Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
263/22.0PGCSC.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DEVER DE CORRECÇÃO
DEVERES PARENTAIS
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora)
Fora de casos excepcionalíssimos ( v.g. quando o uso da força física se dirige a outra das diversas dimensões das responsabilidades parentais que entroncam já não no dever de educação, mas noutros deveres como os de cuidado e vigilância, como acontece, por exemplo, quando o recurso à força física seja o único mecanismo apto a impedir uma criança de assumir um comportamento autolesivo ou perigoso para si mesmo ), não existe argumento algum que justifique que uma ofensa à integridade física contra uma criança não seja protegida pelo direito e pelo direito penal em especial, nos mesmos termos que uma ofensa à integridade física contra um adulto é sancionada, porventura, que até lhe confira uma protecção acrescida, em atenção à sua vulnerabilidade resultante da sua idade, de ter a sua personalidade ainda em desenvolvimento e de, por efeito da sua menoridade, estar dependente dos pais e/ou de outros cuidadores a cuja guarda tenha sido confiado de facto ou de direito, o que a coloca numa situação eventualmente mais frágil por isso mais exigente quanto à tutela da sua dignidade humana e à protecção reforçada dos seus direitos que a ordem jurídica lhe deve reconhecer, em conformidade com as exigências do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da CRP.
Mas precisamente por isso é que a criança é sempre vítima especialmente vulnerável quando sujeita a qualquer forma de violência física, psíquica ou contra a sua autodeterminação sexual, estando «ope legis» associados a esse estatuto todo um conjunto de direitos processuais e extraprocessuais direcionados a uma tutela reforçada, em atenção à sua idade e às necessidades, entre outras, de obviar à sal revitimização (cfr., a propósito o art. 67º nº 3 do CPP e as Leis 112/2009 de 16.09 e 130/2015 de 04.09).
Por outro lado, o facto de não existir nenhum preceito na lei portuguesa que estabeleça o poder de correção não se deve a uma lacuna da lei, mas a uma intenção deliberada do legislador de banir dos castigos físicos do conteúdo do poder paternal, primeiro e de seguida, das responsabilidades parentais, como de resto se infere do texto da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer expressamente no art. 69º o direito das crianças « à protecção da sociedade e do Estado, [...] especialmente contra [...] o exercício abusivo da autoridade na família».
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 3º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
Por sentença proferida em 12 de Dezembro de 2023, no processo comum singular nº 263/22.0PGCSC do Juízo Local Criminal de Cascais - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi decidido:
A. Condenar a arguida AA pela prática, pela prática, como autora material, de um crime de violência doméstica, na pessoa de BB, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alíneas d) e e), e n.° 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses, e condicionada a regime de prova, assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao cumprimento das penas acessórias referidas em B. e C, enquanto regras de conduta, cumprindo ainda todas as recomendações e prescrições que lhe forem determinadas e comparecendo sempre que determinado por aqueles serviços.
B. Condenar a arguida na pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRSP;
C. Condenar a arguida na pena acessória de proibição de contacto com a vítima BB, incluindo o afastamento da residência e do local de ensino por esta frequentado, pelo período de 3 anos e 6 meses.
D. Condenar a arguida na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais da sus filha BB, pelo período de 3 anos e 6 meses.
E. Não condenar a arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas.
F. Condenar a arguida a pagar a BB, a quantia de €800,00 (oitocentos euros), a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos dos artigos 21.°, n.° 2, da Lei n.° 112/2009, de 16/09 e 82.°-A, do Código de Processo Penal, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão e até integral e efetivo pagamento.
A arguida interpôs recurso da sentença, tendo, para tal efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. A condenação da RECORRENTE é uma tremenda injustiça. A RECORRENTE é punida por conclusões que derivam (só!) de supostas regras da “experiência comum” e da enviesada e exclusiva perceção do Tribunal a quo, ignorando todo o acervo de prova produzida, bem como os princípios constitucionais de nulla poena sine culpa e in dubio pro reo.
2. A RECORRENTE foi condenada por se encontrar em total desespero com o “rumo" educacional que a OFENDIDA, sua filha, levava, desespero que se evidenciou, de forma muito exasperada (patente no excesso de linguagem) em três mensagens de voz da aplicação Whatsapp.
3. E isto porquanto cumpria o seu poder-dever educacional em relação à OFENDIDA que englobava, evidentemente, a educação e a administração com o objetivo da salvaguarda, promoção, e realização do interesse da referida OFENDIDA!
4. Ao contrário do referenciado na sentença de que se recorre, a relação entre a RECORRENTE e a OFENDIDA era feliz e frutífera. Ou seja, o enquadramento relacional da RECORRENTE e da OFENDIDA não era, como se tenta fazer passar na sentença (que é um “copy and paste” da Acusação), pautado por agressões verbais e/ou físicas!
5. A RECORRENTE nasceu em ..., no ..., mas vive em ... há aproximadamente 23 anos, desempenhando, a título profissional, funções de empregada doméstica de terceiros sendo, também, cuidadora de idosos.
6. A RECORRENTE sempre educou sozinha a OFENDIDA, não tendo tido qualquer ajuda do pai da OFENDIDA, que apesar de muitas restrições e sacrifícios que sempre fez nos últimos anos, sempre deu o seu melhor para que nada faltasse à OFENDIDA.
7. A OFENDIDA efetuou o 1.°, 2.°, e 3.° e 4.° anos de escolaridade no .... Além das atividades curriculares que o ... facultava, a RECORRENTE proporcionou à OFENDIDA a prática de natação como atividade extracurricular.
8. Ao longo dos mais de 4 anos de frequência do ... a OFENDIDA sempre cumpriu com os seus deveres e obrigações escolares, apresentando bons resultados académicos.
9. A OFENDIDA efetuou o 5.° e 6.° anos de escolaridade no .... Além das atividades curriculares que o ... facultava, a RECORRENTE proporcionou à OFENDIDA a frequência da atividade extracurricular de curso de inglês.
10. Mais uma vez, e fruto da boa educação proporcionada à OFENDIDA, a OFENDIDA sempre demonstrou uma boa evolução académica, demonstrando bons resultados sendo presenteada pela RECORRENTE, por exemplo, com um curso de equitação.
11. Posteriormente, e para o ano letivo 2021/2022, face às dificuldades que se fizeram sentir com a pandemia Covid-19 e com a consequente afetação do orçamento familiar da RECORRENTE, esta foi obrigada a transferir a OFENDIDA para uma escola pública, a Escola Básica EB 2 3 ..., onde efetuou o 7.° ano de escolaridade.
12. Foi também durante este ano letivo que os bons resultados sempre demonstrados pela OFENDIDA ao longo do seu percurso académico se tornaram em faltas de atenção, em falhas aos deveres de casa e, consequentemente, em queixas dos professores à RECORRENTE.
