Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO SAAVEDRA | ||
Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO NÃO USO DO ARRENDADO RESOLUÇÃO DOENÇA DO ARRENDATÁRIO UTILIZAÇÃO DO LOCADO POR FAMILIAR | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/26/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I- Os temas de prova não correspondem, no C.P.C. de 2013, aos factos a provar, antes indicando as linhas gerais da matéria sobre a qual deve ser produzida prova, sendo a instrução naturalmente e apenas delimitada pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas; II- O preenchimento da previsão de qualquer das alíneas a) a e) do nº 2 do artigo 1083 do C.C. não determina automaticamente a resolução do contrato de arrendamento, importando, também nesses casos, apurar se o incumprimento reveste gravidade ou implica consequências que tornem inexigível à outra parte, o senhorio, a manutenção do arrendamento; III- A situação de doença a que se refere al. a) do nº 2 do art. 1072 do C.C., e que pode tornar lícito o não uso do locado pelo arrendatário, deve ser sempre transitória e compatível com o regresso à fração locada; IV- Comprovando-se que o arrendatário deixou de viver no locado em 2011 onde habitava com uma filha, ingressando em ERSI face à sua condição de saúde, e nunca mais regressou ao locado não se perspetivando, de forma objetiva, que ali regressasse, é de concluir que essa circunstância não integra a previsão da al. a) do nº 2 do art. 1072 do C.C.; V- Também não se verifica a previsão da al. c) do nº 2 do art. 1072 do C.C. se, apesar de ter ficado a residir no locado a referida filha do arrendatário, não resultar apurado que os mesmos mantiveram entre si, após essa data, um vínculo de dependência económica e a intenção do referido arrendatário em regressar ao locado; VI- Declarada a resolução do contrato, naturalmente reportada à data da propositura da ação, é essa a causa de cessação do contrato e não a respetiva caducidade decorrente do óbito do arrendatário que ocorreu na pendência da causa. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I- Relatório: A [ Teresa ....] e B [ ...Jorge ...] vieram propor, em 16.3.2020, contra C [ Joaquim .....] , ação declarativa comum com vista ao despejo da fração autónoma correspondente à letra “E” situada no 2º andar direito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Avenida da Aviação Portuguesa, nº ...., Amadora, arrendado ao R. em 1964, invocando a falta de uso por este do locado por mais de um ano e com caráter definitivo, sendo que a filha do locatário que naquela fração habita não vive com o mesmo em economia comum. Pede que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento, sendo o R. condenado a entregar o locado livre de pessoas e bens, e que seja declarado que a filha do R. não vive com ele em economia comum e não tem direito a usar a fração, como não terá direito a ocupar a posição de arrendatária, por transmissão mortis causa, caso o R. venha a falecer após o início do processo. Pede ainda que o R. seja condenado a pagar aos AA. a quantia mensal de € 600,00, correspondente ao preço de mercado atual da renda do locado, desde a citação até ao trânsito em julgado da sentença que decrete o despejo e ainda, nos termos do artigo 1045 do C.C., no caso de mora na restituição, numa indemnização mensal correspondente ao dobro desse valor desde o trânsito em julgado da sentença até à entrega efetiva do arrendado. Contestou o R., impugnando a factualidade alegada, mais sustentando que se ausentou do locado por razões de força maior e doença, doença sua e de sua filha, tendo dado entrada num lar de idosos, mas nunca perdendo a esperança de voltar a casa. Mais refere que a filha, já maior de 65 anos de idade, consigo reside no locado há mais de 50 anos, o que confere à mesma o direito à transmissão do arrendamento. Conclui pela improcedência da causa. Os AA. responderam à matéria de exceção, pedindo a condenação do R. como litigante de má-fé. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, sendo fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova. Atribuiu-se ainda à causa o valor de € 1.718,70. Tendo, entretanto, falecido o R., foi habilitada nos autos a filha D [ Maria .....] , como sucessora do mesmo na presente ação. Em 4.1.2021, a fls. 73 e ss., veio esta informar nos autos que está a depositar o valor das rendas, invocando a transmissão para si do contrato de arrendamento por óbito do seu pai. Mais refere encontrar-se pendente ação de preferência na aquisição da fração, instaurada por seu pai contra os aqui AA., Proc. nº 1318/20.1T8AMD, cuja apensação requer. Os AA. responderam, sustentando que o contrato não se transmitiu à herdeira habilitada e opondo-se à pretendida apensação. Por despacho de 11.4.2021, foi indeferido aquele pedido de apensação. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, em 17.7.2021, proferida sentença nos seguintes termos: “(...) o Tribunal julga a presente ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência, A) Declara a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento referente a fração autónoma identificada pela letra “E” situada no 2.° andar direito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Avenida da Aviação Portuguesa, n.° 17, Amadora, descrita na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o artigo 456/19901122-E, por falta de uso do locado por mais de um ano; B) Condena o réu a entregar aos autores o locado livre e devoluto de pessoas e bens. C) Caso o locado não seja entregue aos autores até ao trânsito em julgado da sentença, condena o réu a pagar uma indemnização no valor mensal de € 114,58 (cento e catorze euros e cinquenta e oito cêntimos) até à entrega efetiva do bem. O Tribunal decide ainda absolver o réu do pedido de condenação em litigância de má-fé. Custas a cargo dos autores e réu na proporção de 25% para os primeiros e 75% para o segundo - cfr. 527° Código de Processo Civil (artigo 6.°, n.°1, do RCP e tabela I anexa).(…).” Inconformada, recorreu a Ré habilitada, D , culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões a seguir transcritas: “ 1. A ora aqui Recorrente jamais se pode conformar, quando percorrido o elenco dos factos dados como provados, com as consequências extraídas pelo Mmo. Juiz a quo na resposta aos temas da prova. 2. A decisão recorrida fundou-se em normas de direito não aplicáveis ao caso concreto, respondeu a temas de prova que não existiam e relativamente aos quais a Recorrente não podia nem devia produzir prova. 3. Acabando por ser uma decisão surpresa e frontalmente violadora de disposições legais imperativas e presunções legais inilidíveis. 4. A prova efetivamente produzida, impõe que se acolham as declarações de parte da Recorrente, no seu todo, e não apenas na parte que lhe e desfavorável, como se de prova por confissão se tratasse. 5. Mais impõe a correta interpretação das declarações da testemunha Tília ......, que se deixaram transcritas. 6. Devendo ser dado com provado que, desde que se mostrou necessário e até ao fim da sua vida, sempre foi a Recorrente a responsável e cuidadora de seu pai, contando, nos últimos anos, com a ajuda de terceiras pessoas. 7. A sentença proferida foi uma decisão surpresa, cuja fundamentação de facto extravasou totalmente os temas de prova fixados, relativamente aos quais a Recorrente podia produzir prova. 8. Decisão que invade e viola de modo gratuito a intimidade da vida privada da requerente e profundamente desumana e violadora do direito dos idosos. 9. A Recorrente vivia com seu pai há mais de 50 anos, no local arrendado. 10. O primitivo arrendatário saiu do locado por força da sua condição de idade e saúde, sendo essa uma causa lícita de não uso pelo arrendatário, prevista no art° 1072° n° 1 a) do CC. 11. E a utilização foi mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fazia há mais de 50 anos - cfr. art°1072° n° 2 c) do CC. 12. Utilização que se mantém ininterruptamente até ao presente. 13. À data da morte do Réu, a Recorrente já tinha mais de 65 anos de idade e o seu rendimento é inferior a 5 RMNA, pelo que não caducou o direito ao arrendamento - Cfr. Art° 57° n°1 f) do NRAU. 14. A correta ponderação e análise da prova efetivamente produzida implica que a ação tenha que ser julgada totalmente improcedente e não provada, reconhecendo-se à Recorrente que o arrendamento se lhe transmitiu validamente. 