Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11578/21.5T8LSB.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1.- Em face do disposto no art.º 9º, nº 7, do RAU [sob a epígrafe de “Licença de utilização”], pacífico é que “O arrendamento não habitacional de locais licenciados apenas para habitação é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização”;
2. - A nulidade do contrato de arrendamento indicada em 8.1. está especificamente prevista para os casos em que exista uma divergência entre a finalidade do contrato e aquela que se encontre definida pelo licenciamento;
3. – Provado que a fracção objecto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação”, tal não permite concluir que perante a Licença de utilização” a fracção apenas pode ser utilizada [e consequentemente arrendada] para habitação.
4. - O instituto do ABUSO DO DIREITO com vista ao bloqueamento da invocação das nulidades formais mostra-se precisamente pertinente e aplicável “nos casos em que estão em causa contratos de arrendamento, tendo a - quanto à ininvocabilidade das nulidades formais - jurisprudência vindo a orientar-se no “sentido de que não é de admitir que uma pessoa possa invocar e opor um vício por ela (con)causado culposamente, vício em relação ao qual a outra parte confiou que não seria invocado, nesta convicção orientando a sua vida”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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1. Relatório.                           
A […. Agro e Comércio, Lda]., intentou acção declarativa de condenação com processo comum, contra B, pedindo que, uma vez julgada a acção procedente e provada, seja:
a) Declarado nulo o contrato de arrendamento celebrado em 03/03/2006; ou, quando assim se não entenda;
b) Decretada a resolução do contrato de arrendamento;
c) O Réu condenado a restituir o locado devoluto.
1.1. - Para tanto, alegou a autora, em síntese, que:
- Sendo a Autora proprietária da fracção autónoma designada pela letra “N”, correspondente ao 6º andar esquerdo, do prédio urbano sito na Rua …, da freguesia de São Mamede, concelho de Lisboa, a verdade é que por contrato escrito celebrado em 3 de Março de 2006, a anterior proprietária, E..., deu de arrendamento ao ora R. a referida fracção;
- No âmbito do referido contrato de arrendamento, ficou estipulado que “O Locatário poderá fazer qualquer uso do local arrendado, ficando autorizado pela Locadora a subarrendá-lo, ou, por qualquer outra forma, ceder a terceiro o respectivo gozo, total ou parcialmente, ficando o Locatário dispensado de proceder à repectiva comunicação prévia”, e bem assim, que contrato tem a duração de 30 anos, com início em 03/03/2006, tendo a renda estipulada para os primeiros doze meses o valor global de €1.800,00 (mil oitocentos euros), a que corresponde a renda mensal de €150,00 (cento e cinquenta euros), sujeita às actualizações legais anuais;
- Sucede que, estando à data a fracção objecto do arrendamento apenas licenciada para a habitação, não podia a mesma ter sido arrendada “para qualquer uso “, como o foi tendo de resto sido o local arrendado sempre utilizado pelo ora R. para fins não habitacionais;
- Perante o referido, é o arrendamento NULO [cfr. art.º 9.º, n.º s 1 e 7, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Dec-Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro] e, ademais, verificar-se-ia sempre fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, ao abrigo do art.º 1.083.º, n.º 2, al. c) do Código Civil, e isto porque o locado sempre tem sido utilizado para fins não habitacionais.
1.1.- Após citação do réu B, veio o mesmo contestar a acção, deduzindo no essencial impugnação motivada, explicando que o locado tem sido utilizado quer pelo Réu, quer por pessoas que trabalham ou prestam serviços ao Réu e/ou sociedades suas, para fins habitacionais, nomeadamente por colaboradores estrangeiros, sem residência em Portugal, aquando das suas deslocações a este país, reconhecendo apenas ser também verdade que tem sido utilizado como escritório, embora fechado ao público.
Acresce que, alega o réu, a verdade é que a própria Autora sempre utilizou o locado como o seu próprio escritório, durante cerca de 10 anos! e, de qualquer forma, o uso que faz o réu do locado foi sempre o que foi feito desde o início, o que tudo foi sempre do conhecimento da autora e pela mesma consentido, logo, a alegação que faz agora configura um manifesto abuso de direito e uma litigância de má fé.
1.2.- Após resposta da autora, foi designada uma audiência prévia [iniciada a 10/11/2022 e concluída a 16/11/2022] e, não tendo sido possível a conciliação das partes, foi proferido despacho saneador [tabelar], fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
1.3.- Finalmente, realizada a AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO [iniciada em 18/4/2023 e concluída a 31/10/2023], e, conclusos os autos para o efeito, foi proferida SENTENÇA, constando do respectivo comando/segmento decisório o seguinte:
“Decisão
Destarte, o Tribunal decide julgar a presente acção improcedente, por não provada e consequentemente absolver o réu do pedido.
Decide condenar a A, como litigante de má fé, na multa correspondente a 5UC’s.
Custas pela A
Registe.
Notifique.
Lisboa, 17.02.2024”
1.4.- Inconformada com a SENTENÇA identificada 1.3., da mesma apelou então a autora A, apresentando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
I. Na licença camarária refere-se “licença para habitação e ocupação”, mas, a Caderneta Predial Urbana (doc. 2 da p.i.) é inequívoca ao determinar como: “Afectação” exclusivamente “habitação”.
II. Assim, a al. g) dos Facto Provados deve ser alterada, passando a ter a seguinte redação:
g) A fração objeto do arrendamento só estava licenciada para habitação.
III. Como resulta inequivocamente das transcrições, nenhuma testemunha afirmou que a A., A ou a sociedade associada R…, Lda, utilizaram o locado dos autos como seu próprio escritório.
IV. Antes, pelo contrário, o gerente da A., J..., no seu depoimento, foi perentório ao responder dizendo que nem as chaves tinha.
V. E, a testemunha AM, contabilista da A. e R…, Lda há mais de 40 anos, confirmou este depoimento, quer quanto à A, quer quanto à R….., como resulta do seu depoimento transcrito.
VI. O mesmo se diga da sociedade Predial ….., Lda, da qual o gerente da A., J..., nunca foi gerente, mas unicamente sócio, até fevereiro de 2017, a qual também nunca teve sede no andar dos autos, como se pode verificar da certidão - doc. 12, junta com a apresentação refª. 29610398.
VII. Acresce que, conforme se pode ver do doc. 15, junto com a mesma apresentação, as reuniões da assembleia geral da A não se realizaram no andar dos autos, mas na Rua …, em Lisboa.
VIII. O que, de facto, aconteceu foi que o filho do Gerente da A., ora R., conforme consta do Factos provados l) e m), representou a sociedade A., na grande maioria da sua atividade, tendo muitas das respetivas reuniões sido realizadas no locado, nomeadamente, contactos e reuniões com os arrendatários, mediadoras imobiliárias, potenciais compradores de imóveis, potenciais vendedores de imóveis, advogados, bancários, etc., embora o gerente da A. fosse desde sempre o seu pai, J….
IX. O facto de a sociedade A. ter a sua sede estatutária numa fração de garagem, não implica que exerça a sua atividade na fração dos autos, conforme esclareceu o gerente da A.
X. De igual modo, as testemunhas que exerceram a administração do condomínio, conforme transcrições, nunca reuniram ou utilizaram o andar dos autos e as reuniões da assembleia geral da sociedade A. não se realizavam nesse andar, como se pode ver do doc. 15, junto com a apresentação refª. 29610398.
XI. As als. k) e o) dos factos julgados provados devem ser eliminadas, por esses factos não se poderem considerar provados e não corresponderem à verdade.
XII. A al. n) dos factos provados, da forma como está redigida, parece respeitar à A., o que não corresponde à verdade, pelo que deve ser alterada, passando a ter a seguinte redação, que corresponde aos factos provados:
n) A Atividade do R., que era gerida e desenvolvida no locado dos autos, o qual usava o mesmo como escritório, desde 2006 até ao ano de 2016.
XIII. O regime em vigor quanto ao contrato de arrendamento em causa era o constante das citadas disposições do RAU. De qualquer forma, aplicar-se-ia sempre a lei em vigor à data da celebração do contrato, quanto à validade substancial ou formal ou sobre os seus efeitos, como decorre do art.º 12.º, n.º 2/C.Civil.
XIV. Nos termos do art.º 9.º, n.º 1 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro: “Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato.”
E, o n.º 7.º do mesmo preceito legal determina que: “O arrendamento não habitacional de locais licenciados apenas para habitação é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito de arrendatário à indemnização”.
XV. A finalidade das citadas disposições do RAU é proteger o direito à habitação, que, nesta altura, é uma preocupação fundamental da sociedade portuguesa, dada a escassez de frações habitacionais no mercado, como é do conhecimento geral, pelo que a aplicação da lei deverá ter em atenção “as condições específicas do tempo em que é aplicada”, conforme prescreve o citado artigo 9.º do Código Civil.
XVI. Deve julgar-se provado que A fração objeto do arrendamento só estava licenciada para habitação.
XVII. Assim, não faz qualquer sentido a asserção da douta sentença de que “não podemos chegar à conclusão de que a licença não permitia que consignasse no contrato um uso “qualquer” e que, também por isso, este estaria ferido de nulidade”.
XVIII. É certo que o art.º 9.º do Código Civil dá uma grande margem ao intérprete na aplicação da lei, mas sempre dentro dos limites da racionalidade e nunca contra legem e nem o R. teve a ousadia de ir tão longe nesta ínvia interpretação da lei.
XIX. A dar-se acolhimento à interpretação enviesada da douta sentença recorrida desvirtuar-se-ia a letra e o espírito da lei, permitido desviar para fins comerciais frações que estavam licenciadas para habitação, bastando estipular nos contratos de arrendamento que o inquilino possa “fazer qualquer uso do local”.
XX. Acresce que o direito à habitação está consagrado no art.º 65.º da Constituição, pelo que a interpretação dada pela sentença recorrida às citadas disposições legais é inconstitucional por violação do preceito constitucional.
XXI. Por conseguinte, o arrendamento é nulo por força das citadas disposições legais.
XXII. Acresce que as citadas disposições legais destinam-se a salvaguardar a afetação à habitação das frações em causa, em consonância com o direito à habitação consignado no art.º 6.º da Constituição, pelo que são normas de interesse e ordem públicas.
XXIII. Assim, o contrato de arrendamento da fração dos autos é ainda nulo, nos termos do art.º 280.º/C. Civil, não só por violar disposições imperativas da lei, mas também, por o negócio ser contrário à ordem pública.
XXIV. Por outro lado, as citadas disposições - art.º 9.º, n.ºs 1 e 7 do RAU e art.º 5.º, n.ºs 1 e 8 do Dec.-Lei nº 160/2006 - têm uma finalidade de interesse e ordem pública, para proteção do direito à habitação, como se deixou demonstrado.
XXV. Pelo que não só o locador tem legitimidade - mesmo obrigação - de acionar essa nulidade, como a mesma pode/deve ser “declarada oficiosamente pelo tribunal” nos termos do art.º 286.º do Código Civil.
XXVI. Tendo em atenção a finalidade de interesse e ordem públicas das citadas disposições legais, que impõem a nulidade para fim diverso dos contratos de arrendamento das frações habitacionais, a invocação dessa nulidade pelo locador nunca poderá constituir um exercício ilegítimo de um direito.