13. O deterioramento do aproveitamento académico da OFENDIDA motivou-se, principalmente, pela influência de CC, fruto da qual a RECORRENTE foi recebendo vários comunicados de aviso e alerta por parte da Escola Básica EB 2 3 ....
14. Num contexto de enorme preocupação com o desempenho académico, a RECORRENTE, por grande sacrifício pessoal e esforço económico, providenciou à OFENDIDA explicações on-line (de Matemática e Francês) no ..., Explicações & Centro de Estudos, suportando o custo de € 2.000,00.
15. E isto porque cumpria o seu poder-dever educacional em relação à OFENDIDA que englobava, evidentemente, a educação com o objetivo da promoção e realização do interesse da referida OFENDIDA.
16. Mas, e apesar do grande esforço económico da RECORRENTE, também o explicador da OFENDIDA referenciou várias faltas de deveres de casa, faltas de atenção e faltas de interesse da OFENDIDA.
17. A RECORRENTE tentou, por diversas vezes, conversar e sensibilizar a OFENDIDA para o cumprimento das suas obrigações escolares explicando que estava a investir na sua educação, com grande esforço e sacrifício, mas sem sucesso.
18. Também durante o ano letivo 2021/2022, a OFENDIDA desenvolveu uma dependência de plataformas gerais na internet (como redes sociais) e jogos on-line, dependência essa que provocou um sentimento de alerta e cuidado na RECORRENTE, em especial, tendo em conta os esforços financeiros e pessoais que fez nos últimos anos para “dar o melhor’ à sua filha.
19. Por outras palavras, a RECORRENTE estava numa situação de nervosismo e desespero pois que não queria (e não quer!) que a OFENDIDA tenha insucesso. Seja ele pessoal ou escolar!
20. Porém, o exercício do poder-dever da educação a que a RECORRENTE está obrigada pela lei não faz, ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, com que o relacionamento entre a RECORRENTE e a OFENDIDA tenha sido envolto num crime de violência doméstica.
Vejamos.
21. Em primeiro lugar, o Tribunal de 1.a Instância descurou o facto de a Acusação do Ministério Pública ser nula por falta de indicação de especificação de prova, tendo o Tribunal a quo incorrido num erro de julgamento.
22. E isto porque as provas em que se baseou o Tribunal a quo, foram omitidas na Acusação.
23. Com efeito, em vez de uma referência mínima aos meios de prova que sustentam cada facto (supostamente) praticado pela RECORRENTE, a Acusação limitou-se a uma referência genérica e em bloco, efetuada no final do texto acusatório - violando o direito de defesa de qualquer arguido, por referência aos artigos 16.°, n.° 1, 20.°, n.° 4, e 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa e, ainda, ao artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
24. A título de exemplo, um dos factos essenciais imputados à RECORRENTE na Acusação foi o do ponto 9 «Em datas não concretamente apuradas, a arguida dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe vários golpes, nomeadamente com o auxilio de sandálias, cinto e um cabide.», que foi praticamente vertido na íntegra no facto 7) da sentença recorrida «No período refendo em 3., em datas não apuradas mas pelo menos com periodicidade quinzenal, no domicilio comum a arguida dirigiu-se à menor BB e desferiu-lhe pancadas em diferentes partes do corpo, nomeadamente com a mão aberta e com uma sandália/chinelo e, numa das vezes, com o auxilio de um cabide.».
25. A RECORRENTE fica sem perceber como é que o Ministério Público e Tribunal de 1.a Instância chegaram a semelhantes conclusões.
26. Motivo pelo qual, se a notificação feita ao arguido ao abrigo do artigo 283.° do Código de Processo Penal não fornecer os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspetos concretos em que a acusação é formulada e exercer o seu direito de defesa, então o ato padece de nulidade, por força do disposto no n° 3 do artigo 283.° e do artigo 118.° do Código de Processo Penal.
27. Em segundo lugar, o Tribunal de 1.a Instância descurou o facto de a Acusação do Ministério Pública não indicar os factos que concretizam a participação da RECORRENTE no crime imputado, violando o disposto no artigo 283.° do Código de Processo Penal e artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, tendo o Tribunal a quo incorrido num erro de julgamento.
28. Isto é, o Ministério Público na Acusação não precisou os factos que concretizam a participação da RECORRENTE no crime que lhe foi imputado. Os factos são generalistas, vagos, desenquadrados e imprecisos e sem qualquer fundamentação investigatória.
29. A Acusação fez uma imputação meramente genérica dos factos, que foi, de resto, transposta para a sentença do Tribunal a quo, que deu tais factos genéricos como provados, encontrando- se, por isso, viciada com o mesmo erro.
30. A Acusação (e também a sentença de que se recorre) não concretiza quando, em que circunstâncias, em que momento, lugar ou quem testemunhou os factos que são imputados à RECORRENTE.
31. Como é evidente, a sentença, na descrição dos factos provados, não cumpre o disposto no artigo 374.° do Código de Processo Penal, uma vez que não descreve as respetivas circunstâncias de tempo e de lugar, o que afeta o direito de defesa da RECORRENTE em toda a sua extensão.
32. Em especial, porque as garantias de defesa de qualquer arguido impõem que este seja informado dos elementos subjetivos do crime, nos exatos termos configurados pelo Ministério Público. O que não aconteceu.
33. Por conseguinte, pela violação do artigo 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal, conclui-se que a acusação do Ministério Público é nula por não conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação à RECORRENTE de uma pena, incluindo, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática e o grau de participação que o agente neles teve.
34. De igual modo, a sentença recorrida, ao ter feito um “copy and paste’’ integral dos factos constantes da decisão do Ministério Público, sem atender ao vício invocado, incorreu precisamente no mesmo vício de falta de narração dos factos de tempo e de lugar, limitando-se a dar como provado generalidades factuais («em datas não concretamente apuradas»), sendo, assim, a sentença nula ao abrigo do disposto nos artigos 374.°, n.° 1, alínea c) e n.° 2 e 379.°, n.° 1, alínea a), e n.° 2 do Código de Processo Penal.
35. Mas não só. A RECORRENTE não gozou, por total ausência de culpa sua, das garantias de defesa que lhe são constitucional e legalmente asseguradas, uma vez que foi condenada sem fase de instrução.
36. O requerimento de abertura de instrução apresentado pela RECORRENTE foi extemporâneo, por culpa exclusiva do seu anterior mandatário, que perdeu o prazo para requerer a abertura de instrução em quase um mês!
37. A perda do prazo para requerimento de abertura de instrução causou a condenação da RECORRENTE, e isto porque a RECORRENTE perdeu uma garantia de defesa!
38. No caso, o debate instrutório (de que a RECORRENTE não gozou) permitiria uma discussão perante juiz sobre a existência de indícios suficientes para submeter, ou não, a arguida a julgamento!
39. O que, e salvo o devido respeito, não há dúvidas que culminaria com a decisão de falta de indícios suficiente para submeter a RECORRENTE a julgamento e, posteriormente, na não condenação da RECORRENTE!