15. Mais existe clara contradição entre os factos dados como provados e como não provados e a prova efetivamente produzida. 16. A decisão recorrida é discriminatória e atentatória da dignidade da pessoa humana, do direito a uma habitação condigna, do direito dos idosos e do direito à proteção familiar. 17. Ao decidir, como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos art.°s 1°, 27°/1, 26º/1 e 63º/1 e 3, 65 n° 1, 67° n°1 e 72° n° 1 da C.R.P.; nos art.°s 1072 n° 2 a) e c) do C.C.; 57° n° 1 f) do NRAU e 615° n° 1 b) c) d) e e) do C.P.C.. 18. Razão pela qual deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente e absolva a Recorrente do pedido, reconhecendo que foi lícito o motivo pelo qual o Réu deixou de residir no local, onde ficou a residir a sua única descendente, consigo residente há mais de 5 anos, pelo que o direito ao arrendamento se lhe transmitiu validamente(…).” Em contra-alegações, a apelada sustenta, no essencial, a manutenção do julgado. O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II- Fundamentos de Facto: A sentença fixou como provada a seguinte factualidade: A) Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o artigo 456/19901122-E, a fração autónoma identificada pela letra “E” situada no 2.° andar direito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Avenida da Aviação Portuguesa, n.° ......, Amadora. B) A aquisição do direito de propriedade sobre a fração referida em A) está inscrita pela apresentação 112 de 2020/02/22, a favor de A , casada com B no regime de comunhão de adquiridos, por compra aos únicos herdeiros de Maria .....; C) No dia 20 de março de 1964, Manuel ...., na qualidade de senhorio, e C , na qualidade de inquilino, e Henrique ...., na qualidade de fiador, assinaram um documento formulário, preenchido à mão nos espaços vazios, onde consta escrito, além do mais, o seguinte: ajustaram entre si o arrendamento do 2.º andar direito do prédio da Avenida da Aviação Portuguesa, Lote ......, freguesia da Amadora (...) de que o primeiro é senhor e possuidor, nos termos e nas condições seguintes: 1.° Este arrendamento é pelo prazo de seis meses que começa no dia 1 de abril de 1964, e termina no último dia do mês de setembro de 1964, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos (...). 2.º rendas será da quantia mensal de oitenta e sete escudos (...). 3.º A casa arrendada é para habitação exclusiva do inquilino, não podendo este dar-lhe outro uso, nem subloca-la, no todo ou em parte (...); D) Passaram a residir no locado C , a sua mulher Arminda ......, falecida a 14 de maio de 2009, e a filha de ambos D, nascida a 30 de agosto de 1953, no concelho de Abrantes; E) Atualmente a renda tem o valor mensal de 57,29 euros; F) No dia 7 de novembro de 2019, Jorge ....., na qualidade de cabeça-de-casal da herança de Maria ......, proprietária da fração referida em 1), deslocou-se à referida fração e encontrou D, que ali continuava a viver, e que lhe disse que C se encontrava a viver num lar e que não voltaria a viver no locado; G) Efetivamente, no dia 20 de setembro de 2011, C foi admitido na Unidade D. António Francisco, do Centro Interparoquial de Santarém, no regime de frequência Internamento em Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERSI), situado na Rua …, em Santarém, tendo ali ficado a viver ininterruptamente até ao seu óbito a 2 de outubro de 2020; H) A admissão referida no facto referido em G) ocorreu num contexto de doença de C e de falta de autonomia do próprio para a locomoção (prédio não tem elevador) e para exercer autonomamente as atividades básicas da vida diária, como a alimentação, vestuário ou a higiene. Além disso, C tinha uma relação conflituosa com a filha. I) Desde então, C nunca mais regressou ao locado, e D passou viver ali sozinha; J) C tem residência fiscal na Avenida …, n.º ..., Santarém, desde 20 de junho de 2014; K) Na Segurança Social, a morada afeta a C , desde 27 de abril de 2016, era Avenida …, Santarém; L) No dia 10 de fevereiro de 2020, o autor visitou o réu na Residência referida em G) e entregou-lhe um papel, que o réu assinou, onde constavam escrito, além do mais, o seguinte: Tendo sido notificado na qualidade de arrendatário para exercer o direito de preferência na compra do imóvel sito na Avenida da Aviação Portuguesa, n.°17, 2.º direito, Reboleira, Amadora, informo o seguinte: Renuncio expressamente, de forma livre e consciente, ao direito de preferência na venda que vau brevemente ser realizada e nas futuras transmissões que possam ocorrer. Não tenho qualquer interesse na compra do supra referido imóvel porque tenho 91 anos de idade, vivo permanentemente num lar, não habito o imóvel há mais de um ano e não voltarei a usar o locado. (...) M) C , nascido a 28 de novembro de 1928, em Vila Nova de Ourém, faleceu a 2 de outubro de 2020, no estado civil de viúvo, tendo sido inscrito no assento de óbito como última residência Rua …, Santarém. N) D padece de fibromialgia, classificada como doença incapacitante; O) Joaquina ... era natural de Santarém e foi sepultada no cemitério de Alcanena, distrito de Santarém, Deu-se ainda como não provado que: 1. C nunca perdeu a esperança de voltar para casa, sendo manifestando revolta por se encontrar afastado de casa; 2. Era D quem, depois do facto provado em G), tratava de todos os assuntos do pai. 3. O valor de mercado de locação da fração referida em A) dos factos provados é de 600 euros. * III- Fundamentos de Direito: Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. Compulsadas as conclusões da apelação, verificamos que cumpre apreciar: - dos temas da prova e da decisão surpresa; - da impugnação da matéria de facto; - da subsunção jurídica: da verificação dos fundamentos de despejo; - da pretensão da Ré habilitada em ver reconhecido que o arrendamento se lhe transmitiu; - da violação, pela decisão recorrida, dos princípios constitucionais. A) Dos temas da prova e da decisão surpresa: Embora sem desenvolver a correspondente argumentação no texto da alegação, defende a apelante nas conclusões do recurso que a decisão recorrida respondeu a temas de prova que não existiam, e relativamente aos quais a recorrente não podia nem devia produzir prova, acabando por ser proferida uma decisão surpresa. Vejamos. Os factos alegados pelas partes nos articulados são os que sumariamente referimos acima no relatório. Por sua vez, após a elaboração do despacho saneador, o Tribunal identificou como objeto do litígio: “Resolução do contrato de arrendamento pelo locador com fundamento no não uso pelo locatário. Caso de força maior ou doença. Pessoas com direito a viver no locado: vivência em economia comum.” Mais enunciou como temas de prova: “ a) Se o locatário C não tem residência permanente no locado há mais de dois anos e, em caso positivo, os motivos; b) Se o réu vive com a filha no locado.” Como é sabido, o Código do Processo Civil de 2013 eliminou as anteriores peças processuais denominadas como base instrutória e matéria de facto assente e implementou um outro modelo processual inteiramente diverso após a fase dos articulados. A propósito desta nova fase processual, explicou-se na “Exposição de Motivos” à Proposta de Lei n.