XXVII. Ao contrário do que a sentença invoca, a A. nunca utilizou o locado, mas apenas tinha conhecimento de que o R. utilizava o locado no exercício de “indústria doméstica” de mediação imobiliária, a qual é permitia, nos termos do art.º 1.092.º/C. Civil, como se deixou demonstrado.
XXVIII. E, o gerente da A. tinha o dever de defender os interesses da pessoa coletiva sociedade, nomeadamente, os deveres de cuidado e lealdade consignados no art.º 64.º/CSC, sob pena de poder incorrer em responsabilidade civil por ação ou omissão (art.º 72.º/CSC) ou, mesmo, ser destituído (art.º 257.º, n.º 6/CSC).
XXIX. Tanto mais que o contrato de arrendamento celebrado pela anterior proprietária do prédio (doc. 4 da p.i.) estipula uma renda mensal de €150,00 (cento e cinquenta euros), manifestamente desproporcionada para uma fração com 5 divisões, situada numa rua central de Lisboa (doc. 2 da p.i.).
XXX. Ou seja, se o gerente da A. não tivesse intentado a presente ação, poderia ser responsabilizado perante a sociedade e destituído pelo prejuízo causado.
XXXI. Não se verificam, portanto, os fundamentos para a litigância de má fé consignados no art.º 542.º/CPC.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de Vs Exas, Exm.ºs Desembargadores, deverá dar-se provimento ao presente recurso e consequentemente revogar-se a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que declare nulo o contrato de arrendamento celebrado em 03/03/2006 e condenar o R. a restituir o locado devoluto, assim se fazendo JUSTIÇA!
1.6. – O Réu B/apelado, veio contra-alegar, impetrando a confirmação do julgado e a improcedência da apelação da autora, para tanto deduzindo as seguintes conclusões:
I -A Recorrente nas suas alegações demonstra uma posição discordante da douta sentença proferida que julgou a acção improcedente por não provada e consequentemente absolver o Recorrido do pedido de despejo e ainda que decidiu condenar a A, Recorrente como litigante de má fé em multa.
II - A douta sentença proferida não padece de qualquer erro de análise dos factos ou de aplicação do direito que fundamente a crise em que é pretendido colocá-la. Na verdade, estamos perante uma sentença esclarecida e fundamentada cuja a única crítica que pode ser feita é a brandura na aplicação de um valor de multa pela litigância de má fé a que a A foi condenada.
III - A recorrente invoca que o facto identificado pela alínea “g) Acontece que a fração objeto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação” está incorrectamente julgado como provado.
IV - Para tal argumentação a Recorrente socorre-se de dois documentos juntos com a PI: A Licença de Utilização emitida pela autoridade competente – a CML; e a Caderneta Predial do imóvel.
V - De acordo com o primeiro documento, a licença camarária, o prédio encontra-se licenciado para habitação e ocupação. A Recorrente aceita e admite essa informação como certa – inclusivamente suportada por prova documental.
VI - Isto deveria ser suficiente para que a Recorrente compreendesse que depois de ter acesso a este documento tudo o que alega é uma mera intenção de transformar o real em fictício e sustentar no fictício uma pretensão que sabe que não pode ter acolhimento.
VII - A própria RECORRENTE conhece, e transporta para as alegações a que se respondem, que “Nos termos do art.º 9.º, n.º 1 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro: “Só podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato.” (sublinhado nosso).
VIII - Fazer crer que a AT tributária, nomeadamente a Caderneta Predial, pode por em causa a licença de utilização atribuída pela CML é que nos parece uma ínvia interpretação da lei.
IX - Numa palavra, a RECORRENTE pretende que uma Caderneta Predial tenha o poder de aniquilar uma autorização/licença cuja competência de emissão é de outra autoridade administrativa, neste caso uma competência atribuída por lei a uma Câmara Municipal.
X - Para além disso, sobre a Caderneta Predial, cumpre ainda dizer que a mesma depende, e m grande medida, das declarações (a maioria das vezes não verificadas dos proprietários dos prédios). Ora mesmo que apenas existisse uma caderneta predial o a inscrição da sua utilização/afectação seria sempre irrelevante para o caso em concreto.
XI - Mas pior que tudo, ainda sobre a caderneta predial apresentada do imóvel sobre o qual existe um contrato de arrendamento, este documento não pode servir os intentos da A, mas demonstra claramente a sua litigância de má fé em todo o processo. Com dolo grave.
XII - Já depois da interposição do Recurso, é que o Recorrido teve acesso e conhecimento de uma Caderneta Predial daquele prédio (e da fracção correspondente ao 6º andar esquerdo), emitida em 27/02/2008 - que se junta como Doc. 1.
XIII - Nesse documento é claro e notório que a afectação do imóvel sub judice àquela data era comércio. E tal alteração só poderá ter sido solicitada pelo próprio gerente da RECORRENTE. Assim sendo, a alteração promovida depois do contrato de arrendamento jamais poderia ferir aquele contrato de algum vício.
XIV - Primeiro porque a licença de utilização emitida pela CML permitia a utilização do imóvel para outro uso que não exclusivamente de habitação. Em segundo lugar, porque se a Caderneta Predial fosse relevante, à data da assinatura do contrato a afectação inscrita na AT era para comércio.
XV - No entanto, sublinhe-se que é à Licença emitida pela CML que tem que se atentar, muito bem andou o tribunal a dar como provado o facto “g) Acontece que a fração objecto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação.”
XVI - Sobre as alíneas k) n) o), é por demais notório que os factos referidos foram correctamente julgados.
XVII - Para a Mma. Juiz do Tribunal a quo dar aqueles factos como provados em nada resulta que essa prova assentasse em exclusivo naqueles depoimentos. Pelo contrário, o processo inclui inúmeros documentos, que fazem parte da prova e que comprovam que a própria A utilizava a fracção para reuniões, envio e recepção de correspondência, entre outras actividades sociais.
XVIII - Não obstante, as testemunhas dizem o que a RECORRENTE diz que não dizem como por exemplo o Sr. NM, conforme a transcrição da gravação supra citada.
XIX - Foi o próprio representante da RECORRENTE a confessar que utilizava, através do seu filho e por ele próprio, aquele espaço para a actividade da A e também da sociedade R…... Como se confirma pelas gravações acima.
XX - Porém, o Sr. J… falta à verdade ao dizer que apenas foi sócio da Predial …. e pouco ou nada sabia dessa sociedade. E fá-lo tanto nas declarações perante o tribunal como nas próprias alegações que se contrariam.
XXI - De facto, o Sr. J… foi gerente até 2003 e participava activamente na sociedade, nomeadamente nas Assembleias de sócios – o que se pode provar pela actas assinadas.
XXII - Também foi o próprio representante da RECORRENTE que confessou que, embora pontualmente, mas com muita regularidade o R tratava dos assuntos naquele imóvel e recebia correspondência naquela morada em benefício da RECORRENTE.
XXIII - Perante isto, em nada se enganou a Mma. Juiz do tribunal a quo a julgar e a dar como provados os factos identificados pelas alíneas k), o) e n).
DO DIREITO
XXIV - A douta sentença recorrida considerou como provado que: “g) Acontece que a fração objeto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação”. Doutamente!
XXV - As únicas autoridades administrativas que podem emitir licenças de habitação ou utilização são as Câmaras Municipais e foi isso que aconteceu. A CML emitiu uma licença para habitar e ocupar o prédio, ou seja, de habitação e ocupação.
XXVI - E essa prova é feita por documento autêntico, junto aos autos pela própria RECORRENTE, logo, jamais o facto provado poderia dizer que só existia licença para habitação.
XXVII - Conjugada esta pretensão de alterar a interpretação de um documento junto pelo próprio, com a alteração da afectação do imóvel nas finanças (AT) promovida exclusivamente pela proprietária apenas poderemos que a RECORRENTE usa expedientes legais que não poderia ignorar, até porque afirma em vários momentos que é assessorado por uma equipa legal.
XXVIII - Por outro lado, não se verificando qualquer utilização diferente do imóvel daquela a que o mesmo está licenciado não há qualquer irregularidade do contrato, muito menos nulidade.
XXIX - Numa palavra, o arrendamento existente é de um local licenciado para habitação e ocupação e o inquilino o que tem feito ao longo dos vários anos é usar o locado dentro dos termos e normas legais. Tanto as do RAU como do NRAU.
XXX - Admitir que a Licença de Habitação e Ocupação se confunde ou pode ser relegada para segundo plano pelo conceito de afectação do imóvel (constante da Caderneta Predial) seria um erro que o Tribunal a quo não cometeu.
XXXI - E diga-se que à data de 2018 conforme declarações do gerente, como o próprio contabilista da sociedade, admitiram nas suas declarações a afetação das várias fracções eram, na sua maioria para comercio. Na realidade, como consta na caderneta predial à data, 9 das 16 fracções do edifício tinham afectação de comércio!
XXXII - Não existe, por isso, qualquer nulidade do contrato. Pelo contrário. E muito bem andou o tribunal a quo a fazer esse julgamento.
XXXIII - Ficcionando, se por mera hipótese académica a utilização do imóvel fosse contrária à finalidade para que está licenciado, também o contrato não poderia ser considerado nulo.
XXXIV - Como decorre de toda a prova produzida, quando a RECORRENTE adquiriu o imóvel o mesmo já estava arrendado e a Recorrente tinha conhecimento disso, o que aceitou, desde sempre, sem qualquer oposição.
XXXV - Desde a aquisição do prédio, foi a própria RECORRENTE a utilizar aquele imóvel como seu escritório das mais variadas formas. Ora,
XXXVI - A pretensão do despejo com fundamento em que o imóvel não foi exclusivamente utilizado como habitação ao longo dos anos consubstancia um Abuso de Direito.
XXXVII - Que o tribunal a quo julgou existir, correctamente.
XXXVIII - E mais, pelo que se veio a apurar, aquando do arrendamento o referido imóvel, para além da Licença Emitida pela CML, tinha registado nas finanças uma afectação comercial – que só pode ter sido alterada pela própria proprietária que agora invoca a nova afectação para tentar despejar o Recorrido.
XXXIX - A RECORRENTE confessa que sempre conheceu, usou e aceitou o imóvel como escritório das suas empresas e do seu filho, mas apenas por desavenças familiares que levaram ao divórcio do representante da RECORRENTE e consequente litigância familiar trazem a este processo.
XL - Estes factos, entre muitas outras declarações da RECORRENTE tornam-se evidentes, que este é apenas um litígio familiar em que existe vontade da Recorrente castigar o Recorrido.
XLI - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/11/2013, no processo 1464/11.2TBGRD, in dgsi, dispõe claramente: “I - A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art.º 334.º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório. II - São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou. III - O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art.º 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.”
XLII - Não restam dúvidas, como muito bem decidiu o tribunal a quo, que a RECORRENTE agiu num manifesto abuso de direito, violando os bons costumes e a legítima confiança que foi sendo criada por cerca de década e meia (de 2007 até à entrada do actual processo).
XLIII - A alegação de que o referido contrato violasse ou ferisse qualquer interesse de ordem pública nem sequer faz sentido.
XLIV - Também, muito bem andou o tribunal a quo ao condenar a A em litigante de má fé. Apenas pecou por defeito no valor da condenação em multa.
