Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MICAELA SOUSA | ||
Descritores: | DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO SUCESSÃO LEI REGULADORA RESIDÊNCIA HABITUAL DO DE CUJUS ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/19/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Texto Parcial: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – A existência de irregularidades na inquirição das testemunhas que tem lugar em sessão da audiência final, estando presentes os ilustres mandatários das partes, devem ser arguidas nesse momento, nos termos do artigo 199º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não podendo sê-lo, pela primeira vez, apenas em sede de alegações de recurso deduzido contra a sentença que vier a ser proferida. II – O n.º 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, preceito introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho (Sexta Revisão Constitucional) consagra o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário. III - O Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/07/2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 27/07/2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, entrou em vigor em 16-08-2012, é directa e imediatamente aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia, com excepção do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca, beneficia de prioridade em relação às regras de fonte interna e rege as sucessões abertas a partir de 17 de Agosto de 2015, com salvaguarda transitória da escolha de lei feita pelo de cujus ou da validade formal e material de disposições por morte feitas antes dessa data. IV – Nos termos do artigo 21º do Regulamento (EU) n.º 650/2012, o critério primordial de escolha da lei aplicável às sucessões é a residência habitual do de cujus. V - A necessidade de recorrer ao direito internacional privado comunitário depende sempre da constatação de uma situação de internacionalização, ou seja, de uma situação com elementos que a ligam a diversos Estados, tais como a nacionalidade dos sujeitos, a sua residência habitual, o lugar do seu estabelecimento, o lugar onde está situada a coisa. VI – A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia. VII – A definição de residência habitual para efeitos de aplicação do Regulamento (EU) n.º 650/2012, orientando-se pelas suas disposições e objectivo, deve ser entendida como o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, a aferir através da ponderação global das circunstâncias da vida do falecido nos anos anteriores ao óbito e no momento deste e pela duração e regularidade da sua permanência no Estado em causa e condições e razões desta, de modo a que a residência habitual revele uma relação estreita e estável com esse Estado. VIII – A reserva de ordem pública internacional actua a posteriori, ou seja, como excepção à aplicação da ordem jurídica estrangeira normalmente competente. IX – Em caso de aplicação de norma de direito estrageiro, o tribunal deve apreciar se essa aplicação envolve ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português, conduzindo a um resultado intolerável, quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico (bons costumes), quer da perspectiva dos princípios fundamentais do direito português, pois se assim for terá de afastar esse resultado chocante, através da recusa de aplicação dos preceitos da lei estrangeira normalmente competente. X - A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro. XI – A protecção do ordenamento jurídico português relativamente à vocação sucessória do cônjuge tem vindo a ser alargada, mas, ainda assim, não deve ser tida como um elemento essencial ou nuclear do ordenamento jurídico-constitucional português, tanto mais que a Constituição da República Portuguesa remete a regulação dos efeitos da morte no casamento para a lei ordinária (cf. artigo 36º, n.º 2 da Constituição), permitindo a consagração de várias soluções, sendo a inclusão do cônjuge no elenco dos herdeiros legitimários uma opção recente. | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO A [ FERNANDO ….] intentou contra B [ IRINA …. ], a presente acção declarativa de condenação, com processo comum pedindo que seja declarada a falsidade das declarações prestadas pela ré perante notário vertidas na habilitação notarial realizada no Cartório Notarial de Maria ….., em 3 de Agosto de 2017 e a declaração de que a ré não é herdeira de C [ Francisco …….. ]. Alega para tanto, muito em síntese, o seguinte: Ø É filho de C, que tinha nacionalidade portuguesa, e moçambicana desde 2006, e residia na República de Moçambique desde 1975, sucedendo que por via de tratamentos a que estava a ser submetido, veio a falecer em Portugal, em 12-07-2017; Ø A ré procedeu a escritura de habilitação, em 19-07-2017, indicando como herdeiros, a própria, viúva do falecido, e os três filhos deste, fazendo consignar que o de cujus residia em Portugal à data do óbito, o que não corresponde à verdade; Ø A cabeça-de-casal prestou falsas declarações perante o notário, uma vez que não é herdeira do de cujus, dado que a legislação aplicável à sucessão é a lei moçambicana, de acordo com o art. 21º do Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012. A ré apresentou contestação alegando, em síntese, que o falecido C era cidadão português e que sempre manteve relação estreita com Portugal, onde fez a sua escolaridade, casou, teve o primeiro filho, se divorciou, voltou a casa e onde nasceram os seus segundo e terceiro filhos, apesar de ter emigrado para Moçambique em 1968, mas deixando a residir em Portugal a sua família; em Novembro de 2006, o falecido casou com a ré, cidadã moçambicana e a partir daí é que teve sociedades em Moçambique, onde tinha domicílio fiscal mas mantendo-o igualmente em Portugal, apresentando anualmente declarações de IRS, sendo que apenas adquiriu a nacionalidade moçambicana por via do casamento com a ré e apenas para obter benefícios fiscais nas empresas em que era sócio e na aquisição de bens; quando adoeceu e regressou a Portugal, nunca foi intenção do de cujus de dali sair. Concluiu pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido. Em 6 de Junho de 2018, dispensada a audiência prévia, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova. Realizada a audiência final foi proferida sentença, em 16 de Maio de 2019, que julgou a acção procedente e declarou a falsidade das declarações prestadas pela ré perante notário e consagradas na habilitação notarial realizada no Cartório Notarial de Maria …., em 3 de Agosto de 2017 e que a ré não é herdeira do de cujus C . É desta sentença que a ré recorre, concluindo assim as respectivas alegações: 1. Foi proferido pelo juiz a quo despacho saneador com a referência 377036120, pelo qual a mesma admitiu o rol de testemunhas do ora Recorrido, determinando, porém que se averiguasse da possibilidade de inquirição das testemunhas indicadas pelo Recorrido por videoconferência para Moçambique. Mais determinou, no mesmo despacho que não estando junto aos autos, todo acervo documental requerido pelas partes, havia que apurar da viabilidade da marcação de videoconferência para Moçambique, não designando por isso data para audiência de julgamento. 2. Posteriormente, veio Mmª Juiz ordenar o seguinte: “Notifique o Autor de que pode não ser possível estabelecer uma ligação por videoconferência entre Portugal e Moçambique para inquirição das testemunhas por si arroladas, pelo que deverá esclarecer, no prazo de dez dias, se pretende uma ligação com recurso a outros equipamentos tecnológicos (“whatsapp”, “facetime”, “Skype” ou outro) para o que deverá fornecer o número de contacto das testemunhas e disponibilizar o uso de equipamento para o efeito ou manter a expedição de carta rogatória em que, alternativamente, se opte pela inquirição por videoconferência, caso não seja possível, por teleconferência, ou, caso não seja possível, pela inquirição pelo Juiz de Moçambique.” 3. Foi deixada a determinação sobre a forma da prestação de depoimento destas testemunhas, à preferência do ora Recorrido. 4. Por despacho de 24/10/2019, designou então que, “considerando que o Autor não se opõe à inquirição das suas testemunhas residentes no estrangeiro através de “Skype/whatsapp” e face aos constrangimentos existentes no recurso aos mecanismos de cooperação internacional para recorrer à ligação por videoconferência, por razões de economia processual, determino que as suas testemunhas sejam inquiridas desta forma, nos termos do artigo 502º, nº 4 do Código de Processo Civil.” 5. Ora, uma vez chegados, à audiência de julgamento, perante a disponibilização dos meios tecnológicos pelo mandatário do Recorrido, procedeu-se à inquirição de quatro das cinco testemunhas ouvidas pelo Recorrido, através do computador do mandatário supra-referido, tendo a testemunha Maria …. informado a Mmª juiz a quo, que estas se encontravam todas, no mesmo local. […] 7. Sucede que, as testemunhas em causa, Ana …., Maria ….., Paulo … e Miguel …., apesar de notificadas pelo Tribunal na morada da sua residência indicada pelo Recorrido no requerimento probatório, não prestaram depoimento desde esta morada. 8. Aliás, no que diz respeito à testemunha Maria ….., a mesma foi notificada em Barcelona - sua residência habitual, onde era expectável ser prestado o seu depoimento – todavia esta deslocou-se a Moçambique, com vista à prestação de tal depoimento 9. Resultou claro que as testemunhas arroladas pelo Recorrido, encontravam-se estrategicamente reunidas, num mesmo local e não na residência de cada um destas, como determina o preceito legal supramencionado. 10. A partir do momento em que o Tribunal a quo tomou consciência de que as testemunhas se encontravam no mesmo local, sem qualquer outro terceiro, que pudesse validar e verificar as boas condições para assegurar a isenção e fiabilidade de cada depoimento, mostrava-se exigível um maior rigor e controle no cumprimento da legalidade na produção da prova. 11. Em momento algum foram encetadas quaisquer diligências conducentes à aferição de que as testemunhas não estavam na mesma divisão da local do qual se encontravam e de que não tinham acesso fácil e imediato aos depoimentos dos outros elementos que consigo produziam prova nos presentes autos. 12. Desta maneira, não foram cumpridas as prerrogativas, ainda que adaptadas, do nº 1 do art. 512º do CPC. 13. Se é incumbência do Tribunal, nos termos do art. 520º do CPC, que quando ocorra impossibilidade ou grave dificuldade de atempada comparência de quem deva depor na audiência, ou seja, numa situação imprevista e circunscrita, dever “assegurar-se, pelos meios possíveis, da autenticidade e plena liberdade doa prestação de depoimento, designadamente determinando que o depoente seja acompanhado por oficial de justiça durante a prestação daquele e devendo ficar a constar da ata o seu teor e as circunstâncias em que foi colhido.” a fim de assegurar a fiabilidade do depoimento. 14. De facto, foi notório que o depoimento das testemunhas não foi prestado de forma isenta, tendo sido percetível a hesitação e a necessidade de orientação para resposta por parte de algumas testemunhas, o que foi demonstrativo da existência de um determinado controle e condicionalismo. 15. Resultou evidente que estas testemunhas estavam condicionadas para produção da prova que se revelava essencial à descoberta da verdade material. 16. Saliente-se que a quase universalidade da prova testemunhal indiciada pelo Recorrido (só excetuada pela testemunha Maria Fernanda), foi inquirida, desta forma e perante tais condições. 17. Mais, foram estes depoimentos que estribaram a sustentação da douta sentença e de grande parte da factualidade dada como provada, o que por si só, faz perigar a valoração e a apreciação do Tribunal sobre factualidade que lhe impelia decidir. 18. Impugna-se e invoca-se a invalidade/nulidade destes depoimentos para todos e quaisquer efeitos legais, pelo facto de não se conseguir aferir da isenção e fiabilidade de cada depoimento. 19. A sentença da senhora juíza a quo, padece de uma errónea apreciação, no que concerne à valoração de alguns factos tidos como provados, uma vez que não encontra qualquer sustentação na prova produzida em julgamento, para que tal matéria fosse dada como provada. 20. Considerou como provado o Tribunal a quo, no ponto 9 dos factos provados, o seguinte: “Durante a presença temporária em Portugal, o de cujus e a Ré mantiveram a sua residência em Moçambique e planeavam o seu regresso após conclusão dos tratamentos”. 21. Salvo melhor opinião, nunca o Tribunal podia ter formado tal convicção, pois a factualidade dada como provada sempre apontava para consideração diversa. 22. Das declarações prestadas pela testemunha Dr. Frederico ……, médico urologista, que acompanhou o de cujus, na fase terminal, resultou evidente que o mesmo detinha residência em Portugal e que a sua presença no ano da sua morte neste país, não era meramente temporária, mas sim permanente e constante, como aliás se demonstrou ao longo de todo o Julgamento. 23. De forma clara e isenta, o depoimento do Dr. Frederico ….., deveria demonstrar-se cabal para que o Tribunal formasse a convicção de que o de cujus, atendendo ao perfeito conhecimento do seu estado clínico, elegeu Portugal, como sua última morada. Uma vez que, esta testemunha reportou ao Tribunal, a declaração de vontade que lhe foi transmitida pelo de cujus, aquando na sua consulta médica lhe questionou sobre esta hipótese de tratamento contínuo e suas consequências. 24. De facto, o de cujus, quando confrontado com a hipótese de ficar em Portugal permanentemente, foi perentório (“não hesitou”) em aceitar essa circunstância de não mais regressar a Moçambique. 25. Saliente-se que o de cujus em Maio de 2017, encontrava-se a fazer quimioterapia paliativa, o que implicava a sua residência em Portugal, sem poder regressar a Moçambique e estando ciente de estes tratamentos médicos que apenas prolongavam a sua vida mas não a sua cura, este escolheu Portugal, onde se sentia em casa, para residir e terminar os seus dias. 26. Assim, dúvidas não restam que o facto 9 dado como provado só poderá ter a seguinte redação: “Durante a permanência em Portugal, até maio de 2017, o de cujus e a Ré mantiveram, residência em Portugal e em Moçambique”. 27. Em momento algum, das sessões de Julgamento, foi indiciado que o de cujus planeava regressar a Moçambique. Aliás e em sentido contrário a Mmª juiz a quo, afirmou na sua motivação da sentença o seguinte: “Esta testemunha referiu ao Tribunal que achava que o Pai tinha planos de regressar para Portugal” referindo-se ao depoimento de Alvarim Padilha, primeiro filho do de cujus, que Tribunal considerou como “depoimento isento”, 28. Pelo que, não se pode conformar a ora Recorrente, com o vertido no ponto 9, dos factos dados como provados, no que toca à parte “e planeavam o seu regresso após conclusão dos tratamentos”. Assim, revelou-se excessiva e errónea a formulação e redação da senhora juíza a quo deste facto como provado. 29. Mais, está vertido na douta sentença que ora se coloca em crise, que “a testemunha Dr. Paulo …., médico do Centro de Saúde, confirmou que o de cujus se inscreveu em 2011, mas que apenas marcou uma consulta consigo em 07.11.2016 após o diagnóstico de doença do foro oncológico para o encaminhar para o IPO em Lisboa, visto que antes dessa data nunca o tinha procurado. Por último, a testemunha Dr. Frederico Teves, médico da CUF, confirmou uma primeira consulta em 15 de novembro de 2016, no âmbito de uma segunda opinião, que o de cujus fez tratamentos que intercalava com viagens a Moçambique, e que o alertou para a necessidade de realização de sessões de quimioterapia que iriam implicar uma estadia mais prolongada em Portugal, o que este aceitou” as quais não se desenvolveram porque entretanto faleceu. 