º 113/XII que aprovou este Código de Processo Civil: “(…) Cumpre acentuar que se encontra aqui um dos mais emblemáticos pilares desta reforma, que se revela num duplo plano. Por um lado, corta-se radicalmente com o passado, pondo termo a uma prática assente na estabilização, logo após os articulados, dos factos provados (especificação, até 1995/1996; matéria de facto assente, desde então) e dos factos a provar (questionário, durante décadas; base instrutória, nos últimos quinze anos). São conhecidas e reconhecidas as restrições decorrentes de uma concepção assente num rígido esquema de ónus e preclusões. É sabido que tal concepção tem por efeito condicionar a prova e limitar os poderes cognitivos do tribunal, assim se criando sérios obstáculos à desejada adequação da sentença à realidade extraprocessual. Por outro lado, fica claro que nesta fase intermédia do processo do que se trata é de, primeiro, identificar o objeto do litígio e, segundo, de enunciar os temas da prova. Quanto ao objeto do litígio, a sua identificação corresponde a antecipar para aqui aquilo que, até agora, só surgia na sentença, sendo salutar e proveitoso, quer para as partes, quer para o juiz, esta sinalização depois de finda a etapa dos articulados. Relativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais de uma quesitação atomística e sincopada de pontos de facto, outrossim de permitir que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos. Estamos perante um novo paradigma que, por isso mesmo, tem necessárias implicações, seja na eliminação de preclusões quanto à alegação de factos, seja na eliminação de um nexo directo entre os depoimentos testemunhais e concretos pontos de facto pré-definidos, seja ainda na inexistência de uma decisão judicial que, tratando a vertente fáctica da lide, se limite a “responder” a questões eventualmente até não formuladas. (…).” Também José Lebre de Freitas([1]) nos explica sobre a matéria: “(…) A opção seguidamente feita liberta o juiz, nesta fase processual, da tarefa de formular os pontos de facto controvertidos de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova. Limitando-se a verificar a existência de controvérsia, entre as partes, sobre a verificação de determinadas ocorrências principais, delas dá conta genericamente, deixando para a decisão sobre a matéria de facto a descrição dos factos que, relativamente a cada grande tema, tenham sido provados ou não provados. Assim, por exemplo, alegados pelo autor os factos concretos que consubstanciam a celebração de determinado contrato, que o réu negue ter sido celebrado, o tribunal não os incluirá na base instrutória, limitando-se a enunciar como tema controvertido saber se o contrato foi ou não celebrado e com que conteúdo. A prova continuará a incidir sobre os factos concretos que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como plasmados nos articulados (petição, réplica, resposta à contestação, articulado complementar, articulado superveniente), bem como sobre os factos probatórios de onde se deduza, ou não, a ocorrência desses factos principais e sobre os factos acessórios que permitam ou vedem esta dedução, uns e outros denominados como factos instrumentais (.). Os articulados continuarão a realizar a sua função de meio de alegação dos factos da causa, essencial no que respeita aos factos principais e facultativo no que respeita aos factos instrumentais. Por sua vez, a decisão de facto deverá, tal como hoje, incluir todos os factos relevantes para a decisão da causa, quer sejam os principais (dados como provados ou não provados), quer sejam os instrumentais, trazidos pelas partes ou pelos meios de prova produzidos, cuja verificação, ou não verificação, leva o juiz a fazer a dedução quanto à existência dos factos principais: o tribunal relatará tudo o que, quanto ao tema controvertido, foi provado, ainda sem qualquer preocupação quanto à distribuição do ónus da prova.(…).” Na mesma linha, e sobre os temas da prova, esclarecem João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira([2]):“(…) O que agora está em jogo é permitir que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos.(…).” Deste modo, e como procurou demonstrar-se, a enumeração das questões que ao tribunal cumpre selecionar, de acordo com o nº 2 do art. 607 do C.P.C., não é espartilhada pela definição do objeto do litígio ou pelos temas da prova identificados nos termos do art. 596 do C.P.C.. Estamos perante conceitos fluidos e indeterminados, definidos por conteúdos mínimos com o que se visou, justamente, recusar um sistema burocratizado e tabelar, considerado distante da justiça e da verdade material. Trata-se, por isso, apenas de um ponto de partida quanto ao tema geral da instrução, uma indicação sobre o objeto da lide seguida de uma enunciação temática, que assegure a livre investigação e a consideração de toda a matéria relevante para a discussão da causa, tendo como únicas balizas a causa de pedir e as exceções invocadas([3]). Assim, os temas de prova não correspondem, no C.P.C. de 2013, aos factos a provar, antes indicando as linhas gerais da matéria sobre a qual deve ser produzida prova, sendo a instrução naturalmente e apenas delimitada pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas. De acordo com o disposto nos arts. 5, nº 1, 552, nº 1, al. d), e 572, al. c), do C.P.C. de 2013, às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que baseiem as exceções deduzidas e o juiz deve, designadamente, considerar os factos instrumentais que resultem da discussão da causa, ou, tratando-se de factos essenciais à procedência das pretensões ou das exceções invocadas, os que sejam complemento ou concretização de outros alegados e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar (art. 5, nº 2, als. a) e b), do C.P.C.). Tal significa que a discussão deverá incidir sobre toda a matéria de facto que se mostre relevante para a decisão. No caso em análise, a factualidade que foi julgada assente corresponde àquela que, no essencial, resultou da instrução do processo, no quadro dos factos que, em conformidade com os normativos atrás citados, importam à decisão final no âmbito da causa de pedir e das exceções deduzidas. Nem a apelante diz coisa distinta, não podendo compreender-se, face ao que se deixa dito, a afirmação feita no recurso de que a decisão recorrida “respondeu a temas de prova que não existiam e relativamente aos quais a Recorrente não podia nem devia produzir prova”, e de que foi proferida uma decisão surpresa. Como é evidente, às partes competia produzir prova sobre a factualidade por si alegada, e/ou contraprova da alegada pela parte contrária, nenhuma restrição impondo a esse exercício a enunciação dos temas da prova. Por conseguinte, e sem prejuízo da impugnação pela apelante da decisão relativa à matéria de facto nos termos do art. 640 do C.P.C., os factos considerados na sentença resultam da discussão da causa e mostram-se delimitados pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, encontrando respaldo bastante no objeto do litígio e nos temas da prova que foram definidos. Não pode, por isso, invocar-se qualquer surpresa na decisão sobre os mesmos. Donde, improcede neste tocante a argumentação recursiva. B) Da impugnação da matéria de facto: Diz a recorrente, nas conclusões 4 a 6 do seu recurso – são as conclusões que delimitam o respetivo âmbito (art. 635, nº 4, do C.P.C.), como acima referimos – que deve ser dado como provado que, desde que se mostrou necessário e até ao fim da sua vida, sempre foi a recorrente a responsável e cuidadora de seu pai, contando, nos últimos anos, com a ajuda de terceiras pessoas. Invoca as declarações de parte por si prestadas e o depoimento da testemunha Tília .... . Mais refere, na conclusão 15, que existe clara contradição entre os factos dados como provados e como não provados e a prova efetivamente produzida. Esta última asserção não se encontra sequer densificada no texto da alegação, sendo evidente que constitui, em si mesma, uma impugnação genérica contra a decisão da matéria de facto que a lei, claramente, não autoriza([4]). Na verdade, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, dar cabal cumprimento ao art. 640 do C.P.C., indicando sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, especificando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um desses factos e propondo, ainda, a decisão alternativa sobre cada um deles. Ora, não identificando a apelante a que concretas contradições alude, é de rejeitar a impugnação neste tocante, restringindo-se, por isso, a presente análise ao ponto que a apelante pretende seja dado como provado: desde que se mostrou necessário e até ao fim da sua vida, sempre foi a recorrente a responsável e cuidadora de seu pai, contando, nos últimos anos, com a ajuda de terceiras pessoas. Vejamos, então, depois de ouvidos os depoimentos prestados e vistos os autos. Na sentença entendeu-se não ter resultado apurado, designadamente, que era D (a Ré habilitada) quem, depois do facto provado em G) (ingresso do R. no Lar em Santarém), tratava de todos os assuntos do pai. Justificou-se, assim, conjuntamente a resposta negativa aos pontos 1 e 2 não provados do seguinte modo: “(…) o tribunal não ficou convencido que o C tivesse a esperança de voltar a casa ou que fosse a filha a cuidar dos seus assuntos. Desde logo, C estava numa situação de perda de autonomia ambulatória, sem poder sair de casa, que era um 2.