XLV - Pela inexistência de qualquer nulidade, que a RECORRENTE bem conhecia; pela existência de um abuso de direto e pela intenção inequívoca e dolosa de prejudicar o R, com argumentos que não podia desconhecer, andou irrepreensível ao condenar a RECORRENTE como litigante de má fé.
XLVI - E pior, ao conhecerem-se agora novos factos, nomeadamente a afectação para comércio que consta da Certidão Predial de 2008 e que terá sido alterada, a RECORRENTE terá que ser condenada como litigante de má fé, mas em quantia maior e que beneficie o Recorrido.
XLVII - Pelo qual se amplia, nesta matéria, o âmbito do recurso.
XLVIII - Deverá, por isso, a Recorrente ser condenada como litigante de má fé e nos termos do n.º 1 do art.º 542º do CPC ser fixada uma indemnização ao Recorrido, no mínimo de 15UC uma vez que este sofreu, e ainda sofre de despesas com honorários de advogado não só num longo processo.
XLIX - Situação esta que se agrava com um recurso que a Recorrente não pode ignorar que não tem fundamento.
L - O Recorrido está em tempo e tem legitimidade.
Nestes termos e nos melhores de direito, que doutamente serão supridos por V. Exas, deve o presente recurso ser julgado improcedente por não provado e proferido acórdão que confirme a decisão recorrida, aditando uma condenação à Recorrente que será o pagamento de indemnização ao Recorrido em valor não inferior a 15UC´s, fazendo-se assim JUSTIÇA!
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Thema decidenduum
1.7. - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes (cfr. Art.ºs 684º nº 3 e 685º-A, nº 1, do Cód. de Proc. Civil - daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem), sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código, as questões a decidir resumem-se a saber:
A - Se deve permanecer nos autos o documento apresentado pelo apelado juntamente com as contra-alegações;
B - Se importa alterar a decisão sobre a matéria de facto prolatada pelo tribunal a quo e em razão de competente impugnação pela apelante deduzida;
C - Se em resultado das modificações introduzidas na decisão sobre a matéria de facto ou, independentemente de quaisquer alterações, importa alterar o julgado, sendo a acção julgada procedente;
D - Se é caso para conhecer da ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido;
E - Se deve a sentença ser revogada na parte em que condenou a apelante como litigante de má-fé;
***
2. - Motivação de Facto.
Mostra-se fixada pelo tribunal a quo a seguinte factualidade:
A) PROVADA
2.1. (a) - A A. é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a construção, administração e comércio de propriedades rústicas e urbanas, podendo dedicar-se à compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento de bens imobiliários, nomeadamente, edifícios residenciais e não residenciais e de terrenos, alojamento local mobilado não permanente para turistas, agricultura de culturas temporárias, silvicultura e outras actividades florestais e comércio por grosso de outras máquinas e equipamentos. (doc. 1)
2.2. (b) - A A. é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “N”, correspondente ao 6º andar esquerdo, do prédio urbano sito na Rua … freguesia de São Mamede, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob a descrição n.º …, folha 21 verso, do livro B.31 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da mesma freguesia, para o qual foi emitida pela Câmara Municipal de Lisboa a licença de utilização n.º … de 1956.
2.3. (c) - Por contrato escrito celebrado em 3 de março de 2006, a anterior proprietária, E…, deu de arrendamento ao ora R. a fracção descrita no artigo precedente, conforme contrato consta como documento 4 com a petição e se dá por reproduzido integralmente.
2.4. (d) - Nos termos do n.º 1 da cláusula 2ª do referido contrato de arrendamento, ficou estipulado que: “O Locatário poderá fazer qualquer uso do local arrendado, ficando autorizado pela Locadora a subarrendá-lo, ou, por qualquer outra forma, ceder a terceiro o respectivo gozo, total ou parcialmente, ficando o Locatário dispensado de proceder à respectiva comunicação prévia”.
2.5 (e) - O contrato tem a duração de 30 anos, com início em 03/03/2006.
2.6 (f) - A renda estipulada para os primeiros doze meses tem o valor global de €1.800,00 (mil oitocentos euros), a que corresponde a renda mensal de €150,00 (cento e cinquenta euros), sujeita às actualizações legais anuais.
2.7. (g) - Acontece que a fracção objecto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação”.
2.8. (h) - O local arrendado sempre foi utilizado pelo ora R. para fins não habitacionais até recentemente.
2.9. (i) - Nele tendo funcionado e instalado as sedes sociais de empresas a que está ligado, nomeadamente, as seguintes sociedades:
“- ….. - Investimentos Imobiliários, Lda, NIPC …, com sede na Rua …, 6º esqº, Lisboa;
- …… - Irrigation Systems, Lda, NIPC …, com sede na Rua …, 6º esqº, Lisboa;
2.10. (j) - Só mais recentemente foi dada uma utilização habitacional ao locado.
2.11. (k) - A própria A. e outra sociedade associada (do qual o gerente da A. é o único sócio e gerente) utilizaram o locado dos autos como o seu próprio escritório, durante cerca de 12 anos, pois a sede da sociedade consiste numa garagem (Cfr. Docs. 18 e 19),
2.12. (l) - Tendo sido a sociedade A. representada, na sua actividade do dia-a-dia, pelo ora R., na grande maioria da sua actividade, tendo muitas das respectivas reuniões sido realizadas no locado.
2.13. (m) - Nomeadamente, contactos e reuniões com os arrendatários, mediadoras imobiliárias, potenciais compradores de imóveis, potenciais vendedores de imóveis, advogados, bancários, etc., embora o gerente da A. fosse desde sempre o seu pai, J….
2.14. (n) - A Actividade desta que era gerida e desenvolvida no locado dos autos, que usava o mesmo como escritório, desde 2006 até ao ano de 2016.
2.15. (o) - O locado serviu de escritório de outras sociedades, das quais o próprio gerente da A. também é, ou foi, sócio-gerente, como a sociedade R….., Lda. e a sociedade …... – Sociedade de Mediação Imobiliária, Limitada, que teve sede no locado dos autos até Fevereiro de 2020, e da qual o gerente da A. também foi sócio até ao ano de 2017.
2.16. (p) - Esta sociedade, por sua vez, era sócia da … – Investimentos Imobiliários, Lda, com sede no locado.
2.17. (q) - O gerente da A. (e, portanto, a própria A.) tinha conhecimento há largos anos de que o locado era utilizado como escritório.
*
3.- Se deve permanecer nos autos o documento apresentado pelo apelado juntamente com as contra-alegações.
Com as contra-alegações da apelação interposta por A, vem o recorrido B apresentar um documento (cópia de caderneta predial), justificando que apenas depois da interposição do Recurso é que o Réu teve acesso e conhecimento de uma Caderneta Predial daquele prédio (e da fracção correspondente ao 6º andar esquerdo, emitida em 27/02/2008).
Prima facie, pretende o recorrido – através do documento junto com as contra-alegações – comprovar que ao contrário do que pretende a recorrente demonstrar é claro e notório que a afectação do imóvel sub judice à data de 27/02/2008 era para o comércio, razão porque a ter existido uma posterior alteração tal só poderá ter acontecido em razão de solicitação do próprio gerente da RECORRENTE.
Em última instância, com o documento junto com as contra-alegações visa o apelado contrariar os fundamentos da impugnação da decisão de facto deduzida na apelação pela recorrente.
Apreciando
Para decisão da “questão” ora em apreço, importa no essencial atentar no preceituado no art.º 651º, nº1, do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, rezando ele que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art.º 425º, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
De igual modo, e desde logo em face da referência no aludido dispositivo legal ao disposto no art.º 425º do CPC, recorda-se que dispõe este último que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.
Conjugando ambas as referidas disposições adjectivas com a do art.º 423º, do CPC, quer o seu nº1, quer o respectivo nº 2, prima facie tudo aponta para que os documentos possam pelas partes ser juntos aos autos até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, e, após o referido momento, podem ainda ser carreados para o processo e para serem ainda valorados pela primeira instância, até ao momento do encerramento da discussão (cfr. art.º 425º do CPC) ou seja, até a conclusão das alegações orais (de facto e de direito - cfr. alínea e), do nº 3, do art.º 604º) e subsequente encerramento da audiência, e desde que a sua apresentação não tenha sido possível até então, objectiva ou subjectivamente, ou a sua apresentação se tenha tornado necessária em virtude de uma ocorrência posterior (cfr. nº 3, do art.º 423º, do CPC). (1)
Já depois do encerramento da audiência, no caso de recurso, a apresentação de documentos, sendo permitida desde que juntos com as alegações, lícita/admissível é tão só desde que se verifique uma de 2 situações, a saber: a) Quando a sua apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, quer por impossibilidade objectiva (inexistência do documento em momento anterior), quer subjectiva (v.g. ignorância sobre a sua existência); b) Quando a sua junção se tenha tornado necessária devido ao julgamento na 1ª instância - v.g. quando a decisão proferida não era de todo expectável, tendo-se ancorado em regra de direito cuja aplicação ou interpretação as partes, justificadamente, não contavam.
No que à situação referida em segundo lugar concerne, explica ABRANTES GERALDES (2) que a admissibilidade da junção de documentos em sede recursória, justifica-se designadamente quando a parte/recorrente tenha sido “surpreendida com o julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos documentos já constantes do processo.
Dito de uma outra forma (3), “a junção só tem razão de ser quando a fundamentação da sentença ou o objecto da decisão fazem surgir a necessidade de provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes dela.”
Ainda com referência à situação referida em segundo lugar, mas com a habitual e reconhecida clareza, rara sabedoria e rigor, diz-nos o Professor ANTUNES VARELA (4) que não basta, para que a junção do documento seja permitida, que ela seja necessária em face do julgamento da 1ª instância, exigindo-se outrossim que tal junção só (apenas) se tenha tornado necessária em virtude desse julgamento.
Tal equivale a dizer que, se a junção já era necessária (quer para fundamentar a acção, quer para ancorar a defesa) antes de ser proferida a decisão da 1ª instância, então não deve a mesma ser permitida.
Em suma, esclarece e conclui o saudoso e supra referenciado Mestre que, a decisão da 1ª instância “pode criar, pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 706º do Código de Processo Civil.”.
Cotejando agora os actuais normativos que regulam a junção de documentos em sede recursória, com os dos art.ºs 524º e 693º-B, ambos do pretérito CPC, dir-se-á que, com as alterações introduzidas (maxime com a não inclusão no actual art.º 425º do nº 2, do nº 2, do pretérito art.º 524º, e , com a eliminação no actual 651º, da alusão que constava do pretérito art.º 693º-B, a algumas situações de recursos interpostos de decisões interlocutórias), lícito é concluir que o legislador como que deu um “passo atrás” no que concerne à possibilidade de junção de documentos em sede de recurso, alinhando e reforçando o entendimento de que, em rigor, a junção de prova documental deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância.
Para além do referido, e porque um documento mais não configura que um mero meio de prova - de facto -, importa também não olvidar que, a sua junção aos autos, ainda que em plena instância recursória, seja requerida com o desiderato de poder - em abstracto, que não em concreto - contribuir para o julgamento de impugnação que haja sido deduzida da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, maxime quando a parte recorrente haja deduzido impugnação da referida decisão, nos termos do art.º 640º, do CPC.
