nome da dona do negócio – sendo que o referido lugar é, em face dos termos do peticionado a final, a esfera jurídica da dona do negócio.

IIIAssim, deve entender-se que o gestor de negócios age em gestão representativa da dona do negócio, cuja verificação de legitimidade processual activa depende da ratificação da gestão pela dona do negócio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório[1]


AS, arrogando-se na qualidade de gestor de negócios de sua mãe, MJS, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M, sua irmã, e marido J, casados no regime da comunhão de adquiridos, e contra JF, todos nos autos m. id., peticionando: 
a)-Que seja reconhecido o direito de preferência da sua mãe, MJS, na compra da fração autónoma designada pela letra “…” correspondente ao segundo andar esquerdo, destinada a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na (…);
b)-Que seja transmitido a MJS o direito de propriedade relativo ao imóvel identificado em a), mediante o pagamento do valor da compra e venda, substituindo-se a mesma aos primeiros réus na escritura de compra e venda outorgada em 04 de julho de 2022, no Cartório Notarial de ….

Alegou, em síntese, que sua mãe, cuja saúde se tem vindo a degradar (padece de 1) Demência – Doença Alzheimer; 2) Síndrome da Coluna sem irradiação de dor; 3) Obesidade; 4) Bronquite/ Bronquiolite aguda; 5) Alteração funcional do estômago – ulcera gástrica crónica). é arrendatária da fracção identificada em a), sendo titular de direito de preferência na sua compra, e que nenhum dos RR. deu, em momento prévio à outorga do contrato, conhecimento à mãe do aqui A. dos concretos contornos do contrato que veio a ser celebrado, pelo qual o 3º Réu, senhorio, vendeu a fracção a sua irmã e marido, respectivamente 1ª Ré e 2º Réu, por €45.000,00.Elementos que somente foram conhecidos pelo A., em 22 de julho de 2022, aquando da obtenção da certidão de escritura pública. Com a petição junta prova do depósito do preço.

Sob a epígrafe “II - Do Direito”, invoca, e vamos citar:

a)-Da legitimidade do A.
26.º-Conforme alegado supra, o A. não se encontra a pleitear nos presentes autos a título próprio, porquanto a posição de arrendatária pertence à sua mãe,
27.º-Contudo, por forma a clarificar-se, desde já, a atuação do A., refere-se que o mesmo se encontra nos presentes autos a título de gestão de negócios,
28.º-Ora, o instituto legal da gestão de negócio tem respaldo e regulação legal nos artigos 464.º e seguintes do Código Civil,
29.º-Do artigo 464.º do Código Civil, resultam três requisitos, para que se verifique uma situação de gestão de negócios, a saber:
1) que alguém assuma a direção de negócio alheio;
2) que o gestor intervenha no interesse e por conta do dono do negócio;
3) que não haja autorização por parte do dono do negócio;
30.º-Quanto ao primeiro requisito, tem-se entendido que a expressão negócio não é aqui empregue na sua aceção técnico-jurídica,
31.º-Pelo que nada obsta a que a gestão de negócios possa incidir sobre atos jurídicos,
32.º-A este propósito pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul, no sentido de que «a gestão de negócios pode traduzir-se na prática de atos jurídicos, conquanto os mesmos não sejam de natureza pessoal.» vide Acórdão proferido em 14 de Outubro de 2021, no âmbito do processo n.º 2931/10.0BELRS disponível in www.dgsi.pt;
33.º-Pelo que se considera por preenchido o concreto pressuposto.
34.º-Quanto ao requisito da intervenção ser no interesse e por conta do dono do negócio, atenta o efeito útil da presente ação – exercício do direito de preferência – dúvidas não se colocam, em nosso entender, quanto à sua verificação.
35.º-Quanto ao último requisito - a ausência de autorização por parte do dono do negócio – importa aqui tecer as seguintes considerações,
36.º-A falta de autorização exigida reporta-se a inexistência de qualquer relação jurídica entre o dono e o agente, que confira ao último o direito ou o dever de interferir nos negócios do seu verdadeiro dono,
37.º-In casu, inexiste qualquer relação jurídica que permita ou imponha a atuação do aqui A. nos negócios da sua mãe,
38.º-Pelo que, à semelhança do ocorrido com os demais requisitos, tem-se o presente pressuposto por preenchido.
39.º-Mercê do supra exposto, deverá o A. na sua qualidade de gestor de negócios considerar-se como parte legítima nos presentes autos”.
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Contestaram os Réus, para o que aqui interessa, invocando a excepção de ilegitimidade da parte, invocando que não se verificam os pressupostos da gestão de negócios, porquanto o interesse nesta ação é do Autor e não de sua mãe, não estamos perante um negócio alheio, mas o próprio interesse do A. que em última instância, a fração integre o património de sua mãe e futuramente possa ter direito a herdá-lo”. Na verdade, o A. “não conseguiu prosseguir os seus intentos através da negociação particular com os 1.ºs Réus, uma vez que o A. tentou de forma persistente e intimidatória obrigar a irmã e o cunhado a negociar consigo o imóvel que estes tinham adquirido”. A mãe do A., perante a possibilidade de comprar a fração, sempre manifestou não ter interesse nisso. Por outro lado, o A. não pode onerar a esfera jurídica da MJS, bem sabendo que esta não tem dinheiro para a aquisição, uma vez que tem acesso à conta da mãe da qual também é titular, pelo que age com culpa, sem a diligência de um bonus pater familias” e “ao fazer o depósito à ordem do processo do montante de €: 45000,00, que sabe que não pode ser ressarcido, só revela o interesse próprio no negócio, que a qualquer custo quer ver celebrado em nome da sua mãe.
Mais invocam a caducidade da acção de preferência, e a ineptidão da petição inicial, pois, quanto a esta, A causa de pedir na presente ação é o exercício pelo A. a título de gestão de negócios do direito de preferência da MJS. (…) O pedido da presente ação é o reconhecimento do direito de preferência da MJS e a substituição imediata na escritura, dos 1ºs RR pela MJS, pedido que seja transferida a propriedade para a esfera jurídica desta, com o consequente cancelamento do registo. (…) Se a causa de pedir é o exercício pelo A., a título de gestão de negócios, de um direito que pertence à MJS, terá que haver ratificação por parte desta da gestão. (…) O pedido do A. como se encontra redigido, não dá possibilidade à ratificação do negócio pela MJS (…) Uma vez que pretende que o tribunal transfira direta e imediatamente a propriedade da fração identificada nos autos para a esfera jurídica da MJS, sem que esta possa manifestar a sua vontade no exercício ou não da preferência. (…) O regime da gestão de negócios não permite que tal situação possa acontecer, tem que haver manifestação de vontade do dono do negócio.
Por requerimento de 26.12.2022 foi junto aos autos o assento de óbito de MJS, falecida aos 98 anos de idade, em 12.12.2022. Em tal requerimento, expressaram os Réus: Em face do exposto requerem que seja declarada a inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º alínea e) do C.P.C”.
O A. respondeu às excepções, referindo, quanto à excepção de ilegitimidade, que impugna os artigos da contestação em que a mesma é invocada, reiterando que não se encontra a pleitear a título próprio e insistindo que se mostram verificados os requisitos da gestão de negócios[2].