30. Ora, perante tal factualidade considerada, nunca poderia o Tribunal a quo colocar no âmbito da mera hipótese a estadia e por seu turno residência permanente, ao usar expressão “iriam implicar” - pois os tratamentos já se haviam iniciado antes da morte do de cujus, isto significa que, pelo menos desde maio de 2017, este se encontrava a residir permanentemente em Portugal. 31. Ainda, merece uma apreciação crítica a forma displicente, pouco rigorosa e até redutora do Tribunal a quo, ao enunciar a factualidade constante do ponto 15 dos factos dados como provados da douta sentença, lançando mão do acervo documental dos articulados mas restringindo alguns dos seus factos, não lhes atribuindo, assim o alcance probatório pleno do seu conteúdo. 32. Consta da redação da douta sentença, no seu facto 15, dos factos dados como provados que, “O de cujus estava inscrito no serviço nacional de saúde nacional e na segurança social”. 33. Bem andou o Tribunal a quo ao alicerçar-se no depoimento do Dr. Paulo ….. para dar como provada a factualidade em 15, motivando a douta sentença neste sentido “A factualidade dada como provada em 15 resultou do teor do depoimento da testemunha Dr. Paulo ……, médico na USF Casa dos Pescadores, que esclareceu que o de cujus estava inscrito desde 26.05.2011 e dos extratos da segurança social de fls. 38 a 39 onde constam registos de descontos até ao ano de 1992.” 34. Contudo, ficou aquém do exigível esta factualidade vertida no ponto 15 dos factos dados como provados, porque redutora, por parte da Mmª Juíza, dado que deveria ter sido dado como provado não só que o de cujus, estava inscrito no serviço nacional de saúde nacional e na segurança social, bem como, cotizou para o sistema de segurança social português durante vinte e três anos. Uma vez que, o Tribunal a quo, formou a sua convicção conjugando a prova testemunhal citada, com os documentos, que no ponto (facto 15) em concreto, foram os comprovativos de entrega de IRS, os extratos da segurança social de fls. 38 a 39, nos quais constam registos de descontos até ao ano de 1992 e os comprovativos de pagamento da pensão de sobrevivência ao de cujus pela segurança social, a folhas 165. 35. Ora, tendo sido considerados tais comprovativos de pagamento da pensão de sobrevivência, não poderiam tais cotizações deixar de ter reflexo na factualidade dada como provada, uma vez que, foram estas que permitiram que o de cujus, fosse beneficiário de pensão de reforma por velhice e a ora Recorrente, em virtude deste facto, beneficiária, por parte deste instituto de reforma por viuvez, conforme está também junto aos autos, no documento que não foi impugnado, pelo que consta da matéria probatória capaz de reproduzir os seus efeitos. 36. Baseou-se a Mmª juíza a quo, nestes mesmos documentos para considerar provada a factualidade do ponto 15, nomeadamente que o de cujus estava inscrito no serviço nacional de saúde nacional e na segurança social, porém absteve-se de qualquer pronúncia na douta sentença relativamente aos vinte e três anos de contribuições para o regime de segurança social português. 37. Resulta evidente que, o de cujus, ao longo da sua vida sempre esteve profissionalmente ligado a Portugal, tendo efetuado descontos durante vinte e três anos, de forma que assegurasse a pensão de reforma por velhice. Pensão esta, que desde beneficiário, declarou em sede de IRS, conjuntamente com o seu património mobiliário, conforme os documentos (comprovativos de entrega de IRS, os extratos da segurança social de fls. 38 a 39, nos quais constam registos de descontos até ao ano de 1992 e os comprovativos de pagamento da pensão de sobrevivência ao de cujus pela segurança social, a folhas 165.) que serviram de base à formação da convicção do Tribunal a quo, para elaboração da douta sentença. 38. Pelo exposto, o teor do ponto 15 dos factos dados como provados, deveria verter a factualidade seguinte: “O de cujus estava inscrito no serviço nacional de saúde e na segurança social portuguesa, tendo um vínculo laboral e contributivo com Portugal durante vinte e três anos e por tal motivo foi beneficiário de pensão de reforma, bem como a Ré beneficiária de pensão de sobrevivência” 39. Relativamente aos factos dados como não provados, também, não andou bem o Tribunal a quo, pois no que concerne ao facto da a) “O vínculo do de cujus com Moçambique era o de mero emigrante.”, o mesmo não poderia ter deixado de ser dado como facto provado. 40. Na verdade, se durante todo o julgamento ficou cabalmente demonstrado que o de cujus, teve uma forte presença em Moçambique, também ficou inequívoco que tal estadia sempre teve por objetivo a busca de melhores condições de vida, tendo por tal motivo, o verdadeiro caráter de mera emigração. 41. Aliás, nesta conformidade relatou ao tribunal a testemunha Alvarim ……., citada na douta sentença da seguinte forma: “Acrescentou que o pai gostava de Portugal mas não conseguia ter em território nacional a qualidade de vida que possuía em Moçambique, onde podia contratar cozinheiros, jardineiros, etc. para o servir.” 42. Tal testemunho é bem ilustrativo do sentimento que levou o de cujus a Moçambique – “um passaporte para a terra prometida.” E se por um lado, Moçambique era a terra do trabalho e potenciadora de ganhos, Portugal era a terra de alma e que lhe dava a segurança a todos níveis - jurídico, financeiro, tributário e contributivo - pois amealhava lá, para guardar cá! 43. Tais factos foram, aliás, evidentes, quer no âmbito da prova testemunhal, quer no âmbito da prova documental, sendo exemplo da sua concretização nomeadamente a questão da relação do de cujus com o sistema de previdência e proteção social Moçambicano. 44. Por contraponto, ao alegado, erroneamente foi valorado pela Mmª Juiz a quo, o depoimento da testemunha Maria ……, (efetuado nas circunstâncias já supra descritas) no sentido de validar que o de cujus esteve pessoal e profissionalmente ligado a Moçambique, tendo esta testemunha afirmado categoricamente factos que não correspondem à verdade, quando em confronto a prova testemunhal e com a prova documental. 45. As declarações desta testemunha de que o de cujus, fosse beneficiário de pensão de reforma, através do sistema de previdência moçambicano entram em manifesta contradição com as declarações do depoimento da testemunha Alvarim ……... 46. Perante tal contradição em sede de julgamento e tendo em conta a pertinência de averiguar a questão de o de cujus, ser beneficiário de pensão de reforma, através do sistema de previdência moçambicano, uma vez que, este facto é revelador da forma como o mesmo se colocava perante os dois ordenamentos jurídicos, bem como ser essencial para a boa decisão da causa, foi oportunamente requerido pela mandatária da ora Recorrida, o seguinte que se passa a transcrever: Mandatária da Ré: … requerer também por causa da questão da reforma, requerer que fosse oficiada a Segurança Social moçambicana, se existe ou não, porque temos aqui uma situação em que há depoimentos contraditórios, se existe ou não, se foi efectivamente concedida esta reforma, porque segundo informações o prazo realmente que é exigível não foi atingido, portanto ia requerer ao Tribunal que fosse oficiado à Segurança Social moçambicana esta informação. 47. Face a tal requerimento, mal andou Mma Juíza a quo, ao indeferir o mesmo nos termos que se passam a transcrever, Exm.ª Juiz: … no que toca ao ofício à Segurança Social de Moçambique saber se o Sr. recebe ou não a pensão de reforma por parte desta Entidade além do Tribunal se afigurar essencial para uma boa decisão da causa ser, como é referido pelo Autor, já se mostra ultrapassado aqui o prazo para apresentação de requerimentos probatórios e portanto só numa situação que o Tribunal entendesse oficiosamente determinar a diligência por entender que era essencial aqui para a decisão da causa não é manifestamente aqui o caso desta diligência requerida poderá ser considerada mais instrumental, quer dizer temos aqui outra prova entretanto produzida, mais relevante do que esta e portanto nessa medida por manifesta extemporaneidade e pelo Tribunal também oficiosamente não entender ser essencial para uma boa decisão da causa, vai também indeferido…” 48. Desta forma, tornou-se impossível apurar o facto, que se mostra um elemento factual pertinente das condições de permanência do falecido naquele país, se este descontava para segurança social moçambicana, com objetivo de assegurar a vivência da sua velhice naquele território. 49. Este facto, em consonância com outros que não foram valorados, elencados na matéria probatória, como por exemplo, que o de cujus ter elegido Portugal para o nascimento dos seus filhos, (conforme escritura de habilitação de herdeiros a fls. 12 a 13), foi ao longo da sua vida proprietário de dois prédios urbanos, um em Valongo, outro sito na Póvoa de Varzim,(depoimentos supra transcritos de Maria ….. e Alvarim …..), bem como, o facto de mais de noventa por cento o seu património mobiliário estar alocado uma instituição bancária portuguesa, (conforme extratos bancários fls. 17v e 18) são prova clara e evidente de qual a real situação e condição do de cujus em Moçambique, ou seja, o de mero emigrante. 50. Na verdade, estes factos que facilmente se determinam provados pelo acervo documental junto pela Ré aos autos e que foram referenciados na motivação da sentença da Mmª Juíza a quo, contudo e apesar de parcialmente considerados, não viram vertidos o seu conteúdo na factualidade tida como provada, o que se revelava essencial para a boa decisão da causa. 51. Fundamentado está que o facto dado como não provado, na al. a) “O vínculo do de cujus com Moçambique era o de mero emigrante.”, deveria constar como facto provado tendo a seguinte redação: 52. O vínculo do de cujus com Moçambique era o de mero emigrante e este ao longo da sua vida elegeu ordenamento jurídico português para todas as questões de particular importância. 53. O que deveria ser sustentado em sede de motivação de sentença tendo em conta os seguintes factos: Elementos de conexão com ordem jurídica portuguesa: O de cujus nasceu em Portugal e tem nacionalidade portuguesa; Casou em primeiras núpcias e divorciou-se em Portugal; Todos os filhos nasceram, intencionalmente, em Portugal e têm nacionalidade portuguesa; O de cujus casou em segundas núpcias, no Consulado Geral de Portugal em Maputo, Moçambique, com Maria …..; Foi ao longo da sua vida proprietário de dois prédios urbanos, um em Valongo, outro sito na Póvoa de Varzim; O de cujus vinte e três de contribuições para o regime de segurança social português; O de cujus era beneficiário de pensão de velhice pela segurança social portuguesa; Declarava rendimentos em Portugal e apresentava declarações de IRS; O facto de mais de noventa por cento o seu património mobiliário estar alocado uma instituição bancária portuguesa, Millennium Bcp; Fez questão que na Ré, na qualidade de sua cônjuge adquirisse nacionalidade portuguesa; O de cujus faleceu e foi sepultado em Portugal; Todos os herdeiros (filhos e cônjuge) têm nacionalidade portuguesa; 54. Estando todos estes factos estribados em depoimentos considerados isentos na douta sentença e em prova documental, só poderiam ter sido vertidos como factualidade provada. 55. Por último e no que diz respeito aos factos dados como não provados, estipulou o Tribunal a quo na al. e) Aquando do óbito ou sempre que estava em Portugal, o de cujus residia em Portugal com o seu filho Alvarim …… em Valongo, não poderia Mmª Juíza ter ignorado um facto, absolutamente essencial, no elenco dos factos dados como provados, ou seja, que de cujus, residia à data da sua morte em Portugal e que foi neste país que foi sepultado. 56. Mais acresce que, o Tribunal a quo, não considerou o facto de a cônjuge, ora recorrente, ser beneficiária, na qualidade de herdeira, do subsídio por morte do de cujus, no valor de € 1263,96, com vista ao ressarcimento das despesas com o funeral, isto conforme foi provado pelo documento junto a fls. 165 e referido na douta sentença. 57. Conforme assento de óbito do de cujus, fls. 10 a 11, que serviu de base documental para prova do facto do ponto 1 dos factos que se mostraram provados, o país da morte deste foi Portugal. Assim, tal facto, porque absolutamente essencial para aferir da última residência do de cujus, deveria ter sido evidenciado, por provado em detrimento do constante na al e) dos factos não dados provados. 58. Assim, impunha-se que o enfoque desta alínea recaísse sobre o país da residência no momento da morte do de cujus, devendo a redação ser no seguinte sentido, al. e) O de cujus morreu em Portugal, no Hospital de Sto. António e estando cá a residir e foi a sepultar em Valongo, Portugal, a expensas da sua cônjuge, tendo sido esta beneficiária do subsídio por morte daquele. 59. Em conclusão, fica cabalmente demonstrado no alegado no presente recurso e para além dos factos dados como provados na douta sentença, que o de cujus, pelas razões de permanência em Moçambique, como mero emigrante, tendo apenas onze anos de nacionalidade moçambicana, sempre se manteve intimamente ligado a Portugal, quer por razões de ordem profissional, quer por razões de ordem pessoal, era um cidadão português e velava pela manutenção da sua cidadania portuguesa, bem como, fazia suas prerrogativas a jurisdição e a lei portuguesa. 60. Indicia-se que era sua vontade que assim acontecesse relativamente à sua sucessão. 61. Caso o falecido tivesse a sua última residência habitual fora da União Europeia, os órgãos jurisdicionais de um dos Estados-Membros da UE onde estão situados os bens do falecido serão competentes para decidir da sucessão no seu conjunto, ou seja, sobre todos os bens do falecido, se, no momento da sua morte, o falecido tinha a nacionalidade do Estado-Membro da UE onde estão situados os bens; ou caso o falecido não tivesse a nacionalidade do Estado-Membro da UE onde os bens estão situados, tivesse, no entanto, a sua residência habitual nesse Estado-Membro da UE e não tivessem passado mais de 5 anos desde a mudança de residência habitual. Mesmo que o falecido não tivesse a nacionalidade do Estado-Membro da UE onde os seus bens estão situados e nunca tivesse tido residência habitual nesse país, os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro da UE onde os bens estão situados seriam, não obstante, competentes para decidir da sucessão desses bens. 62. Conferir, aos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro da UE onde os bens estão situados, competência para tratar da totalidade da sucessão ou, pelo menos, com os bens aí situados dá aos herdeiros a possibilidade de acederem aos órgãos jurisdicionais 63. Tal como nos ensina a melhor e unânime Doutrina, para apurar se a aplicação de determinada lei estrangeira passa o crivo da ordem pública internacional do Estado português, é fundamental ter em consideração as características do caso concreto, em particular no que concerne os elementos de conexão do mesmo ao Estado português. 64. Caso se admitisse que a lei aplicável à sucessão por morte do de cujus é a lei moçambicana, conforme resulta do postulado na douta sentença, estaríamos perante a aplicação de um direito que entra em contraposição com o instituto da sucessão legitimária da lei portuguesa, ao tempo social atual. 