Por último, e no âmbito da aferição dos pressupostos que possibilitam a junção “tardia” de documentos [rectius – cfr. art.º 425º, do CPC -, a impossibilidade objectiva (inexistência do documento em momento anterior) e/ou subjectiva (v.g. ignorância sobre a sua existência) da partes do apresentante], importa desde logo que a parte apresentante alegue e convença [devendo v.g. a impossibilidade da prévia apresentação de documentos ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência (5)] o julgador de que não lhe pode e deve ser-lhe atribuída qualquer culpa/responsabilidade pela não apresentação do documento em momento anterior.
Neste conspecto, e como assim de decidiu em Acórdão igualmente deste Tribunal da Relação de Lisboa e de 07/06/2018 (6), pacífico é que o disposto no artigo 423.º, n.º 3, do CPC não se destina às situações em que as partes não localizaram os documentos em tempo útil, por razões apenas a si imputáveis.
Em suma, no que respeita a junção de documentos com as alegações de recurso e maxime no âmbito v.g. de alegada superveniência subjectiva, e como bem adverte RUI PINTO (7), “não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar – a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento”.
Aqui chegados, e incidindo de seguida sobre o OBJECTO do litigio, é para nós claro e manifesto que a utilidade e conveniência na junção pelo réu do documento agora junto com as contra-alegações se revelava [maxime em sede de contraprova, cfr. Art.º 346º, do CC] desde logo como relevante e decisiva para abalar a prova dos factos constitutivos do direito alegado pela autora na sua petição inicial.
Ou seja, ostensivo é que a virtualidade probatória de tal documento era já configurável no momento da contestação da ação.
Do mesmo modo, é igualmente pacífico que, o documento agora junto pelo apelado, porque junto de entidade pública, é/era de obtenção bastante acessível e célere, estando o mesmo disponível ao réu.
Em face do referido, e não tendo de resto o apelado invocado quaisquer razões a ancorar a impossibilidade da sua junção em momento anterior, eis porque não deve a junção do documento apesentado cm as contra-alegações ser admitido nos autos, não tendo a sua junção tardia sido minimamente justificada e fundamentada.
 Destarte, tudo visto e ponderado, não se verificando a previsão do art.º 651º, nº 1, do CPC, importa, portanto, não admitir a junção aos autos do documento pelo apelado apresentado com as contra-alegações, documento que, a final, será mandado desentranhar dos autos.
*
4 - Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Analisadas as alegações e conclusões da apelante A, e no que à decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo diz respeito, inquestionável é que impugna a recorrente diversas respostas/julgamentos da primeira instância no tocante a vários/concretos pontos de facto integrantes da referida decisão, considerando para tanto terem sido todos eles incorrectamente julgados [designadamente os itens de facto nºs 2.7., 2.11, 2.14 e 2.15, todos eles julgados provados] .
Por outra banda, tendo presente o conteúdo das apontadas peças recursórias, impõe-se reconhecer, observou e cumpriu a apelante todas as regras/ónus processuais a que alude o art.º 640º, nº1, do CPC, quer indicando os concretos pontos de facto que considera como tendo sido incorrectamente julgados, quer precisando quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham uma decisão diversa da recorrida, quer, finalmente, indicando também quais as diferentes respostas que deveria o tribunal a quo ter proferido.
E, ademais, porque gravados os depoimentos e declarações pela apelante indicados/invocados – como fundamento do erro na apreciação da prova -, procedeu a mesma, outrossim, à indicação, com exactidão, das passagens da gravação efectuada e nas quais ancora a ratio da impugnação deduzida.
Destarte, na sequência do exposto, nada obsta, portanto, a que proceda este Tribunal da Relação à análise do “mérito” da solicitada/impetrada alteração das respostas aos pontos de facto impugnados pela recorrente A.
4.1. – Do ponto de facto nº 2.7.
Tendo o tribunal a quo julgado provado que “a fração objecto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação”, do referido julgamento discorda a apelante, considerando que em face do teor de dois docs. juntos com a petição inicial [certidão da Câmara Municipal de Lisboa e Caderneta Predial Urbana da fração em causa], impunha-se que tivesse o Primeiro Grau julgado provado que “A fração objecto do arrendamento só estava licenciada para habitação” [tal como alegou no art.º 16º da petição inicial].
A justificar [nos termos do art.º 607º,nº4, do CPC] o julgamento de facto ora em análise, recorda-se, aduziu a Exmª Juiz a quo que “Os factos referidos em a) e b) resultam das certidões de fls.5v e 8v. e ainda fls.9 e 10, sendo o facto referido em c), d), e) e f) resultante do contrato aí referido e que consta de fls.11. De sublinhar que a licença emitida foi para “habitar e ocupar”, o que não quer necessariamente dizer que foi emitida apenas para habitação, daí a resposta mais fiel ao documento que consta de fls. 9v e 10 dada em g).”.
Adiantando desde já o nosso veredicto, estamos em crer que não incorre o Primeiro Grau em qualquer erro de julgamento de facto quanto ao conteúdo do ponto de facto nº 2.7..
Desde logo porque, ao aludir a apelante – na petição inicial – ao termo/expressão “licenciamento” para habitação, tudo indica que tem por desiderato referir-se a concreto Licenciamento Camarário [documento administrativo a ser emitido pela respectiva autoridade municipal, cfr. Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU - aprovado pelo DL 38383, de 07/08/1951], que não a conteúdo de caderneta Predial e/ou a descrição de prédio em autoridade tributária.
Depois, porque da Licença Camarária [que é a identificada no ponto de facto nº 2.2.] junta aos autos decorre efectivamente que a fracção objecto do arrendamento foi objecto de licença para “habitação e Ocupação”, que não “exclusivamente” para habitação.
Perante o exposto, desajustada se mostra portanto a censura que a apelante dirige para o julgamento de facto inserto no ponto nº 2.7., não se revelando a prova pela impugnante invocada minimamente reveladora de ter a Exmª Juiz a quo incorrido em erro na apreciação e valoração da prova.
Improcede, assim, a impugnação dirigida para o ponto de facto nº 2.7.
4.2. – Dos pontos de facto nºs 2.11, 2.14 e 2.15 [alíneas k), n) e o)].
Discorda a apelante igualmente do julgamento de facto vertido nos pontos de facto nºs 2.11, 2.14 e 2.15.
Em face da prova produzida, considera a apelante que, se os pontos de facto nºs 2.11 e 2.15 devem ser eliminados, por não se poderem considerar provados, já o ponto de facto nº 2.14 deve passar a dispor de uma diversa redacção, a saber [e ao invés de “A Actividade desta que era gerida e desenvolvida no locado dos autos, que usava o mesmo como escritório, desde 2006 até ao ano de 2016”], que “A Actividade do R., que era gerida e desenvolvida no locado dos autos, o qual usava o mesmo como escritório, desde 2006 até ao ano de 2016”.
No essencial e a amparar a discordância da recorrente dirigida para os 3 pontos ora em análise, invoca a impugnante/autora o depoimento de parte do respectivo representante legal [J…], da testemunha NM e de outras, aduzindo que de todos eles decorre que a A., …. ou a sociedade associada R…, Lda, não utilizaram em momento algum o locado dos autos como seu próprio escritório.
Já incidindo mais uma vez sobre o conteúdo do excerto [prolatado em cumprimento do disposto no art.º 607º, nº 4, do CPC] da sentença recorrida, certo é que dele resulta a seguinte fundamentação/justificação [que é contrária à invocada pela recorrente] quanto aos 3 pontos de facto ora em análise:
“(…)
Em sede de julgamento, foi ouvido a A em depoimento de parte, prestado pelo seu sócio gerente, que é pai do R, e nessa sede confirmou que o locado foi usado como escritório, consentida pela A e com o seu pleno conhecimento. Como também confirmou que a questão entre as partes só surgiu por causa de problemas familiares.
Este depoimento foi conjugado com os depoimentos das testemunhas NM e Í…, já referidos, que embora tendo uma relação próxima com o réu, depuseram de uma forma credível, tendo eles próprios trabalhado no locado e estando presentes quer na vida do pai como do filho durante largos anos.
Foram ouvidas várias testemunhas que, na generalidade, depuseram de uma forma credível, sendo certo que o seu conhecimento variou em função da relação que estabeleceram com as partes da causa. Assim, a testemunha JG, advogado, conheceu pai e filho porque a A foi cliente do escritório onde exercia a sua actividade, tendo indicado o escritório da Braamcamp como local onde teve reuniões, as testemunhas MC, administradora de condomínio, e PB, que também administrou o prédio, também conheciam pai e filho, sendo que o contacto com este último aconteceu menos vezes.
O mesmo aconteceu com a testemunha MD que viveu no prédio até 2021 e que com ambos tratou da compra da sua fracção, sendo que tratava dos assuntos mais com o R. Estas testemunhas tinham um conhecimento algo limitado, mas no seu conjunto aferimos que tanto o pai como o filho estavam presentes no que diz respeito ao prédio, o que indicia que ambos colaboravam entre si.
Esta colaboração, confirmada quer pelo legal representante da A como pelo R aconteceu até ter surgido o divórcio dos pais do R e pelo que podemos constatar em termos societários era próxima, tal como revelou o réu e decorre das certidões do registo comercial relativamente às sociedades referidas no elenco. Como as empresas do pai e do filho tinham actividades próximas e complementares, e estes colaboravam nos negócios que faziam ora com umas ora com outras, parece-nos natural e credível que muitas vezes tenham utlizado o locado para a actividade das mesmas, mesmo que a sua sede não fosse estatutariamente ali. Assim, mesmo o depoimento da testemunha AM, contabilista da A não contrariou essa conclusão.”
Conhecidas de modo genérico as divergências da impugnante em relação à convicção formada pelo Primeiro Grau, e importando de seguida tomar posição [formando a nossa convicção], recorda-se antes de mais que a prova, tendo por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. art.º 341º, do Código Civil), a verdade é que tal demonstração não exige de todo uma convicção assente num juízo de certeza lógica, absoluta, sob pena de o direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social e de realização da justiça entre os homens- (8)
É que, para o referido efeito, o que releva e é exigível, tão só, é que (9) em função de critérios de razoabilidade essenciais à aplicação do Direito, o julgador forme uma convicção assente na certeza relativa do facto, ou, dito de um outro modo, psicologicamente adquira a convicção traduzida numa certeza subjectiva da realidade de um facto, existindo assim um alto grau de probabilidade (mas suficiente em razão das necessidades práticas da vida) da sua verificação.
Depois, importante é também deixar claro que é hoje consensual e pacífico que no âmbito da aferição da pertinência de se introduzirem alterações na decisão de facto proferida pelo tribunal de primeira instância, cabe inclusive ao tribunal de recurso formar a sua própria convicção (10), o que deve fazer outrossim no gozo pleno do princípio da livre apreciação da prova (cfr. art.º 607º,nº5, do CPC).