Seguidamente, o tribunal fixou o valor da causa em €45.000,00, dispensou a audiência prévia e proferiu saneador, logo começando por apreciar a excepção de ilegitimidade activa, o que fez nos seguintes termos:
“(…) Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.  Esta titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência duma relação jurídica, (…) pela titularidade das situações jurídicas.” - FREITAS, José Lebre de, e ALEXANDRE, Isabel, Código de Processo Civil anotado, Volume I, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2014, pág. 71.
Tal como no campo do direito material, há que a aferir [a legitimidade], em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), isto é, (…) pelo interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e pelo interesse direito em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda (…) – ob. cit., pág. 70 e 71.
A legitimidade é, assim, um pressuposto processual que visa assegurar que o autor e o réu são os sujeitos que podem discutir a procedência da ação, pois será nas suas esferas jurídicas que os efeitos da procedência ou improcedência da mesma se irão repercutir. 
A ilegitimidade consubstancia uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º e 248.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. 
No caso vertente, o autor intentou a ação em nome individual quando a titular do alegado direito de preferência seria MJS, sua mãe e mãe da primeira ré. Pese embora se tenha arrogado como gestor de negócios, há que ter em consideração que o autor intentou a ação em nome próprio (e não na qualidade de representante). Outrossim, à luz do disposto no artigo 464.º do Código Civil, a gestão de negócios ocorre quando uma pessoa assume a direção de determinado negócio no interesse e por conta do respetivo dono, estando a respetiva eficácia dependente de ratificação, cfr. artigos 471.º e 268.º, n.º 1, do Código Civil.
No caso sub judice, estes requisitos não se mostram verificados.
Na verdade, a titular da relação material controvertida alegada pelo autor é MJS, e, a proceder a ação, seria na sua esfera jurídica que se repercutiriam os efeitos, carecendo o autor de legitimidade para intentar a ação em nome próprio.  
Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade ativa invocada e, consequentemente, absolvo os réus da instância.
Custas pelo autor, cfr. artigo 527.º do Código de Processo Civil”.
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Inconformado, AS interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1.–Entende o Tribunal a quo estar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, porquanto, no seu entender, a presente ação foi intentada pelo aqui Apelante, em nome próprio, quando a titular do alegado direito de preferência preterido seria MJS;
2.–No entanto, salvo melhor e douta opinião, que incorreu o Tribunal a quo num manifesto lapso porquanto desde o primeiro parágrafo do articulado que deu origem aos presentes autos que o Apelante se identificou como gestor de negócios da sua mãe;
3.–É certo que não se ignora que no formulário da respetiva Petição Inicial surge identificado como autor o Apelante, contudo tal facto deve-se, prima facie, à circunstância de a plataforma CITIUS não dispor de campo específico para inserção dessa informação, cf. n.º 1 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, a contrario sensu;
4.–Também não se pode ignorar que tal se deveu, igualmente, a uma razão de ordem puramente prática e que se prende com os deveres deontológicos que impendem sobre os mandatários do Apelante;
5.–Com efeito, impõe o n.º 1 do artigo 98.º e a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados, a obrigação dos advogados de não aceitarem o patrocínio se para tal não tiverem sido livremente mandatados pelo cliente e de verificar a identidade do cliente;
6.–Deveres deontológicos estes que impedem os mandatários do aqui Apelante de aceitar o patrocínio de MJS, com a qual não efetuaram qualquer contacto, não existindo outra possibilidade se não intentar a ação em nome do gestor;
7.–Mas mais, resulta da mera leitura da Petição Inicial e outros atos praticados nos autos pelo aqui Apelante que este sempre agiu exclusivamente na sua qualidade de gestor e não em nome próprio, ao contrário do douto entendimento vertido na decisão sob censura;
8.–Com efeito, do introito da Petição Inicial, do resto do articulado e, ainda, dos pedidos formulados pelo aqui Apelante facilmente se vislumbra que os correspondentes autos foram desencadeados no único e exclusivo potencial interesse de MJS, sendo esta a única beneficiária de todos os pedidos formulados;
9.–Por conseguinte, apenas se poderá concluir que MJS figura nos presentes autos como Autora, devendo a douta decisão sob censura ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade e ordene o normal prosseguimento dos autos;

SEM PRESCINDIR,

10.–Ainda que subsistissem dúvidas junto do Tribunal a quo, o que somente se concebe por mero dever de patrocínio, poderia o mesmo Tribunal, salvo melhor e douto entendimento, recorrer à faculdade conferida pelos n.ºs 2 e 4 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, de proferir despacho de aperfeiçoamento;
11.–Como supra mencionada, a não identificação no formulário de MJS como A. se deveu, tão-somente, a uma impossibilidade da plataforma CITIUS de identificar devidamente a dona do negócio;
12.–Nem seria possível ou sequer correto identificar o aqui Apelante como legal representante da A., MJS, porquanto entende-se que representação legal, conforme decorre já do próprio conceito, consiste na representação que tem por base a lei, ou seja, casos em que a lei estabeleça que determinada pessoa em virtude de determinada posição ou função que exerça é determinado representante legal, circunstância que, salvo melhor e douto entendimento, manifestamente não ocorre no caso da gestão de negócios;
13.–Não se podendo descurar que o ora Apelante sempre se identificou nos autos como gestor de negócios da A., MJS, deduzindo pedidos que apenas a esta beneficiam;
14.–Assim, existindo dúvidas sobre quem figura como Autor nos presentes autos cabia ao Tribunal a quo proferir despacho de aperfeiçoamento, motivo pelo qual enferma a douta decisão de erro na aplicação do direito, devendo ser substituída por outra que ordene a prolação de um despacho de aperfeiçoamento;