65. Ou seja, apesar do de cujus deixar como herdeiros descendentes, ascendentes, o cônjuge, estaríamos perante a aplicação de um direito sucessório moçambicano que limitaria a capacidade sucessória dos herdeiros à luz da lei portuguesa, inclusive possibilitando, em termos práticos, não chamar à herança o cônjuge, conforme sucede no caso em apreço. 66. Dúvidas não podem existir de que o direito sucessório português e, em particular, a sucessão legitimária fazem parte do quadro fundamental da nossa ordem jurídica, conforme tem vindo também a ser defendido pela maioria e mais ajuizada jurisprudência. 67. Se é certo que ninguém coloca em causa a excecionalidade da intervenção da cláusula de ordem pública internacional, é igualmente certo que não é questionável a possibilidade de um tribunal entender que a aplicação do direito estrangeiro ao caso concreto colide com a unidade essencial do ordenamento jurídico do foro, sendo, por essa razão, incompatível com a ordem pública nacional. 68. No apuramento da verificação de uma violação da ordem pública internacional, deve ter-se em conta todos os vetores fundamentais do ordenamento jurídico nacional, nos quais tem natural relevância a Constituição, o Direito da União Europeia, o direito convencional, mas também outros valores e princípios jurídicos axiais do direito interno, ainda que não expressamente consagrados na Constituição ou em direito supranacional. 69. Os valores e princípios que conformam a Ordem Pública Internacional do Estado são, embora mutáveis, por acompanhamento das alterações sociais e culturais ao longo dos tempos, são tanto mais claros e efectivos quando correspondem à verdadeira genética do sistema em que se inserem, fazendo assim parte dos quadros fundamentais do sistema jurídico e da visão que todos, enquanto comunidade social organizada, temos desse mesmo sistema. 70. A legítima hereditária dos herdeiros forçosos (integradora do conceito de ordem pública) está assente em tradição jurídica que permeia o Direito sucessório português, ininterruptamente, desde data anterior à da própria nacionalidade, sendo incontornável e inquestionável que o princípio da tutela dos herdeiros legitimários é um dos princípios fundamentais do nosso direito sucessório, tento até sido reforçado pela reforma de 1977 do Código Civil. 71. Por outro lado, nada no Direito da União Europeia, em convenções internacionais de que Portugal seja parte ou em instrumentos internacionais de direitos humanos contraria a legitimidade desta protecção dos herdeiros legitimários. 72. Não se pretende concluir que, sempre e em todos os casos, a existência de uma diferença entre a tutela sucessória prevista na lei portuguesa e numa lei estrangeira acarrete a violação da ordem pública internacional. Mas há casos em que essa violação é realmente manifesta: aqueles em que herdeiros legitimários são totalmente privados de uma quota hereditária, especialmente quando estes herdeiros têm nacionalidade portuguesa, como é o caso da sucessão do de cujus. 73. É indisputável a proximidade entre a sucessão em causa e a ordem jurídica portuguesa: basta atentar no local de nascimento e na residência habitual em Portugal do autor da sucessão, durante toda a sua vida; na nacionalidade dos filhos; local da morte e a existência de património em Portugal. 74. Deste modo, a aplicação da lei portuguesa como consequência da intervenção da ordem pública internacional está em total conformidade com os valores, princípios e normas do Direito Internacional Privado Português, não viola qualquer obrigação decorrente do Direito da União Europeia ou de direito convencional e, atendendo à bem conhecida jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores, em nada lesará a segurança jurídica ou a previsibilidade das soluções. 75. Assim, mesmo que se entendesse que a proteção dos herdeiros legitimários não constitui, por si só, um princípio suficientemente fundamental para enquadrar o restrito leque que compõe, em cada momento, o conceito de ordem pública internacional do Estado português, é imperativo que se considere quais as consequências, qual o efetivo impacto e efeito prático da aplicação ao caso concreto sub judice de um direito estrangeiro que ignora por completo o referido princípio. 76. No caso em apreço, a aplicação da lei moçambicana, tal como estipulado na douta sentença, para além de violar frontalmente a lei na determinação da lei substantiva aplicável, conforme acima já demonstrado, produz um resultado manifesta e flagrantemente contrário a princípios fundamentais, basilares e estruturantes da nossa ordem jurídica, atenta, precisamente, a quantidade e a densidade dos elementos de conexão existentes com a ordem jurídica portuguesa. 77. Dificilmente poderíamos estar perante um caso concreto com maior quantidade e qualidade de elementos de conexão com o Estado Português, contrariamente ao decidido na sentença. 78. Permitir que ao caso concreto sub judice seja aplicada a lei moçambicana implica, para todos os efeitos, afastar integralmente o cônjuge nacional português do património do de cujus, impedindo-a de tomar parte na sucessão do seu marido da qual foi cuidador e com este desde casamento comproprietárias de bens e co-titular contas bancárias, por manifesta e expressa vontade do de cujus, tudo em sentido diametralmente oposto ao postulado na lei portuguesa, chocando o mais íntimo sentido de justiça decorrente do direito sucessório nacional. 79. Nem sequer é possível afirmar que existe uma imposição de respeito absoluto pelo princípio da aplicação da lei da nacionalidade, uma vez que todos herdeiros afetados pela decisão sub judice, são nacionais e possuem cidadania portuguesa. 80. Em consequência da aplicação ao caso sub judice da reserva da Ordem Pública Internacional do Estado português, nos termos do disposto no artigo 22º do Código Civil, deverá, necessariamente e nos termos do nº 2 in fine da mesma norma, concluir-se que a lei aplicável ao presente caso deverá ser a lei portuguesa, não esquecendo que esta, para além de tudo o demais, tem a virtualidade de corresponder (i) à lei do Estado em que o de cujus tinha a sua residência habitual, (ii) à lei da nacionalidade de todos os seus herdeiros, (iii) à lei da residência habitual da maioria das seus herdeiros e, ainda, (iv) à lei da situação da maioria dos bens, nomeadamente mobiliários, que compõem a herança do de cujus. 81. Para a Escola de Coimbra, a parte final do artigo aplica-se, mesmo que a lei da residência habitual se situe fora do Estado da nacionalidade, atendendo, nomeadamente, aos trabalhos preparatórios que estão na génese do art. 20º, por ser a interpretação que resulta, clara e expressamente, do texto legal, e por substituir a referência à lei da nacionalidade em favor da residência habitual, que é a conexão subsidiária em matéria de lei pessoal (nº 2 do art. 32°) e uma vez que se esgotaram as possibilidades de determinação do direito competente no interior do Estado da nacionalidade. 82. Para a Escola de Lisboa só releva a residência habitual dentro do Estado da nacionalidade, existindo uma lacuna resultante de uma interpretação restritiva da parte final do referido nº 2 do art. 20º, que deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita. 83. Propendemos a seguir esta posição, baseando-nos nos argumentos do Prof. Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., págs. 525 e 526, que escreve que "Para Isabel de Magalhães Colaço há uma lacuna descoberta através da interpretação restritiva do art. 20º/2 in fine. A função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo. Como este preceito não fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a residência habitual se situa fora do Estado da nacionalidade, surge uma lacuna. Esta lacuna deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita. Creio ser este o melhor entendimento. Por certo que o recurso à lei da residência habitual, quando o ordenamento complexo não dispõe de Direito Interlocal ou de Direito Internacional Privado unificados, evita certas dificuldades na determinação da lei aplicável. Mas é de rejeitar, porque significa tratar como apátrida quem tem uma nacionalidade e menospreza a primazia da nacionalidade em matéria de estatuto pessoal. Dos trabalhos preparatórios que estão na génese do art. 20º pode retirar-se um argumento em sentido contrário. O art. 32º do Anteprojecto de 1951 consagrava esta solução e, no entanto, foi alterado no Anteprojecto de 1964 (art. 6º), que adoptou a redacção que veio a constar do art. 20º. Este argumento é invocado por Ferrer Correia para defender uma interpretação declarativa do art. 20º. Mas este argumento não é conclusivo de uma intenção legislativa de aplicar a lei da residência habitual quando a pessoa tenha residência habitual fora do Estado da nacionalidade. Além disso a interpretação exige uma inserção do preceito no seu contexto significativo e a consideração dos vectores do sistema. Estes critérios de interpretação apontam claramente para o entendimento defendido por Isabel de Magalhães Colaço. Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal, quando a residência habitual for fora do Estado da nacionalidade, devemos aplicar, de entre os sistemas que integram o ordenamento complexo, aquele com que a pessoa está mais ligada. Neste sentido também pode invocar-se a analogia com o disposto no art. 28º da Lei da Nacionalidade, relativo ao concurso de nacionalidades". 84. No mesmo sentido vai Florbela de Almeida Pires, em Conflitos de Leis, Comentário aos artigos 14º a 65º do Código Civil, págs. 35 e 36, ao escrever que " ... , existem argumentos importantes que apontam no sentido de uma interpretação restritiva da parte final do nº 2 do artigo 20°, segundo a qual a referência à lei da residência habitual só fará sentido nos casos em que o interessado resida no país da sua nacionalidade, pois essa referência, no contexto dos nºs 1 e 2 do artigo 20º, mais não é do que um critério para a determinação da ordem jurídica local competente. Com efeito, a aplicação da lei da residência habitual quando a mesma se situa fora do ordenamento jurídico da nacionalidade originaria uma discriminação inaceitável entre os nacionais de ordenamentos plurilegislativos (sem direito interlocal ou direito internacional privado unificado) e os nacionais de outros Estados. Por exemplo, a capacidade de um norte-americano, residente habitualmente em Lisboa, seria regulada pela lei portuguesa, ao passo que a capacidade de um francês, residente em Portugal, seria determinada segundo a lei francesa. Na perspectiva do direito de conflitos, o norte-americano estaria a ser tratado como apátrida pois, não obstante ser detentor de uma nacionalidade, a sua lei pessoal seria a da residência habitual, elemento de conexão relevante para o caso dos apátridas (artigo 32°). Da análise do artigo 20º resulta que o seu objectivo se centra efectivamente na determinação da ordem jurídica local competente, não visando modificar a lei pessoal competente". 85. Também se nos afigura que o nº 2 do art. 20º deve ser interpretado, na "lógica" do preceito, considerado na sua unidade, devendo recorrer-se ao princípio da conexão mais estreita, no caso da residência habitual se situar fora do Estado da nacionalidade. 86. Para determinar a conexão mais estreita há que atender, nas palavras de Luís Lima Pinheiro, ob. cit., págs. 526 e 527, "a todos os laços objectivos e subjectivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um dos sistemas vigentes no ordenamento complexo ... , ao vínculo de domicílio e, na sua falta, à última residência habitual ou último domicílio dentro do Estado da nacionalidade". 87. E no ora colocado em sindicância dúvidas não há que todos os laços objectivos e subjetivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um dos sistemas vigentes no ordenamento complexo se prendem com o ordenamento jurídico português. 88. Mostrou-se claro e vertido na factualidade supra mencionada a intenção e expressa vontade do de cujus reconhecer a sua cônjuge ora Recorrente como herdeira, promovendo e patrocinando a atribuição da nacionalidade portuguesa em virtude do seu casamento. 89. A regra geral do Regulamento encontra-se prevista no artigo 21º onde pode ler-se: “1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito. 2. Caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.o 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.” (sublinhado nosso). E, nos termos do artigo 20º, é aplicável a lei designada pelo Regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado-Membro. 90. Assim sendo, teremos de concluir que o mencionado de cujus foi até à sua morte cidadão português, sendo a sua lei da nacionalidade a Lei Portuguesa (vide acórdão da Relação do Porto de 5/03/2001, proc. nº. 0051657, acessível em www.dgsi.pt), o que torna as normas jurídicas de direito substantivo pertencentes ao ordenamento jurídico português as aplicáveis ao fenómeno sucessório derivado do seu decesso. Em casos excecionais, se os factos de um caso específico demonstrarem que o falecido tinha uma relação claramente mais estreita com um país diferente do da sua última residência habitual, será aplicada à sucessão a legislação desse outro país. O autor/recorrido contra-alegou suscitando a extemporaneidade da arguição de nulidade da audição das quatro testemunhas por si arroladas inquiridas via skype e, ainda assim, pela validade de tais depoimentos; pela manutenção da decisão de facto; pela extemporaneidade da impugnação da decisão que rejeitou um meio de prova; mais considerou que a apreciação da aplicação da reserva de ordem pública internacional é uma questão nova insusceptível de ser apreciada por este Tribunal, para além do que a sua invocação é contraditória com os argumentos que a recorrente expõe, ou seja, de que a lei aplicável é a portuguesa; além disso, para sustentar a aplicação dessa excepção, a recorrente invoca factos novos que não foram alegados no seu articulado de defesa e face ao que vem sendo decidido pelos tribunais, a consideração do cônjuge como herdeiro legitimário não constitui um princípio estruturante da nossa ordem jurídica. * II – OBJECTO DO RECURSO Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95. Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso. Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 97. Assim, perante as conclusões da alegação da ré/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões: a) Arguição de invalidade dos depoimentos; b) A impugnação da matéria de facto; c) Determinação da lei aplicável à sucessão. Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir. * III - FUNDAMENTAÇÃO 3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos: 1. O Autor é filho do de cujus C nascido em 01 de Maio de 1943 e falecido em 12 de Julho de 2017. 2. Por escritura de habilitação de herdeiros, outorgada em 19 de Julho de 2017, B declarou, invocando a qualidade de cabeça-de-casal, que o seu marido C faleceu, sendo residente na Avenida 5 de Outubro, n.º …, rés-do-chão, freguesia e concelho de Valongo, tendo-lhe sucedido como herdeiros, a esposa, declarante, e três filhos Alvarim …., A e Ana Cláudia ….. . 3. O de cujus C tinha nacionalidade portuguesa e, por despacho ministerial nº 185/2006, de 17 de Outubro, adquiriu a nacionalidade moçambicana. 