40. Em terceiro lugar, o Tribunal de 1.a Instância não enquadrou corretamente, jurídico- penalmente, o crime de violência doméstica, pois que os pressupostos previstos no n.° 1 do artigo 152.° do Código Penal e os elementos constitutivos do respetivo tipo não se encontram preenchidos, devendo a RECORRENTE ter sido, por esse motivo, absolvida.
41. Por um lado, ainda que tenha havido agressões verbais e físicas por parte da RECORRENTE (que não houve), as mesmas não consubstanciam uma situação de “maus-tratos", pressuposto previsto no n.° 1 do artigo 152.° do Código Penal.
42. Por outro lado, a ter havido agressões verbais e físicas por parte da RECORRENTE (que não houve), as mesmas não foram reiteradas, não se verificando uma “conduta norma" por parte da RECORRENTE, critério apontado pela doutrina e pela jurisprudência para o tipo legal do crime de violência doméstica.
43. Não se verificando agressões por um qualquer meio prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo, não se preenche o tipo penal da violência doméstica porque não se verifica a conduta típica da ora RECORRENTE.
44. Na verdade, o que o Tribunal de 1.a Instância, em total “copy and paste’’ da Acusação, fez foi fundar a sentença num contexto de «totalitarismo educacional» em que todos os atos da RECORRENTE foram reduzidos a violência doméstica.
45. Mas é imperativo separar dois planos diversos: o penal e o educacional, pois que são suscetíveis de valorações diferentes e consequências díspares. Uma coisa é vontade de lesar o bem-estar físico, psíquico e mental da OFENDIDA por parte da RECORRENTE; outra coisa são os deveres (de mãe) e de encarregado de educação que acompanha e é responsável pelo aproveitamento de uma criança ou adolescente menor, em idade escolar, em especial: o exercício das responsabilidades parentais; o poder disciplinador; e o poder formador da criança.
46. A RECORRENTE apenas cumpria o seu poder paternal que engloba, entre outros, os poderes - dever da educação, de auxílio e assistência, de representação e de administração, cujo exercício está vinculado à salvaguarda, promoção, e realização do interesse da OFENDIDA.
47. Em quarto lugar, a sentença do Tribunal de 1.a Instância goza de uma total ausência de factos relativos ao alegado dolo e culpa da RECORRENTE, não se preenchendo o elemento subjetivo do crime de violência doméstica e não podendo este ser imputado à RECORRENTE.
48. O dolo, configurado pelos elementos volitivo e cognitivo do agente na prática da conduta típica, não se encontra minimamente descrito na sentença. Isto é, não se descrevem factos ou elementos na sentença que permitam sustentar um suposto conhecimento da RECORRENTE, mas apenas se pressupõe esse tal conhecimento.
49. Não basta acusar com base na enunciação do tipo penal e na sua associação genérica e abstrata à RECORRENTE; é necessária uma associação expressamente concreta, comprovada e factual.
50. Neste sentido, a mera referência de que «Em todo o descrito circunstancialismo, agiu de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubesse que o seu comportamento é censurado por lei como crime» (cfr. página 4 da sentença) não cumpre as exigências mínimas de uma sentença de dolo da RECORRENTE.
51. Em quinto lugar, o Tribunal de 1.a Instância errou na apreciação e valoração da prova carreada aos autos, tendo dado como provados factos sobre os quais não foi produzida nenhuma prova (ou foi produzida prova em clara contradição) e como não provados factos sobre os quais foi produzida prova.
52. Mais ainda: o Tribunal de 1.a Instância errou na apreciação e valoração da prova porquanto assentou grande parte da sentença no depoimento da OFENDIDA - a qual mentiu, omitiu e entrou em contradição por diversas vezes!
53. Ao contrário do sustentado na sentença do Tribunal de 1.a Instância, o facto provado 3) não se deve manter como provado na decisão do Tribunal a quo, pois que (i) foi amplamente contraditado e impugnado na Contestação, conforme descrito nesta peça processual; (ii) não foi produzida qualquer prova (além do atabalhoado depoimento da OFENDIDA); e (iii) está em contradição direta com o explanado nos depoimentos do Senhor DD, da Senhora XX, da Senhora EE e da Senhora FF, todos indicados no corpo desta peça processual.
54. Ao contrário do sustentado na sentença do Tribunal de 1.a Instância, os factos provados 4) e 5) não se devem manter como provados na decisão do Tribunal a quo, pois que (i) foram amplamente contraditados e impugnados na Contestação, conforme descrito nesta peça processual; (ii) não foi produzida qualquer prova (além do atabalhoado depoimento da OFENDIDA); e (iii) estão em contradição direta com o explanado nos depoimentos da Senhora XX, da Senhora GG e da Senhora FF, todos indicados no corpo desta peça processual.
55. Ao contrário do sustentado na sentença do Tribunal de 1.a Instância, os factos provados 7), 8), 9) e 12) não se devem manter como provados na decisão do Tribunal a quo, pois que (i) foram amplamente contraditados e impugnados na Contestação, conforme descrito nesta peça processual; (ii) não foi produzida qualquer prova (além do atabalhoado depoimento da OFENDIDA); e (iii) estão em contradição direta com o explanado nos depoimentos da Senhora FF, da Senhora GG, do Senhor DD e da Senhora XX, todos indicados no corpo desta peça processual.
56. Ao contrário do sustentado na sentença do Tribunal de 1.a Instância, os factos provados 13), 14) e 15) não se devem manter como provados na decisão do Tribunal a quo, pois que (i) foram amplamente contraditados e impugnados na Contestação, conforme descrito nesta peça processual; (ii) não foi produzida qualquer prova; e (iii) estão em contradição direta com o explanado nos depoimentos do Senhor DD, da Senhora HH e do Senhor II, todos indicados no corpo desta peça processual.
57. Mais, ao contrário do sustentado na sentença do Tribunal de 1.a Instância, o facto não provado a. não se deve manter como não provado na decisão do Tribunal a quo, pois que (i) não só está em coerência com o alegado na Contestação, conforme descrito nesta peça processual; (ii) como tem amplo suporte tanto na prova documental junta com a Contestação; e (iii) no depoimento da Senhora JJ, indicado no corpo desta peça processual.
58. Ao contrário do sustentado na sentença do Tribunal de 1.a Instância, o facto não provado b. não se deve manter como não provado na decisão do Tribunal a quo, pois que não está em coerência com o alegado na Contestação que o Ministério Público, em sede de julgamento, nunca pôs em causa.
59. Em sexto lugar, a sentença do Tribunal de 1.a Instância viola gravemente o princípio da nulla poena sine culpa pois que não se verifica qualquer grau de especificação de factos que permitam aferir a existência ou intensidade da culpa, os fins ou motivos pessoalmente determinantes, as condições pessoais ou, ainda, a conduta pessoal anterior ao facto e posterior a este da RECORRENTE.