SEM PRESCINDIR,

15.–Na eventualidade de se entender, à semelhança do entendido na douta decisão aqui sob censura, que a presente ação foi intentada pelo gestor em nome próprio, o que somente por mero dever de patrocínio se equaciona, sempre se deverá notar que a mesma era possível a título de gestão não representativa;
16.–Desde logo, salvo melhor e douta opinião, a decisão sob censura inquina num manifesto e claro erro na aplicação do direito, porquanto parece olvidar a possibilidade de existência da gestão não representativa;
17.–Como é consabido, o mero facto em que um ato é apresentado em nome próprio do gestor (mesmo com expressa referência à existência de gestão de negócios!), não é, per si, suficiente para descaraterizar a gestão, continuando a configurar uma situação de gestão de negócios aquela em que o gestor age em nome próprio, ainda que por conta e no interesse do dominus;
18.–Pelo que, não sendo a representatividade um pressuposto essencial da gestão de negócios, mas antes um elemento que permite traçar o regime aplicável à relação entre o gestor e o dono do negócio, não se afigura que assista sombra de razão ao tribunal a quo, quando entende que o simples facto que a peça foi, no seu entender, apresentada em nome próprio, obsta à gestão de negócios;
AINDA ASSIM,
19.–Questão diversa, mas pertinente, é saber se a lei adjetiva civil, admite ou não, a gestão de negócios não representativa, ou seja, se o gestor de negócios pode pleitear em juízo em nome próprio;
20.–Salvo melhor e douta opinião, o direito processual positivo atualmente vigente em Portugal não obsta a possibilidade de gestão de negócios não representativa, conhecendo esta figura, inclusive, várias manifestações;
21.–Ora, é certo que o gestor de negócios nunca será parte processual ou substantiva na relação material controvertida, estando, naturalmente, excluída a sua legitimidade ad causam, nos termos do artigo 30.º, n.º 3 do Código de Processo Civil;
22.–No entanto, a gestão de negócios, representativa ou não, configura uma forma de legitimação, admitindo-se o exercício de um direito por pessoa diversa do seu titular, o que, do ponto de vista processual, implica que a gestão não representativa consubstancie uma situação de substituição processual;
23.–Ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, compulsado o C.P.C. e demais legislação processual vigente em Portugal, facilmente se vislumbra que não vigora um princípio da taxatividade das situações que dão azo à substituição processual, mas antes um princípio de tipicidade aberta;
24.–Devendo a suscetibilidade da lei permitir a substituição processual ser aferida casuisticamente pelo intérprete-aplicador, à semelhança do que, de resto, ocorre com o princípio da taxatividade dos direitos reais;
25.–Alias, interpretação contrária sempre se encontraria ferida de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso à justiça do dominus, uma vez que, perante uma situação, como à dos autos, em que a única forma de assegurar os interesses em jogo passaria, necessariamente, pelo recurso à via judicial, a mesma se encontraria vedada por um mero formalismo processual;
26.–Mas mais, os demais elementos interpretativos apontam, igualmente, neste sentido, prescrevendo o antigo § único do artigo 342.º do C.P.C. de 1939 que o assistente podia agir em nome do assistido revel “como seu gestor de negócios”;
27.–Também o artigo 17.º da L.G.T. expressamente prevê a possibilidade do exercício em juízo de direitos alheios, a título de gestão de negócios, em matéria tributária;
28.–Por outro lado, perante uma situação em que alguém sem poderes de representação para o efeito atua em juízo e arrogando-se de legitimidade a título de gestão de negócios, o Venerando Tribunal ad quem já teve oportunidade de se pronunciar no sentido que se aplicaria o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 49.º do C.P.C., por maioria de razão, determinando a notificação pessoal do dominus para se pronunciar sobre a gestão;
29.–Mas mais, sempre se deverá notar que, se o ato foi praticado a título de gestão não representativa, tal deve-se a necessidade do cumprimento cabal dos deveres deontológicos que impendem sobre o advogado;
30.–Em face do supra exposto, salvo melhor e douto entendimento, é manifesto que a Sentença sob censura padece de erro na aplicação do direito, ao considerar que não se encontravam preenchidos os pressupostos da gestão de negócios e, por conseguinte, ao considerar que o gestor não era parte legítima, devendo, por isso, ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade singular e ordene o normal prosseguimento dos autos;
SEM PREJUÍZO DO SUPRA EXPOSTO,
31.–Independentemente da natureza representativa ou não representativa da gestão, importa notar que, in casu, os vários pressupostos da gestão de negócios se encontram preenchidos;
32.–Com efeito, a prática de atos processuais em nome e por conta do dono do negócio, salvo melhor e douta opinião, consubstancia assunção de negócio alheio;
33.–A lei substantiva não distingue quais os atos, jurídicos ou materiais, que podem ser objeto da gestão, estando apenas vedado ao gestor os atos de natureza exclusivamente pessoal, isto é, os atos que só o próprio dominus poderá praticar;
34.–Sendo que os atos de natureza processual não deixam de configurar atos jurídicos, como é, de resto, amplamente reconhecido pela nossa doutrina e jurisprudência;
35.–Nem é concebível o entendimento que os atos processuais são atos de natureza pessoal, porquanto tal inviabiliza, por um lado, a possibilidade de patrocínio judiciário, a qual é expressamente reconhecida pelo C.P.C., e, por outro, as situações de substituição processual expressamente previstas na lei;
36.–Nem tal limite poderá ser imposto pelos formalismos e ritos inerentes ao processual civil, em virtude da instrumentalidade deste em relação ao direito substantivo, porque tal representaria uma sobreposição do instrumento às pretensões materiais que a lei expressamente reconhece, sem que, com isso, se atingisse uma boa administração da justiça;
37.–Enfim, em face a todo o exposto, dúvidas não subsistem que a prática de um ato processual para fazer valer os direitos do dominus consubstancia negócio na aceção dada pelo artigo 464.º do C.C.;
38.–Sendo, igualmente, claro que, in casu, o negócio em apreço (ação judicial intentada para fazer valer o direito de preferência preterido do dono do negócio) assume uma natureza, tanto objetiva, como subjetivamente alheia;
39.–A saber, por um lado, o referido direito de preferência encontrava-se na esfera jurídica da dona do negócio, MJS, por outro, os pedidos deduzidos pelo aqui Apelante sempre se repercutiriam na esfera jurídica da mesma;
40.–Também dúvidas não subsistem que a assunção da direção do negócio foi feita no interesse e por conta da dona do negócio, existindo a intenção exclusiva por parte deste de dirigir os assuntos daquela, mormente a presente ação foi intentada para fazer valer os direitos da dona do negócio, como resulta do pedido da presente ação;
41.–Por fim, também não resulta dos autos que o aqui Apelante tenha sido autorizado para intentar a presente ação, não tendo celebrado com a dona do negócio qualquer negócio através do qual se tenha vinculado a intentar a presente ação;
42.–Assim, nesses termos, apenas se poderá concluir que se encontrava, in casu, reunidos todos os pressupostos da gestão de negócios;
43.–Outro aspeto que carece, em nosso entendimento, da devida concretização prende-se com o direito de acesso à justiça da própria MJS, que segundo o entendimento protagonizado pelo Tribunal a quo poderá aqui ser colocado em causa, conforme será, de seguida, evidenciado;
44.–Conforme devidamente demonstrado no articulado que desencadeou os presentes autos, a saúde da dominus negotii à data da interposição da presente ação judicial encontrava-se já muito degradada, padecendo a mesma, entre outros, de Demência (Doença Alzheimer), não se encontrando, por isso e em nosso entender, a dominus negotii capaz de fazer valer os seus direitos;
45.–De facto, a aceitar-se a solução apresentada pelo Tribunal a quo, colocar-se-ia a questão de saber que outro meio processual seria adequado e apto à salvaguarda dos direitos de MJS, questão à qual o Tribunal a quo se eximiu a apresentar qualquer alternativa;
46.–Tampouco se poderá aceitar, salvo melhor e douto entendimento, que o regime dos maiores acompanhados seria o mecanismo adequado ao presente caso;
47.–Paralelamente, no regime legal dos maiores acompanhados regulados nos artigos 138.º e seguintes do C.C., não se encontra prevista qualquer eficácia retroativa da decisão judicial;
48.–Pelo que, ainda que o gestor de negócios recorresse, na qualidade de filho, à Ação Especial de Acompanhamento de Maior, nenhuma garantia teria de que a decisão do acompanhamento seria “útil” para a concreta questão;
49.–Ao que acresce o facto de a aqui 1.ª R. ser irmã do aqui gestor de negócios, o que, naturalmente, iria gerar um elevado grau de litigância e oposição no decretamento do acompanhamento e na designação do acompanhante, determinando, por consequência, um prolongar excessivo da respetiva ação;
50.–Em face do exposto, não se vislumbra aqui qualquer outra solução legalmente admissível para fazer valor o direito de preferência em questão nos presentes autos, sendo certo que, conforme supra referido, a se aceitar o entendimento do Tribunal a quo, estar-se-ia a aceitar que no presente caso nada poderia ser feito por forma a tutelar o direito legal de preferência de MJS, conclusão que atenta o ordenamento jurídico em vigor, máxime o princípio da justa composição do litígios, não poderá, salvo melhor opinião, ser aceite;
51.–Por conseguinte, deverá a douta decisão sob censura ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade e ordene o normal prosseguimento dos autos;
SEM PRESCINDIR,
52.–Na eventualidade de se considerar que o exercício judicial de um direito não pode consubstanciar objeto único da gestão de negócios, o que somente se concebe por mero dever de patrocínio, sempre se deverá notar que a presente ação foi intentada na sequência de outros atos de gestão, conforme será, seguidamente, demonstrado;
53.–Com efeito, como, inclusive, resulta do já referido Doc. n.º 1 junto pela Apelada na sua Contestação (Ref.ª CITIUS: 34365164), antes de intentar a presente ação judicial e, na sequência de ter tomado conhecimento da preterição do direito de preferência do dominus negotii, o aqui Apelante, já na sua qualidade de gestor, interpelou a Apelada através de uma missiva em que exigiu, entre o mais, a resolução consensual do litígio;
54. Se o gestor de negócios já tiver iniciado a gestão, o mesmo encontra-se, indubitavelmente, habilitado (entenda-se legitimado) para intentar a competente ação visando proteger os interesses do dominus, que justificaram o início da gestão;
55. Nada na lei processual portuguesa parece vedar a possibilidade do gestor negócios intentar uma ação destinando a tutela de interesses do dono do negócio, determinando o disposto no n.º 1 do artigo 30.º do C.P.C. que a o autor é parte legítima quando tiver interesse em demandar;
56.–Ora, incumbindo sobre o gestor o dever de continuar a gestão, é mais que manifesto que este tem interesse em demandar, sob pena de poder a posteriori ser responsabilizado pelos prejuízos que tiver causado pela sua gestão, cf. artigo 466.º, n.º 1 do C.C.;
57.–Mercê do supra exposto, sempre se deverá concluir que a presente ação podia ser intentada pelo gestor de negócios, devendo a douta decisão sob censura ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa e ordene o normal prosseguimento dos autos.