4. O de cujus residia na República de Moçambique desde 1975, onde se estabeleceu profissionalmente, sendo sócio e gerente de várias sociedades, nomeadamente, a sociedade Padilha Construções, Lda. e a sociedade WFA, Lda.. 5. O de cujus tinha domicílio fiscal na República de Moçambique. 6. O de cujus casou com a Ré em Moçambique no dia 18 de Novembro de 2006. 7. A Ré tem nacionalidade moçambicana, tendo adquirido nacionalidade portuguesa por decisão judicial de 25 de Junho de 2012, tendo sempre residido em Moçambique. 8. O de cujus adoeceu com uma doença do foro oncológico, tendo recebido tratamento na África do Sul e, durante alguns meses, em Portugal. 9. Durante a presença temporária em Portugal, o de cujus e a Ré mantiveram a sua residência em Moçambique e planeavam o seu regresso após conclusão dos tratamentos. 10. A morada sita na Avenida 5 de Outubro, nº …, rés-do-chão, freguesia e concelho de Valongo corresponde à morada do filho do de cujus, Alvarim ….., com quem este não vivia. 11. O de cujus indicou nas instituições bancárias portuguesas (Millennium BCP e Banco Comercial Português, S.A.) onde tinha contas bancárias, a morada da sua residência em Moçambique, sita na “Chinonanquila, Avenida Belo Orizonte, Talhão 4138, Moçambique”. 12. O de cujus casou em primeiras núpcias, em Gondomar, com Florinda …….., em 5 de Janeiro de 1961, de quem teve o filho Alvarim ……., o qual se dissolveu por divórcio decretado pelo Tribunal de Família do Porto em 09 de Março de 1988. 13. O de cujus casou em segundas núpcias, no Consulado Geral de Portugal em Maputo, Moçambique, com Maria José ….., em 28 de Outubro de 1988, de quem teve dois filhos, A e Ana Cláudia …., o qual se dissolveu por divórcio decretado pelo Tribunal da Comarca de Maputo, Matola, em 01 de agosto de 2005. 14. O de cujus possuía um número de contribuinte português, um representante fiscal nomeado, declarando os rendimentos mobiliários auferidos neste país em território nacional. 15. O de cujus estava inscrito no serviço nacional de saúde nacional e na segurança social. * O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos: a) O vínculo do de cujus com Moçambique era o de mero emigrante; b) Aquando do segundo casamento o de cujus residia em Portugal na Rua Almirante Reis, Póvoa do Varzim onde se manteve; c) Só a partir do casamento com a Ré é que o de cujus passou a ter actividade profissional em Moçambique; d) O de cujus adquiriu nacionalidade moçambicana por via do casamento com a ré; e) Aquando do óbito ou sempre que estava em Portugal, o de cujus residia em Portugal com o seu filho Alvarim …. em Valongo. * 3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Da validade da inquirição das testemunhas via Skype A primeira questão que a recorrente vem suscitar contende com a validade da inquirição das testemunhas arroladas pelo recorrido, via Skype, entendendo que tal inquirição deveria ter ocorrido no lugar da respectiva residência de cada uma delas, conforme resulta do art. 500º, n.º 4 do CPC, sucedendo, contudo, que as testemunhas Ana …, Maria José …., Paulo …… e Miguel ….., notificadas para a sua residência, não prestaram depoimento nessa morada (a testemunha Maria Lacerda ….. foi notificada em Barcelona), estando todas reunidas numa única casa, sem qualquer terceiro que pudesse verificar as condições para assegurar a isenção e fiabilidade de cada depoimento, pelo que os seus depoimentos estavam condicionados e não podem ser valorados. O recorrido pugna pela inadmissibilidade de tal arguição por ser extemporânea, dado que a inquirição teve lugar em 3 de Abril de 2019, estando presentes os ilustres mandatários da recorrente, que então não arguiram qualquer vício ou irregularidade, pelo que, não o tendo feito então, não podem fazê-lo agora. Os factos processuais que relevam para a apreciação desta questão são os seguintes: o No requerimento probatório apresentado com a petição inicial o autor arrolou uma única testemunha, Ana Cláudia ….., com domicílio na Av. Agostinho Neto, n.º 1887, Maputo, Moçambique (cf. fls. 6 verso dos autos); o Após a prolação do despacho saneador, fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, com dispensa de audiência prévia, o autor, por requerimento de 21 de Junho de 2018, aditou ao seu rol de testemunhas as seguintes: Maria José ……., com morada em Plaza Catalunya, 4-5, Ático 1ª, 08820 El Prat de Lobregat, Barcelona, Espanha; Maria ……., com domicílio na Rua Antero de Quental, n.º 153, 4490-467 Póvoa de Varzim; Ana Solange ………, com morada em Rua Robati Carlos, n.º 84, 2º andar, Maputo, Moçambique; Paulo José ……, com domicílio na Q. 41 Casa número 131, Cidade de Maputo, Hulene “B”, Moçambique; Miguel ……., com domicílio no Bairro Cachava-Bunhiça, Quarteirão 14 Casa número 30, Moçambique (cf. fls. 151 e 152 dos autos); o Em 9 de Outubro de 2018 foi aberta conclusão nos autos com a informação: “de acordo com informação constante do site do Conselho Superior de Magistratura, pode não ser possível estabelecer uma ligação por videoconferência entre Portugal e Moçambique”, tendo sido proferido, em 10 de Outubro de 2018, o seguinte despacho: “Notifique o autor de que pode não ser possível estabelecer uma ligação por videoconferência entre Portugal e Moçambique para inquirição das testemunhas por si arroladas, pelo que deverá esclarecer, no prazo de dez dias, se pretende uma ligação com recurso a outros equipamentos tecnológicos (“Whatsapp”; “Facetime”, “Skype” ou outro) para o que deverá fornecer o número de contacto das testemunhas e disponibilizar o uso de equipamento para o efeito ou manter a expedição de carta rogatória em que, alternativamente, se opte pela inquirição por videoconferência, caso não seja possível, por teleconferência, ou, caso não seja possível, pela inquirição pelo Juiz de Moçambique. Caso pretenda manter a expedição de carta rogatória para Moçambique, dados os constrangimentos existentes, deverá, desde logo, no prazo de dez dias, elencar as perguntas que pretende que sejam colocadas a cada uma das testemunhas para a eventualidade de o único mecanismo de cooperação internacional disponível ser a inquirição pelo Juiz de Moçambique.” (cf. fls. 173); o Em 16 de Outubro de 2018, o despacho proferido em 10 de Outubro de 2018 foi notificado aos ilustres mandatários de ambas as partes (cf. Ref. Elect. 380511555 e 380511560); o Por requerimento de 24 de Outubro de 2018, notificado electronicamente à parte contrária, o autor informou nos autos que, na eventualidade de não ser possível a inquirição por videoconferência, pretende que as testemunhas sejam inquiridas por “Whatsapp” ou “Skype”, disponibilizando o equipamento necessário para esse efeito e os contactos mais actualizados (cf. fls. 176); o Em 12 de Fevereiro de 2019 foi proferido o seguinte despacho: “Considerando que o autor não se opõe à inquirição das suas testemunhas residentes no estrangeiro através de “Skype/Whatsapp” e face aos constrangimentos existentes no recurso aos mecanismos de cooperação internacional para recorrer à ligação por videoconferência, por razões de economia processual, determino que as suas testemunhas sejam inquiridas desta forma, nos termos do artigo 502º, n.º 4 do Código de Processo Civil. […]”, notificado aos ilustres mandatários das partes em 13 de Fevereiro de 2019 (cf. fls. 178; Ref. Elect. 384161626 e 384161630); o Em 3 de Abril de 2019 teve lugar a primeira sessão da audiência de julgamento, estando presentes em Tribunal os ilustres mandatários do autor, Dr. António …. e Dr. Duarte …..e da ré, Dr.ª Luísa ……e Dr. Fernando ….., no âmbito da qual foram inquiridas as testemunhas Ana Cláudia ……, Maria ……, Paulo José ….. e Miguel …., a partir de Moçambique, onde se encontravam reunidas num mesmo local, tendo a senhora juíza a quo advertido, desde logo, a testemunha Maria ….., com quem iniciou a ligação e a quem indagou sobre quem se encontrava presente, que no decurso da inquirição, enquanto cada uma das testemunhas estivesse a depor, as demais deveriam permanecer numa sala distinta, confirmando aquela que se encontrava sozinha nesse momento. o Não há registo escrito ou sonoro que revele que no decurso dessa inquirição ou, uma vez finda, algum dos mandatários presentes tenha formulado qualquer requerimento, designadamente, no sentido de suscitar a irregularidade dos depoimentos então prestados. A recorrente vem agora, em sede de recurso, colocar em crise a regularidade da inquirição de testemunhas, com recurso ao meio tecnológico cujo instrumento foi proporcionado pelo autor/recorrido para o efeito, invocando o desrespeito do estatuído no art. 502º, n.º 4 do CPC, já que as testemunhas devem ser inquiridas a partir da sua residência, não podendo estar todas reunidas num único local, para além de não existir uma pessoa terceira a validar e certificar as condições de isenção e fiabilidade de cada depoimento, não tendo sido cumprido o disposto no art. 512º, n.º 1 do CPC. Relativamente à inquirição de testemunhas residentes no estrangeiro a lei prevê actualmente, de modo expresso, no art. 502º, n.º 4 (na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro), a sua realização através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários. Tem sido entendido que foi intenção do legislador possibilitar a agilização da inquirição das testemunhas, sobremaneira das residentes no estrangeiro, a fim de evitar a morosidade na conclusão dos processos, sempre inerente aos casos de envio de carta rogatória, atenta a necessidade de observância de formalismos próprios e de tradução, assim como exigência de contactos com a autoridade judiciária estrangeira – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-02-2019, relatora Raquel Baptista Tavares, processo n.º 2281/17.1T8VRL.G1 acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt[2]. Com efeito, como referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa: “Numa era de globalização tecnológica e de mobilidade permanente de mão de obra não faz sentido que a inquirição de testemunhas residentes no estrangeiro continue a constituir fator de acrescida morosidade na conclusão dos processos. Nessa medida, ao abrigo do disposto no art. 6º, n.º 1, deverá o juiz diligenciar pela obtenção do assentimento das partes (arts. 3º, n.º 3, 7º, n.º 1, e 415º) tendo em vista a agilização da inquirição das testemunhas por meios tecnológicos fiáveis, designadamente por Skype. Esta agilização não interfere nos direitos das partes, que continuam a poder deduzir todos os incidentes e formular instâncias perante tal testemunha. Cremos que a alteração deste preceito, cuja epígrafe passou a ser “Inquirição por meio tecnológico”, conflui no sentido desta agilização.” – cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 559. A apelante não coloca em causa o recurso ao meio tecnológico utilizado para inquirição das testemunhas, sendo evidente, aliás, face ao iter processual acima descrito, que foi notificada das decisões que conduziram a esse meio de inquirição e nada opôs nesse sentido, tendo nela participado activamente, sem se opor ao recurso ao instrumento tecnológico utilizado. Contudo, a recorrente insurge-se contra uma alegada falta de cumprimento das formalidades inerentes ao procedimento de inquirição, designadamente, no que concerne ao local a partir do qual esta deveria ter tido lugar (a residência de cada uma delas, conforme se depreende da sua alegação) e à ausência de certificação de que as testemunhas não se encontravam na presença umas das outras aquando da tomada do seu depoimento, considerando incumpridos os normativos vertidos nos art.ºs 500º, n.º 4 e 512º, n.º 1 do CPC. Ora, como é sabido, nos termos do n.º 1 do art. 195º do CPC, quaisquer irregularidades detectadas na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou na decisão da causa, isto é, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 3ª edição, pág. 381. A arguição da nulidade processual deve ter lugar na própria instância em que é cometida e no prazo geral do art. 149º, n.º 1 do CPC. É sabido que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.” – cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra 1945, pág. 507. Neste caso, a terem existido as omissões que são imputadas ao modo como foram colhidos os depoimentos das testemunhas, é evidente que não estão a coberto de qualquer despacho judicial nem se pode considerar que a decisão final proferida pressupôs o conhecimento do vício para que este deva ser considerado por ela implicitamente coberto[3], razão pela qual incumbia à recorrente argui-las perante o tribunal de 1ª instância (a menos que fosse aplicável o estatuído no art. 199º, n.º 3 do CPC). As irregularidades em apreço, a terem sido cometidas, foram-no aquando da inquirição ocorrida no dia 3 de Abril de 2019, estando presente os ilustres mandatários da ré, pelo que era nesse momento que deveriam ter sido arguidas, atento o estatuído no n.º 1 do art. 199º do CPC. A recorrente não arguiu a irregularidade identificada junto do tribunal de 1ª instância e permitiu que a colheita dos depoimentos decorresse integralmente, tendo findado sem ter sido suscitado o vício que ora lhe imputa, assim como prosseguiu a audiência nesse dia e teve lugar a segunda sessão, em 8 de Maio de 2019, sem que tivesse sido solicitada junto do tribunal de 1ª instância a apreciação de qualquer vício que lhe imputasse. Note-se que não se trata de nulidade evidenciada pela prolação da sentença, caso em que a sua arguição poderia ser suscitada apenas em sede de recurso – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27-09-2018, relator José Dias Cravo, processo n.º 6267/16.5T8GMR-B.G1. Na verdade, os ilustres mandatários das partes estavam presentes na sessão da audiência final em que teve lugar a inquirição, assistiram ao início da ligação a Moçambique, pelo meio tecnológico instalado no computador do ilustre mandatário do autor, ouviram a indagação formulada pela senhora juíza a quo quanto aos presentes no local, e quanto ao espaço físico onde estes se encontravam, presenciaram a identificação de cada uma das testemunhas, a sua prestação de juramento e a tomada de depoimento, sem terem suscitado em momento algum qualquer irregularidade que, a ter existido, não emerge nem se afere apenas da sentença prolatada. Pelo contrário, tais irregularidades, a terem ocorrido, eram susceptíveis de serem identificadas e logo suscitadas no momento em que ocorreu a inquirição, o que a recorrente não fez – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5-07-2018, relatora Fernanda Isabel Pereira, processo n.º 97/12.0TBPV.L2.S1. Assim, a arguição dessa eventual nulidade deduzida apenas em sede de recuso é manifestamente extemporânea, o que implica o seu não conhecimento. * Da Impugnação da Matéria de Facto Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa. Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, relator Garcia Calejo, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1. Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” À luz do normativo transcrito afere-se que, em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões. Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escritos – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos. O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se exige no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 142, nota 228. No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016, relatado por Maria Amélia Ribeiro, proferido no processo n. 1393/08.7YXLSB.L1-7 refere-se: “É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum.” A recorrente convoca para reapreciação os factos vertidos nos pontos 9. e 15. dos factos provados e nas alíneas a) e e) dos factos não provados, indicando a prova em que assenta a sua convicção quanto à redacção que os primeiros deveriam ter recebido e quanto à prova dos segundos (sem prejuízo do que se dirá infra acerca do cumprimento do ónus impugnatório relativamente à alínea e) dos factos não provados), pelo que se passa à apreciação da matéria de facto impugnada. Ponto 9. dos Factos Provados (…) Neste contexto, a convicção do Tribunal a quo está em consonância com a prova produzida, não existindo razões para formular juízo probatório distinto daquele que se mostra reflectido no ponto 9. dos factos provados, que assim se mantém inalterado. Improcede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto. (…) Ponto 15. dos Factos Provados O Tribunal a quo deu como provado sob o ponto 15. o seguinte: “O de cujus estava inscrito no serviço nacional de saúde nacional e na segurança social.” A apelante entende que o ponto 15. deveria ter a seguinte redacção: ““O de cujus estava inscrito no serviço nacional de saúde e na segurança social portuguesa, tendo um vínculo laboral e contributivo com Portugal durante vinte e três anos e por tal motivo foi beneficiário de pensão de reforma, bem como a Ré beneficiária de pensão de sobrevivência.” Entende a ré/recorrente que a prova é mais ampla do que aquilo que foi vertido no ponto 15., pois que deveria ter sido considerado que o falecido descontou para o sistema de Segurança Social português durante vinte e três anos, conforme resulta dos documentos de folhas 38 a 39 e 165 e dos documentos comprovativos de entrega de declaração do Imposto de Rendimento de pessoas Singulares e do depoimento das testemunhas Alvarim da Silva Padilha e Maria José Marques: (…) Como tal, com base nos documentos de fls. 38 verso a 39 verso (extracto dos movimentos anuais registados na Segurança Social), 43 a 49 (declarações de rendimentos relativas aos anos de 2014, 2015 e 2016) e 165 (comunicação da atribuição à ré de pensão de sobrevivência) a redacção do ponto 15. passa a ser a seguinte: “O de cujus estava inscrito no Serviço Nacional de Saúde e na Segurança Social, tendo registos contributivos reportados aos anos de 1981 a 1992, tendo declarado, relativamente aos anos de 2014, 2015 e 2016, rendimentos relativos a pensões pagas pelo Instituto de Segurança Social, IP, vindo a ser atribuída à ré uma pensão de sobrevivência, com início em 1-08-2017.” Procedem parcialmente as conclusões 31. a 38. do recurso. Alínea a) dos Factos Não Provados A 1ª instância considerou não provado sob a alínea a) o seguinte: “O vínculo do de cujus com Moçambique era o de mero emigrante.” A apelante entende que tal facto deveria ter sido dado como provado, pois que a prova revela que a estadia em Moçambique visou apenas a melhoria das condições de vida, tanto mais que enviava as suas poupanças para Portugal, louvando-se no depoimento da testemunha Alvarim …., que afirmou que o pai gostava de Portugal mas aqui não conseguia ter as condições que tinha em Moçambique e referindo que a testemunha Maria …. afirmou factos que não correspondem à verdade. Retoma a apelante a questão da pensão de reforma auferida pelo falecido, para sustentar que foi impedida de demonstrar que este não auferia qualquer reforma em Moçambique, o que era relevante para apurar das condições de permanência do falecido nesse país. Estriba-se ainda em factos que entende resultarem da prova, como os atinentes ao local de nascimento do falecido, local de casamentos e divórcios, local de nascimento dos filhos, propriedade de casas, pensão, declaração de rendimentos em Portugal, património mobiliário financeiro neste país, para concluir que deveria ter sido dado como provado que: “O vínculo do de cujus com Moçambique era o de mero emigrante e este ao longo da sua vida elegeu o ordenamento jurídico português para todas as questões de particular importância.” O recorrido entende que os depoimentos que a apelante convocou não permitem retirar a conclusão que pretende, sendo que não se mostra cumprido o ónus impugnatório decorrente do art. 640º do CPC, para além do que a segunda parte da redacção proposta configura matéria de direito que não pode ser vertida na decisão de facto. Há que ter presente a distinção entre aquilo que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objecto do recurso e o que se encontra já abrangido pelo âmbito da reapreciação da decisão de facto, devidamente impugnada, mediante a reavaliação da prova convocada e tida por relevante. Os requisitos do ónus impugnatório cingem-se à especificação dos pontos de facto impugnados, dos concretos meios de prova convocados; da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, com expressa indicação das passagens dos depoimentos gravados em que se funda o recurso (cf. alínea a) do n.º 2 do art. 640º do CPC). Quanto à alínea a) dos factos provados, ainda que de forma algo incoerente, a recorrente não deixou de identificar a decisão que considera ser um erro de julgamento e, bem assim, de convocar as exactas passagens dos depoimentos que considera sustentar decisão diversa, delas retirando as correspondentes conclusões. Além disso, deve considerar-se que “a insuficiência ou a mediocridade da fundamentação probatória aduzida pelo recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.” – cf. acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 acima referido; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-02-2018, relatora Maria da Graça Trigo, processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1. Assim, em face do conteúdo das alegações e conclusões da recorrente deve reconhecer-se que esta cumpriu, ao menos minimamente, o ónus impugnatório e respectivos requisitos que sobre si impendiam quanto ao facto ora impugnado. Sucede, contudo, que a pretensão da apelante, quanto a esta concreta alínea dos factos não provados, não pode proceder. Com efeito, face àquele que foi erigido como tema de prova e objecto do litígio, não se lobriga de que modo se pretende aduzir como facto a afirmação de que o falecido Francisco Padilha tinha um vínculo com Moçambique de mero emigrante. Para além da natureza obviamente conclusiva de tal afirmação, não se vislumbra de que modo essa afirmação possa favorecer o desfecho do litígio visado pela recorrente. De acordo com a definição do Dicionário da Língua Portuguesa, 5ª Edição, da Porto Editora, «emigração» é o acto ou efeito de emigrar; saída voluntária da pátria; «emigrante», é aquele que emigra, aquele que vai procurar trabalho ou fortuna noutro país; e «emigrar» é sair da pátria como emigrante ou emigrado. Ora, se a apelante pretende demonstrar que o falecido foi um emigrante sem intenção de se estabelecer no país de destino, mas apenas de ali obter meios de subsistência, regressando sempre ao seu país, naturalmente que essa é uma conclusão a retirar dos factos provados e não provados e que viabilizem tal ilação. Aliás, tanto assim é, que a apelante sentiu necessidade de elencar os factos que entende estarem demonstrados que revelam a ligação do falecido com Portugal, para afastar o seu estabelecimento definitivo em Moçambique, convocando, precisamente, o nascimento dos seus filhos, as contribuições para o sistema de Segurança Social português, a aquisição de nacionalidade portuguesa pela ré mulher, o património existente em Portugal, para concluir pela sua ligação de “mero emigrante” a Moçambique. Ora, o que importa dar como provado e não provado são os factos concretos passíveis de conduzirem à caracterização ou classificação da ligação do falecido com cada um dos países aqui em causa, e não a conclusão que deles se haja de retirar. E isso é ainda mais flagrante relativamente à pretensão de se dar como “facto” assente que o falecido “elegeu o ordenamento jurídico português para todas as questões de particular importância". A inclusão desta afirmação no elenco factual teria de ser tida como uma apreciação de direito por envolver uma “valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” – cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312; cf. acórdão do Supremo Tribunal de 28-09-2017, relatora Fernanda Isabel Pereira, processo n.º 659/12.6TVLSB.L1-S1. Neste ponto, a jurisprudência tem entendido dever actuar o mecanismo anteriormente previsto no artigo 646º, n.º 4 do Código de Processo Civil revisto, que se manteria na nossa ordem jurídica, apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, posto que o art. 607º, n.º 4 do actual CPC determina que devem constar da fundamentação da sentença os factos – e apenas os factos – julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, conforme vem sendo aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2012, relator Sampaio Gomes, processo n.º 240/10.4TTLMG.P1.S1[4]; no mesmo sentido, acórdãos do mesmo Tribunal de 23-09-2009, relator de Setembro de 2009, relator Bravo Serra, processo n.º 238/06.7TTBGR.S1 e de 7-05-2009, relator Vasques Dinis, processo n.º 08S3441. Como é sabido, nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, sendo, contudo, consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. Assim, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-05-2009, relator Vasques Dinis, processo n.º 08S3441: “No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) […] No mesmo âmbito da matéria de facto, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.”[5] Ora, conforme se disse, a matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, seja qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica, devendo as questões de direito que constarem da selecção da matéria de facto considerar-se não escritas. A proposição será conclusiva se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, caso em que deverá, por essa razão, ser expurgada. Nos presentes autos a ré/apelante pretende obter o reconhecimento de que o falecido Francisco …. não tinha residência habitual em Moçambique mas sim em Portugal, pelo que pretende que seja dado como provado que aquele era apenas emigrante em Moçambique, aduzindo ainda que o de cujus sempre escolheu o ordenamento jurídico português para as questões de particular importância. Ora, é evidente que a consagração desse facto, com o significado de «emigrante» que a apelante parece convocar, ou seja, como pessoa que apenas vai trabalhar a outro país, mas que mantém toda a sua vida no país de origem, implicaria a resolução do litígio, sem que se pudesse sequer descortinar quais os factos concretos que teriam conduzido à afirmação de que o falecido mantinha a sua ligação essencial com Portugal, que não com Moçambique. De todo o modo, ainda que se devesse aceitar a viabilidade da afirmação conclusiva tal como propugna a apelante, sempre a prova por ela convocada é insuficiente para a tal conduzir. Com efeito, nesta sede não relevam as afirmações de facto produzidas pela apelante que não se mostram enunciadas na matéria de facto provada e que não obtiveram provimento em sede de impugnação da matéria de facto, pelo que os meios probatórios convocados pela recorrente neste concreto ponto impugnado cingem-se aos depoimentos das testemunhas Alvarim …. e Maria …… . (…) Efectivamente, estes depoimentos são contraditórios entre si mas foram objecto de valoração por parte da senhora juíza a quo, tendo apenas resultado demonstrado, sob o ponto 5., que o de cujus tinha domicílio fiscal na República de Moçambique (louvando-se a senhora juíza, para este efeito, no documento de fls. 155 dos autos, que corresponde à declaração de rendimentos relativa ao ano de 2012 apresentada perante a Autoridade Tributária Moçambicana), sem que tenha formulado qualquer juízo, positivo ou negativo, sobre a existência de uma pensão de reforma atribuída pelo Estado Moçambicano ao falecido. Aliás, quer um quer outro dos referidos depoimentos seriam, por si só, insuficientes para dar como provada a existência ou não da atribuição dessa pensão de reforma, nem se vislumbra que tal dado, por si só, possa relevar para a circunstância de se considerar localizada ou não a residência habitual do falecido em Moçambique, pois que a não atribuição da pensão pode apenas significar que aquele não chegou a reunir os requisitos necessários para tanto (requisitos que, aliás, nenhuma das partes cuidou de alegar e demonstrar nos autos). Suscita ainda a apelante o facto de ter solicitado, em audiência final, que fosse averiguado junto do sistema de previdência moçambicano se teve lugar ou não a concessão de pensão de reforma a Francisco Padilha, o que foi indeferido pelo tribunal a quo. Com efeito, na sessão da audiência de julgamento de 3 de Abril de 2019, findo o depoimento da testemunha Alvarim …., foi requerido pela ilustre mandatária da ré que se oficiasse à Segurança Social de Moçambique solicitando a prestação de tal informação, o que, de imediato, após audição da parte contrária, foi indeferido pela senhora juíza a quo, considerando ser extemporâneo tal requerimento probatório e não existirem razões que determinassem a realização dessa diligência, ao abrigo do disposto no art. 411º do CPC. Tendo logo tomado conhecimento da decisão de indeferimento e estando em causa um despacho que rejeitou um meio de prova, incumbia à parte afectada com tal decisão interpor recurso desse despacho, no prazo de 15 dias, com subida imediata e em separado, nos termos do art. 644º, n.º 2, d) e 645º, n.º 2 do CPC. Não o tendo feito, tal decisão transitou em julgado, pelo que não há que discutir do acertado da decisão que indeferiu a realização da diligência solicitada. Com tais fundamentos, quer porque os factos aduzidos pela apelante para conduzir à conclusão de que o falecido era um «mero emigrante» não resultam – ou, pelo menos, não resultam todos - do elenco dos factos provados, quer porque, como resulta da fundamentação dos factos provados e não provados acima transcrita, foi considerado, precisamente, que o falecido desenvolveu a sua vida, em termos profissionais e pessoais em Moçambique, estando a sua permanência em Portugal, na fase final da sua vida, intimamente relacionada com a necessidade de realizar tratamentos médicos (juízo probatório com que se concordou), afastando-se também a pretensão de uma conexão ao país de emigração apenas para efeitos de trabalho, quer ainda porque tal afirmação assume natureza conclusiva que, por si só, não permite descortinar a que realidade fáctica se reporta e da qual emerge, conferindo uma solução ao litígio desprovida de base factual concreta, improcede, também neste ponto, a impugnação da matéria de facto e improcedem as conclusões 39. a 54. do recurso. Alínea e) dos Factos Não Provados Sob a alínea e) dos factos não provados o Tribunal recorrido consignou o seguinte: “Aquando do óbito ou sempre que estava em Portugal, o de cujus residia em Portugal com o seu filho Alvarim da Silva Padilha, em Valongo.” A apelante alega que o Tribunal recorrido não considerou que o falecido residia à data da sua morte em Portugal e que a ré é beneficiária do subsídio por morte, conforme resulta do documento de fls. 165, além de que no assento de óbito, junto a fls. 10 e 11 dos autos, consta como local da morte Portugal, pelo que conclui que deveria ter sido dado como provado o seguinte: “O de cujus morreu em Portugal, no Hospital de Santo António e estando cá a residir e foi a sepultar em Valongo, Portugal, a expensas do seu cônjuge, tendo sido esta beneficiária do subsídio por morte daquele.” (…) Improcedem, pois, as conclusões 55. a 60. do recurso. * Lei aplicável à sucessão de Francisco Padilha Com base nos factos apurados, considerou-se na sentença recorrida que o falecido C, apesar de nascido em território nacional, tinha a sua habitação em Moçambique, onde se estabeleceu profissionalmente, onde viveu com a sua segunda esposa e criou os filhos frutos dessa relação, vindo a adquirir a nacionalidade moçambicana em 2006 e onde depois casou, novamente, também em 2006, e continuou a viver, ou seja, que toda a sua vida se tinha desenrolado em Moçambique, regressando a Portugal apenas por ocasião de férias e, no final da sua vida, para efeitos de submissão a tratamentos, pelo que era nesse país que tinha a sua residência habitual, conclusão que não afastada pela circunstância de possuir contas bancárias em Portugal ou aqui estar inscrito na Segurança Social e no Serviço Nacional de Saúde. Por esta razão, considerou-se na decisão recorrida que a lei aplicável à sucessão de C era a lei moçambicana e que por força do estatuído nos artigos 2131º, 2133º, 2134º e 2157º do Código Civil moçambicano, a ré não é herdeira daquele, assim concedendo provimento ao pedido do autor/recorrido. A ré/recorrente insurge-se contra o assim decidido por entender que, admitindo-se que a lei aplicável à sucessão é a lei moçambicana, o resultado decorrente da aplicação desta contraria o instituto da sucessão legitimária da lei portuguesa, em que o cônjuge é herdeiro, sendo que o direito sucessório português e a sucessão legitimária integram o quadro fundamental da nossa ordem jurídica, pelo que a aplicação daquela lei colide com a ordem pública internacional do Estado Português, e, nos termos do art. 22º, n.