60. Refira-se que o princípio da nulla poena sine culpa é uma das mais elementares garantias de defesa do arguido no processo penal.
61. Em sétimo lugar, a sentença do Tribunal de 1.a Instância viola gravemente a garantia constitucional da presunção da inocência, plasmada no artigo 32.°, n.° 1 da Constituição, na sua vertente do princípio in dubio pro reo.
62. Produzida prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, o juiz deve decidir a favor do arguido dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
63. Ora, a ausência de prova dos factos que constituem o crime de violência doméstica verificada, equivale, necessariamente, à existência de uma dúvida sobre a verificação de tais factos, dúvida essa que deveria ter sido resolvida a favor da arguida, ora RECORRENTE.
64. Assim, o Tribunal a quo não cumpriu com tal imposição constitucional, tendo antes, perante manifestas situações de dúvida relativamente aos factos, decidido contra a RECORRENTE. Algumas delas (das dúvidas) assentes e patentes em depoimentos totalmente contraditórios, como o da OFENDIDA!
65. As conclusões retiradas pelo Tribunal a quo quanto à matéria de facto são manifestamente infundadas, tendo o Tribunal a quo desconsiderado na sua totalidade a prova carreada pela RECORRENTE, baseando a sua decisão única e exclusivamente no depoimento da OFENDIDA - um depoimento prestado por uma criança, sem experiência, contraditório, inconsistente e falível.
66. A sentença deve, por violar o princípio in dubio pro reo (e o princípio nulla poena sine culpa), ser revogada.
67. Por último, e a título subsidiário, sempre se refira que o alegado ilícito criminal da RECORRENTE apenas geraria um crime de ameaça e não um crime de violência doméstica.
68. Pois que as mensagens de voz referidas no artigo 1.° do presente capítulo das Conclusões (que foi a única prova carreada aos autos pelo Ministério Público), não configuram um crime de violência doméstica e, quando muito, configuram - sem se conceder - um crime de ameaça.
69. Pelo que, caso se entenda que os factos praticados pela RECORRENTE se subsumem a um tipo de crime, deverá considerar-se que tal tipo de crime é o crime de ameaça, e não de violência doméstica, alterando-se a classificação do crime a que a RECORRENTE foi condenada, para um crime de ameaça.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, por provado, e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu:
1. A recorrente foi condenada pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n°s 1, alíneas d) e e) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sujeita a regime de prova e subordinada ao cumprimento das penas acessórias; na pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRSP; na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da residência da mesma e do local de ensino por esta frequentado, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sem fiscalização por meios técnicos de controlo à distância; na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais da sua filha BB, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses.
2. A arguição da nulidade da acusação, por parte da recorrente, é intempestiva e, como tal, considera-se sanada qualquer eventual nulidade de que a mesma pudesse enfermar.
3. A eventual falta da concretização das circunstâncias de tempo e lugar na matéria de facto provada, não configura qualquer vício da sentença, não inquinando a mesma de nulidade.
4. A recorrente limita-se a referir ter o decurso do prazo para abertura da fase de instrução sido alheio à sua atuação, não impugnando qualquer decisão judicial, sendo certo que qualquer eventual responsabilidade por parte do seu mandatário no eventual incumprimento do prazo para apresentação do requerimento para abertura de instrução deverá ser resolvido, em sede cível, podendo a recorrente, querendo, recorrer a tais meios, visando obter o ressarcimento do prejuízo causado.
5. A apreciação que o tribunal a quo efetuou quer do depoimento da ofendida, quer do depoimento das testemunhas de acusação e da prova produzida em julgamento, não nos merece qualquer reparo.
6. Decorre da sentença recorrida que o tribunal a quo considerou que a vítima prestou depoimento de forma espontânea, credível, objetiva e muitas vezes emocionada. A ofendida não se limitou a corroborar os factos vertidos na acusação, não evidenciando qualquer intenção de prejudicar a arguida, sua mãe. Ainda assim, a ofendida circunstanciou os factos no tempo, concretizou que as agressões físicas foram perpetradas com auxílio de um chinelo e numa das vezes com um cabide, não confirmando a utilização pela arguida de um cinto. Explicou que, como forma de a castigar, a mãe, a obrigava a tomar banho de água fria, direcionando a água gelada mesmo na cara, ficando a vítima quase se conseguir respirar. Descreveu os episódios que experienciou, muitos dos quais não constavam da acusação, com detalhes demasiado específicos para serem inventados, sendo o seu depoimento em audiência consistente e coerente com as declarações para memória futura que havia prestado em sede de inquérito.
7. O tribunal a quo entendeu, ainda, ter tal depoimento sido parcialmente corroborado pelo depoimento da testemunha CC, que reputou de sincero, a qual referiu que a vítima lhe relatou e confidenciou diversos episódios quer de agressões físicas, quer verbais, tendo recebido as mensagens de voz reencaminhadas pela vítima, que, por sua vez, reencaminhou para a sua mãe, aqui denunciante.
8. Mais entendeu o tribunal a quo que a versão da vítima em julgamento foi igualmente, corroborada pelas mensagens de voz enviadas pela arguida, reproduzidas em audiência de julgamento, onde transparece a forma serena, a frieza no tom de voz e as pausas no discurso da arguida, as quais não evidenciam qualquer descontrolo emocional.
9. Não existe qualquer impedimento legal a que o tribunal considere como provados factos apenas e tão só com base no depoimento de uma testemunha, ainda que esta seja a vítima do crime.
10. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, constatamos que a sua discordância assenta na valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo, a qual, livremente formada e fundamentada, resulta da convicção lógica em face da prova produzida e à luz das regras da experiência comum, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
11. Não se vislumbra qualquer motivo válido para não se valorar o depoimento da ofendida, corroborado, aliás pela prova testemunhal e documental junta aos autos, revestindo estas força probatória suficiente para o tribunal formar a sua convicção, inexistindo, pois, qualquer erro, muito menos notório, na apreciação da prova.
12. Da análise da sentença recorrida, constata-se que a prova produzida foi de molde a não criar quaisquer dúvidas no Julgador, antes e pelo contrário, a prova produzida em audiência, conduziu o tribunal a quo à certeza de que a recorrente praticou os factos que foram dados assentes, pelo que não se impunha, assim, aplicar o princípio in dubio pro reo.
13. Não é pelo facto de haver diferentes versões de uma determinada factualidade e de se optar por uma delas como sendo a que melhor a retrata, que se está a violar, sem mais, o princípio in dubio pro reo.
14. O tribunal a quo proferiu a sentença no pleno convencimento de que os factos ocorreram nos moldes relatados pela ofendida e de que a recorrente foi sua autora, por força das provas devidamente valoradas e submetidas ao respetivo exame crítico.