Não obstante, pertinente é também não olvidar que nesta matéria não incumbe de todo ao tribunal de segunda instância realizar um segundo ou um novo julgamento, sendo antes a sua competência residual [porque os respectivos poderes circunscrevem-se à reapreciação de concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados (11), e porque a impugnação da decisão de facto do tribunal a quo não transforma” o tribunal de segunda instância em tribunal de substituição total e pleno, anulando, de forma plena e absoluta, o julgamento que foi realizado por um tribunal a quem cabe, em primeira e decisiva linha, fazer uma aproximação, imediata e próxima, das provas que lhe são presentes”], cabendo-lhe tão só “proceder ao julgamento da decisão de facto por forma a corrigir erros de julgamento patentes nos tribunais de 1.ª instância, mas dentro de limites que não podem exacerbar ou expandir-se para além do que a lei comina.” (12)
Consequentemente, aquando da formação da convicção pelo ad quem, importante é não esquecer que, se é certo que o princípio da imediação não pode constituir obstáculo à efectivação do recurso da matéria de facto, a pretexto de, na respectiva decisão, intervirem elementos não racionalmente explicáveis (13), a verdade é que [o que ninguém ousa questionar] muito do apreendido pelo Julgador da primeira instância nunca chega - porque não é gravado ou registado - ao ad quem, sempre existindo inúmeros factores difíceis de concretizar ou verbalizar e que são importantes e decisivos em sede de formação da convicção, e, compreensivelmente, no âmbito do julgamento da impugnação da decisão de facto, espera-se que a Relação evite a introdução de alterações quando não lhe seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência efectiva de um erro do tribunal a quo no âmbito da apreciação da prova no tocante aos concretos pontos de facto impugnados. (14)
Isto dito, e tendo este Tribunal procedido à audição da prova gravada [maxime a pelas partes indicada em abono das respectivas posições], certo é que reconheceu ainda assim o legal representante da autora [o J…, e apesar de negar com convicção a factualidade vertida nos pontos de facto nºs 2.11 e 2.15] que para o locado foi enviada por terceiros concreta correspondência dirigida à autora e interligada com questões/assuntos à mesma respeitantes,e, procurando justificar/desvalorizar tal circunstância, é nossa convicção que denotou aquele alguma dificuldade/embaraço, não se mostrando nada convincente.
Com efeito, confrontado com diversa prova documental – junta aos autos – demonstrativa do envio para o locado de correspondência relativa à actividade “empresarial” da autora, não foi o respetivo representante legal claro, assertivo e crível nas razões/explicações aduzidas para menosprezar tal procedimento.
Depois, se é verdade que algumas testemunhas [v.g. JG, advogado, MC, administradora do condomínio do prédio da Rua … há 10 anos e AM, Contabilista] revelaram algum desconhecimento relativamente à factualidade vertida nos pontos de facto impugnados e ora em apreciação, outras houve porém que foram assertivas e concludentes em amparar e suportar a referida factualidade, afirmando [com base em razão de ciência credível] ser a mesma verídica, e tendo-a de resto presenciado/constatado.
É assim que, v.g. NM [Designer], foi assertivo em afirmar que o Sr. Fernando …. actuava e trabalhava no locado como gerente da autora e de outras empresas como a Predial ….., relacionando-se como tal com empresas terceiras.
E é assim também que Í… [que igualmente trabalho no locado] foi perentória em afirmar que no locado/fracção eram efectivamente tratados muitos dos assuntos relacionados com a actividade das empresas do Pai do réu, designadamente da A, tendo por diversas vezes recebido correspondência dirigida à autora A.
Perante o referido, estamos assim em crer que nada justifica considerar que, no âmbito do julgamento de facto dos itens pela apelante impugnados, manifesto é que incorreu o Primeiro Grau em erro de valoração e apreciação da prova produzida que a este tribunal de recurso importe resolver.
Acresce que, sendo “natural” que relativamente aos meios de prova apresentados por uma das partes, maxime testemunhal, seja o julgador confrontado com igual meio de prova carreado para os autos pela parte contrária, mas agora com conteúdo de sentido contrário/oposto, tal não obriga desde logo, e algo comodamente - e com base na verificação de pretensa situação de dúvida inultrapassável -, a lançar de imediato mão da regra do art.º 414º do CPC, antes se impõe que o julgador no exercício dos respectivos poderes jurisdicionais tome posição, socorrendo-se para tanto de presunções judiciais assentes nas regras da experiência ou da normalidade da vida [v.g. valorizando mais os depoimentos daqueles que melhor colocados estão/estiveram para poderem atestar o que disseram].
Ou seja, não é toda a dúvida, lançada em abstracto, que legitima o funcionamento do princípio plasmado no citado art.º 414º do CPC, antes importa para o referido efeito que após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua valoração de acordo com os critérios legais se veja o julgador (objectivo e distanciado do objecto do processo) confrontado com um estado em que permanece como razoavelmente possíveis, verosímeis e bem fundamentadas mais do que uma versão do mesmo facto. (15)
Em conclusão, e tendo presente a prova produzida e por nós analisada, certo é que não se nos afigura legítimo considerar que existiu um erro de julgamento que determine a alteração da decisão de facto proferida pelo Primeiro Grau, maxime a alteração dos julgamentos dirigidos para os pontos de facto nºs 2.11, 2.14 e 2.15.
O mérito da apelação pela autora atravessada nos autos, portanto, deve passar por aferir se, em rigor, incorreu o tribunal a quo em erro da subsunção dos factos pelo Primeiro Grau fixados ao direito aplicável, o que de imediato se apurará.
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5. - Se em resultado das modificações introduzidas na decisão sobre a matéria de facto considerada como assente, ou, independentemente de quaisquer alterações, se impõe alterar o julgado.
Como sabemos já, a acção intentada pela autora e apelante foi julgada não provada e improcedente, para tanto considerando a Exmª Juiz a quo que no essencial não permitia a factualidade provada chegar à conclusão de que a “licença não permitia que se consignasse no contrato um uso “qualquer” e que, também por isso, este estaria ferido de nulidade”.
Na douta sentença recorrida, teceu-se, além do mais, os seguintes e parciais considerandos:
“(…)
Atenta a data da celebração do contrato de arrendamento em causa neste processo – Março de 2006 – e o disposto no artigo 12º/1 e 2 (1ª parte), do CC, as condições de validade substancial e formal desse contrato aferem-se pela lei vigente na data da celebração, que era o RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10, com as alterações introduzidas pelo DL 64-A/2000, de 22/04, e DL 329º-B/2000, de 22/12. Daí que, para se indagar das condições de validade (substancial e formal) do contrato há que apelar à previsão desses diplomas legais.
A exigência de licença de utilização – documento administrativo (a ser emitido pela respectiva autoridade municipal) que certifica (ou devia certificar…) a conformidade da construção com o respectivo projecto (e com vista à salvaguarda das condições de salubridade, higiene, segurança e estética dos edifícios – protegendo, em geral, qualquer usuário dos mesmos e não especialmente os inquilinos) - acontece com a entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU - aprovado pelo DL 38383, de 07/08/1951) que a prevê no seu artigo 8º.
Com o artigo 1º do DL 329/81, de 4/12, para a celebração de escrituras de arrendamentos comerciais, passou a ser exigida a apresentação da “licença camarária donde conste ser essa a finalidade do imóvel ou que autorize a mudança de finalidade” (e no sentido da necessidade da menção, nos contratos de arrendamento para habitação, da licença de utilização, quando exigível, o artigo 2º/1, alínea e), do DL 13/86, de 23/1).
Com a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10, passou a exigir-se (a partir de 01/01/1992 – artigo 2º/2 desse DL) que, no contrato de arrendamento Urbano, quando o objecto ou o seu fim o implique, a menção da existência da licença de utilização [(artigo 8º/2, alínea c)], seja para arrendamentos comerciais ou habitacionais. No caso dos autos, a licença é mencionada. Por usa vez, determinava o artigo 9º/1 que “só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido seja atestado pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato”.
Dispunha o artigo 9º/4 do RAU que “a existência de licença de utilização bastante ou, quando isso não seja possível, do documento comprovativo da mesma ter sido requerida, deve ser referida no próprio texto do contrato nos termos do nº 2, alínea c), do artigo anterior, não podendo ser celebrada qualquer escritura pública de arrendamento sem essa menção”. A falta de licença só obstava à outorga da escritura pública. Com o DL 6-A/2000, de 22/4, este nº4 passou a ter a redacção “a existência de licença de utilização bastante ou, quando isso não seja possível, do documento comprovativo da mesma ter sido requerida, deve ser referida no próprio texto do contrato, nos termos da alínea c), do nº 2, do artigo anterior, não podendo ser celebrado qualquer contrato de arrendamento sem essa menção”.
As sanções para a violação do disposto nos nºs 1 a 3 desse artigo constam nos seus nºs 5 a 7 e destes não resulta que tal violação implicasse sempre a nulidade do contrato, o que redundaria em benefício do senhorio, precisamente quem daria causa à nulidade (já que a falta de licença de utilização é-lhe imputável) e frustraria o carácter vinculístico que tinham os arrendamentos em consideração.
A menção da licença destina-se a verificar se há (porque deve haver), coincidência entre a finalidade do imóvel constante da licença de utilização e o fim convencionado do arrendamento, acautelando a conformidade do uso efectivo do imóvel com o previsto nas normas regulamentares aplicáveis.
A falta de licença de utilização só implicava a nulidade do contrato na situação prevista no artigo 9º/7 do RAU, isto é, quando fosse celebrado contrato de arrendamento para fim diverso da habitação se o local estivesse licenciado apenas para habitação (em conformidade com o nº 3 desse artigo): “O arrendamento não habitacional de locais licenciados apenas para habitação é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito de arrendatário à indemnização”.
(…)
No caso dos autos, no entanto, considerando o que consta de documento de fls.9v parece-nos que tendo sido emitida uma licença inicial em 1954, o prédio deverá ter sido construído após 1951.
Ao contrário do que conclui a A, o contrato em questão não tem como finalidade um fim não habitacional. O que prevê é que o R possa fazer “qualquer uso do local”, o que quer dizer que também pode fazer um uso habitacional, o que – na óptica da A – seria o único uso permitido. Ou seja, partindo do pressuposto que a licença só permitia ouso habitacional do locado, a vontade das partes expressa por escrito não contraria nem afronta essa licença, tendo sido consignada em termos mais latos mas não contraditórios da disposição legal.
Por outro lado, apesar de a A concluir que o locado apenas estava licenciado para habitação, não nos parece que se possa retirar do teor da licença que consta dos autos essa conclusão de forma líquida e imediata. Como se fez constar da factualidade provada, o que consta da respectiva licença é “habitar e ocupar” e não apenas “habitar” o que, caso fosse o caso, facilitaria a conclusão a que chega a A. Todavia, não é esse o caso: embora habitar seja ocupar, ocupar pode não ser habitar, pelo que não podemos chegar à conclusão de que a licença não permitia que consignasse no contrato um uso “qualquer” e que, também por isso, este estaria ferido de nulidade.
(…)
Assim, tanto por uma como por outra razão não procederia a arguição da Autora.
Subsidiariamente, a A alega que o uso efectivo que o R deu ao locado também ele seria contrário ao seu fim e por isso motivo de resolução. É verdade que o R deu um uso não habitacional ao locado, mesmo que o mesmo possa ter sido usado esporadicamente com essa finalidade, mas prevendo o contrato um “uso qualquer” não vemos também como poderá considerar-se o incumprimento por parte do R. O uso que o R deu ao locado foi sempre o permitido pelo contrato de arrendamento e não outro.