º 2, in fine do Código Civil, a lei aplicável deve ser a lei portuguesa. Nas suas contra-alegações o autor/recorrido defende que o Tribunal ad quem não pode conhecer da invocação da cláusula de excepção de ordem pública internacional porque esta não foi questão suscitada ou apreciada pelo Tribunal a quo, para além da sua invocação estar em contradição com os argumentos invocados pela recorrente, que continua a defender que o de cujus tinha residência habitual em Portugal, caso em que a lei aplicável é a portuguesa. Mais sustenta o recorrido que as normas aplicáveis são as decorrentes do Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012 e não as normas do Código Civil invocadas pela recorrente, sendo aplicável à sucessão a lei moçambicana, que não ofende qualquer princípio fundamental e estruturante da nossa ordem jurídica por não considerar o cônjuge um herdeiro legitimário e/ou legítimo. A situação em apreço possui elementos de conexão com os ordenamentos jurídicos português e moçambicano, pelo que é uma situação jurídica plurilocalizada, pois que o de cujus nasceu em Portugal, tinha nacionalidade portuguesa e moçambicana, tinha residência habitual e domicílio fiscal em Moçambique, faleceu em Portugal e aqui possuía contas bancárias, estando inscrito no Serviço Nacional de Saúde e na Segurança Social. Como tal, a solução do litígio implica a definição do ordenamento jurídico aplicável à sucessão de C, com recurso a normas jurídicas de direito internacional privado. O n.º 1 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa estabelece um regime de recepção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português. O n.º 4 do referido preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24-07 (Sexta Revisão Constitucional) estatui que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.” Assim, tal normativo constitucional reflecte o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-11-2018, relator Cabral Tavares, processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1: “No quadro da assinatura do Tratado de Lisboa, na declaração nº 17 anexa à ata final, sobre o primado do direito comunitário, «A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência». Primado do direito comunitário sobre o direito nacional reconhecido no nº 4 do art. 8º da Constituição: uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271; realce acresc.).” Geraldo Rocha Ribeiro refere a revisão dos Tratados da União Europeia, designadamente através do Tratado de Amesterdão, como um marco decisivo para a evolução da “comunitarização do direito internacional privado e do direito processual privado”, sendo por via dessa revisão que a União Europeia assumiu competência para regulação das questões de direito internacional privado para assegurar a liberdade de circulação dentro do espaço comunitário, o que foi reforçado com o Tratado de Lisboa. Mais refere que “Estas mudanças introduzidas pelo alargamento da competência da EU acabou por desagregar e fraccionar o sistema de Direito Internacional Privado (DIP) português. Agora fala-se em três níveis de regulamentação: nível de integração e espaço comunitário, nível de cooperação internacional (a relação do espaço comunitário com estados terceiros, particularmente visível com o reconhecimento da UE como membro de pleno direito da Conferência de Direito Internacional Privado da Haia) e nível interno (espaço cada vez mais residual de aplicação do direito nacional internacional privado)” – cf. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: Algumas Notas sobre o Problema da Interpretação do âmbito Objectivo dos Regulamentos Comunitários, in Revista Julgar 23, Maio-Agosto, 2014, pág. 266. No âmbito do fenómeno sucessório, foi aprovado o Regulamento (EU) n°. 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/07/2014[6], publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 27/07/2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, tendo entrado em vigor em 16-08-2012, no vigésimo dia seguinte à sua publicação (artigo 84.º, 1.º parágrafo). Este Regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia, com excepção do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca, mas apenas rege as sucessões abertas a partir de 17 de Agosto de 2015 (cf. artigo 83.°), com salvaguarda transitória da escolha de lei feita pelo de cujus ou da validade formal e material de disposições por morte feitas antes dessa data. Tendo em conta que C faleceu em 12 de Julho de 2017, suscita-se, in casu, a aplicabilidade de tal Regulamento. Ora, um dos aspectos mais inovadores deste Regulamento reside na circunstância de a residência habitual do de cujus ser o critério primordial de escolha da lei aplicável às sucessões, afastando-se assim de várias soluções nacionais de direito internacional privado, como é o caso da solução portuguesa, que considera a lei da nacionalidade do indivíduo como o elemento de conexão prevalecente – cf. art. 21º do Regulamento; art.ºs 25º e 31º, n.º 1 do Código Civil; cf. Geraldo Rocha Ribeiro, op. cit., pág.268 – “Outra mudança de peso opera-se também na desintegração a-sistémica do estatuto pessoal e alteração da conexão relevante. Do paradigma da nacionalidade e da vocação jurídico-política a ele inerente passamos para a eleição privilegiada da conexão residência habitual.” O Regulamento Europeu das Sucessões é directa e imediatamente aplicável nos Estados-Membros vinculados e beneficia de prioridade em relação às regras de fonte interna. A necessidade de recorrer ao direito internacional privado português ou ao direito internacional privado comunitário depende sempre da constatação de uma situação de internacionalização. Luís de Lima Pinheiro, entende que com “internacional” ou “transnacional” quer-se significar a existência de contactos relevantes com mais de um Estado soberano. Os factores que podem contribuir para uma situação transnacional são diversos: a nacionalidade dos sujeitos, a sua residência habitual, o lugar do seu estabelecimento, o lugar onde está situada a coisa, etc. Assim “internacionalidade” é o produto de certos elementos de estraneidade, sendo que estes são os laços que ligam a situação a outros Estados – cf. Direito Internacional Privado, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2014, 3.ª Ed. Refundida, p. 38-41 apud Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e Notariado de 23 de Julho de 2015 acessível em https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2015/45-cc-2015/downloadFile/file/45_2015_C_P_31-2015_STJ-CC.pdf?nocache=1438796565.54. Poderia pensar-se que a aplicabilidade do estatuído no Regulamento estaria dependente da verificação de elementos conexão da relação jurídica em litígio com o ordenamento de dois Estados-membros da União Europeia. No entanto, não será assim. No texto A internacionalização de situações internas no direito internacional privado unificado da União Europeia - Tendências jurisprudenciais recentes[7], Porfírio Moreira alude ao acórdão Owusu, em que um cidadão britânico, residente no Reino Unido, foi vítima de um grave acidente quando se encontrava de férias na Jamaica e intentou uma acção de responsabilidade contratual contra um cidadão britânico, também residente no Reino Unido, que lhe arrendou o imóvel para a estada de férias na Jamaica e uma acção por responsabilidade extracontratual contra diversas sociedades de direito jamaicano, no âmbito do qual o Tribunal de Justiça da União Europeia[8] considerou que “[a] implicação de um Estado contratante e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado e da localização dos factos controvertidos no segundo, também é susceptível de conferir natureza internacional à relação jurídica em causa” No caso do referido acórdão, a situação jurídica tinha evidente conexão com mais do que uma ordem jurídica, a de um Estado-Membro - Reino Unido -, por um lado, e a de um país terceiro - a Jamaica -, onde ocorreu a integralidade da factualidade relevante, sendo que a relevância dessa decisão reside na consideração de que a transnacionalidade pode advir da conexão da situação jurídica com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia. Assim, as disposições do Regulamento Europeu das Sucessões sobre conflitos de leis devem ser tidas como aplicáveis erga omnes, ou seja, abarcando as relações com os Estados não vinculados pelo Regulamento. Essa aplicação de cariz universal extrai-se do vertido no artigo 20.º do Regulamento, nos termos do qual: “É aplicável a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado-Membro.” – cf. neste sentido, Andrea Bonomi e Patrick Wautelet, Le droit européen des successions - Commentaire du Règlement n.º 650/2012 du 4 juillet 2012, Bruxelles: Bruylant, 2013, apud Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e Notariado acima referido; Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume II – Direito de Conflitos – Parte Especial, 4ª Edição Refundida, pág. 688[9]; Rui Manuel Moura Ramos, Estudos de Direito Internacional Privado da União Europeia, pág. 254. A aplicação do Regulamento pressupõe, assim, a existência de um conflito de leis, tal como se retira do Considerando 7, onde se alude a sucessão com incidência transfronteiriça e do art. 38º, que afasta a aplicação do Regulamento quando o Estado-membro engloba várias unidades territoriais, cada uma com as suas próprias normas jurídicas relativas à sucessão e a situação jurídica diga respeito apenas a essas unidades territoriais. Ou seja, a aplicação do Regulamento tem lugar em situações em que existem elementos de estraneidade. Constatada a transnacionalidade da situação jurídica aqui em apreço e considerando que as normas do direito internacional privado comunitário derrogaram o quadro normativo do ordenamento jurídico do foro, ou seja, o ordenamento jurídico português (cujos art.ºs 25º e 62º do Código Civil mandam aplicar à sucessão por morte a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do seu falecimento, que corresponde à lei da nacionalidade do indivíduo - cf. art.º 31º, n.º 1 do C. Civil), há que lançar mão do estatuído no art. 21º do Regulamento, de acordo com o qual a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito, aplicável ainda que não seja a lei de um Estado-membro (art. 20º do Regulamento). Na definição do conceito de residência habitual haverá que ter presente o conteúdo do Considerando (23) do Regulamento onde se consignou o seguinte: “Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito. A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.” Na ponderação que se impõe efectuar para efeitos de determinação, no caso concreto, da residência habitual do falecido, importa atentar nos seguintes factos apurados: i. C nasceu em 1 de Maio de 1943 e tinha nacionalidade portuguesa; ii. C residia na República de Moçambique desde 1975, onde se estabeleceu profissionalmente, sendo sócio e gerente de várias sociedades, nomeadamente, a sociedade Padilha Construções, Lda. e a sociedade WFA, Lda.; iii. Casou, em segundas núpcias, no Consulado Geral de Portugal em Maputo, Moçambique, com Maria …., em 28 de Outubro de 1988, de quem teve dois filhos, Fernando …. e Ana Cláudia ….., o qual se dissolveu por divórcio decretado pelo Tribunal da Comarca de Maputo, Matola, em 1 de Agosto de 2005; iv. Tinha domicílio fiscal na República de Moçambique; v. Por despacho ministerial n.º 185/2006, de 17 de Outubro, adquiriu a nacionalidade moçambicana; vi. Casou com a ré em Moçambique, no dia 18 de Novembro de 2006; vii. A ré tem nacionalidade moçambicana, tendo adquirido nacionalidade portuguesa por decisão judicial de 25 de Junho de 2012, tendo sempre residido em Moçambique; viii. C indicou junto das instituições bancárias portuguesas (Millennium BCP e Banco Comercial Português, S.A.), onde tinha contas bancárias, a morada da sua residência em Moçambique, sita na “Chinonanquila, Avenida Belo Horizonte, Talhão 4138, Moçambique”; ix. C adoeceu com uma doença do foro oncológico, tendo recebido tratamento na África do Sul e, durante alguns meses, em Portugal; x. Durante a presença temporária em Portugal, o de cujus e a ré mantiveram a sua residência em Moçambique e planeavam o seu regresso após conclusão dos tratamentos; xi. O de cujus casou, em primeiras núpcias, em Gondomar, com Florinda ….., em 5 de Janeiro de 1961, de quem teve o filho Alvarim ….., o qual se dissolveu por divórcio decretado pelo Tribunal de Família do Porto em 09 de Março de 1988; xii. Possuía um número de contribuinte português, um representante fiscal nomeado, declarando os rendimentos mobiliários auferidos neste país em território nacional; xiii. Estava inscrito no Serviço Nacional de Saúde e na Segurança Social, tendo registos contributivos reportados aos anos de 1981 a 1992, tendo declarado, relativamente aos anos de 2014, 2015 e 2016, rendimentos relativos a pensões pagas pelo Instituto de Segurança Social, IP, vindo a ser atribuída à ré uma pensão de sobrevivência, com início em 1-08-2017. Em conformidade com a jurisprudência do TJCE (designadamente quanto à Convenção de Bruxelas de 1968), a residência habitual deve corresponder ou ser entendida como «o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos» - cf., ainda que a propósito do conceito de residência habitual para aplicação do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27/11/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2017, relator Fernando Samões, processo n.