15. Os factos dados como provados na sentença recorrida preenchem todos os elementos do tipo objetivo e do tipo subjetivo do crime de violência doméstica pelo qual a recorrente veio a ser condenada.
16. O comportamento da recorrente, evidenciado nos factos provados, é revelador do desprezo e da desconsideração que manifestou pela vítima, sua filha menor, querendo impor a sua força a esta, desferindo-lhe pancadas em diferentes zonas do corpo, com a mão aberta, mediante o uso de um chinelo e, numa ocasião, com o auxílio de um cabide, obrigando-a a tomar banho de água fria, humilhando-a e causando-lhe temor, dirigindo-se à mesma munida de uma faca em riste, ao mesmo tempo que lhe dizia que a ia cortar em pedaços e deitá-la pela sanita. Tais condutas foram de uma violência e gravidade incompatíveis com a dignidade e liberdade da vítima, em muito extravasando qualquer conduta corretiva ou disciplinadora.
17. O envio pela arguida à ofendida, sua filha, das mensagens, que admitiu ter remetido, cujo conteúdo é de uma desumanidade e perversidade indescritível, com um tom de voz frio, e desprovido de qualquer emoção, era, por si só, idóneo para preencher o tipo legal do crime de violência doméstica.
18. Também o elemento subjetivo do ilícito penal resultou demonstrado, na medida em que a recorrente atuou com dolo direto, já que se fez prevalecer da ascendência física e psicológica que tinha sobre a sua filha menor, frágil e dependente de si a todos os níveis, sob a égide de um poder-dever disciplinador e educacional, que em muito extravasou, assumindo uma posição de domínio sobre a mesma, menosprezando-a na sua dignidade e autodeterminação, manifestando indiferença no seu desenvolvimento psíquico e emocional.
19. O tribunal a quo ponderou a culpa da atuação da arguida, entendendo ser de grau elevado, na medida em que os factos praticados revelaram «um desprezo considerável pelos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora, mas ainda tomando em consideração as caraterísticas da vítima e a sua especial vulnerabilidade, pondo em causa o seu desenvolvimento e crescimento emocional e psíquico.»
20. A alegada falta de consciência por parte da recorrente da ilicitude da sua atuação, configurando-a como um mero exercício de um poder-dever disciplinador e educacional, não afasta a culpa na sua atuação, já que em muito extravasou a conduta corretiva, criando um ambiente de terror para a sua filha, que, durante dois anos viveu com medo e angústia, submetendo-se, em silêncio, aos maus tratos físicos e psíquicos infligidos pela sua mãe.
21. Ademais, a própria recorrente admitiu ter excedido a linguagem, com as mensagens que remeteu à ofendida, sendo certo que a falta de sentido crítico para a sua conduta não exclui de todo a sua culpa.
22. O princípio do nulla poena sine culpa pressupõe que toda a pena tem como fundamento axiológico-normativo uma culpa concreta do agente, atribuindo- se à mesma um conteúdo de reprovação ética, constituindo, igualmente, o limite máximo da pena.
23. Analisada a decisão, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou corretamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial, pelo que, não foi violado o princípio em apreço.
24. Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida.
Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada na íntegra, a sentença recorrida.
Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral da República Adjunta , emitiu parecer, nos seguintes termos (transcrição parcial).
«(…) aderimos à Resposta apresentada pela Exm.a Magistrada do Ministério Público junto da 1a Instância, por juridicamente correta e muito bem fundada, que como tal subscrevemos, e à qual apenas aditaremos o seguinte:
A Recorrente vem discordar do entendimento do Tribunal a quo sobre a valoração da prova e da credibilidade dos diversos depoimentos. Assim, pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, apresentando uma apreciação dos factos diferente da do Tribunal.
Contudo, fê-lo sem apontar quaisquer factos concludentes que permitam contraditar a apreciação efectuada pelo Tribunal e sem especificar as concretas provas que na sua óptica imporiam decisão diversa, como determina o art. 412° n.° 3 al. b), do C. de Processo Penal.
Consequentemente, a matéria de facto ficou assente.
Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III - (...) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art. 412° n.° 3 do Código de Processo Penal (...)”.
O que o Recorrente não fez.
Com efeito, o regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente cumpra o formalismo correspondente, designadamente o do n.° 3 do art. 412° do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (n°4).
A questão que se suscita, desde logo, no caso “sub judice” é, assim, a de saber se, tendo a ora Recorrente, entendimento não coincidente com o adotado pelo Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto que seria de considerar provada, deverá ser convidada a aperfeiçoar as conclusões da motivação do recurso, já que é inegável o incumprimento da disciplina prevista no mencionado preceito legal, por delas não constarem os acima mencionados elementos. Porém, verifica- se que padece também de idêntica omissão o texto da motivação do recurso.
A consequência da falta de indicação, no texto da motivação, dos eventuais erros cometidos pelo Tribunal a quo, com expressa discriminação das provas que os demonstram e com referência discriminada aos segmentos dos registos magnéticos das declarações produzidas em audiência, é a não apreciação dessa matéria pelo Tribunal superior, ou seja, o não conhecimento de eventuais erros que hajam sido cometidos, conforme jurisprudência constante e uniforme do S.T.J.
Assim e acolhendo a posição expressa no ACSTJ de 05.06.08 (P.08P1884, Rel.:-Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt), subscrevemos o entendimento de não ser caso de convidar o Recorrente a corrigir as respectivas conclusões, não se conhecendo nesta parte do recurso.
Manifestamente, a Recorrente pretende é pôr em causa a convicção do Tribunal a quo através da sua própria interpretação da prova produzida, pois que não há provas que imponham decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo.
Ora, a impugnação da decisão em matéria de facto “terá de assentar na violação dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria a inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - cfr. o AC TC n.° 198/04, publicado no DR, II Série, de 2/06/2004.
A convicção do Tribunal só pode ser posta em causa em função das regras de experiência comum, ou seja, quando, pelo raciocínio lógico, da razão e do pensamento, baseado naquelas regras, se chega à conclusão de que a convicção do julgador está eivada de erro (erro de julgamento), que suscita dúvidas razoáveis que põem em causa a decisão - cfr., neste sentido, o Ac. Relação de Coimbra, de 25/11/2009, no P° 157/08.2GHCTB.C1, acessível em www.dgsi.pt.
Não é o caso, posto que o Tribunal a quo explica com clareza e sem ambiguidades, num raciocínio claro e de acordo com as regras da experiência comum, as razões da credibilidade das declarações em que se fundou, cumprindo correta e integralmente o requisito “exame crítico” exigido por lei.
Ao invés do que pretende a Recorrente, não ocorreu qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Como se vê do Ac do STJ de 18/04/2012, no P° 138/10.6GBTNV, relatado pelo Cons. Souto Moura, “a violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou em estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados”.
Dúvida esta em que manifestamente o Tribunal a quo não se encontrou.