Acresce que esse uso sempre foi do conhecimento da A, que – como foi demonstrado – também usou o mesmo, quer por intermédio do R quer pelo seu próprio sócio gerente – como escritório. A Autora, cujo sócio gerente é pai do R, sempre teve conhecimento do uso que era dado ao locado, não temos dúvidas nenhumas, pelo que é absolutamente abusiva a alegação de que esse uso não era permitido, era ilegal ou ilegítimo.
Mesmo que atendêssemos à nulidade do contrato, o exercício do direito a invocá-la pela A redundaria num manifesto abuso.
O abuso do direito, previsto no artigo 334º do CC, como válvula de segurança para sancionar condutas antijurídicas só justifica intervenção se por outro modo não é possível reprovar tais condutas e, por outro lado, a censura de certa actuação, como abusiva, importa um manifesto ou inequívoco excesso, ou seja, que esse exercício ofenda ostensivamente o sentimento jurídico prevalecente na colectividade ou o sentimento jurídico socialmente dominante, e não apenas que do exercício de um direito subjectivo possam resultar prejuízos para outrem.
(…)
Uma das formas mais expressivas do abuso do direito reside na adopção de condutas contraditórias ou no chamado venire contra factum proprium, em que um sujeito de direito, adoptando determinada conduta vinculante quanto ao modo de agir futuro, geradora de legítima confiança na contraparte, e que, por isso e de boa fé, investe nessa confiança, programando a sua vida e tomando decisões, vem, no futuro, a adoptar conduta contrária ou diversa daquela que inspirou essa legítima confiança. Mas a confiança digna de tutela tem de basear-se em “algo de objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como tomada de posição vinculante em relação a data situação futura (cfr. Baptista Machado, “Tutela da Confiança e venire contra factum proprium”, na RLJ, 118/171). Daí que se considere que ofende a boa fé a conduta daquele que, adoptando na relação determinada posição vinculante quando ao modo de agir futuro, vem a actuar contrariamente a essa posição, frustrando as legítimas expectativas da outra parte que adquiriu convicção fundada de que aquele não viria a adoptar conduta contraditória.
Como decorre da factualidade, o uso dado ao locado, inclusive pela Autora na pessoa do seu sócio gerente, foi criando no réu a convicção de que aquele uso era pretendido por ambas as partes sem qualquer limitação. Ora, vir passados estes anos, invocar a nulidade do contrato é contraditório e ofensivo à boa fé que deve presidir tanto à celebração como à execução dos contratos.
Todas as restantes questões suscitadas mostram-se prejudicadas pela improcedência da nulidade”.
Conhecidos os fundamentos acabados de transcrever, porque se mostram os mesmos pertinentes e devidamente amparados na decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, e, porque as razões essenciais pela apelante invocados com vista a alterar-se o julgado dirigiram-se sobremaneira para a reclamada modificação da referida decisão de facto que como sabemos improcedeu, eis porque inevitável e forçosa se mostra a improcedência da apelação.
É que, em face do disposto no art.º 9º, nº 7, do RAU [sob a epígrafe de “Licença de utilização”], pacífico é que “O arrendamento não habitacional de locais licenciados apenas para habitação é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização”, o que equivale a dizer (16) que “a nulidade do contrato está especificamente prevista para os casos em que exista uma divergência entre a finalidade do contrato e aquela que se encontre definida pelo licenciamento, ainda assim, sem prejudicar o direito de indemnização reconhecido ao arrendatário”.
 Ora, confrontada a factualidade inserta em 2.4. e 2.7. da motivação de facto e como assim – e bem – o reconheceu o Primeiro Grau, nada a obriga a concluir que a finalidade do arrendamento outorgado mostra-se desconforme e em total divergência com a fixada e definida no licenciamento Camarário.
Ademais, e descendo novamente à factualidade provada [maxime à fixada em 2.8. a 2.17], difícil é não colocar a pretensão da autora/apelante - no que à invocada NULIDADE do arrendamento concerne – sob a alçada do art.º 334º, do CC, verificando-se no nosso entendimento um claro, manifesto e ostensivo abuso da autora ao invocar a nulidade do arrendamento com fundamento em utilização pelo arrendatário do locado para uso não exclusivamente habitacional, e à revelia do licenciamento camarário, e isto porque pacifico é que é a própria autora – como o seu comportamento e exemplo, prima facie contraditório – que pelo menos tacitamente [Cfr. art.º 217 º, do CC] cria e estimula junto do réu o convencimento de que jamais questionará a validade do contrato porque não outorgado exclusivamente para fim habitacional.
Neste conspecto, recorda-se que a questão da aplicação do instituto do ABUSO DO DIREITO com vista ao bloqueamento da invocação das nulidades formais mostra-se precisamente pertinente e aplicável “nos casos em que estão em causa contratos de arrendamento, contratos-promessa e contratos de mútuo”, tendo a - quanto à ininvocabilidade das nulidades formais - jurisprudência vindo a orientar-se no “sentido de que não é de admitir que uma pessoa possa invocar e opor um vício por ela (con)causado culposamente, vício em relação ao qual a outra parte confiou que não seria invocado, nesta convicção orientando a sua vida” (17).
Bem assertivas - e claramente pertinentes para o caso sub judice – e podendo com segurança e acerto ser transpostas para o thema decidenduum – são as doutas conclusões do Ac. do STJ de 17/3/2016 (18), rezando as mesmas que:
“1.É a lei em vigor ao tempo da celebração do negócio jurídico que regula as condições da respectiva validade formal, não podendo aplicar-se, de modo retrospectivo, os preceitos ulteriormente editados que estabeleçam diferentes requisitos de forma para o acto.
2. Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto: porém, esta solução - conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia - carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.
3. Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium, quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito pelas regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto”.
Porque despiciendas quaisquer outras considerações, e em razão de tudo o acima exposto, eis porque a apelação dirigida à alteração do julgado deve improceder.
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6- Se é caso para conhecer da ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido.
Considerando que bem andou o tribunal a quo ao condenar a Autora como litigante de má fé, é entendimento do recorrido B que o Primeiro Grau apenas pecou por defeito no valor da condenação em multa, mas, porque se conhecem agora novos factos [nomeadamente a afectação para comércio que consta da Certidão Predial de 2008 e que terá sido alterada], então importa que seja a RECORRENTE condenada como litigante de má fé, mas em quantia maior e que beneficie o Recorrido.
Consequentemente, e com base em ampliação do âmbito do recurso [art.º 636º, do CPC], reclama o recorrido que seja a Recorrente/autora condenada como litigante de má fé e nos termos do n.º 1 do art.º 542º do CPC, sendo fixada uma indemnização ao Recorrido, no mínimo de 15UC, e isto porque sofreu, e ainda sofre de despesas com honorários de advogado não só num longo processo.
Em suma, requer o recorrido que se mantenha a condenação da RECORRENTE como litigante de má fé, mas que a condenação seja aumentada, no mínimo para 15UC em indemnização ao Recorrido que sofreu, e ainda sofre de despesas com honorários de advogado não só num longo processo, mas também com um recurso que a A sabe não ter merecer procedência.
Ora bem
Mostrando-se a questão recursória ora em analise suportada – pelo apelado – em instituto da ampliação do âmbito do recurso a que se refere o art.º 636º, do CPC, recorda-se que reza o referido dispositivo legal, nos respectivos nºs 1 e 2, que: “No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação”, e que, “Pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.”
A pertinência da ampliação do âmbito do recurso, perante a redacção dos nºs 1 e 2, do aludido art.º 636º, pressupõe, portanto, por um lado, que o recorrido tenha sido desatendido (na sentença apelada) em concreto fundamento invocado em sede de defesa, e, por outro, que a 2ª Instância venha a reconhecer pertinência a concretos fundamentos e ou questões suscitadas pelo recorrente na apelação pelo mesmo interposta-
A essencialidade da distinção entre a interposição dos recursos e a sua mera ampliação, tem assim que ver com a circunstância de o primeiro, pressupor o decaimento do recorrente relativamente ao ou aos pedidos, e, o segundo, incide tão só sobre os fundamentos.
Ou seja, tal como se conclui em douto Ac. do STJ e de 26/5/2015 (19) “Sendo formulado pedido de ampliação, mas improcedendo os fundamentos da apelação, nos termos dos art.ºs 608º, nº 2 e 615º, nº 1 al. d), segunda parte, do Cód. de Proc. Civil, não pode essa ampliação do âmbito do recurso ser conhecida”.
Dir-se-á que, como bem explica ABRANTES GERALDES (20), não se estando perante um verdadeiro recurso, porque sempre falta ao recorrido a qualidade de parte vencida, então “O tribunal apenas terá que se pronunciar sobre a ampliação se, acolhendo os argumentos suscitados pelo recorrente ou de que oficiosamente puder reconhecer, tal se repercutiu na modificação do resultado declarado na decisão impugnada em termos de prejudicar o recorrido”.
Isto dito, porque como decorre dos itens 4. e 5., ambos do presente acórdão, ocorre que in casu não reconheceu e/ou atendeu o ad quem, ainda que parcialmente, quaisquer dos argumentos/fundamentos recursórios invocados pela apelante, não tendo quaisquer das questões recursórias suscitadas sido acolhidas, então, prejudicado se mostra o conhecimento do objecto da ampliação do recurso a requerimento do recorrido .
De resto, a questão da condenação da autora como litigante de má fé não foi sequer suscitada na primeira instância pelo réu/apelado – na sua contestação -, logo, relativamente à mesma não faz de todo qualquer sentido considerar-se o réu/apelado como tendo decaído, nos termos e para efeitos do nº1, do art.º 636º, do CPC.
Mostra-se, portanto, prejudicado o conhecimento do objecto da ampliação do recurso a requerimento do recorrido.
Não se olvida que, como é consabido, a condenação como litigante de má fé não está sujeita ao princípio do pedido, podendo ser decretada oficiosamente pelas instâncias [in casu por este tribunal da Relação] e outrossim pelo Supremo Tribunal de Justiça, apenas sendo de exigir, sob pena de se proferir uma decisão-surpresa, que a parte sancionanda seja previamente ouvida sobre a matéria, para que se possa defender.
É que, por força do disposto no n.º 3 do artigo 3 do Código de Processo Civil, "O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Ainda assim, porque a responsabilização de uma parte como litigante de má fé, maxime com base em comportamentos susceptíveis de preencher a previsão das alíneas a) e d), do nº1, do art.º 541º, do CPC, apenas deve ocorrer perante situações de facto clarividentes, que não em face de casos de dúvida e/ou de fronteira entre o mero uso processual de concreto instituto e o seu abuso, certo é que não nos revela com segurança a instância recursória que tenha a autora/apelante abusado do Direito ao recurso, sabendo de antemão estar o mesmo votado ao fracasso.
Acresce que, pacífico é que o direito de recorrer aos Tribunais para aceder à Justiça constitui um direito fundamental – cfr. art.º 20º da Constituição da República Portuguesa –, razão porque apenas na presença inequívoca de um mau uso desse direito faz sentido qualificá-lo como uma conduta abusiva, susceptível portanto de ser sancionada nos termos do art.º 542º, nº 2, do CPC, maxime porque susceptível de consubstanciar o uso reprovável de meio adjectivo com o propósito exclusivo de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Tudo visto e ponderado, porque não permite o processado nos autos no âmbito da instância recursória concluir, com toda a segurança, que a apelante, vem manifestar e deduzir oposição ao julgado com base em raciocínio e entendimento cuja manifesta falta de fundamento era de todo já conhecida ou, pelo menos, só com negligência grave da mesma não logrou de imediato alcançar, não se vê justificação para que a apelante deva ser sancionada como litigante de má-fé também por este tribunal de recurso.