º 7919/16.5T8VNG.P1. Dado que o Regulamento não remete para o direito interno dos Estados-membros, a definição do conceito de residência habitual deve orientar-se pelas suas disposições e objectivo, designadamente, as que resultam do Considerando (23) acima reproduzido, de onde ressalta a ponderação global das circunstâncias da vida do falecido nos anos anteriores ao óbito e no momento deste, aferindo-se, sobremaneira, da duração e regularidade da permanência do falecido no Estado em causa e as condições e razões dessa permanência, devendo a residência habitual revelar uma relação estreita e estável com esse Estado. Assim, para além da presença física do falecido num determinado Estado, importa atentar em factores que indiquem que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional, como sejam, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um determinado Estado e da eventual mudança para outro, aferindo da sua integração e estabelecimento de laços familiares e sociais. Para este efeito, importa também atender ao Considerando (24) do Regulamento que, em casos de complexidade na determinação da residência habitual do falecido, alerta para situações em que este, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, ainda que por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem, caso em que poderá ainda, face às circunstâncias apuradas, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, se aí se situarem o centro de interesses da sua família e a sua vida social, ou em casos de residência de forma alternada em vários Estados. Os factos acima transcritos conduzem à confirmação do juízo formulado em 1ª instância quanto à localização da residência habitual do falecido, à data do óbito, em Moçambique. Na verdade, tais factos viabilizam a ilação de que C emigrou na década de 70 do século XX para Moçambique, onde, naturalmente, procurou melhores condições de vida, nomeadamente económicas, e onde trabalhou. Sucede que, não se trata de uma situação de emigração com o único intuito de trabalhar no país estrangeiro e regressar, ainda que após longos períodos, ao país de origem. Pelo contrário, a factualidade acima enunciada revela abundantemente que o falecido foi para Moçambique, aí trabalhou e aí instalou o centro dos seus interesses profissionais, familiares e sociais, pois que foi aí que, após o divórcio do primeiro casamento, casou segunda vez, estabeleceu a sua vida familiar, criou os seus filhos nascidos desse segundo matrimónio, se divorciou uma segunda vez e tornou a casar, com a ora ré, sendo que ainda que esta tenha adquirido nacionalidade portuguesa, sempre residiu em Moçambique, mesmo após o casamento com Francisco Padilha (cf. ponto 7. dos factos provados). Durante os últimos quarenta anos antes do seu decesso o falecido residiu em Moçambique, ali trabalhou e ali constituiu sociedades de que foi sócio e gerente, tendo domicílio fiscal nesse país, vindo a solicitar e a obter a nacionalidade moçambicana, em Outubro de 2006. Note-se que não se apurou que o falecido mantivesse uma qualquer residência fixa em Portugal, que aqui regressasse para estar com a sua família - que, aliás, se encontrava instalada em Moçambique (e com o filho mais velho, Alvarim Padilha, residente em Portugal, não manteve contacto durante cerca de 28 anos) – ou que aqui retornasse ao fim de períodos de trabalho, para estar e confraternizar com amigos e família. Ainda que tenha sido referido que o de cujus vinha a Portugal de férias, por regra, uma vez por ano, esse facto não se mostra reflectido no elenco factual provado, e ainda que estivesse, não seria, por si só, demonstrativo de que o centro da vida do falecido se mantivesse no seu país de origem. Com efeito, não foi alegado ou demonstrado que durante as várias décadas em que C residiu em Moçambique, onde trabalhou e onde constituiu sociedades, ali desenvolvendo a sua actividade profissional, tenha mantido qualquer conexão relevante e essencial, quer a nível profissional, quer a nível familiar ou social, com Portugal. O facto de ser detentor de um número de contribuinte português e de declarar os rendimentos mobiliários que auferia em Portugal, nada mais revela do que a pretensão de manter as suas poupanças em Portugal, facto facilmente explicável, não por uma ligação estreita com o país, mas pela circunstância de Moçambique, ainda hoje, atravessar períodos de instabilidade política e social que aconselham a saída dos proventos auferidos para o exterior, de modo a não serem afectados por eventual convulsão que espolete no país. Por outro lado, a existência de registos contributivos na Segurança Social reportados aos anos de 1981 a 1992 reflectem apenas os descontos que efectuou enquanto funcionário de uma empresa portuguesa (como amplamente referido pelas testemunhas Ana …, Maria … e Alvarim …), sendo aliás revelador que a partir de 1992 não existam registos de descontos, data que coincide com aquela que foi referida pelas testemunhas como a altura em que o falecido criou a sua própria empresa. Acresce que a sua inscrição no Serviço Nacional de Saúde nada mais permite ajuizar para além desse simples facto, daí não sendo possível extrapolar pela manutenção ao longo de quarenta anos de uma ligação com o país de origem. Os factos revelam, sim, que C emigrou para Moçambique na década de 70 do século XX e desde então aí permaneceu com carácter de habitualidade, aí se estabeleceu, desenvolveu a sua actividade profissional, instalou a sua família, aí residia juntamente com esta e mantinha as suas relações de trabalho e de amizade, sendo em Moçambique que, desde então, tinha a sua residência habitual. Entretanto, tendo adoecido, procurou obter os melhores tratamentos possíveis, razão que o fez vir a Portugal, onde iniciou tais tratamentos, mas sem que se tenha apurado que tenha decidido mudar o centro da sua vida familiar e social para este país, mas apenas que aqui permaneceria enquanto necessitasse desse tratamento, pois que pretendia regressar a Moçambique. Assim, a sua permanência em Portugal ao momento da sua morte é justificada apenas pela necessidade de recorrer aos tratamentos que aí lhe eram proporcionados e não por uma qualquer decisão de aqui se estabelecer definitivamente, decisão que nenhum dos factos provados corrobora ou admite. Logo, há que concluir, como fez a 1ª instância, que a residência habitual de C ao momento do seu óbito se situava em Moçambique, pelo que a lei aplicável ao conjunto da sua sucessão é a lei moçambicana. A sentença recorrida considerou, assim, que a ré, ao omitir que o falecido residia habitualmente em Moçambique, o que era do seu conhecimento e dando-o como residente em Valongo, prestou declarações falsas, o que retira eficácia probatória à escritura de habilitação de herdeiros, mais concluindo que, de acordo com a lei moçambicana aplicável (cf. art.ºs 62º, 2133º, 2134º e 2157º do Código Civil moçambicano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 23-12-1967), a ré, enquanto cônjuge sobrevivo do de cujus, apenas assumiria a qualidade de herdeiro caso não existissem descendentes, porquanto segundo a ordem das classes sucessíveis, o cônjuge integra a quarta classe, depois dos descendentes, ascendentes e irmãos e seus descendentes, logo, tendo o falecido deixado descendentes sobrevivos, são estes os que se encontram na primeira linha da sucessão, pelo que que a ré não é herdeira de C. A apelante não colocou em crise a conclusão de que a ré não é herdeira do de cujus face à lei moçambicana (note-se que o Código Civil de Moçambique, aprovado pelo DL 47344 de 25-11-1966, publicado no Diário do Governo dessa data, determina como lei pessoal aplicável às sucessões a lei da nacionalidade do indivíduo – cf. art.ºs 25º, 31º e 62º -, sendo que o falecido C tinha a nacionalidade moçambicana, resultando do disposto nos art.ºs 2131º, 2132º, 2133º, 2134º, 2156º e 2157º do aludido Código que o cônjuge integra apenas a quarta classe de sucessíveis, na ausência de descendentes, ascendentes, irmãos e seus descendentes, não figurando como herdeiro legitimário), pretendendo antes que se conclua pela verificação da reserva de ordem pública internacional do Estado português, com o consequente afastamento da ordem jurídica estrangeira normalmente competente. O autor/recorrido sustenta nas suas contra-alegações que esta questão não pode ser agora invocada pela recorrente, porquanto não a invocou antes, nem tal foi apreciado pelo Tribunal recorrido. Sucede, contudo, que todos os sistemas estabelecem limites ao carácter formal das normas de conflitos (estas indicam a lei aplicável tendo em conta a sua localização espacial, em função do elemento de conexão e não do conteúdo material daquela), sendo que nesse âmbito o mais importante é o que resulta da actuação da ordem pública internacional do Estado do foro. Assim, o art. 35º do Regulamento dispõe, sob a epígrafe “Ordem pública (ordre public)”, que “A aplicação de uma disposição da lei de um Estado designada pelo presente regulamento só pode ser afastada se essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública do Estado-Membro do foro.” Por sua vez, o art. 22º, n.º 1 do Código Civil prescreve que “Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.” Ora, a ordem pública actua a posteriori, ou seja, como excepção à aplicação da ordem jurídica estrangeira normalmente competente. Assim, “só depois de se verificar que a aplicação ao caso dos preceitos da lei estrangeira normalmente competente envolve ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português deve o órgão de aplicação do direito afastar tais preceitos.” – cf. Maria Helena Brito, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 50. Significa isto que na aplicação da norma de direito estrangeiro o tribunal não pode deixar de apreciar se essa aplicação redunda ou não numa situação intolerável, quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico (bons costumes), quer da perspectiva dos princípios fundamentais do direito português, pois se assim for terá de afastar esse resultado chocante, através da recusa de aplicação dos preceitos da lei estrangeira normalmente competente. A excepção de ordem pública é apreciada em relação ao momento em que se julga o litígio ou se aprecia a subsistência da relação, pelo que se impõe proceder ao conhecimento de tal questão, tanto mais que se trata de excepção implícita em toda a remissão que o Direito Internacional Privado opera para os direitos estrangeiros – cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Volume I, Lisboa 1987, pág. 65; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2008, relator Paulo Sá, processo n.º 07A4790. Os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que atenta a sua natureza intrínseca e decisiva dessa ordem, jamais podem ceder. Por outro lado, como já resulta do acima expendido, o que está em causa é o resultado concreto decorrente da aplicação da lei estrangeira, e não os seus fundamentos – cf. neste sentido, Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, pág. 483 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-05-2015, relator Gabriel Catarino, processo n.º 657/13.2YRLSB.S1. A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro. Como se discorre no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2008 acima referido: “O conceito de ordem pública internacional difere do de ordem pública interna […]. Esta restringe a liberdade individual. Aquela limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. Por isso, a ordem pública internacional é uma excepção ou limite à aplicação de uma norma de direito estrangeiro, fundada no interesse do Estado local (lex fori). “Uma lei de ordem pública interna deve sempre ser aplicada pelo juiz do Estado local, ao passo que uma lei de ordem pública internacional tem a sua aplicação dependente de uma regra de conflitos local lhe atribuir ou não competência, podendo, portanto, ser aplicada ela ou uma lei estrangeira. Assim, nos Estados que admitem o princípio locus regit actum, a lei reguladora da forma externa dos actos é uma lei de ordem interna, devendo ser aplicada pelo juiz a lei do seu país ou uma lei estrangeira, segundo o lugar onde o acto tenha sido praticado; e nos Estados que proíbem a poligamia, a lei que impede um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido, é uma lei de ordem pública internacional que o juiz deve aplicar sempre, quer se trate de um súbdito do Estado local, quer se trate de súbditos de um Estado que admita a poligamia.” (v. MACHADO VILLELA, op. cit., p. 568.) «O conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la.»” Não existindo uma fórmula exacta para delimitação do conceito de ordem pública internacional, o juiz deve seguir uma linha de orientação com vista a aferir se a lex fori deve ou não ser considerada de ordem pública internacional, de tal forma que serão de ordem pública internacional as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respectiva relação jurídica, as quais devem ser leis rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. Os interesses a atender são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. No entanto, estes princípios devem também ser observados pelas leis de ordem pública interna, sendo que nem todas as normas de ordem pública interna são normas de ordem pública internacional. Logo, para que a excepção de ordem pública internacional deva intervir é necessário que as disposições da lex fori essencialmente divergentes da lei estrangeira normalmente aplicável sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política. Atente-se no que se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2008 já acima mencionado: “Assim, por exemplo, são leis de ordem pública internacional a expropriação sem indemnização (confisco), as leis que proíbem a poligamia e que impedem um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido (editada por razões morais), e também teria de intervir a reserva de ordem pública internacional se a aplicação do direito estrangeiro atropelasse grosseiramente a concepção de justiça material como o Estado do foro a entende, abalando os próprios fundamentos da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade, que choquem a consciência, como seria o caso de lei estrangeira que admitisse a morte civil ou a escravidão, ou a norma estrangeira que estabelecesse como impedimento à celebração do casamento a diversidade de raça ou de religião, ou a aceitação do repúdio por um marido muçulmano de uma esposa portuguesa, sem que esta tenha prestado o seu consentimento. Mas já não é uma lei de ordem pública internacional, mas de ordem pública interna, a lei que exige a forma escrita para o contrato de arrendamento urbano que, de acordo com o princípio locus regit actum admitido pelo nosso direito, só interessa aos arrendamentos celebrados em Portugal, e cujo fim a que obedeceu a dita norma em nada é comprometido ou atraiçoado pelo facto de em Portugal ser reconhecido como válido um arrendamento urbano celebrado verbalmente. Estão fora do âmbito da ordem pública internacional as leis políticas, as leis penais, as leis de polícia e de segurança, e todas as leis de direito público, visto que as leis de ordem pública internacional que interessam ao direito internacional privado, não podem deixar de ser o direito privado (civil ou comercial) do país do tribunal onde a questão se coloca, porque o recurso ao conceito de ordem pública internacional significa precisamente que se está em presença de um caso de competência normal da lei estrangeira designada pelo DIP da lex fori.”