A nosso ver, a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da experiência comum, sendo fruto de uma apreciação cuidada da prova, tendo feito correta qualificação jurídica e aplicado pena justa e adequada, não merecendo qualquer censura.
Pelo exposto, acompanhando no mais, as doutas alegações de Resposta ao recurso, apresentadas pela Exma Magistrada do Ministério Público, na 1a instância, emite-se parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, sendo de confirmar a decisão recorrida.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, a arguida apresentou resposta, nos seguintes termos:
1. No parecer apresentado, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta deste Tribunal pugnou pela improcedência total do presente recurso jurisdicional e pela consequente manutenção da sentença recorrida.
2. Salvo o devido respeito, não pode o Recorrente conformar-se com o sentido do parecer emitido pelo Ministério Público.
3. Por um lado, é por demais evidente, ao contrário do que entendeu a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, que a RECORRENTE cumpriu os formalismos correspondente ao artigo 413.°, n.° 3 do CPP, nomeadamente:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (cfr. a título de exemplo, o Capítulo 3.3.1 das alegações de recurso apresentadas a 11.01.2024 pela RECORRENTE);
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (cfr. a título de exemplo, o Capítulo 3.3.2 das alegações de recurso apresentadas a 11.01.2024 pela RECORRENTE);
c) e as provas que devem ser renovadas (cfr. artigos 51.° e seguintes das conclusões das alegações de recurso apresentadas a 11.01.2024 pela RECORRENTE).
4. Por outro lado, é também evidente que a RECORRENTE indicou não só os erros pelo Tribunal a quo como, e em especial, a referência discriminada aos segmentos dos registos magnéticos das declarações produzidas em audiência.
5. A título de exemplo, vejam-se os artigos 349.°, 356.°, 357.°, 358.°, 359.°, 370.°, 371.°, 372.°, 392.°, 393.°, 398.°, 401.°, 402.°, 403.°, 404.°, 416.°, 419.°, 420.° e 424.° das alegações de recurso apresentadas a 11.01.2024 pela RECORRENTE.
6. A RECORRENTE demonstrou ao longo das 84 (!) páginas das alegações de recurso que as provas produzidas em audiência de julgamento impõem decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo, ao contrário do que refere a Exma. Procuradora-Geral Adjunta.
7. Em especial e como é referido no parecer do Ministério Público, pois que «a convicção do Tribunal só pode ser posta em causa em função das regras da experiência comum, ou seja, quando pelo raciocínio lógico, da razão e do pensamento, baseado naquelas regras, se chega à conclusão de que a convicção do julgador está eivada de erro (erro de julgamento), que suscita dúvidas razoáveis que põem em causa a decisão».
8. A título de exemplo: o Tribunal a quo considerou «Em datas não apuradas mas pelo menos com periodicidade quinzenal, no domicilio comum a arguida dirigiu-se à menor BB e desferiu-lhe pancadas em diferentes partes do corpo, nomeadamente com a mão aberta e com uma sandália/chinelo e, numa das vezes, com o auxilio de um cabide».
9. Pergunta-se assim: quando? Em que circunstâncias? Em que momento? Em que lugar? Quem testemunhou tais factos?
10. O Tribunal a quo não respondeu a tais perguntais, quando assim o deveria ter feito!
11. Ora, à luz da «experiência comum, ou seja, quando pelo raciocínio lógico, da razão e do pensamento», é totalmente inverosímil que a Recorrente possa ter sido condenada sem o mínimo de prova a este respeito!
12. É evidente que a decisão recorrida está ferida (além de nulidade) de lógica e das regras de experiência comum. 
13. Em especial porque em virtude das manifestas e patentes dúvidas, o juiz deve decidir a favor do arguido dando como não provado o facto que seja desfavorável quando produzida prova e efetuada a sua valoração e o seu resultado seja uma dúvida.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser concedido, porque provado, e em consequência, a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 12 de dezembro de 2023, ser revogada.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, se esta for uma sentença, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, tendo como referência as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
Se a sentença é nula, nos termos do disposto na alínea a) do n° 1 do artigo 379°, do Código de Processo Penal, por não conter as menções referidas no n° 2 e na alínea b), do n° 3, do artigo 374°, do Código de Processo Penal;
Se houve erro de julgamento quanto pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 12, 13, 14 e 15 da matéria de facto provada que deveriam ter sido considerados não provados e também no que se refere aos factos constantes das alíneas a) e b) da matéria de facto não provada, relativa à contestação, que deveriam ter sido considerados provados;
Se se verificam os vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 als. b) e c) do Código de Processo Penal.
Se foi violado o princípio «in dubio pro reo».
Se não estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de violência doméstica.
2.2. DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença condenatória sob recurso fixou os factos e fundamentou a sua convicção, quanto à prova produzida, nos seguintes termos (transcrição parcial):
A) Da acusação
1. A arguida AA é mãe da menor BB, nascida a 18.06.2009.
2. Desde pelo menos 2020, a arguida e a menor BB residiram na ...° Esq.°, ....
3. Em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos entre abril de 2020 e abril de 2022, e com periodicidade pelo menos semanal, a arguida exaltava-se e discutia com a menor BB, maioritariamente pela atribuição de tarefas domésticas ou por entender que esta não estudava e, dirigindo-se à mesma, pessoalmente - no domicilio comum - ou por mensagens, apelidava-a de "VAGABUNDA; FILHA DA PUTA".
4. No período referido em 3., em datas não apuradas, mas pelo menos com periodicidade mensal, a arguida enviava mensagens à menor BB ameaçando-a que quando esta chegasse a casa, que lhe iria bater.
5. No período referido em 3., em pelo menos 3 ocasiões distintas, e no contexto de discussões no domicílio comum, a arguida muniu-se com uma faca de cozinha e, dirigindo-se menor BB, com a faca em riste, disse à mesma que a iria cortar aos pedaços e deitá-la pela sanita.