A Sentença sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa;
Artigos 464.º e 471.º do Código Civil;
Artigos 30.º e 590.º do Código de Processo Civil”.
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Contra-alegaram os Réus formulando a final as seguintes conclusões:
“(…)
3.–Muito Bem decidiu o tribunal a quo que a titular da relação material controvertida alegada pelo Autor era MJS, e a proceder a ação seria na sua esfera jurídica que se repercutiam os efeitos, carecendo o Autor, aqui Apelante, de legitimidade para intentar a ação em nome próprio.
4.–Muito Bem decidiu o tribunal a quo que, o Apelante, intentou a ação em nome individual, quando a titular do alegado direito de preferência seria MJS, a sua mãe e mãe da primeira Ré, ora Apelada.
5.–Muito Bem andou o tribunal a quo ao entender que “pese embora se tenha arrogado como gestor de negócio, há que ter em consideração que o A. intentou a ação em nome próprio (e não na qualidade de representante)”
6.–Muito Bem decidiu o tribunal a quo que “`à luz do disposto do artigo 464.º do C.C., a gestão de negócios ocorre quando uma pessoa assume a direção e negócio no interesse e por conta do respetivo dono, estando a respetiva eficácia dependente de ratificação, cfr. art.471.º e 268.º, n.º 1 do C.C.”
7.–Não basta ao Apelante escrever uma ou outra vez, no introito da P.I. ou em todo o texto da P.I., ou como o faz nas alegações de recurso que é gestor de sua mãe, que tal facto leva a concluir que estamos perante uma gestão de negócios!
8.–Não é porque, o Apelante escreveu muitas vezes que era gestor de negócios da sua mãe que se tornou real!
9.–O Apelante não logrou demonstrar, mais uma vez, que estão preenchidos os requisitos da gestão de negócios.
10.–Vem o Apelante tentar justificar ter intentado a ação como Autor, por defeito no formulário da P.I. na plataforma CITIUS, por nele não constar um local próprio para colocar a indicação de “gestor de negócios”
Ora nos termos da Portaria 280/2013 de 26 de Agosto, no artigo 6.º, é possível anexar ao formulário da P.I.
a)- Ficheiros com a restante informação legalmente exigida, conteúdo material da peça processual e demais informação que o mandatário considere relevante e que não se enquadre em nenhum campo dos formulários;
E nos termos do artigo 7.º, n.ºs 2 e 3, da referida portaria que:
2- Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.
3- O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo de a questão poder ser suscitada oficiosamente.
11.–Esta é uma Não Questão!
12.–Do teor da ação, esse sim objeto de leitura do Tribunal, consta, sem mais, que a ação foi intentada pelo Apelante e nela tem a qualidade de Autor.
13.–O Apelante socorre-se de justificações sem fundamento para justificar o injustificável!
14.–E que para evitar incorrer na violação dos deveres previstos nos artigos 98.º e 90.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Apelante intentou a ação em seu nome, na qualidade de Autor, pois nunca contactou com a MJS
15.–Alega o Apelante que o tribunal a quo deveria ter-se recorrido do despacho de aperfeiçoamento previsto no artigo 590.ºCPC, se subsistissem duvidas quanto à legitimidade ativa. Esse convite está na discricionariedade do tribunal e do texto da sentença proferida, é notório que o douto tribunal, não teve dúvidas quanto à ilegitimidade ativa do Apelante, da forma como intentou ação como Autor, quando a titular da relação material controvertida seria a sua mãe, carecendo de legitimidade para intentar a ação em nome próprio. E o tribunal a quo também não teve dúvidas, que não se mostraram verificados os requisitos da gestão de negócios.
16.–No texto da P.I. o Apelante não fez qualquer justificação para constar como Autor, vindo agora em desespero fazê-lo.
17.–O Apelante vem numa continua saga de defesa de que, ao intentar a ação de preferência agiu como gestor de negócios de sua mãe, o que não se concede.
18.–Muito Bem decidiu o Tribunal a quo que não se mostram preenchidos ou verificados os requisitos da Gestão de Negócios.
19.–No caso em apreço, o interesse na ação é do aqui Apelante.
20.–Já que não conseguiu concretizar diretamente os seus intentos, ser proprietário ou comproprietário com os Apelados M e J da referida fração, através da imposição de negociação, enviando a carta datada de 01 de Setembro de 2022. Exigindo que, Os Apelados alienassem “metade” da mencionada fração autónoma ao Apelante pelo valor de €: 22500,00(…); ou o Apelante adquiria por completo a fração autónoma pela quantia de €: €: 90.000,00 (…); ou os Apelados mantinham a totalidade do imóvel, contudo realizam a entrega de €: 45.000.00, ao Apelante que abdicará, em absoluto, de qualquer direito de ação contra V/Exas.
22.–Na sobredita carta o Apelante nunca se identificou como gestor de negócios, conforme se pode ler, ou em momento algum informou que iria realizar o negócio e posteriormente transmitiria para esfera jurídica da mãe quer a fração, quer o preço.
23.–Da carta enviada resulta sem dúvidas que o Apelante tinha interesse em celebrar “para si” o negócio.
24.–Aliás, o Apelante reconhece esse facto nas suas alegações quando refere, “É certo que o Apelante refere que os possíveis negócios seriam celebrados consigo e não em nome da dona do negócio”
25.–O Apelante tenta mitigar esse facto alegando que, ao enviar a carta praticou um ato de gestão de negócios no interesse de sua mãe, e que, apesar de celebrar aqueles acordos em nome próprio, duvidas não subsistiam (sublinhado nosso), que estes seriam celebrados no interesse e por conta do aqui Apelante, o qual pretendia mais tarde transferir a propriedade para ou entregar o prelo à dona do negócio”
26.–Se a intenção do Apelante, era transmitir a propriedade ou o preço à sua mãe porque é que na missiva não o transmitiu e só agora, em desespero, vem alegar tal facto.
27.–E alega o Apelante que a alternativa de comprar pelo dobro do preço da preferência, “demonstra no mínimo o altruísmo e ausência completa de interesse do próprio Apelante”, (sublinhado nosso), onde reside o altruísmo se para ficar com a fração até estava disposto a pagar o dobro do valor.
28.–Não houve aqui qualquer atitude altruísta, ou desinteressada por parte do Apelante, tanto mais que a sua mãe, MJS, faleceu em 12.12.2022, e o Apelante continuou com a ação com o intuito de que o exercício do direito de preferência passasse para a herança, conforme posição por ele firmada nos autos.
29.–O teor da carta junta à Contestação e que se reproduziu supra, é no nosso entender, e salvo melhor opinião, mais do que suficiente para demonstrar o não preenchimento dos requisitos da gestão de negócios antes da propositura da ação
30.–E reflete claramente que, no seguimento da ameaça nela constante o apelante intentou a ação que deu origem aos presentes autos, como se pode ler “Contexto que legítima, claramente, a impugnação judicial do respetivo contrato de compra e venda, tendo sido com este propósito que fomos mandatados pelo N/Constituinte”
31.–O Apelante alega que a ação de preferência conforme foi intentada, seria a forma processual correta para a defesa dos direitos e interesses da MJS, e que esta não poderia ser privada do acesso à justiça.
32.–Pois seria se a ação tivesse sido intentada pela própria, e não foi.
33.–Pelo que duvidas não restam que estamos perante uma situação de ilegitimidade ativa;
34.–E não se mostram verificados os requisitos da gestão de negócios, por inobservância dos requisitos de ser um negócio e interesse alheio e impossibilidade de ratificação do negócio.
35.–Mesmo que a ação de preferência intentada pelo Apelante tivesse sido na qualidade de gestor de negócios, o que apenas se aceitaria por mero dever de patrocínio ou exemplo meramente prático, nunca o negócio (a ação de preferência) seria ratificado pela MJS, pois à data da interposição da ação, a sua saúde encontrava-se degradada, como alega o Apelante tanto na P.I, como nesta sede.
36.–E não poderia o tribunal a quo substituir-se à MJS, na manifestação da vontade daquela, suprimindo a sua vontade.
37.–Não poderia o tribunal a quo proferir decisão que viole a lei, quanto aos requisitos intrínsecos da gestão de negócios.
38.–E defende o Apelante que o regime do Maior Acompanhado não seria aplicável, até porque os efeitos da decisão não têm efeitos retroativos.
39.–Olvidou-se o Apelante que também intentou a ação acompanhamento de maior de sua mãe, MJS que correu termos sob o processo n.º 7355/22.4T8ALM, no Juízo Local Cível de Almada Juiz 1, requerendo a sua nomeação como acompanhante, para poder sustentar a ação de preferência e que foi declarada extinta pelo falecimento da acompanhada MJS, falecida que foi no dia 12.12.2022.
40.–O Apelante apresenta um elenco de justificações para justificar o injustificável.
41.–De toda a sequência de atuação do Apelante não pode deixar de se concluir que este ardilosamente procura camuflar o que foi sempre a sua intenção, ser proprietário da fração objeto dos autos.
42.–Muito bem decidiu o tribunal a quo pela procedência da exceção de ilegitimidade ativa, e pela absolvição dos Apelados da instância.
43.–E ao decidir como decidiu, o tribunal a quo proferiu uma sentença justa!
44.–E as alegações apresentadas pelo Apelante, e salvo melhor opinião, não perigam a decisão proferida, e não tem sustentação, aliás não deixam de transparecer e de ir ao encontro da douta decisão do tribunal a quo.
Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V Exas. deverá ao recurso interposto pelo Apelante ser considerado improcedente, e ser mantida nos exatos termos, em que o foi, a sentença recorrida”.
*