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7. - Se deve a sentença ser revogada na parte em que condenou a apelante como litigante de má-fé.
Foi a apelante condenada – pelo Primeiro Grau - como litigante de má fé, na multa correspondente a 5UC’s.
A fundamentar a referida “condenação”, aduziu a Exmª juiz a quo as seguintes considerações:
Considerando os factos que foram dados como provados, justifica-se plenamente a condenação da A como litigante de má fé, pois deduziu uma pretensão manifestamente infundada, omitindo factos relevantes para a decisão da causa, como o facto de saber desde sempre qual o uso dado ao locado e de ter utilizado o mesmo com o mesmo fim. E fê-lo não como uma negligência grosseira, mas com dolo, com clara intenção de obter um resultado que prejudicasse efectivamente o réu, pelo que consideramos que se justifica a condenação em 5 UC de multa.”.
Discordando da aludida condenação, e impetrando a respectiva revogação, vem a apelante, nas respectivas conclusões recursórias, aduzir que “Não se verificam, portanto, os fundamentos para a litigância de má fé consignados no art.º 542.º/CPC”.
Já nas antecedentes alegações – stricto sensu -, aduz ainda – com vista à revogação da decisão de condenação como litigante de má fé - e em parte o seguinte:
“(…)
Mas desde logo se diga que esta condenação está ferida de nulidade (art.º 615.º, n.º 1 al. d)/CPC),porque não foi peticionada pelo R., nem a A. teve oportunidade de deduzir o contraditório, violando manifestamente o princípio fundamental do contraditório (art.º 2.º/CPC).
Acresce que, ao contrário do que a sentença invoca, a A. nunca utilizou o locado, mas apenas tinha conhecimento de que o R. utilizava o locado no exercício de “indústria doméstica” de mediação imobiliária, a qual é permitia, nos termos do art.º 1.092.º/C. Civil, como se deixou demonstrado.
Por outro lado, o gerente da A. tinha o dever de defender os interesses da pessoa coletiva sociedade, nomeadamente, os deveres de cuidado e lealdade consignados no art.º 64.º/CSC.
Sob pena de poder incorrer em responsabilidade civil por ação ou omissão (art.º 72.º/CSC) ou, mesmo, ser destituído (art.º 257.º, n.º 6/CSC).
(…)
Ou seja, se o gerente da A. não tivesse intentado a presente ação, poderia ser responsabilizado perante a sociedade e destituído pelo prejuízo causado.
Não se verificam, portanto, os fundamentos para a litigância de má fé consignados no art.º 542.º/CPC.”.
Cumpre apreciar
Para começar, e como o refere a apelante nas alegações, pacífico é que a condenação como litigante de má fé não pode ser decretada, sem prévia audição da parte a sancionar, sob pena de se violar o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa, cometendo-se nulidade que influi na decisão da causa.
O referido entendimento, de resto, é aquele que há muito é defendido pelo Tribunal Constitucional, tendo v.g. já o Acórdão n.°357/98, de 12.5.1998 (21), decidido que importa interpretar o art.º 456.°, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil em termos do recorrente só poder ser condenado como litigante de má fé, depois de, previamente, ser ouvido, a fim de se poder defender da acusação de má fé.
É assim que, do respectivo sumário se fez constar que “De acordo com anterior jurisprudência deste Tribunal, “o regime instituído nas normas do art.º 456.°, nºs, 1 e 2, do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa por litigância de má fé não pressupor a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação, padecerá de inconstitucionalidade…[…] não resulta imperativo que tais preceitos hajam necessariamente de ser julgados inconstitucionais”, já que se mostra “possível e adequada uma interpretação de conformidade constitucional daquelas normas, em termos de condicionar o juízo de condenação ali previsto à prévia notificação do litigante suspeitado de má fé processual, concedendo-lhe um prazo para nos autos responder o que tiver por conveniente”.
Não tendo in casu, efectivamente, sido dada pelo Primeiro Grau e à recorrente, prévia oportunidade de se pronunciar sobre a intenção do tribunal de - em sede de sentença – sancionar a autora como litigante de má fé, prima facie ter-se-á cometido uma nulidade – art.º 195º, nº 1, do cpc -, por omissão de formalidade relacionada com o direito de defesa – e caso tal omissão tenha influência na decisão concreta da decisão sancionatória proferida -, nada obstando a que possa a mesma ser arguida no âmbito de instância recursória [porque em causa está uma nulidade que está coberta por uma decisão judicial – a sentença -, e consequentemente, o que importa é impugnar a decisão contrária à lei, impugnação que deve ocorreu por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo (22)].
Isto dito, certo é que as nulidades de sentença [art.º 615º, nº 1, do CPC] não são de conhecimento oficioso (23), carecendo o seu conhecimento de arguição pelas partes interessadas, isto por um lado e, por outro, consabido é que em sede de instância recursória, são as conclusões que têm por função definir e delimitar o objecto do recurso, circunscrevendo o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento – cfr. Art.ºs 635º,nº4 e 639º, ambos do cpc.
Ou seja, são as conclusões recursórias que delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação, a ponto de, salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, delimitarem e balizarem à área de actuação e intervenção do tribunal de recurso.(24)
Perante o acabado de expor, porque não reconduziu a apelante às conclusões recursórias a questão – abordada nas alegações - da nulidade da decisão por omissão de contraditório e proibição da indefesa, de questão se trata que não integra o OBJECTO da apelação, ou seja, a questão da correcção da condenação da autora como litigante de má fé importa ser apreciada apenas quanto à verificação dos pressupostos de fundo/substantivos, que não na perspetiva formal.
E conhecendo
Tendo presente a fundamentação que suporta a decisão de condenação da apelante/autora como litigante de má fé, prima facie integrou o Primeiro Grau a conduta da sancionada na previsão das alíneas a) e b), do nº 2, do art.º 542º, do CPC.
O referido dispositivo legal dispõe, recorda-se, que:
1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 – Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.”.
Do normativo acabado de transcrever [o qual tipifica como litigância de má-fé - nas diversas alíneas do nº 2, do art.º 542º, do CPC -, três tipos de actuação substancial e uma outra de conduta processual (25)]  -, em rigor, como que reflecte o sancionamento pelo legislador do dever a que alude o art.º 8º, do mesmo diploma legal, rezando este último que no processo estão as partes obrigadas a agir de boa fé, e a observar os deveres de cooperação resultantes da norma anterior, sendo que, em cumprimento do primeiro dever, não devem portanto as partes, conscientemente, formular vg pedidos ilegais ou articularem factos contrários à realidade.
Em última instância, a ratio do instituto ora em análise prende-se com o desiderato/preocupação do legislador em fazer com que a conduta das partes seja pautada por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade, ou seja, ao introduzir-se um meio adjectivo de tutela de natureza sancionatória, pretende-se proteger e implementar a boa fé processual.
A assim não suceder, e tendo litigado de má fé, di-lo o nº1, do mesmo art.º 542º, do CPC, que é a parte prevaricadora condenada em multa e no pagamento de uma indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
Porém, para que a aludida condenação da parte pretensamente prevaricadora se justifique, essencial é que se depare o julgador com comportamentos de uma parte de natureza puramente processual, que não com violações de posições de direito substantivo, ou seja, em causa deverão estar sempre ofensas cometidas no exercício da actividade processual, ou a posições também elas processuais ou ao processo em si mesmo, pois que, está a responsabilidade por litigância de má fé “sempre associada à verificação de um puro ilícito processual”, e tendo o instituto por escopo e fundamentalmente, não acautelar “posições privadas e particulares das partes mas sim o interesse público”- (26)
Isto dito, recorda-se que, anteriormente à redacção conferida ao art.º 456º do pretérito Código de Processo Civil e que pelo DL nº 329-A/95, de 12/12,foi aprovada/introduzida, era entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência o de que, para se concluir por uma conduta processual de má-fé, não bastava a culpa, sendo absolutamente necessário que a parte tivesse actuado com dolo ou maliciosamente (27).
Actualmente, porém, e de resto logo a partir das alterações introduzidas no CPC pelo referido DL nº 329-A/95, foi o conceito de litigante de má fé como que alargado/estendido para situações de negligência grave, fazendo-o o legislador com um intuito moralizador da justiça, maxime com o desiderato (tal como emerge do próprio preâmbulo do atinente diploma) de se lograr uma maior responsabilização das partes.
Seja como for, o certo é que, para se concluir por uma actuação processual censurável de uma parte (actuação processual unilateral), não basta que tenha ela, objectivamente, “preenchido” uma qualquer das condutas previstas nas diversas alíneas do nº 2, do art.º 542º do CPC, exigindo-se, outrossim, que, ao fazê-lo, tenha actuado com dolo ou negligência grave, ou seja, com negligência grosseira, absolutamente censurável e de todo indesculpável- (28)
Do mesmo modo, e como bem se nota em Ac. do Tribunal da Relação do Porto (29), importa não confundir com negligência grave a lide meramente temerária ou ousada, ou a dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da respectiva prova, ou ainda cujo insucesso tenha resultado da dificuldade em apurar os factos e de os interpretar, ou ainda da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos-
Exigível é, assim, e maxime em sede de condenação de uma parte como litigante de má fé, que o tribunal disponha sempre de elementos seguros que apontem para a existência de dolo, ou, pelo menos, para uma lide acentuadamente temerária ou negligente, e isto porque, como bem se chama a atenção em Ac. do Tribunal da Relação do Porto (30), nesta sede está “em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental “, e daí que, diz-se mais adiante no mesmo e citado Acórdão, “à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça “.
Ou, seja, e tal como com total acuidade e pertinência se veio a concluir em recente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, “O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamoroso, chocante ou grosseiro uso dos meios processuais, por tal forma que se sinta que com a mesma conduta se ofendeu ou pôs em causa a imagem da justiça”. (31)
Por último, importa atentar que, se todas as “modalidades” de litigância de má-fé tipificadas nas diversas alíneas do nº 2, do art.º 542º, do CPC, pressupõem é certo a existência de um comportamento abusivo do litigante, já a alínea d) incide mais especificamente sobre um especial abuso de processo [uma típica conduta processual], com ou má fé instrumental, ou, como refere VAZ SERRA (32), a uma hipótese de exercício abusivo do direito de estar em juízo.
Aqui chegados, e após as considerações tecidas, resta descer agora ao facto adjectivo que se mostra subjacente à decisão apelada, aferindo se justifica ele integrar o tipo central do art.º 542º, do CP, maxime as sub-hipóteses das alíneas a) e b), do respectivo nº 2, revelando a factualidade assente qualquer um dos comportamentos típicos previstos e mostrando-se os mesmos – os comportamentos típicos – praticados com dolo ou negligência grave.
Ora, começando pela alínea b) do nº 2, do art.º 542º, do CPC [recorda-se que alude a respectiva alínea a) a uma actuação da parte que deduz “pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”], in casu o preenchimento da subjacente fattispecie pressupõe que a apelante/autora, quando deduz a pretensão atravessada na petição inicial, sabe à partida (caso em que age com dolo), ou devia saber (agindo então com negligência), que não dispõe de fundamento de facto e de direito para reclamar do réu a entrega imediata do locado.