6. Em datas não concretamente apuradas entre março de 2022 e 14.4.2022, a arguida enviou à menor BB, pelo menos 3 mensagens de voz com o seguinte teor:
a. VAGABUNDA! VAGABUNDA! TU EM VEZ DE ESTAR A FAZER OS DEVERES DE MATEMÁTICA, VENDO VÍDEO? SUA FILHA DA PUTA! SUA MISERÁVEL! VOCÊ NÃO VAI PARA CASA DO TEU PAI, NÃO! VOCÊ VAI PARA UMA INSTITUIÇÃO, SUA VAGABUNDA. PARA A INSTITUIÇÃO! TÁ?! ATÉ O PROFESSOR DE MATEMÁTICA JÁ PERCEBEU QUE TU ÉS UMA ORDINÁRIA. TU ATÉ GOZA COM A CARA DAS PESSOAS. SUA VAGABUNDA! SUA ORDINÁRIA!". QUANDO EU CHEGAR EM CASA, HOJE, TU VAI TOMAR UM BANHO, FRIO, ATÉ TU DESMAIAR NA CASA DE BANHO, SUA MISERÁVEL, MISERÁVEL, EU PODIA-TE TER-TE MATADO MESMO!". O TEU PAI É QUE TINHA RAZÃO. TU TINHA QUE SER ERA MORTA!";
b. "VAGABUNDA, TU EM VEZ DE FAZER OS COISOS DE MATEMÁTICA, ANTES DE COMEÇAR A AULA DE MATEMÁTICA, VAI AGORA FAZER OS DEVERES DE MATEMÁTICA, AGORA FAZER OS RESTOS DOS DEVERES DE MATEMÁTICA, TÁ?! SUA VAGABUNDA!! VOCÊ VAI AGORA FAZER O RESTO DOS DEVERES DE MATEMÁTICA"
c. "EU VOU MANDAR ISSO PARA O PROFESSOR, PRA VER SE FOI ISSO QUE, NÃO , EU VOU VER QUANDO CHEGAR EM CASA, BB, EU VOU VER QUANDO CHEGAR A CASA, SE É ISSO AQUI MESMO QUE ELA MANDOU TU FAZER, PORQUE SE NÃO FOI, BB, EU TE GARANTO, QUE TE CORTO COM A FACA HOJE! TE PENICO INTEIRA! TE JOGO NA CASA DE BANHO, PEDAÇO EM PEDAÇO E DOU DESCARGA, TÁ?! PORQUE EU JÁ TOU FARTA DE VOCÊ! NÃO SEI PORQUE VOCÊ NÃO MORRE?! VOCÊ DEVERIA TOMAR ESSES REMÉDIOS TODOS QUE ESTÃO AI, TODOS, MAS SAI DA MINHA CASA, VAGABUNDA! VOCÊ NÃO PRESTA! VOCÊ NÃO PRESTA! PARA O MÊS, VOCÊ NÃO TEM MAIS EXPLICAÇÃO, NÃO TEM! VOCÊ NÃO TEM, TÁ?! EU QUERO, EU JÁ AVISEI PARA O PROFESSOR, EU JÁ AVISEI PARA O PROFESSOR, QUE NÃO É PARA ELE DAR MOLEZA, NÃO! PORQUE VOCÊ FAZIA ISSO COM A OUTRA, TÁ?! E EU BRIGUEI COM A OUTRA, E A OUTRA É QUE TINHA RAZÃO! VOCÊ É QUE É VAGABUNDA, VOCÊ NÃO VALE NADA! SUA VAGABUNDA!"
7. No período referido em 3., em datas não apuradas mas pelo menos com periodicidade quinzenal, no domicilio comum a arguida dirigiu-se à menor BB e desferiu-lhe pancadas em diferentes partes do corpo, nomeadamente com a mão aberta e com uma sandália/chinelo e, numa das vezes, com o auxilio de um cabide.
8. Em consequência destas agressões a menor sentiu dores e alguns hematomas nas zonas atingidas.
9. No período referido em 3., em pelo menos uma ocasião, e como forma de a castigar, a arguida obrigou a menor BB a tomar banho, de água totalmente fria, apontando-lhe o chuveiro de água fria para a cara.
10. Em 25.05.2022, no âmbito do Processo de Promoção e Proteção n.° 1609/22.7T8CSC que corre termos no Juízo de Família e Menores de Cascais - J4, foi aplicada à menor BB, a medida de apoio junto de outro familiar, na pessoa da irmã KK.
11. Por despacho de 06.03.2023, foi determinada a manutenção daquela medida, pelo prazo de um ano.
12. A menor BB temeu pela sua vida e pela sua integridade física.
13. Atuou a arguida sempre com o desiderato de molestar física e psicologicamente a vítima subjugando-a e provocando-lhe dores, lesões e ferimentos físicos, a sua autodeterminação, provocando-lhe também medo, sofrimento, vergonha, humilhação, vexame, inquietação e indignação, bem sabendo que ao proferir as expressões que proferiu lhe faltava ao respeito devido e que, em virtude da relação estabelecida, recaía sobre si um especial dever de respeito, não se coibindo, contudo, de o fazer, sujeitando-a a um tratamento atentatório da sua dignidade pessoal, bem ainda frustrando o desenvolvimento psíquico e crescimento saudável da sua filha menor.
14. Ao atuar do modo descrito, por vezes no domicílio da vítima, outras vezes através mensagens de voz que lhe enviava para o telemóvel, a arguida sabia e quis exercer violência física e psicológica contra a sua filha, não se coibindo de molestar o seu corpo e a sua saúde mental, nem de dirigir-lhe expressões injuriosas e promessas de morte.
15. Em todo o descrito circunstancialismo, agiu de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubesse que o seu comportamento é censurado por lei como crime.
B) Da contestação:
16. Em janeiro 2019 a menor BB frequentou o ... e teve aulas de natação.
17. Que no ano letivo 2020/21 a menor BB frequentou o ... do … onde completou o 6° ano de escolaridade e onde teve inglês como atividade extracurricular.
18. Que a menor BB teve explicações de matemática.
19. A arguida suportou todas as despesas supra referidas.
20. Em dezembro de 2013, a menor BB realizou analises clinicas que concluíram que a mesma era alérgica a clara de ovo, leite, bacalhau, trigo, amendoim e grão de soja.
21. Em data não apurada a arguida criou uma página de Facebook intitulada “A ... que nasceu com alergias alimentar”.
22. No período referido em 3. a menor BB jogava jogos online com os amigos.
C) Mais se provou:
23. Dos autos não consta que a arguida tenha antecedentes criminais.
24. A arguida trabalha como empregada doméstica, auferindo mensalmente um rendimento líquido de cerca de €800,00 a €900,00.
25. Vive sozinha, em casa própria, pela qual paga cerca de €400,00 de prestação de crédito à habitação.
26. Vive em Portugal desde 2000.
27. Tem duas filhas, a menor BB e uma outra filha de 32 anos que vive no Brasil, com a qual mantém contactos regulares.
28. Paga pensão de alimentos à menor BB no montante de €100,00 por mês.
29. Tem de habilitações literárias o 6.° ano da escolaridade no Brasil.
30. Sobre as condições pessoais da arguida resulta do relatório social de 10.11.2023:
LL encontra-se a residir só na morada dos autos desde a retirada da filha do seu agregado familiar. Apresenta fracos recursos ao nível da instrução literária, revelando hábitos de trabalho consistentes, com referenciado de forma favorável, apresentando também um enquadramento habitacional e social dentro de padrões normativos.
A arguida mantém um modo de vida estruturado, centrado essencialmente nas suas atividades laborais, caracterizando-se a sua situação económica por acentuada contenção, mantendo um modo de vida recatado. Relativamente aos presentes autos, a arguida manifestou uma postura de negação, não se revendo no papel de arguida, vivenciando a situação processual com algum constrangimento interno e alguma revolta por lhe ter sido retirada a filha, situação com a qual se mostra inconformada, não se verificando outros impactos significativos nomeadamente no seu enquadramento socio-laboral.