Remetidos os autos a esta Relação, pelo ora relator foi proferido despacho do seguinte teor:

“Lido o recurso e as contra-alegações, afigura-se-me o seguinte entendimento, de que as partes devem ser notificadas, nos termos do artigo 655º do CPC: 
- ou AS não é parte processualmente legítima e o recurso vai improceder,  
- ou AS é parte processualmente legítima.
Como é claro, o objectivo do recurso é que se decida que AS é parte processualmente legítima (como gestor de negócios da mãe), e, como ele pede, que então, em conformidade com essa decisão, os autos prossigam os seus termos na primeira instância. 
A acção foi interposta em 23.09.2022 e em 12.12.2022, faleceu MJS, alegadamente dona do negócio ou beneficiária da gestão de negócios como se queira chamar.  
O tribunal recorrido, na decisão recorrida, não se pronunciou sobre o requerimento dos RR – ao qual AS respondeu – de inutilidade superveniente da lide.  
Também, em coerência com a posição de (apenas) julgar AS como autor em nome próprio e portanto como parte processualmente ilegítima, o tribunal não suspendeu a instância por falecimento da parte activa. 
A resposta de AS ao requerimento em que os RR. juntaram a certidão de óbito e pediram a extinção da instância por inutilidade superveniente, foi: - “vou assegurar a habilitação de herdeiros”. Por isso que, “eu aqui, nesta acção, me apresento como gestor de negócios da minha mãe, e portanto a verdadeira Autora, aquela em cuja ordem jurídica se vai repercutir a sentença (expectavelmente favorável) é a minha mãe, tendo ela falecido, vou promover a habilitação de herdeiros para o prosseguimento dos autos”.
Está o aqui Relator em crer que é possível admitir, apesar das confusas referências da petição inicial, que basta que alguém se invoque como gestor de negócios de outrem para termos assegurada a legitimidade processual. Coisa diversa é a verificação dos requisitos da gestão de negócios, cuja falta – designadamente da demonstração de interesse do dono do negócio – produzirá uma ilegitimidade substantiva.  
O que porém se afigura como óbice ao conhecimento do recurso são duas incidências a partir do falecimento da alegada dona do negócio.
A primeira é que, tendo ela falecido, não é possível a ratificação da gestão, neste caso, não é possível que a dona do negócio ratifique a propositura desta acção ou, se se quiser pensar para mais tarde (e se se quiser admitir, o que não é teoricamente pacífico, a possibilidade de sentenças condicionais sem expressa petição disso mesmo), que ela ratifique os efeitos que para ela resultem da sentença.  
E, segunda incidência, contrariamente ao que sugere AS, a dona do negócio não pode ser substituída nos autos pela sua herança, mais concretamente, não podem ser habilitados os seus herdeiros para prosseguirem a acção: - é que a 1ª Ré é herdeira da dona do negócio e teria necessariamente de ser habilitada a prosseguir nesta acção como Autora, situação que é processualmente impossível. 
Assim, apesar da inutilidade superveniente não ter sido decidida em primeira instância, afigura-se ao ora relator que é completamente inútil conhecer do recurso, porque mesmo a proceder, não poderiam os autos prosseguir os seus termos na primeira instância com uma pessoa que, habilitada, seria simultaneamente Ré e Autora, razão pela qual entende que deverá, em face do facto objectivo do falecimento da dona do negócio, vir a julgar extinto o recurso por inutilidade superveniente.  
Notifique as partes deste entendimento”.   
*