° andar sem elevador, afetado pela doença que o deixava debilitado e sem capacidade ou vontade de viver, o que é indiciado pela negligência e falta de cuidado na sua pessoa, fumando na cama, criando um perigo para si e para terceiros. Simultaneamente, a relação com a filha estava deteriorada, com manifestações de violência, verificando-se que, mesmo depois da separação, o pai não se reconciliou com a filha. A circunstância de ter sido C a propor à cunhada a saída de casa revela que o mesmo reconhecia não estar bem naquele local. A situação de saúde deixou-o debilitado, mas, ainda assim, nunca regressou àquela casa, tendo ficado no lar onde era bem tratado. Por outro lado, uma vez que pai recusava ver ou falar com a filha, o tribunal não ficou convencido que a filha tratava dos assuntos do pai. Na verdade, era a tia quem estava em Santarém e era ela quem tinha acesso ao lar, onde ajudava a pagar parte do preço da estadia. A filha ficou a tratar dos assuntos da casa, fazendo obras em casa (cfr. faturas em seu nome) mas não eram assuntos do pai, mas dela própria, da casa onde residia. Deste modo, o tribunal dá como não provados os factos 1) e 2).(…).” Cremos que a proposta apresentada pela apelante como novo facto a aditar – desde que se mostrou necessário e até ao fim da sua vida, sempre foi a recorrente a responsável e cuidadora de seu pai, contando, nos últimos anos, com a ajuda de terceiras pessoas – é vaga e conclusiva e, porventura, sem relevância assinalável para a decisão (como adiante melhor veremos). Com efeito, o que se debate nos autos, aliás em linha com o objeto do litígio e os temas da prova, é se o locatário C deixou de usar o locado por mais de um ano de forma injustificada ou ilícita e se a filha do R., entretanto habilitada nos autos por óbito daquele, tem o direito de ali habitar. A afirmação de que a recorrente sempre foi a responsável e cuidadora de seu pai “desde que se mostrou necessário” nada esclarece, a nosso ver, sobre essa matéria. Em todo o caso, resultou do depoimento de parte prestado pela Ré habilitada conjugado com o depoimento da testemunha Tília …, tia materna da mesma, que aquela cuidou do pai na habitação após o falecimento da mãe e mulher daquele, Arminda ...., (em 14.5.2009 – ponto D) supra), até o mesmo ingressar, em Setembro de 2011, no Lar referido em G) supra (Unidade D. António Francisco, do Centro Interparoquial de Santarém), nas condições referidas em H). Também resultou dos referidos depoimentos que a Ré habilitada, filha do R., continuou a tratar de questões relacionadas com o pai, como das burocracias envolvidas e necessárias, com o apoio da referida testemunha que reside em Santarém. Com efeito, de acordo com o depoimento desta última, o relacionamento entre pai e filha tornou-se conflituoso após a viuvez do primeiro e o seu declínio de saúde, quando o mesmo deixou de comer, de se lavar, de se vestir e de obedecer aos comandos da filha para o fazer, fumando de noite na cama com os riscos inerentes, e tornando cada vez mais difícil a esta assegurar os cuidados devidos ao R.. Segundo a testemunha Tília ...., que vinha por vezes a Lisboa prestar-lhes o apoio necessário, por causa do estado do referido C a sobrinha Terezinha não conseguia trabalhar e chegou a ficar de baixa. Esta testemunha revelou conhecimento dos factos por manter um relacionamento muito próximo e de amizade com o falecido C, seu cunhado, e com a Ré habilitada que tem quase como uma filha, depondo de forma segura, coerente e lógica, de modo a permitir a convicção do tribunal. A mesma referiu que sempre foi a sobrinha quem tratou das coisas do pai e a ir com regularidade a Santarém, limitando-se a testemunha a visitar o cunhado no Lar, onde já trabalhara e que conhecia bem, e a tratar do pagamento da respetiva mensalidade (a partir da conta bancária do referido C ). Por sua vez, a Ré habilitada referiu, além do mais, ter sido ela quem alterou a residência fiscal do indicado C (ponto J) supra), o que fez quando ainda era funcionária na Autoridade Tributária. Em face das circunstâncias apuradas que terão levado ao conflito entre pai e filha, e ainda que o pai recusasse falar com a filha, o relato das duas depoentes revela-se plausível, não se nos afigurando que a Ré habilitada, por causa desse relacionamento difícil e do ingresso do pai no Lar, se tenha simplesmente demitido de tratar dos assuntos respeitantes ao mesmo. O que se retira dos dois depoimentos conjugados e nos parece razoável considerar no contexto é que esta, continuando a residir em Lisboa e a ir regularmente a Santarém (como referiu a testemunha Tília .....), terá continuado a tratar das questões burocráticas necessárias relativas àquele, porventura com a ajuda, em certos aspetos, da tia que, por sua vez, residia em Santarém e mantinha amizade e bom relacionamento com o cunhado. Assim, e na sequência do requerido pela apelante, admite-se o aditamento, aos factos provados, do seguinte: “D cuidou do pai no domicílio, desde data indeterminada depois da viuvez daquele, em 14.5.2009, e, após ingresso deste no Lar em Santarém como descrito nos pontos G) e H), continuou a tratar de assuntos respeitantes ao mesmo, com a ajuda de terceiras pessoas.” Em síntese: - adita-se um ponto P) aos factos provados que passará a ter a seguinte redação: “D cuidou do pai no domicílio, desde data indeterminada depois da viuvez daquele, em 14.5.2009, e, após ingresso deste no Lar em Santarém como descrito nos pontos G) e H), continuou a tratar de assuntos respeitantes ao mesmo, com a ajuda de terceiras pessoas.”; - no mais mantém-se inalterada a factualidade impugnada. C) Da subsunção jurídica: da verificação dos fundamentos de despejo: Aqui chegados, cumpre proceder ao enquadramento jurídico dos factos. Na sentença julgou-se improcedente a ação, depois de detalhada análise doutrinal e jurisprudencial, concluindo-se nos termos que se transcrevem em parte: “(…) De acordo com os critérios de estabilidade, habitualidade, continuidade e efetividade da estada, concluímos que o locatário deixou de usar o locado para o fim a que o mesmo destinou contratualmente, passando a ter residência permanente numa Estrutura Residencial em Santarém, ou seja, como o nome indica, numa instalação não temporária mas permanente. O centro de vida do beneficiário mudou. O legislador exceciona, porém, certas circunstâncias em que o não uso do locado é lícito, nomeadamente as que constam do artigo 1072.°, n.°2, do Código Civil supra reproduzido. As circunstâncias relevantes para o caso concreto são as referidas nas alínea a) e c). A) Em caso de força maior e doença A força maior e a doença surgem, independentemente da sua origem e natureza, como situações em que ocorre a impossibilidade de cumprimento por causa não imputável ao devedor, em situação similar ao que consta no artigo 790.° do Código Civil. Ou seja, são situações em que há a impossibilidade de ocupação do prédio, que seja objetiva, e não imputável ao arrendatário. No caso sub iudice, provou-se que o locatário, por doença, perdeu autonomia para viver autonomamente, não tendo capacidade de locomoção autónoma e para as atividades básicas do dia-a-dia. Tratando-se de um prédio sem elevador, a fração onde vivia tornou-se um espaço de reclusão. Por outro lado, C tinha uma relação conflituosa com a filha (que manteve o resto da vida), não aceitando a solidariedade familiar. A solução foi a inserção num lar de idosos, onde o mesmo passou a receber os necessários cuidados, seja em termos de alimentação, higiene ou saúde e ainda a possibilidade de socialização. Parece-nos, assim, que a doença do beneficiário foi o fator determinante para a saída do beneficiário do locado. Foi determinante não só porque as caraterísticas do prédio, sem elevador, limitavam gravemente a sua mobilidade, mas também porque o beneficiário carecia de cuidados permanente de terceiros, o que a filha não conseguia providenciar. Ou seja, os constrangimentos na autonomia do locatário e que o levaram a ir viver para um lar de idoso não eram meramente temporários, mas permanentes. O locatário, em 2011, tinha 82 anos de idade e padecia de doenças que afetavam a sua autonomia, pelo que a solução não era o internamento hospital para um local onde poderia receber os cuidados necessários. Ele não podia cuidar dele sozinho e a filha não tinha a capacidade de o fazer em vez dele. Não havia perspetiva de voltar a casa. Não se provou que o locatário tivesse essa ambição. A própria D reconheceu no seu depoimento que, quando saiu de casa, o pai desligou-se de tudo, nunca mais quis saber de nada deixando-a entregue a si própria. E reconheceu ter consciência de tal facto perante o representante do proprietário (Facto provado F). A jurisprudência encontrada impõe que a doença ou a circunstância de força maior que impedem o uso do locado pelo locatário seja temporária. O acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28-05-2015, relatado por Mário Serrano, diz o seguinte: (…) No acórdão datado de 21-06-2011, relatado por Pedro Brighton, já supra mencionado, defende-se igual orientação: (…) No caso concreto, não provou o locatário a reversibilidade da situação e a intenção real e séria de voltar a residir no locado. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, relatado por Luís Cravo, segue na esteira desta orientação: (...) Também o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-10-2009, relatado por Maria Alexandra Santos insiste na questão da provisoriedade da circunstância impeditiva do não uso. (…). Analisados os factos dados como provados, consideramos que o não uso do locado não se pode manter licitamente com base na circunstância referida na alínea a) uma vez que a situação de doença que motivou o ingresso do locatário num lar de idosos não era meramente temporária, não se esperando o regresso do locatário a casa, como não aconteceu quando foi citado para esta ação, permanecendo no lar durante 9 anos até à sua morte, com 91 anos de idade.(…).” Já no que respeita à verificação da exceção prevista na parte final da al. d) do nº 2 do art. 1083 do C.C., após análise doutrinal e jurisprudencial, concluiu-se: “(…) Analisados todos estas decisões, escolhidas das bases de dados da DGSI, concluímos que, para que o não uso do locado seja lícito, é necessário que subsista a economia comum, que a ausência seja transitória e reversível e se mantenha a dependência economia entre o locatário e a pessoa que ali continua a viver. Na situação em apreço, verifica-se que o locatário deixou de viver no locado devido à sua situação de doença e avançada idade, necessitando do apoio de terceiros para as atividades básicas do dia-a-dia, de cuidados que a filha não conseguia garantir, também pela má relação que mantinham. Não tinha capacidade de locomoção e o locado está situado no 2.° andar num prédio sem elevador. Estes factos indicam que a saída do beneficiário não era provisória, mas irreversível, sem intenção de regresso, tendo sido desfeita a convivência que a lei presumia de economia comum. Além disso, a filha do locatário tinha, em 2011, 58 anos de idade, presumindo-se a independência económica. Apesar de se ter provado que a D tem uma doença classificada de incapacitante, não existem factos que indiquem que dependia do pai. Aliás, a cunhada do locatário disse em audiência que a pensão do mesmo era canalizada para o pagamento do lar, ficando aquém do preço real. Pelos fundamentos acima enunciados, concluímos que o não uso do locado pelo beneficiário é ilícito, por não estar justificado por qualquer das circunstâncias 1072.°, n.°2 do Código Civil. O não uso nestas circunstâncias é um incumprimento que, pelo tempo em que decorreu, é grave, tornando inexigível a manutenção do arrendamento. Existe, assim, de uma violação ilícita e culposa por parte do inquilino da obrigação de residência permanente no locado / uso do locado, pelo que o tribunal julga procedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento e condenação do réu (e dos seus herdeiros) a proceder à sua entrega aos autores, seus proprietários.” A apelante defende no recurso que vivia com seu pai há mais de 50 anos, no local arrendado, que este saiu do locado por motivo de idade e saúde, sendo essa uma causa lícita de não uso pelo arrendatário, prevista no art. 1072, nº 2, al. a), do C.C., e que a utilização foi mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fazia há mais de 50 anos, nos termos do art. 1072, nº 2, al. c), do mesmo Código. Os apelados sustentam o acerto do julgado, defendendo que o R. C, depois de admitido no Lar de idosos em 20.9.2011 nunca teve intenção de regressar ao locado, pelo que o não uso do locado é ilícito nos termos do art. 1072, nº 1, do C.C.. Mais referem não ter a filha do R., que continuou a habitar na fração, qualquer direito a ali permanecer, posto que deixou de viver com o pai em economia comum. Analisando. Ao caso deve aplicar-se o regime do NRAU (aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.2, que entrou em vigor em 28.6.2006), conforme se entendeu em 1ª instância. A presente acção foi instaurada em 16.3.2020, contra C invocando-se como fundamento, ao abrigo do art. 1083, nº 2, al. d), do C.C., que o R. deixou de habitar no locado por mais de um ano, com caráter definitivo, e que a filha que ali permaneceu não tem direito a usar o locado pois não vivem em economia comum. “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.” (nº 1 do art. 59 do respetivo Diploma). A regra é, por isso, a de que o NRAU se aplica imediatamente às relações contratuais mesmo constituídas antes da nova lei, ressalvado o regime transitório previsto. Com efeito, e independentemente da data da celebração do contrato de arrendamento em questão (ver arts. 26, 27 e 28 do NRAU), as normas que dispõem diretamente sobre o conteúdo da relação de arrendamento abrangem as relações já constituídas e são de aplicação imediata, ressalvadas as exceções contidas nos números 2 a 5 do referido art. 26. As disposições do NRAU acompanham, assim, o disposto no art. 12 do C.C. quanto à aplicação das leis no tempo. A lei que dispõe sobre conteúdo da relação jurídica é a lei nova, mas a que rege sobre os efeitos de um facto é a que vigorar no momento em que tal facto ocorreu. Relativamente às causas de resolução do contrato de arrendamento, a lei aplicável será por isso a vigente ao tempo em que ocorreram os factos integrantes ou fundamentadores do direito de resolução do contrato. A invocada falta de uso do locado pelo R. é situada pelos AA. pelo menos um ano antes da instauração da causa, em 16.3.2020. Trata-se de fundamento que, conforme alegado, subsiste e produz o efeito pretendido no domínio do NRAU. Dispõe o art. 1083 do C.C. que: “1 - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte. 2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio: (…) d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º” Por sua vez, o nº 1 do art. 1072 do C.C. estabelece que “O arrendatário deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano”, prevendo o nº 2 que o não uso pelo arrendatário será, todavia, lícito: “ a) Em caso de força maior ou de doença; b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto; c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano. d) Se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60 /prct., incluindo a familiares.” O art. 1083 do C.C. na redação introduzida pelo NRAU veio estabelecer, assim, a regra geral de que dá causa à resolução do contrato de arrendamento o incumprimento de uma das partes, inquilino ou senhorio, que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, fazendo apenas referências exemplificativas a causas de resolução, pelo senhorio nas alíneas a) a e) do nº 2, e pelo arrendatário no nº 5 do mesmo preceito. Discorrendo sobre as primeiras, o preceito contém, afinal, na sua formulação genérica, todas as causas de resolução pelo senhorio a que antes aludia o art. 1093 do mesmo C.C. e depois o art. 64 do RAU, mas alargou claramente o leque de motivos, deixando de existir um elenco taxativo de causas de resolução. Ainda assim, veio acrescentar a necessidade de verificação de uma “justa causa”, sendo a gravidade ou consequênciasdo incumprimento do contrato definidas em função das circunstâncias do caso e de acordo com critérios objetivos([5]). Seguimos o entendimento de que o preenchimento da previsão de qualquer das alíneas a) a e) do nº 2 do artigo 1083 do C.C. não determinará automaticamente a resolução do contrato de arrendamento, importando, também nesses casos, apurar se o incumprimento reveste gravidade ou implica consequências que tornem inexigível à outra