Estando à partida – compreensivelmente - afastada a hipótese de dolo, e não olvidando que o não conhecimento - com negligência grave - da falta de fundamento da pretensão atravessada nos autos pode resultar da análise de meros índices externos (33), resta aferir se são os autos elucidativos/reveladores no sentido de o requerimento inicial apenas se “explicar” porque a autora, antes de o introduzir em juízo, “não agiu com os deveres de cuidado e de indagação que sobre si impediam”, tendo portanto actuado com negligência grave ou negligência grosseira ou culpa lata.
Socorrendo-nos novamente de Paula Costa e Silva, importa no essencial indagar se pertinente é concluir que apenas uma ligeireza particularmente grosseira justifica a pretensão da autora, tendo em suma a mesma violado de modo grosseiro os deveres de cuidado que são absolutamente básicos e que deveria ter cumprido antes de deduzir a pretensão que deduziu (34).
A decisão a proferir, neste conspecto, deverá necessariamente basear-se em pertinente e subjacente factualidade provada e no respectivo confronto com a conduta processual da parte visada.
Ora, compulsados os autos, a verdade é que nada de concreto se provou capaz de, fundadamente, integrar a conduta da autora na previsão da alínea a), do nº 2, do art.º 542º, do CPC, sendo que, tendo é verdade o réu alegado que v.g. que a questão dos autos nada tem a ver com o alegado na P.I. e relacionado com o uso dado ao locado dos autos, mas antes e apenas com questões familiares [visando tão-somente o gerente da A. “castigar” o seu filho, ora Réu, pelo facto de ter ajudado a mãe após a separação daqueles, e consequente divórcio], nada se provou capaz de sustentar tal alegação.
Em suma, não aponta a factualidade provada para que tenha a autora logrado com a presente acção fazer extinguir o contrato de arrendamento dos autos com o propósito de “retaliar” um comportamento pessoal do réu, sabendo de antemão não dispor de fundamento legal para o referido efeito.
A condenação da autora com fundamento, v.g., nas alíneas a) e d), do nº 2, do art.º 542º, do CPC, mostra-se assim à partida destituída de fundamento legal.
Incidindo de seguida a nossa atenção sobre a pertinência de a factualidade provada – quando interligada com a versão pela autora atravessada nos autos – integrar a previsão da alínea b), do nº 2, do art.º 542º, do CPC, importa antes de mais ter presente que para o referido efeito exigível é que a omissão e/ou a alteração da realidade factual há-de ter por objecto factos decisivos, essenciais e relevantes para decisão da causa, maxime aqueles que integram a previsão do nº1, do art.º 5º, do CPC.
Tal equivale a dizer que “O comportamento da parte, sendo censurável em si, não é censurável ao abrigo do instituto da litigância de má fé porque mente ou omite factos. Ao invés, o seu comportamento é censurável se puder influenciar a decisão por determinação da decisão de facto. (35)
Outrossim justificar-se-á a condenação de uma parte como litigante de má-fé quando a mesma infirma uma versão factual, v.g. quando nega a verificação de factualidade que, por ser “pessoal”, sabia necessariamente ter ocorrido, não podendo escudar-se no seu desconhecimento.
Isto dito, temos para nós que, em rigor, a factualidade provada e vertida em 2.11 a 2.17 não foi pela autora contrariada/negada expressis verbis, limitando-se a mesma [na resposta à contestação] a aduzir que “o fim dado ao locado pelo R., não se pode confundir com o uso que a A. pode ter dado ao mesmo, enquanto proprietária” e porque “A A. e o R. não são a mesma pessoa e têm posições jurídicas distintas (e agora conflituantes) em relação ao local arrendado”.
Depois, não se olvidando que a mesma factualidade [a vertida em 2.11 a 2.17] contribuiu [cfr. item nº 5, do presente acórdão] igualmente para a decisão da causa, maxime no âmbito do julgamento da excepção do ABUSO DO DIREITO, certo é que os campos de aplicação de ambos os institutos não são coincidentes [o do abuso do direito e o da litigância de má fé], desde logo porque em termos materiais o abuso do direito não está sujeito às restrições da litigância de má-fé (36) e, ademais, comportamentos existem que apesar de abusivos nos termos da cláusula geral do direito civil material do art.º 334º, do CC, não são todavia ilícitos por aplicação do art.º 542º, do CPC (37).
Tudo visto e ponderado, porque a factualidade vertida em 2.11 a 2.17] não preenche em rigor a previsão de qualquer alínea do nº2, do art.º 542~, do CPC, maxime a das alíneas a) e b), eis porque não pode e deve a decisão do tribunal a quo manter-se nesta parte.
Carece, portanto, a sentença recorrida de ser revogada no segmento em que decide condenar a A, como litigante de má fé, na multa correspondente a 5UC’s.
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8.- Concluindo (cfr. nº 7, do art.º 663, do CPC):
8.1.- Em face do disposto no art.º 9º, nº 7, do RAU [sob a epígrafe de “Licença de utilização”], pacífico é que “O arrendamento não habitacional de locais licenciados apenas para habitação é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização”;
8.2. - A nulidade do contrato de arrendamento indicada em 8.1. está especificamente prevista para os casos em que exista uma divergência entre a finalidade do contrato e aquela que se encontre definida pelo licenciamento;
8.3. – Provado que a fracção objecto do arrendamento estava licenciada para “habitar e ocupar o prédio”, tendo sido emitida para “habitação e Ocupação”, tal não permite concluir que perante a Licença de utilização” a fracção apenas pode ser utilizada [e consequentemente arrendada] para habitação.
8.4. - O instituto do ABUSO DO DIREITO com vista ao bloqueamento da invocação das nulidades formais mostra-se precisamente pertinente e aplicável “nos casos em que estão em causa contratos de arrendamento, tendo a - quanto à ininvocabilidade das nulidades formais - jurisprudência vindo a orientar-se no “sentido de que não é de admitir que uma pessoa possa invocar e opor um vício por ela (con)causado culposamente, vício em relação ao qual a outra parte confiou que não seria invocado, nesta convicção orientando a sua vida”.
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9. - Decisão.
Em face do supra exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em concedendo parcial procedência à apelação da autora:
9.1. – Não alterar a decisão de facto proferida pelo a quo;
9.2. - Revogar a sentença recorrida no segmento em que “decide condenar a A, como litigante de má fé, na multa correspondente a 5UC’s”.
9.3. - Manter no mais a sentença recorrida, maxime quanto à sentenciada absolvição do réu do pedido;
9.4. - Determinar o desentranhamento dos autos do documento junto pelo apelado com as respectivas contra-alegações recursórias;
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Custas na APELAÇÃO a cargo da apelante e do apelado, e na proporção, respectivamente, de 95% e 5%.
Custas do incidente reportado à junção indevida de documento em sede de instância recursória a cargo do seu apresentante/apelado, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC - cfr. art.º 527º/1 CPC e art.º 7º/4, do RCJ.
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(1) Dispõe o art.º 423º, do CPC, sob a epígrafe de “Momento da apresentação “, que:
“1- Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”
(2) In Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, Pág. 254
(3) Cfr. Brites Lameiras, in Notas Práticas Ao Regime Dos Recursos Em Processo Civil, 2dª Edição, Almedina, pág. 123.
(4) Em anotação ao Ac. do STJ de 09.12.1980, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115º, págs. 91 e segs..
(5) Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/7/2019, Proferido no Processo nº 23712/12.1T2SNT-A.L1-7, e in www.dgsi.pt.
(6) Proferido no Processo nº 20112/15.5T8SNT.L1-6, e in www.dgsi.pt.
(7) Em Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, página 314.
(8) Cfr. Prof. ANTUNES VARELA e outros, in Manual de Processo Civil, 1984, págs. 420 e segs.
(9) Cfr. Prof. ANTUNES VARELA e outros, ibidem
(10) Cfr. De entre muitos outros os Acs. do STJ de 2/12/2013, proferido no Proc. Nº 1420/06.2TVLSB.L1.S1, e de 24/1/2012, proferido no Proc. nº 1156/2002.L1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
(11) Cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, 3ª Edição, pág. 309.
(12) Cfr. Ac. do STJ de 1/7/2014, proferido no Proc. nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
(13) Cfr. Ac. do STJ de 8/6/2011, proferido no Proc. nº 350/98.4TAOLH.S1, in www.dgsi.pt.
(14) Cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, ibidem, pág. 318.
(15) Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/8/2012, proferido no Processo nº 7477/10.4TBBRG.G1 e acessível em in www.dgsi.pt.
(16) Cfr. Ac. do STJ de 22/09/2016, proferido no Processo n.º 681/14.8TVLSB.L1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
(17) Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 14/11/2022, proferido no Processo n.º 13700/19.2T8PRT.P1, e disponível em www.dgsi.pt.
(18) Ac. proferido no Processo n.º 2234/11.3TBFAF.G1.S1, sendo Relator LOPES DO REGO e disponível em www.dgsi.pt.
(19) No Proc. nº 169/13.4TCGMR.G2.S1, sendo Relator JOÃO CAMILO e in www.dgsi.pt.
(20) In Recursos em Processo Civil, Almedina, Novo Regime, 2010, 3ª Edição, Revista e Actualizada, Pág. 111.
(21) Acórdão n.º 357/98 do Tribunal Constitucional, de 12.5.1998, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 40.°- 275
(22) Cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, em Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, pág. 507.
(23) Cfr. Brites Lameiras, in Notas Práticas Ao Regime Dos Recursos Em Processo Civil, 2dª Edição, Almedina, pág. 36.
(24) Cfr. Ac. do STJ de 18/6/2013, proferido no Processo nº 483/08.0TBLNH.L1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
(25) Cfr António Menezes Cordeiro, In Litigância de Má-Fé,Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 3ª Edição, Almedina, págs. 63 e segs..
(26) Cfr. Pedro de Albuquerque, inResponsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil Em Virtude de Actos Praticados No Processo”, Almedina, 2006, pág. 51/52 e 53.
(27) Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil,1979, pág. 358 e José Alberto dos Reis, in Cód. de Processo Civil, Anotado, II, pág. 259.
(28) Cfr António Menezes Cordeiro, ibidem, págs 66/67
(29) Ac. de 6/10/2005, proferido no Proc. nº 0534447, e in www.dgsi.pt.
(30) Ac. de 16/6/2014, Proc. nº 117/13.1TBPNF.P1, e in www.dgsi.pt.
(31) Ac. de 16/12/2015, Proc. nº 3039/12.0TBVIS.C1, e in www.dgsi.pt.
(32) Em Abuso do Direito (em matéria de responsabilidade civil), in BMJ, nº 85, Abril, 1959, págs. 268 e segs..
(33) Cfr. PAULA COSTA E SILVA, in A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pág. 393.
(34) Ibidem, pág. 396, e socorrendo-se de Figueiredo Dias, em Direito penal.
(35) Cfr. PAULA COSTA E SILVA, in A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pág. 354.
(36) Cfr. MENEZES CORDEIRO, em In Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 3ª Edição, Almedina, págs. 146 e segs..
(37) Cfr. PAULA COSTA E SILVA, in A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pág. 627.
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Lisboa, 23/05/2024.
António Santos
Anabela Calafate
Teresa Soares