. Têm sido referidas como características da ordem pública internacional, para além da sua natureza nacional (as exigências da ordem pública internacional variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles), a excepcionalidade, a imprecisão e actualidade (ou mobilidade, o que revela que as leis de ordem pública internacional têm um cunho nacional, são função das concepções no tempo e no espaço do País onde a questão se põe, hão-de vigorar na ocasião do julgamento, e podem deixar de o ser e vice-versa, visto que podem variar de acordo com a variação das exigências do interesse geral) – cf. Ferrer Correia, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça já referido. Em reforço do assim explanado adita-se a seguinte passagem esclarecedora do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2017, relator Alexandre Reis, processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1: “A ordem pública internacional de qualquer estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça ou moral, que o Estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do Estado, sendo estas conhecidas como “lois de police” ou “regras de ordem pública” […] Em termos muito genéricos, o conceito da ordem pública internacional caracteriza-se pela sua […] imprecisão, pelo cariz nacional das suas exigências […] pela excepcionalidade […] pela flutuação e pela actualidade […] e pela relatividade – intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português. […] é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado […] O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional.” O fundamento do direito sucessório está ligado à propriedade individual, dado que os indivíduos podem ser proprietários, deterem bens e dívidas, sendo necessário assegurar a sua substituição nessas posições quando falecem, evitando uma ruptura injustificada da vida jurídica, com perturbação da ordem e frustração de legítimas expectativas; por outro lado, a sua razão de ser reside ainda na família, porquanto entre os elementos desta existem afectos e deveres, há um vinculo de solidariedade e a família perpetua-se através das gerações. Assim, no silêncio do proprietário, justifica-se que os bens sejam atribuídos por morte dele à família: cônjuge, parentes directos ou colaterais – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2015, relator Orlando Afonso, processo n.º 317/11.9YRLSB.S1. Nem todas as normas do direito português sobre as relações sucessórias integram a ordem pública internacional do Estado Português. Certo é, porém, que a ordem jurídica portuguesa sempre protegeu a posição sucessória dos filhos, ainda que ilegítimos, preservando a respectiva legítima através de limitações impostas aos actos de disposição, a título gratuito, dos respectivos progenitores, o que se encontra assegurado, designadamente, pelas disposições dos art.ºs 2157º, 2159°, 2168° e 2169° do Código Civil. No entanto, não é possível formular idêntico juízo relativamente ao cônjuge sobrevivo, dado que se relativamente aos filhos a lei portuguesa sempre salvaguardou que ao menos uma porção da herança dos pais se lhes destinasse, o que é inspirado por razões de interesse e ordem pública, tal não se verifica relativamente ao cônjuge. Ainda que o ordenamento jurídico português proteja a sucessão da viúva ou viúvo, sendo essa a tendência do legislador nos últimos anos, com o alargamento de tal protecção, nem sempre foi assim e a vocação sucessória do cônjuge não deve ser tida como um elemento essencial ou nuclear do ordenamento jurídico-constitucional português, tanto que essa matéria é remetida pela Constituição para a lei ordinária (cf. artigo 36º, n.º 2 da Constituição), permitindo a consagração de várias soluções. Aliás, a circunstância da legítima não ter fundamento constitucional constitui um indício relevante no sentido de que não constitui um princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2013, relator Gregório Silva Jesus, processo n.º 832/07.9TBVVD.L2.S2. Na verdade, a inclusão do cônjuge no elenco dos herdeiros legitimários é uma opção recente da ordem jurídica portuguesa, decorrente das concepções introduzidas na sequência do novo rumo político advindo da Revolução de Abril de 1974, de tal modo que se deve entender que a protecção do cônjuge, a nível sucessório, não colhe a mesma dimensão da protecção dos filhos, pois que não se insere naquele núcleo perene de princípios ético-jurídicos pelo qual se tem conduzido a comunidade nacional, não traduzindo um princípio estruturante da nossa maneira de ser português, razão por que o seu afastamento pela lei estrangeira não suscita uma ofensa insustentável, não conduzindo a uma solução chocante para o ordenamento jurídico português – cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 5-02-2009, relator João marques, processo n.º 3038/08-3; e do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-1989, relator Gama Prazeres, processo n.º 078132. Atente-se ainda no facto de a ligação do falecido e da ré com a ordem jurídica moçambicana ser intensa, longa e consistente, o que viabiliza a afirmação que os seus direitos e obrigações são basicamente aqueles que a ordem jurídica moçambicana lhes proporcionou e de que souberam retirar proveito. Pelo contrário, a sua ligação a Portugal até escassos meses antes do óbito de C era residual, de curta duração (ali se deslocavam apenas em férias) e fraca intensidade. Note-se que tem sido referido que a intensidade dos contactos com a ordem jurídica do foro é um factor a atender em sede de preenchimento da cláusula de reserva da ordem pública internacional. Tal releva, aliás, no respeito pelo princípio da tutela das expectativas legítimas, enquanto emanação directa da função essencial do direito que é a de estabilizar expectativas. Ademais, sendo conhecida a dissonância dos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros da União Europeia em termos de regulação da vocação sucessória quanto à legítima do cônjuge, não se pode deixar de entender que, face a tal disparidade nos ordenamentos da União Europeia, deve ser acentuada a excepcionalidade da cláusula de violação da ordem pública internacional. Neste contexto, conclui-se que a referida excepção não deve proceder. Tendo em conta que a lei aplicável à sucessão de C é a lei moçambicana, à luz da qual a ré não é sua herdeira, resta confirmar a decisão da 1ª instância. Aduz-se apenas que, nos termos do art. 83º do Código do Notariado, a habilitação notarial consiste na declaração, feita em escritura pública, por três pessoas que o notário considere dignas de crédito ou, em alternativa, por quem desempenhar o cargo de cabeça-de-casal, de que os habilitandos são herdeiros do falecido e não há quem lhes prefira na sucessão ou quem concorra com eles. A habilitação de herdeiros é, pois, um documento contendo uma declaração prestada perante notário e destinada a atestar perante terceiros que determinada pessoa tem a qualidade de herdeiro de outra e que não há mais quem tenha idêntica ou melhor posição hereditária. Tal documento contém a afirmação pelos declarantes de dois factos distintos: o facto positivo de o habilitando ser herdeiro do falecido, o que carece de ser demonstrado documentalmente perante o notário (por certidões do registo civil justificativas da sucessão legítima ou legitimária e de teor do testamento ou da escritura de doação por morte); o facto negativo de não haver outra pessoa que lhe prefiram na herança ou com ele concorra na sucessão, o que não é naturalmente comprovável por documento e, portanto, apenas é atestado pelos declarantes. Nos termos do artigo 86.º do Código do Notariado, a habilitação notarial tem os mesmos efeitos da habilitação judicial e é título bastante para que se possam fazer em comum, a favor de todos os herdeiros e do cônjuge meeiro, registos nas conservatórias do registo predial, comercial e da propriedade automóvel, averbamentos de títulos de crédito, averbamentos da transmissão de direitos de propriedade literária, científica, artística ou industrial e levantamentos de dinheiro ou de outros valores. Daqui resulta, portanto, que a habilitação notarial tem o mesmo valor da habilitação judicial realizada em processo pendente através do incidente da instância da habilitação dos herdeiros, servindo para titular a qualidade de herdeiro na realização dos actos especificamente previstos na norma - cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-10-2017, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 1568/09.1TBGDM.P1; cf. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2ª Edição, pág. 260. Tal não significa, contudo, que a qualidade de herdeiro atestada judicial ou notarialmente não possa ser contestada e mesmo afastada perante a prova de que tal não corresponde à verdade. A escritura de habilitação notarial é um documento autêntico (artigo 363º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil) e como tal faz prova plena dos factos (declarações e outros) que neles são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público documentador, bem como dos que nele são atestados como objecto da sua percepção directa, mas não daqueles que constituem objecto de ciência perante ele produzidos ou constantes de documentos que lhe sejam apresentados ou ainda dos que sejam objecto de apreciação ou juízos pessoais do oficial público – cf. art.º 371º do Código Civil. A ré fez consignar em tal escritura que o falecido C era residente, à data da sua morte, em Valongo, na morada do seu filho Alvarim ….., o que, como se apurou, era falso (cf. ponto 10. dos factos provados), omitindo que a residência habitual do falecido era em Moçambique. O Código de Notariado não prevê regime especial relativamente à nulidade material dos actos, pois que apenas dispõe expressamente, no seu art.º 70º e seguintes, sobre os vícios formais. Nos documentos autênticos, a autoridade ou oficial público não garante a veracidade nem a eficácia das declarações que lhe foram feitas, pelo que em relação a elas é admissível a prova do contrário, designadamente testemunhal. Os actos e declarações que o funcionário atesta como tendo sido praticados, emitidos ou prestados perante ele, terão o valor jurídico que lhes competir nos termos gerais de direito (erro na declaração ou erro-vício, coacção, simulação, entre o mais). J. Lebre de Freitas esclarece que “Sendo a falsidade uma qualidade dum documento genuíno da qual resulta que a declaração por ele representada, ou certos factos por esta (directa ou indirectamente) representados, não são conformes com a realidade, por não se terem verificado, a consequência imediata da sua existência, para a qual aponta toda a nossa análise, consistirá na perda da eficácia probatória do documento quanto a essa declaração ou quanto a esses factos. Assim, a presunção que, a partir da prova do facto representativo (o registo ou informação constante do documento), impõe que se considere provado o facto representado, ou outros por este representados, é afastada com a prova da não correspondência desse facto ou factos à realidade. O documento perde, consequentemente, a sua eficácia como fonte de prova dos factos cobertos pela presunção legal. Mas não perde, por isso, a sua existência jurídica nem a sua validade.” - cf. A Falsidade no Direito Probatório, página 154 a 157 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-03-2012, relator Granja da Fonseca, processo n.º 180/2000.E1.S1. Assim, um documento é falso quando os actos ou factos que ele afirma terem-se passado não se passaram realmente. Todavia, a falsidade reporta-se apenas àquilo que se considera plenamente provado; se os actos documentados se realizaram ou não e se são ou não inválidos, são factos que os documentos não podem provar e, logo, nada têm a ver com a falsidade. Demonstrado que a mencionada declaração da ré não era conforme à realidade, tal implica a perda da eficácia probatória da escritura notarial quanto a essa declaração ou quanto a esse facto, pois do que se trata aqui é de apreciar as declarações feitas perante o notário e que se comprovou serem desconformes com a realidade – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-03-2012, relator Granja da Fonseca, processo n.º 180/2000.E1.S1. Reconhecendo a falsidade das declarações da ré (entenda-se desconformidade com a realidade), a sentença recorrida acabou por concluir pela perda de eficácia probatória da escritura de habilitação notarial e, em consequência, pela não demonstração da qualidade de herdeira que daquela decorreria, em consonância, aliás, com o expendido acerca da lei aplicável à sucessão do de cujus. Nada havendo a apontar à apreciação jurídica em referência, cumpre julgar improcedente o presente recurso e confirmar a decisão recorrida. * Das Custas De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria. A apelante decai quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo. * IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em: a) 1) Julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão de facto e alterar a matéria de facto relativamente ao ponto 15. dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção: “O de cujus estava inscrito no Serviço Nacional de Saúde e na Segurança Social, tendo registos contributivos reportados aos anos de 1981 a 1992, tendo declarado, relativamente aos anos de 2014, 2015 e 2016, rendimentos relativos a pensões pagas pelo Instituto de Segurança Social, IP, vindo a ser atribuída à ré uma pensão de sobrevivência, com início em 1-08-2017.” b) Julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida. As custas ficam a cargo da apelante. * Lisboa, 19 de Novembro de 2019[10] Micaela Sousa Cristina Silva Maximiano Maria Amélia Ribeiro _______________________________________________________ [1] Adiante designado pela sigla CPC. [2] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt. [3] Note-se que, como referem J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., volume 1º, pp. 384-385 “não basta que um despacho judicial pressuponha o conhecimento do vício para que este se possa considerar por ele implicitamente coberto”. [4] “[…] «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum»”. [5] Não se desconhecendo, contudo, a possibilidade de se afirmarem juízos que densifiquem e concretizem uma realidade de facto, conforme se retira do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017, relatora Fernanda Isabel Pereira, processo n.º 659/12.6TVLSB.L1-S1; no mesmo sentido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, sustenta que a “chamada «proibição dos factos conclusivos» não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil; – cf. Matéria de facto; julgamento; “factos conclusivos”, Jurisprudência (785) 6-02-2018, acessível em Blog do IPPC https://blogippc.blogspot.com/search?q=jurisprud%C3%AAncia+%28785%29. No entanto, fá-lo referindo que tal como os temas de prova “não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra” dando como exemplo que “sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência da parte”, o que revela que a afirmação de factos já com certa conotação jurídico-valorativa dependerá, contudo, da prova de factos que a suportem – cf. Jurisprudência (784) 5-02-2018, no referido Blog. [6] Adiante designado apenas por Regulamento. [7] Cf. e-Pública: Revista Electrónica de Direito Público – versão On-line vol. 5 n.º 1 Lisboa jan. 2018 acessível em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?pid=S2183-184X2018000100014&script=sci_arttext&tlng=en. [8] Adiante designado pela sigla TJUE. [9] – “No que toca ao âmbito espacial de aplicação, as regras de conflitos deste Regulamento são, à semelhança do que se verifica com outros Regulamentos europeus, de aplicação universal, não dependendo de uma conexão do caso com um Estado-Membro ou da designação da Lei de um estado-Membro (art. 20º).” [10] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página. | ||
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Decisão Texto Integral: |