parte, o senhorio, a manutenção do arrendamento([6]). Discordamos, por isso, da posição em contrário defendida, designadamente, por Pinto Furtado no sentido de que, verificada a previsão de uma destas alíneas, “nenhum juízo de valor se tem de lhe acrescentar para se constituir ou afastar o direito à resolução por parte do senhorio”([7]). Não obstante a argumentação daquele ilustre autor nesta matéria, temos dificuldade em compreender que o legislador tenha pretendido afastar nas situações indicadas a título exemplificativo no nº 2 do artigo 1083 a especial ponderação sobre a gravidade ou consequências do incumprimento do arrendatário, ao arrepio da nova lógica adotada quanto aos fundamentos de resolução. Ou, como se disse no Ac. desta RL de 15.10.2009 (citado em rodapé, e que sustenta o entendimento que seguimos), a posição de Pinto Furtado “rigidifica um sistema que se quis fazer repousar na maleabilidade própria de conceitos indeterminados, seguindo uma lógica oposta à da anterior legislação, que, seguindo a taxatividade das condutas, deixava ao julgador pouca margem de apreciação das circunstâncias do caso concreto, lógica aquela que, com todo o respeito, quase vem introduzir um acento «vinculístico» de sentido oposto, agora de «favor do senhorio».(…).” Por conseguinte, para justificar a resolução do contrato pelo senhorio, deve ocorrer um comportamento ilícito do arrendatário resultante da violação, por ação ou omissão, de deveres legais ou contratuais, sendo que a atuação do arrendatário deverá ser-lhe censurável, a título de dolo ou negligência, presumindo-se a culpa, nos termos do artigo 799 do C.C.([8]). Por seu turno, e salvo no caso de mora quanto ao pagamento de rendas previsto nos nºs 3 e 4 do art. 1083 do C.C., cumprirá avaliar, em cada caso, da gravidade do incumprimento verificado e da inexigibilidade, de acordo com o princípio geral da boa-fé (art. 762, nº 2, do C.C.), de manutenção do contrato face a esse incumprimento. Revertendo para o caso em análise, temos como apurado que, celebrado o contrato de arrendamento dos autos em 20.3.1964, para habitação, passaram a residir no locado C, a sua mulher Arminda ....., falecida a 14.5.2009, e a filha de ambos, D , nascida a 30.8.1953. Mais se apurou que o R. arrendatário, C , nascido em 28.11.1928, foi admitido em 20.9.2011 (então com 82 anos de idade), na Unidade D. António Francisco, do Centro Interparoquial de Santarém, no regime de frequência Internamento em Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERSI), situado na Rua ..., em Santarém, tendo ali ficado a viver ininterruptamente até ao seu óbito a 2.10.2020, já na pendência da causa. Tal admissão ocorreu num contexto de doença do mesmo C e de falta de autonomia do próprio para a locomoção (o prédio dos autos não tem elevador) e para exercer autonomamente as atividades básicas da vida diária, como a alimentação, vestuário ou a higiene. Além disso, este tinha uma relação conflituosa com a filha. Provou-se ainda que, desde então, C nunca mais regressou ao locado, e a sua filha D passou a viver ali sozinha. Apurou-se ainda que o referido C tem residência fiscal na Avenida ..., Santarém, desde 20.6.2014, sendo essa também a morada do mesmo na Segurança Social desde 27.4.2016. Finalmente, demonstrado ficou ainda que, em 7.11.2019, quando o cabeça-de-casal da herança deixada pela proprietária da fração dos autos se deslocou à mesma, encontrou D , que ali continuava a habitar, e que lhe disse que C se encontrava a viver num Lar e que não voltaria a viver no locado. Já em 10.2.2020, o referido C, visitado pelo A. na ERSI em Santarém, subscreveu documento elaborado por este do qual constava, designadamente, a menção: “(…) vivo permanentemente num lar, não habito o imóvel há mais de um ano e não voltarei a usar o locado.” Decorre, assim, incontornavelmente, da factualidade descrita que, à data da propositura da presente ação([9]), em 16.3.2020, o arrendatário C deixara de usar o locado por mais de um ano de forma definitiva, tendo ingressado em ERSI em Setembro de 2011, com 82 anos de idade, em virtude de não ter autonomia para a locomoção (o prédio dos autos não tem elevador) e para exercer autonomamente as atividades básicas da vida diária, como a alimentação, o vestuário ou a higiene. Assim, aquele não mais regressou à fração dos autos, acabando por falecer, em Santarém, em 2.10.2020. Nenhuma prova se fez de que o ingresso do R. C em ERSI tivesse caráter temporário e que houvesse qualquer intenção de regresso, sendo certo que a relação conflituosa com a filha e o avançar da idade (com o agravamento natural da debilidade associada) reforçam a improbabilidade desse regresso ou mesmo essa impossibilidade prática. Assim, se é seguro o não uso do locado pelo arrendatário por mais de um ano, seguro será também que não se verifica a previsão da al. a) do nº 2 do art. 1072 do C.C., como defende a apelante, já que a situação de doença a que se refere o normativo deve ser sempre transitória e compatível com o regresso ao arrendado. Anote-se, por sua vez e de passagem, que o ingresso do locatário em ERSI nas condições referidas não integra, a nosso ver, o conceito de força maior. Este respeitará antes a factos exteriores ao arrendatário normalmente imprevisíveis ou mesmo imprevistos([10]), o que não constitui certamente a situação em análise respeitante à condição de saúde do mesmo arrendatário que justificou a saída do locado. Mas mesmo entendendo que o conceito tem subjacente apenas uma ideia de inevitabilidade([11]), temos que o envelhecimento, mesmo com restrições de saúde mais ou menos graves associadas, não implica, forçosamente e no geral, o internamento em instituição. Já no que se refere à doença que torna lícito o não uso do locado, tem-se entendido que a mesma deve ser temporária e regressiva, com perspetiva de retorno ao locado([12]). Como se refere no Ac. da RE de 28.5.2015([13]): “(…) Sintetizando o acquis jurisprudencial que existe nesta matéria, afirmava ANTÓNIO PAIS DE SOUSA que «a doença só será relevante se o arrendatário, em consequência da mesma, ficar temporariamente impedido de residir no local arrendado» (Extinção do Arrendamento Urbano, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1985, p. 292). Como já se declarava em aresto relatado pelo também aqui relator (cfr. Ac. RE de 21/2/2008, Proc. 3132/07, in www.dgsi.pt), é de atender aqui ao «princípio – válido para qualquer caso de força maior (doença ou outro) – de que o estado de desabitação do locado só não será fundamento de despejo desde que o (arrendatário prove que o) facto impeditivo da ocupação não é definitivo». Mais recentemente, sustenta MENEZES CORDEIRO que «a doença (…) relevante para justificar o não-uso do arrendado (…) deve tratar-se de doença que impeça a habitação no local, mas que permita um futuro regresso» – ou seja, tem de ser regressiva e não-crónica –, após o que identifica algumas situações, assim tratadas na jurisprudência, de não justificação da doença: «que leve ao internamento num lar de repouso (…) sem haver perspectivas de regresso do locatário, que não surja transitória e tratável, com possibilidade de cura ou, sendo crónica, de recuperação, que implique um internamento num lar, para assistência e tratamento diários ou que seja irreversível» (in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, Coimbra, 2014, p. 172). E acrescenta o autor, sobre os casos de idosos internados em lares: «Em abstracto, o idoso internado num lar pode regressar a casa desde que se criem condições para, aí, ser assistido e acompanhado. Nesse sentido, a situação é reversível. No concreto, há que optar pela desocupação quando fique claro que o arrendamento não mais serve os interessados (…)» (ob cit., pp. 172-173).(…).” Do mesmo modo se entendeu no Ac. da RL de 28.3.2019([14]): “(…) a doença que torna lícita a não utilização do locado para o fim a que se destina, não é toda e qualquer doença, sem discriminação, mas sim a doença que é, por maior ou menor tempo que dure, regressiva. Ora, não tendo o inquilino, e neste caso a Ré, por doença – aliás conjugada com a idade – qualquer possibilidade de voltar a habitar o locado, nenhum sentido faz considerar que o senhorio não pode resolver o arrendamento.