Pronunciou-se o recorrente invocando:
4.–Ocorre que, salvo devido respeito, que é muito, tal raciocínio incorre num lapso, conforme será, em nosso entender, de seguida evidenciado.
5.–Relevando, desde já, destacar que a herança de MJS não foi, até à presente data, aceite por qualquer um dos herdeiros,
6.–Mantendo-se assim como jacente em conformidade com o estabelecido no artigo 2046.º do Código Civil,
7.–Sendo certo que, estando perante uma herança indivisa estamos igualmente perante um património autónomo, de afetação especial, diretamente responsável conforme previsto no artigo 2097.º do Código Civil, na qual os herdeiros apenas têm de intervir como cotitulares desse património, vide artigo 2091.º Código Civil.
8.–Pelo que importa aqui aferir da existência ou não de uma situação de confusão para efeitos do artigo 868.º do Código Civil,
9.–Veja-se que a habilitação da 1.ª R./Apelada – que por importante se destaca veio a ser peticionada – apenas irá tornar a mesma representante da herança indivisa da sua mãe,
10.–Pelo que «O património do devedor herdeiro é autónomo em relação ao património da herança credora, pelo que a situação cabe na excepção do artigo 872º do CC que estabelece que: “Não há confusão se o crédito e a divida pertencem a patrimónios separados”.» (negrito e sublinhados nossos) - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 23 de Abril de 2020 no âmbito do processo n.º 604/18.5T8LSB-C.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.
11.–Assim, não existirá confusão (subjetiva) de direitos e obrigações na pessoa da 1.ª R./Apelada porquanto não se reúnem na mesma a qualidade de credora e devedora (lato sensu),
12.–«Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do Código de Processo Civil (cfr. preâmbulo ao DL n.º 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.» - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 02 de Março de 2023, no âmbito do processo n.º 594/17.1T8ALR.E1, disponível in www.dgsi.pt.
13.–Deste modo, tem a melhor jurisprudência entendido que apenas «(…) ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.» (negrito e sublinhados nossos), Cfr. Cit. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, disponível in www.dgsi.pt.
14.–Em sentido totalmente convergente, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que «O art. 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil deverá aplicar-se “quando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, for patente que a decisão a proferir pelo julgador deixou de ter interesse, seja porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo (casos de impossibilidade), seja porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio (casos de inutilidade)”.» - Cfr. Acórdão de 17 de Novembro de 2021 proferido no âmbito do processo n.º 391/17.4T8GMR.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
15.–Concluindo-se assim que «Não há qualquer impossibilidade ou inutilidade da lide quando a acção continua a ter interesse para o demandante ou para os habilitados, enquanto sucessores do demandante, por ainda ser possível satisfazer-se à pretensão que a demandante quer fazer valer no processo.» (negrito e sublinhados nossos), Cfr. Cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
16.–Entendimento que foi integralmente aceite e subscrito pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão proferido em 05 de Abril de 2022, no âmbito do processo n.º 1198/05.7TJLSB-J.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.
17.–Em face do exposto, atenta o facto de subsistir um herdeiro de MJS que mantém integral interesse na prossecução dos presentes autos, sempre se deverá decidir, salvo melhor entendimento, pela não verificação de qualquer inutilidade/impossibilidade superveniente.
18.–Questão diversa, que se poderá aqui colocar, prende-se com o facto de se o herdeiro, desacompanhado dos demais herdeiros, tem legitimidade para fazer prosseguir os presentes autos,
19.–Sendo que, também quanto a esta questão, importa aqui tecer as seguintes considerações, A saber,
20.–Dúvidas não se colocam que o direito que se pretende se fazer exercer nos presentes autos se constituiu ainda em vida da sua respetiva titular,
21.–Integrando assim, o respetivo acervo hereditário…
22.–Ora, com o óbito de MJS é obrigatória, atenta a necessidade de garantir o prosseguimento da ação, a habilitação incidental vide artigos 269.º, n.º 1 alínea a) e 284.º, n.º 1 alínea a) ambos do CPC.
23.–Sendo de ressalvar que a «(…) necessidade de garantir o prosseguimento da acção suspensa torna distinta esta questão da habilitação para substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio da de se saber se existe ou não aceitação da herança.» - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de Maio de 2010 proferido no âmbito do processo n.º 2431/07.6TBVIS-B.C1, disponível in www.dgsi.pt.
24.–Assim:
«III– Esta característica de obrigatoriedade reporta a necessidade de, depois de se verificar a existência do óbito, se suspender de imediato a instância, facultando-se um processo célere de fazer prosseguir a acção, habilitando aqueles que são tidos como sucessores para prosseguirem os termos da demanda, o que é do interesse daquele que seja demandante.
IV– No incidente da habilitação apenas se averigua se o habilitando tem as condições legalmente exigidas para substituir uma pessoa no processo e, para com ele, a causa poder prosseguir.
V– Nessa habilitação não se exige a aceitação da herança do habilitando e o facto deste ser habilitado não determina o reconhecimento da aceitação tácita da herança, permitindo que mesmo depois da habilitação o habilitado que a não contestou possa vir a repudiar a herança.» - Cfr. Cit. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra disponível in www.dgsi.pt.
25.–Deste modo, para efeitos puramente processuais a herança já não se encontra jacente, porquanto os presentes autos sempre terão de prosseguir em nome dos herdeiros e não da própria herança,
26.–Situação diferente ocorreria se a presente ação tivesse sido movida por um herdeiro após o óbito da titular do direito, caso em que a ação seria movida, nesse caso, pela própria herança jacente.
27.–Assim, a presente análise deverá se cingir à solução a encontrar em caso de herança indivisa, cujo regime se encontra explanado nos artigos 2079.º e seguintes do Código Civil,
28.–Efetivamente decorre do n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros…
29.–Ocorre que, salvo melhor entendimento, tal solução não poderá ser aplicada no presente caso,
30.–Os presentes autos, encontram-se subjetivamente delimitados aos próprios herdeiros da falecida,
31.–Sendo que o ponto problemático, conforme sobejamente referido, reside no facto de um dos sucessíveis se encontrar nos presentes autos como Ré.
32.–Existindo assim, um claro e manifesto, conflito de interesses, porquanto a 1.ª R./Apelada não tem qualquer interesse na prossecução dos presentes autos e bem assim num possível exercício do direito de preferência pertencente à falecida,
33.–Pelo que tudo faria para que os presentes autos não tivessem qualquer sucesso…
34.–Afigura-se, em nosso entender, como indubitável que a ordem jurídica em vigor não pode consentir um impasse deste tipo,
35.–Ou seja, que a 1.ª R./Apelada aproveitando-se da sua qualidade de herdeira imponha à respetiva herança uma decisão que é em todo, contrária aos interesses da herança,
36.–Sendo que, importa nunca olvidar que estamos perante patrimónios autónomos…
37.–Deste modo, qualquer solução que possa impedir o ora Apelante de fazer prosseguir a presente ação sem obter a concordância da 1.ª R./Apelada, traduzir-se-á num manifesto abuso de direito «(…) por exceder manifestamente o fim social do direito dos herdeiros, pensado para preservar o direito hereditário, não para o prejudicar – e numa solução claramente inconstitucional por cercear intolerável e desproporcionadamente o direito da autora de acesso à justiça para defesa da sua meação nos bens comuns e dos seus direitos hereditários.» (negrito e sublinhados nossos) - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 09 de Janeiro de 2014, no âmbito do processo n.º 3784/09.7TBVCD.P1, disponível in www.dgsi.pt.
38.–Todavia, encontram-se, no ordenamento jurídico português, soluções para os presentes casos,
39.–Em concreto, a aplicação ao conjunto dos herdeiros da herança indivisa com vista ao exercício de direitos que apenas possam ser exercidos por todos em conjunto, do regime da compropriedade que nos artigos 1404.º e 1407.º do Código Civil remete para o regime das sociedades civis previsto nos artigos 980.º e seguintes do Código Civil,
40.–Máxime, do regime previsto no artigo 985.º do Código Civil, segundo o qual a decisão é tomada por maioria, maioria essa que seria apurada segundo o quinhão hereditário de cada herdeiro.
41.–Solução essa que, atenta os aspetos concretos dos presentes autos, em pouco contribuem para superar a questão aqui em causa atenta o facto de apenas existirem dois herdeiros cujos quinhões hereditários são absolutamente iguais.
42.–Todavia, conforme mencionado anteriormente, não deixa o ordenamento jurídico português de apresentar uma solução que supera as situações de absoluta igualdade entre os herdeiros, em concreto, através da aplicação analógica do regime das associações,
43.–Em concreto, nos termos do artigo 157.º do Código Civil, segundo o qual, «As disposições do presente capítulo são aplicáveis às associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados, às fundações de interesse social, e ainda às sociedades, quando a analogia das situações o justifique.»,
44.–Dispondo o artigo 176.º, n.º 1 do Código Civil que, «O associado não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.»,
45.–Veja-se que a melhor jurisprudência tem adotado tal solução, vide Cit. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09 de Janeiro de 2014, disponível in www.dgsi.pt.
46.–Ora, in casu é absolutamente claro e óbvio a existência de um conflito de interesses entre a 1.ª R./Apelada e a “herança”,
47.–Pelo que, atenta a ausência de qualquer normativo específico de direito sucessório, justifica-se a aplicação analógica da solução consagrada no artigo 176.º do Código Civil,
48.–Aplicação que determina, em nosso entender, que a decisão de prosseguir os presentes autos não carece da concordância da herdeira aqui 1.ª R./Apelada, bastando, para o efeito, a decisão do aqui Apelante.
49.–O que, inclusivamente, foi requerido no respetivo incidente de habilitação de herdeiros; - Cfr. Requerimento Inicial do Apenso A
50.–Quanto ao facto de da 1.ª R./Apelante assumir uma posição simultânea de Ré e Autora (conforme entendido no Despacho sob análise) importa aqui destacar o entendimento do Tribunal da Relação do Porto expresso no mencionado Acórdão de 09 de Janeiro de 2014, segundo o qual: «Esta exclusividade do réu na posição passiva na lide, faz com que não possa ser outro o demandado, que ele e só ele tenha de ocupar a posição de réu. Então, como ninguém pode ser simultaneamente autor e réu e este concreto réu não pode deixar de o ser, só podemos mesmo concluir que basta a presença no lado activo da lide da totalidade dos restantes herdeiros, que é o que aqui sucede. A tese preconizada pelo réu de que não podendo deixar de ser réu e não podendo, por isso, estar também na posição de autor, ninguém sem ele podia instaurar a acção, é obviamente indefensável, pois significaria que uma mera questão de forma impediria em absoluto o exercício judicial de um direito legítimo, o que constitui um absurdo jurídico que o réu, com um mínimo de seriedade, não pode deixar de reconhecer. Milita nesse sentido também o argumento do conflito de interesses, que referimos no tocante à tomada da decisão, não fazendo qualquer sentido que alguém esteja impedido de votar uma decisão mas deva, ainda assim, ser chamado a exercer a representação na acção destinada a exercer judicialmente o conteúdo da decisão. Este argumento encontra, aliás, manifestação no n.º 2 do artigo 21.º do Código de Processo Civil ao nível da representação das pessoas colectivas, o qual pode ser visto como uma emanação de um princípio geral de direito processual de que numa acção judicial não pode actuar como representante de uma entidade colectiva quem com ela estiver em conflito de interesses.», disponível in www.dgsi.pt.