(…).” Ora, comprovando-se que o arrendatário C deixou de viver no locado em 2011, ingressando em ERSI face à sua condição de saúde, e nunca mais regressou ao locado não se perspetivando, de forma objetiva, que ali regressasse, é de concluir que essa circunstância não integra a previsão da al. a) do nº 2 do art. 1072 do C.C.. Vejamos, então, se o não uso da fração é lícito, como invoca a apelante, em virtude da utilização ser mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano (al. d) do nº 2 do art. 1072). Dispõe o art. 1093 do C.C., que: “1 - Nos arrendamentos para habitação podem residir no prédio, além do arrendatário: a) Todos os que vivam com ele em economia comum; b) Um máximo de três hóspedes, salvo cláusula em contrário. 2 - Consideram-se sempre como vivendo com o arrendatário em economia comum a pessoa que com ele viva em união de facto, os seus parentes ou afins na linha recta ou até ao 3.º grau da linha colateral, ainda que paguem alguma retribuição, e bem assim as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos. 3 – (...).” Cumpre fazer uma interpretação integrada deste normativo com a al. c) do nº 2 do art. 1072, segundo a qual, o não uso do locado pelo arrendatário será lícito se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano. Nenhuma dúvida parece haver quanto à possibilidade de, depois do locatário ter deixado de usar o locado, permanecerem no mesmo os que com ele convivessem em economia comum pelo menos há mais de um ano, neles se incluindo os filhos, sendo que, por força do nº 2 do art. 1093 do C.C., estando a viver no imóvel locado o arrendatário e parentes em linha reta, se presume que vivem em economia comum([15]). Sucede, porém, que tal presunção deixa de existir quando o locatário deixe de usar o locado, pois terminada a convivência de facto não haverá razão para presumir essa economia comum. Nesse caso, terá ainda de ficar demonstrado que a família não se desintegrou e que se mantém um vínculo de dependência económica entre o arrendatário e os que, ao abrigo do nº 2 do art. 1093, ali permaneceram, pressupondo-se, justamente, que será sempre transitória a ausência do arrendatário([16]). Tratando-se de facto impeditivo do direito do senhorio, é ao arrendatário que incumbirá a respetiva prova (art. 342, nº 2, do C.C.), sem prejuízo da presunção que decorre do nº 2 do art. 1093 do C.C. quanto à situação verificada aquando da saída do locatário. “(…) Necessário se torna, ainda, a existência de um elo ou vínculo de dependência económica entre o arrendatário e eles ou a casa. Havendo desintegração do agregado familiar não existe causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento, mesmo que na casa fiquem familiares constituindo um novo agregado familiar, pois o agregado familiar contemplado nesta alínea é o do arrendatário e não o constituído por familiares que dele se desagregaram. Dir-se-á, por último, que a ausência do arrendatário tem de ser sempre temporária, mantendo-se somente em suspenso o regresso ao lar. É ao arrendatário que, em acção de despejo, por falta de residência permanente, cabe o ónus de alegar e provar que no arrendado permanecem familiares, a existência de um vínculo de dependência económica e a intenção de regressar, para que possa funcionar a causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento. O senhorio apenas tem de alegar e provar a falta de residência permanente.”([17]) Como se bem discorreu no Ac. da RL de 12.7.2012([18]): “(…) integra, como facto impeditivo, a excepção a que se refere a al d) do nº 2 do art 1083º CC, a alegação de que, com a pessoa que permanece no arrendado, depois que o arrendatário deixou de o utilizar por mais de um ano, perdura a economia comum em termos de justificar o regresso muito plausível do arrendatário ao locado. Quer dizer, constitui facto essencial à procedência da excepção a que se reporta aquela al d) do nº 2 do art 1083º, a alegação de que não foi desfeita a economia comum. E, por isso, cabe ao arrendatário demandado pelo senhorio em acção para resolução do contrato de arrendamento em função do não uso do locado por mais de um ano, alegar e provar que permanece nele pessoa em relação à qual, tendo residido com ele, arrendatário, no locado, por mais de um ano, em economia comum, perduram os laços de dependência económica. O que significa que – para além do alargamento referente às pessoas que podem permanecer no locado, e que agora, como acima se reflectiu, se não configuram apenas como “familiares do arrendatário” – nada se alterou, no mais, de relevante, no que respeita à causa de resolução do arrendamento em apreço. Obsta, como então, à justa causa de resolução, a situação em que permaneçam no arrendado pessoas que tivessem vivido com o arrendatário no locado em economia comum por mais de um ano, desde que o arrendatário alegue e prove «a existência de um elo ou vínculo de dependência económica entre o arrendatário e eles ou a casa», nas palavras de Aragão Seia [4] – anotação ao art 64º 309 - mantendo-se pois, no essencial, a ampla jurisprudência que a este respeito se firmou no passado no âmbito da al c) do nº 2 do art 64º do RAU. Essencial é que – inclusivamente, como denominador comum às três situações hoje previstas no nº 2 do art 1072º, para além da que está em apreço - caso de força maior ou de doença a que se reporta a al a), e ausência por não mais de dois anos, a que se reporta a al b) desse preceito – que a ausência, em sentido lato, do arrendatário se configure como temporária, sendo sua intenção séria a de regressar ao locado(…).” Ora, atentos os factos provados, não se questiona que a filha do arrendatário C, a agora Ré habilitada, D, viveria, há mais de um ano, em economia comum com o pai no locado, beneficiando da presunção prevista no nº 2 do art. 1093 do C.C., quando, em 20.9.2011, aquele ingressou na ERSI em Santarém, e esta permaneceu na fração. Porém, não resultou apurado que os mesmos tenham mantido entre si, após essa data, um vínculo de dependência económica e a intenção do referido arrendatário em regressar ao locado, condições indispensáveis para se verificar a previsão da al. c) do nº 2 do art. 1072 do C.C.. Como é evidente, a prova de que D, após ingresso do pai no Lar em Santarém como descrito nos pontos G) e H), continuou a tratar de assuntos respeitantes ao mesmo, com a ajuda de terceiras pessoas, não implica, de per si, qualquer vínculo de dependência económica entre ambos, nem, muito menos, a intenção, séria e objetiva, daquele em regressar ao locado. Trata-se, de resto, da atuação normal dispensada por qualquer filho a um pai idoso, ainda que com ele não viva em economia comum. O que se apurou, como vimos, é que o indicado C deixou habitar o locado em Setembro de 2011, com 82 anos de idade, tendo ingressado em ERSI em virtude de não ter autonomia para a locomoção e para exercer autonomamente as atividades básicas da vida diária, como a alimentação, o vestuário ou a higiene, e não mais regressou à fração dos autos, acabando por falecer, na referida instituição em Santarém, em 2.10.2020. Nenhuma prova se fez de que a ausência do indicado C tivesse caráter temporário e que houvesse qualquer intenção de retorno ao locado, bem como não se apurou que pai e filha tenham mantido qualquer vínculo de dependência económica, matéria que à defesa caberia provar, como vimos. Assim, o não uso do locado pelo arrendatário porque irreversível e prolongado no tempo, constitui incumprimento do contratado, cuja gravidade e consequências tornam inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento à luz da primeira parte da al. d) do nº 2 do art. 1083 do C.C.. Com efeito, não se mostrará razoável ao senhorio aceitar que o inquilino que deixou de viver definitivamente no locado, ainda que por razões de saúde, possa manter tal situação, no limite até ao seu falecimento, beneficiando a maioria das vezes – como será aqui o caso – de um valor de renda reduzido que só por isso continua a comportar apesar da ausência. Tal circunstância, como é evidente, impede o senhorio de dispor do bem, como seja colocando o mesmo de novo no mercado de arrendamento com um valor de renda atualizado, e constrange-o, de forma injusta, a receber uma contrapartida diminuta de quem efetivamente não usa nem tenciona usar o arrendado. Torna-se, assim, na concreta situação em análise, inexigível para os AA. a manutenção do contrato de arrendamento, tanto mais que não