51.–Em suma, podemos apresentar as seguintes conclusões:
- «O património do devedor herdeiro é autónomo em relação ao património da herança credora, pelo que a situação cabe na excepção do artigo 872º do CC que estabelece que: “Não há confusão se o crédito e a divida pertencem a patrimónios separados”.» - Cfr. Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 23 de Abril de 2020 no âmbito do processo n.º 604/18.5T8LSB-C.L1-7, disponível in www.dgsi.pt;
- «A O património do devedor herdeiro é autónomo em relação ao património da herança credora, pelo que a situação cabe na excepção do artigo 872º do CC que estabelece que: “Não há confusão se o crédito e a divida pertencem a patrimónios separados”.» - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 23 de Abril de 2020 no âmbito do processo n.º 604/18.5T8LSB-C.L1-7, disponível in www.dgsi.pt;
- «Não há qualquer impossibilidade ou inutilidade da lide quando a acção continua a ter interesse para o demandante ou para os habilitados, enquanto sucessores do demandante, por ainda ser possível satisfazer-se à pretensão que a demandante quer fazer valer no processo.» - Cfr. Acórdão de 17 de Novembro de 2021 proferido no âmbito do processo n.º 391/17.4T8GMR.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt;
- «Não há impossibilidade ou inutilidade da lide quando a ação continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo.
- Daí que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.» - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 02 de Março de 2023, no âmbito do processo n.º 594/17.1T8ALR.E1, disponível in www.dgsi.pt.
-«III- À herança já aceite mas ainda indivisa são aplicáveis as disposições das sociedades civis, pelo que as decisões do conjunto dos herdeiros são tomadas por maioria formada não em resultado do número de herdeiros mas das respectivas participações na herança.
-IV- Aplica-se ainda por analogia o regime jurídico das pessoas colectivas, designadamente o artigo 176.º do CC por virtude do qual o herdeiro que é simultaneamente promitente incumpridor não pode participar na decisão da herança de o accionar para obter o cumprimento da promessa.» - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09 de Janeiro de 2014, disponível in www.dgsi.pt.
52.–Mercê do supra exposto, e salvo melhor entendimento, deverão os presentes autos prosseguir seus termos porquanto inexiste qualquer fundamento que suporte a existência de qualquer inutilidade/impossibilidade superveniente da lide.
53.–Aspeto que aqui se invoca para os devidos efeitos legais”.
*

Não tendo havido adesão ao entendimento do relator, não é possível decisão liminar, importando a submissão das questões recursórias ao colectivo de juízes.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
*

II.Direito

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - a questão a decidir é a de saber se não se verifica a ilegitimidade activa.
*

III.Matéria de facto

A constante do relatório que antecede.
Acresce que por acórdão de 26.10.2023, da 2ª Secção desta Relação, foi confirmada a decisão de primeira instância proferida no apenso A destes autos, de habilitação de herdeiros de MJS, na qual se indeferiu a requerida habilitação.
*

IV.Apreciação

Identificamos o objecto do recurso como “saber se não se verifica ilegitimidade activa”. Cremos que este é o reduto mínimo do objecto recursivo, em face da discussão da pessoa a quem pertence a legitimidade activa.

Primeira nota: - os recursos servem para impugnar decisões judiciais, através da apresentação de argumentos contrários aos que sustentaram as decisões impugnadas – artigos 627º e 639º, ambos do Código de Processo Civil – donde se extrai que o tribunal de recurso não tem de apreciar os argumentos oferecidos contra entendimentos que o tribunal recorrido não teve.
Centrando-nos assim no despacho recorrido, nele encontramos apenas dois argumentos para sustentar a tese da ilegitimidade processual activa de AS:  - primeiro, que o autor é ele, António Sequeira; segundo, que não se verificam os requisitos da gestão de negócios.
Quanto ao segundo argumento, os factos relativos aos requisitos da gestão de negócio, e mais especificamente saber da correspondência da gestão com a vontade da dona do negócio, não aportam – salvo o que diremos adiante – à legitimidade processual mas à legalidade da gestão, e além disso, estão controvertidos, razão pela qual também não podem contribuir para a decisão. 
Quanto ao primeiro argumento, ele está assente em “AS está no processo em nome próprio”.
Não nos interessa se o requerimento que capeia, informaticamente e para referenciação histórico-electrónica, indica AS como autor.
Como se vê do relatório supra, é facto que AS vem aos autos, na petição inicial, cujo cabeçalho se inicia pela seguinte indicação: AS, casado, contribuinte fiscal n.º …, residente na Avenida …, n.º …, …, na qualidade de Gestor de Negócios de MJS, viúva, contribuinte fiscal n.º …, residente na Rua … (…)”.
É também facto, como resulta do relatório, que a epígrafe do conjunto de artigos 26º a 39º da petição inicial lê: II - Do Direito - a) Da legitimidade do A. e no artigo 39º da petição inicial, depois de concluir pelo preenchimento dos requisitos da gestão de negócios, afirma que deverá o A. na sua qualidade de gestor de negócios considerar-se como parte legítima nos presentes autos”.
É ainda verdade que, coerentemente com o que se acaba de referir, AS não diz em lado algum da petição inicial que age como gestor de negócios em nome de sua mãe.
Em função destas afirmações poderá entender-se que a parte activa é AS e que, é ele, face à causa de pedir e ao pedido, parte ilegítima.
Todavia, não o cremos assim.
Embora o Autor não tenha referido estar em gestão de negócios em nome da mãe, deve entender-se que o está.

Vejamos porquê:

Como nos diz Mário Júlio de Almeida Costa in Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, p.479, Observa-se, apenas, que o gestor, interferindo em assuntos alheios, pode agir em nome do respectivo dono ou em nome próprio. Teremos assim, gestão representativa ou gestão não representativa a que se refere o art. 471º. No primeiro caso, verifica-se uma situação de representação sem poderes: as relações entre o gestor e o dono do negócio são reguladas pelos princípios da gestão, e as relações entre o dono do negócio e o terceiro pelo preceituado no art. 268º. À hipótese de gestão não representativa, declaram-se extensíveis, na parte aplicável, as disposições dos artigos 1180º a 1184º, respeitantes ao mandato sem representação”.
Mais adiante, na mesma obra, e versando sobre aprovação e ratificação, refere-se (p- 487): Se o gestor actua em nome próprio, o que corresponde a tratar-se de gestão não representativa, aplicam-se as disposições sobre o mandato sem representação (art. 471º e 1180º a 1184º). Os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se imediatamente com referência ao gestor. Portanto, uma vez aprovada a gestão, haverá que transferi-los para a esfera jurídica do “dominus”, (…) Ao passo a ratificação se circunscreve a actos jurídicos e visa as relações entre o dono de negócio e terceiros, conferindo uma legitimidade superveniente à actuação do gestor”.
Destes excertos resulta que o aspecto essencial da distinção entre a gestão representativa e a não representativa não é o nome, mas a actividade de gestão e por via dela, o lugar, ou mais claramente, a esfera jurídica onde o efeito dessa gestão de imediato se produz. Na gestão não representativa, este lugar é a esfera jurídica do gestor.
O recurso a juízo para acção de preferência é a actividade de gestão (do negócio, isto é, do interesse em efectivar o direito de preferência que não foi concedido e que se afirma como potestativo nas esferas jurídicas do vendedor e dos compradores) que concretamente é desenvolvida por AS.
A petição inicial corresponde a uma declaração de vontade. Assim, a primeira actividade que convoca ao tribunal é a da sua interpretação, o que como se sabe se faz de acordo com a teoria da impressão do destinatário constante do artigo 236º do Código Civil.
Se começarmos pelo fim da petição – o pedido – vemos AS a pedir o resultado do exercício do direito de preferência para sua mãe, não para ele. Se formos ao meio, à causa de pedir, AS alega os factos dos quais deriva o direito de preferência da mãe na aquisição da fracção a ela arrendada, nos quais ele não tem qualquer participação.
Então, quando chegamos ao princípio, AS, (…) na qualidade de Gestor de Negócios de MJS, (…)”, não temos, é certo “MJS, aqui representada sem poderes pelo seu gestor de negócios AS”, nem temos “AS, em nome de sua mãe MJS”, mas não podemos ler diversamente. É que, se dizer-se que se é gestor de negócios não esclarece (e portanto não inclui nem exclui) se a gestão é representativa ou não representativa, esse esclarecimento é claro em face do pedido – coloque o tribunal, dando procedência à acção, MJS no lugar de compradora na escritura de venda da casa, pelo senhorio, aos compradores. Quer dizer, AS não pede que o tribunal declare que ele tinha direito de preferência na compra da casa e que o mesmo não foi respeitado pelo senhorio e compradores e que portanto através da procedência da acção, a casa deverá ser posta em seu nome, dele AS, que depois – através da remissão para as regras aplicáveis ao mandato, ficará com o dever de a transferir para o nome da sua mãe.
Em suma, para perceber se AS está a agir nos autos em nome próprio ou da mãe, não é a menção “estou a agir em nome” que nos interessa, é o efeito da gestão do negócio – quem é que, directamente, com este negócio assim gerido (direito de preferência, acção de preferência) vai preferir.
Não concordamos assim que resulte dos autos que AS está a agir em nome próprio. Aliás, quando o mesmo diz que é parte legítima (artigo 39º da petição inicial), não diz que ele, AS, em seu próprio nome, é parte legítima, mas sim que ele, gestor de negócios da sua mãe, é parte legítima.
Mas voltamos a dizer, o que releva não é o nome que é dado, mas o negócio concreto e a gestão concreta do negócio que é feita. Quando esta gestão passa pela interposição de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa.
Está assim assegurada a legitimidade processual que habilita a que os RR. não devam ser absolvidos no saneador e os autos devam prosseguir (os termos processuais que concretamente lhe competirem)?
Tendo concluído que AS está a agir em gestão de negócios representativa, naturalmente sem poderes, é convocado o artigo 268º do Código Civil, que dita: “1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado. 2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro. 3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito. 4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante”.