pode ter-se como lícita a conduta do locatário dado que não se apurou, como vimos, nenhuma das circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 1072 do C.C.. É, pois, de manter a decisão recorrida que decretou a resolução do contrato. D) Da pretensão da Ré habilitada em ver reconhecido que o arrendamento se lhe transmitiu: Diz a apelante no recurso que utiliza o locado ininterruptamente até ao presente, que à data do óbito do primitivo R. já tinha mais de 65 anos de idade e que o seu rendimento é inferior a 5 RMNA, pelo que não caducou o direito ao arrendamento, nos termos do art. 57, nº 1, al. f) do NRAU. Conclui, por isso, que a ação deve ser julgada totalmente improcedente, reconhecendo-se à recorrente que o arrendamento se lhe transmitiu validamente. Como é evidente, estamos perante pretensão sem qualquer fundamento e que não foi, tão pouco, objeto de discussão na causa. De resto, a apelante intervém nos autos apenas como habilitada do R. falecido e em representação deste e não exercendo um direito próprio. Ou seja, D não foi demandada e, tal como se refere na sentença, não é parte na ação, não podendo na mesma formular pretensões em seu nome. Acresce que, ainda que fosse lícito ao primitivo R. fazê-lo em nome da filha em caso de óbito seu, certo é que tal concreta pretensão não foi efetivamente deduzida e, por isso, não foi apreciada nos autos. Estamos, assim, perante matéria nova de que o tribunal “ad quem” não pode conhecer, pois este não pode apreciar questões que não tenham sido invocadas no tribunal recorrido, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. De resto, e sem prejuízo destas últimas, os recursos visam apenas modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas e não apreciar matéria nova sobre a qual o tribunal recorrido não teve ensejo de se pronunciar. Tal constitui, além do mais, importante limitação do objeto do recurso que tem por fim “obviar a que numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas”, sendo ainda certo que tal apreciação sempre equivaleria a suprimir um ou mais graus de jurisdição([19]). Acresce que, declarada a resolução do contrato nos termos acima indicados – naturalmente reportada à data da propositura da ação (isto é, a 16.3.2020) – é essa a causa de cessação do contrato e não a caducidade por morte do primitivo arrendatário (cfr. art. 1079 do C.C.). Ou seja, não foi o óbito do indicado C, em 2.10.2020, que pôs termo ao contrato sub judice. Por conseguinte, não poderá sequer falar-se, no caso, em caducidade do arrendamento nem, muito menos, convocar-se a aplicação do art. 57 do NRAU. Donde, improcede forçosamente o recurso neste tocante. E) Da violação, pela decisão recorrida, dos princípios constitucionais: Finalmente, diz a apelante que a decisão recorrida é discriminatória e atentatória da dignidade da pessoa humana, do direito a uma habitação condigna, do direito dos idosos e do direito à proteção familiar, tendo sido violados os arts. 1, 27, nº 1, 26, nº 1 e 63, nºs 1 e 3, 65, n° 1, 67, n°1, e 72, n° 1, todos da C.R.P.. Não lhe assiste razão, uma vez mais. Com efeito, os direitos constitucionais mencionados não justificam que os arrendatários possam desrespeitar a legislação aplicável aos contratos respetivos nem lhes permite fazer dos espaços locados uma utilização irrestrita. De resto, o direito à habitação admite limitações no confronto com o direito de propriedade privada e de livre iniciativa económica, também expressamente previstos nos arts. 61 e 62 da C.R.P.. Como se refere no Ac. da RL de 25.6.2013([20]), o direito à habitação “(…) não implica que os arrendatários possam utilizar ou não as casas sem quaisquer limitações, como se fossem suas, caso contrário estar-se-ia a proteger um direito de não habitar a casa, o que, seguramente, não integra, como se diz no Acórdão nº32/97, do Tribunal Constitucional, o «núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito a habitar, não o de não habitar». Acresce que, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreia, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., pág.837, «Os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios».(…).” Como igualmente se observou no Ac. da RC de 17.1.2017([21]), e resulta dos nºs 2, 3 e 4 do art. 65 da C.R.P., é ao Estado, e não aos particulares, que cabe assegurar o direito à habitação, pelo que a interpretação feita dos normativos acima indicados não viola o referido perceito constitucional. Do mesmo modo, é ao Estado, e não aos senhorios, que cabe assegurar a segurança económica, a proteção da família e as condições de habitação das pessoas idosas, cabendo-lhe implementar medidas adequadas para o efeito, pelo que não se mostram, por esta via, violados os arts. 63, 67 e 72 da C.R.P.. Em suma, não se vislumbra que a decisão proferida, que aqui se confirma, viole qualquer normativo constante daquela Lei Fundamental, nos moldes defendidos pela apelante. Improcede, também aqui, a argumentação recursiva da apelante. * IV- Decisão: Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, por consequência, a sentença recorrida. Custas pela apelante. Notifique. * Lisboa, 26.4.2022 Maria da Conceição Saavedra Cristina Coelho Edgar Taborda Lopes _______________________________________________________ [1] “Sobre o Novo Código de Processo Civil (uma visão de fora)”, disponível em http://www.oa.pt/upl/%7Ba3edae75-10cb-46bc-a975-aa5effbc446d%7D.pdf. [2] “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, 2013, págs. 81/82. [3] Cfr. João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira, ob. cit., págs. 81 a 86. [4] Ver António Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, 2020, 6ª ed., págs.196/197. [5] Cfr. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, “Arrendamento Urbano- Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2ª ed., pág. 292. [6] Neste sentido, ver Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, ob. cit., pág. 292, e ainda, entre outros, o A. do STJ de 13.2.2014, Proc. 43/09.9TCFUN.L1.S1, o Ac. da RL de 12.12.2013, Proc. 860/11.0TJLSB.L1-2, o Ac. da RL de 1.3.2012, Proc. 18056/09.9T2SNT.L1-6, o Ac. da RL de 15.10.2009, Proc. 613/08.2TBALM.L1-2, o Ac. da RL de 9.12.2008, Proc. 8726/2008-6, o Ac. da RP de 12.11.2009, Proc. 234/07.7TVPRT.P1, o Ac. da RC de 26.2.2013, Proc. 327/11.6TBTMR.C1, o Ac. da RC de 4.6.2013, Proc. 2603/10.6TBCBR.C1, e o Ac. da RG de 11.11.2010, Proc. 1140/08.3TBPTL.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [7] “Manual do Arrendamento Urbano”, Vol. II, 5ª ed., págs. 1037 a 1041. [8] Cfr. o Ac. da RL de 12.12.2013, Proc. 860/11.0TJLSB.L1-2, acima citado em rodapé. [9] Sem prejuízo do disposto no art. 611 do C.P.C. quanto à atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, é quando a ação é proposta que devem ter-se por verificados os factos que integram a causa de pedir (art. 552 do C.P.C.). [10] Cfr. Aragão Seia, “Arrendamento Urbano-Anotado e Comentado”, 1995, pág. 304. [11] Sobre a distinção entre força maior e caso fortuito, ver o Ac. do STJ de 27.9.1994, Proc. 084991, em www.dgsi.pt. [12] Ainda Aragão Seia, ob. cit., págs. 305/306. [13] Proc. 533/11.3TBPTG.E1, em www.dgsi.pt. [14] Proc. 483/18.2T8CSC.L1-6, em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, e no mesmo sítio, ver ainda, entre outros, o Ac. da RL de 30.4.2015, Proc. 20231/10.4T2SNT.L1-8, o Ac. da RP de 22.11.2021, Proc. 1787/20.0T8PRT.P1, o Ac. da RP de 24.11.2015, Proc. 1805/13.8TJPRT.P1, e o Ac. da RP de 15.10.2013, Proc. 1317/09.4TBVNG.P1. [15] O regime é, de algum modo, e no que aqui interessa, semelhante ao previsto no art. 64, nº 2, al. c), do RAU, que excluía a aplicação da al. i) do nº 1 “Se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste ultimo caso, com ele convivessem há mais de um ano”. Por sua vez, o art. 76 do referido RAU corresponderá ao atual art. 1093 do C.C.. [16] Cfr. sobre a questão, a propósito do correspondente art. 64, nº 2, c), do RAU, Aragão Seia, ob. cit, págs. 308 a 310, e António Pais de Sousa, “Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.)”, 2001, págs. 221 e 222. [17] Aragão Seia, ob. cit., págs. 309/310. [18] Proc. 326/11.8TJLSB.L1-2, em www.dgsi.pt. [19] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 139 a 141. [20] Proc. 4959/10.1TCLRS.L1-7, em www.dgsi.pt. [21] Proc. 59/14.3TBSCD-F.C1, em www.dgsi.pt. |