Voltamos à declaração de vontade. No contexto dum processo judicial de natureza civil, isto é, de natureza dispositiva – artigo 3º nº 1 do CPC – a petição inicial constitui a expressão da vontade de aceder à justiça, e o tribunal tem de se assegurar que essa expressão é feita, e vamos dizer de um modo muito simples, é feita por quem tem o direito cuja defesa ou activação vem pedir ao tribunal. Esta necessidade é, antes de mais, uma necessidade económica – de boa gestão dos recursos do Estado no sistema de justiça público – que nos diz que a actividade jurisdicional deve ser poupada para os casos em que verdadeiramente é preciso um ditado judicial. É assim que a definição da legitimidade em função do interesse em atacar ou defender nos revela que se a decisão judicial for insusceptível de interferir na esfera jurídica do atacante ou do defendente, ou como se diz de outro modo, se o atacante ou defendente não pertencem à relação material controvertida, não é legítimo usar os recursos do sistema de justiça.
Repare-se agora, como princípio geral, que na estrutura do processo civil, além dos momentos expositivos – leia-se, articulados – e terminados estes, o tribunal inicia a sua actividade, examinando esses articulados e assegurando-se de que nada obsta a que o trabalho restante que vai desenvolver – instrução, prova e decisão – seja pertinente, isto é, seja útil.
É este crivo que se exerce no processo por via do despacho saneador.
Dito isto, estamos convencidos que o interesse público na administração da justiça impede que a legitimidade processual das partes não esteja assegurada nas fases posteriores ao saneamento. Dito isto, estamos convencidos que não é possível obter-se uma sentença que corresponde à resolução judicial de um litígio que a parte interessada nesta resolução ainda não se decidiu se quer. 
Assim, a legitimidade processual tem de ser definida e assegurada no despacho saneador. Ora, no caso da gestão de negócios representativa, esse asseguramento faz-se pela exigência de ratificação da gestão – literalmente, e no caso concreto, de ratificação da vontade de interpor uma acção de preferência – por parte do dono do negócio.
Deste modo, e não resultando dos autos que essa ratificação tenha sido determinada, isto é, que o tribunal, para proferir despacho saneador, tenha determinado a notificação da dona do negócio para ratificar a gestão levada a cabo por AS, não estava o tribunal em condições de conhecer da excepção de ilegitimidade processual activa no despacho saneador.
Assim, o caminho de resolução (quer dizer, de apreciação do recurso) deste acórdão é o de que AS interpôs a acção em gestão de negócios representativa de sua mãe, o que implica a revogação da decisão recorrida na parte em que considerou que o A. era AS e que era por isso parte ilegítima e na parte em que absolveu os RR. da instância. Em consequência a instância deve prosseguir. A decisão do recurso não assegura que esteja garantida nos autos a legitimidade activa, pois que não houve ratificação pela dona do negócio. Sendo discutível que o direito a ratificar a gestão integre o acervo hereditário da entretanto falecida MJS, os autos voltam à fase de saneamento no que toca à legitimidade activa, seguindo os termos processuais que vierem a ser devidos.
Nestes termos, procede o recurso.
Tendo nele decaído, são os recorridos responsáveis pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.
*

V.Decisão

Nos termos supra expostos, acordam conceder provimento ao recurso e em consequência revogam a decisão recorrida na parte em que considerou que o A. era AS, agindo como gestor de negócios em seu próprio nome e em consequência o considerou parte ilegítima e por isso absolveu os RR. da instância, substituindo-se pelo presente acórdão que considera que AS age nos autos em gestão de negócios representativa de sua mãe MJS, e em conformidade determina o regresso dos autos à fase de saneamento para verificação do pressuposto processual da legitimidade activa da referida dona do negócio, nos termos que, em função do falecimento da mesma, vierem a ser devidos.           
Custas pelos recorridos.
Registe e notifique.



Lisboa, 09 de Novembro de 2023


Eduardo Petersen Silva
Adeodato Brotas
Gabriela de Fátima Marques

Processado por meios informáticos e revisto pelo relator



[1]Beneficia do relatório da decisão recorrida.
[2]O teor da resposta é:
10.º- Impugnam-se os artigos 5.º a 19.º, da Contestação, por não corresponderem à verdade.
11.º- Bem como se impugna, para todos os efeitos, o alcance pretendido pelos RR. com a junção aos autos do doc. 1 da Contestação.
12.º- Tal como invocado em sede de Petição Inicial, o A. não se encontra a pleitear nos presentes autos a título próprio, porquanto a posição de arrendatária pertence à sua mãe MJS.
13.º- Ou seja, e tão-só, o A. é gestor de negócios de sua mãe.
14.º- Ora, o instituto da gestão de negócios está regulado nos artigos 464.º e seguintes, do Código Civil,
15.º- Tendo três requisitos: 1. Que alguém assuma a direção de negócio alheio; 2. Que o gestor intervenha no interesse e por conta do dono do negócio; 3. Que não haja autorização por parte do dono do negócio
16.º- Que, tal como fundamentado na Petição Inicial, se encontram preenchidos.
17.º- Não podem os RR. apoiar-se na redação da missiva junta à Contestação como doc. 1, uma vez que esta não retira ao A. a possibilidade e legitimidade de intentar a ação a título de gestor de negócios.
18.º- Aliás, foi logo nessa carta que o A. alertou para o facto de não ter sido atendido o direito de preferência da mãe, motivo pelo qual se iria proceder à impugnação judicial do respetivo contrato de compra e venda, o que se faz através da presente ação.
19.º- É falso o alegado no artigo 13.º, da Contestação que, diga-se, muito se estranha, já que entra diretamente em contradição com o referido pelos RR. nos artigos 29.º e 30.º, da Contestação.
20.º- O depósito à ordem da quantia de € 45.000,00 é um requisito legal para a propositura da ação de preferência, sendo exigido pelo artigo 1410.º, n.º 1, aplicável ex vi artigo 1091.º, n.º 5, ambos do Código Civil.
21.º- Pelo que expressamente se impugna o artigo 19.º, da Contestação.
22.º- Bem como se impugna o artigo 18.º da Contestação, já que o A. está a atuar ao abrigo da gestão de negócios, naturalmente que lhe compete garantir o depósito da quantia em questão, sendo esta matéria relegada para momento posterior e apreciada nos termos dos artigos 466.º e 468.º, do Código Civil.
23.º- Em razão do exposto, improcede a exceção de ilegitimidade invocada pelos RR., por não provada.