Na eventualidade de, em caso de condenação, lhe ser aplicada uma medida de execução na comunidade, a arguida aparenta capacidade de adesão, nomeadamente para cumprir as regras que lhe possam ser impostas.
31. Ao gravar as mensagens referidas em 6. a arguida não estava em descontrolo emocional.
*
A) FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:
A) Da acusação
a. Que nas circunstâncias referidas em 9. a arguida tenha batido na menor com um cinto, e bem assim que tenha batido em número de vezes superior ao aí dado como provado.
b. Que mesmo após a retirada da menor BB de casa da arguida, no âmbito do processo de promoção e proteção supra referido, a arguida continuou a tentar entrar em contacto com a filha, fazendo que esta se visse obrigada a trocar de número de telemóvel.
c. Que as mensagens descritas em 6. fossem enviadas uma frequência praticamente diária.
d. Que para além das mensagens descritas em 6., a arguida tivesse enviado outras mensagens à filha menor a dizer que a ia "cortar aos bocadinhos com uma faca e que a iria pela sanita".
B) Da contestação:
a. Que na página de Facebook referida em 22., a arguida e a menor BB cozinhavam juntas e divertiam-se ambas.
b. Que, quanto aos jogos referidos em 23., a menor BB jogasse durante a noite, em desobediência às indicações da mãe.
*
No que respeita à restante factualidade constante da acusação (ponto 2.) e da contestação, a mesma não foi apreciada por se tratar de: descrição de meios de prova / meios de obtenção de prova, factos fora do objeto do processo. conclusivos e/ou alegações de direito.
Com efeito. resulta do artigo 374.° n.° 2 do Código de Processo Penal que o Tribunal não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados. mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e que são indispensáveis para a escolha da pena e determinação da medida concreta da mesma. ou seja. os que fundamentam a sua decisão.
C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A audiência de julgamento decorreu com o registo dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados — no sistema integrado de gravação digital. disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.
Tal circunstância. permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efetivo controle do modo como o Tribunal formou a sua convicção. deve. também nesta fase do processo. revestir-se de utilidade e dispensar o relato detalhado dos depoimentos e esclarecimentos prestados.
Posto isto. na formação da sua convicção o Tribunal tomou em consideração os meios de prova disponíveis. atendendo nos dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio. suposto pelo ordenamento jurídico. fazendo o Tribunal. no uso da sua liberdade de apreciação. uma análise crítica dos seguintes meios de prova:
- Nas declarações da arguida, apenas quanto às suas condições pessoais e económicas;
- No depoimento das testemunhas BB (vítima). CC (amiga da vítima). … (mãe de CC) MM (Diretora de Turma da vítima no 7° ano). NN (professora). OO. FF. XX (patroas da arguida) PP (mãe de uma criança internada em simultâneo com a vitima em 2015); QQ (amiga da arguida); RR (amiga da arguida). SS (vizinho da arguida). TT (Diretor de Turma da vítima no 5° e 6° ano). UU (gestora do centro de explicações frequentado pela vítima) e VV (Diretora do Colégio frequentado pela vítima do 1° ao 4° ano);
- Nas declarações para memória futura de 12.9.2022 de BB (vítima). cujo auto se encontra a fls. 41;
- Nas regras da experiência comum e na própria perceção do Tribunal em sede de audiência de discussão e julgamento. nos termos infra expostos; e
- Nos seguintes documentos com interesse para a causa: participação de 14.4.2022 (fls. 3 a 4), ficha de sinalização à CPCJ de 15.4.2022 (fls. 6), email de … de 14.4.2022 junto em 3.5.2022, Oficio da Procuradoria do Juízo de Família e Menores de Cascais junto em 6.5.2022, sinalização pela CPCJ de 15.4.2022 (fls. 7) suporte de ficheiros áudio juntos com a participação (fls. 8 e 9), assento de nascimento junto em 02.05.2022, faturas de fls. de 148v a 149v, fotografias de fls. 151v a 153 e 163, mensagens, print de chats, de paginas web e de redes sociais e de caixas de entrada de email de fls. 153 v. a 162, oficio do Juízo de Família e Menores de Cascais - Juiz 4 junto em 13.9.2923, relatório social junto em 10.11.2023, CRC de 20.11.2023 e documentação junta em 4.12.2023;
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Consigna-se que a arguida exerceu o seu legítimo direito ao silêncio - no que concerne aos factos pelos quais vinha acusado - nos termos do disposto nos artigos 343°, n° 1 do CPP.
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Cumpre especificar em que moldes o Tribunal formou a sua convicção:
Na ausência de declarações por parte da arguida, o Tribunal valorou, primordialmente, o depoimento da vítima (a menor BB), quanto à factualidade vertida nos pontos 1. a 9., 12., 16. a 19. e 22. dos factos provados.
O depoimento da vítima, foi ainda corroborado, em sede de prova documental, pelos seguintes documentos (cuja veracidade não foi posta em causa por qualquer meio e prova): assento de nascimento junto aos autos quanto ao facto 1. e faturas de fls. de 148v a 149v quanto aos factos 16 a 19.
Com efeito, a vítima confirmou todos estes factos, num depoimento espontâneo, credível e objetivo e muta vezes emocionado — evidenciando sofrimento e comoção percetível em toda a sua linguagem não verbal -, não se limitando a corroborar toda a factualidade vertida na acusação, nem evidenciando intenção de prejudicar a sua mãe, ora arguida.
Por outro lado, circunstanciou os factos, relatando episódios concretos, de forma pormenorizada, para além daqueles descritos na acusação. Ditam as regras de experiência comum que tais pormenores no relato, são demasiado específicos para serem inventados, normalmente apenas relatados por quem realmente os experiencia.
Urge ainda salientar que a vítima foi clara ao circunstanciar os factos no tempo, referindo que as agressões, injurias e ameaças iniciaram-se pela altura do covid, em que ficava sozinha em casa - o que permitiu circunstanciar os factos no tempo, nos termos referidos em 3. -, e bem assim foi igualmente clara ao concretizar a periodicidade dos mesmos, sendo que quanto às mensagens referidas em 6., salientou que as recebeu no período de 1 a 2 semanas, tendo-as reencaminhado para a amiga CC por ter ficado com muto medo.
Por outro lado, sempre se dirá neste contexto de produção de prova e motivação dos factos dados como provados, importa salientar a especificidade deste tipo de crime e o contexto em que normalmente o mesmo ocorre.
De facto, atendendo às regras da experiência comum e ao facto de estarmos perante agressões entre cônjuges ou pessoas em situação análoga, facilmente se conclui que muitos dos factos ocorrem “intramuros”, sendo por isso natural que por vezes a única testemunha seja a própria ofendida.
Assim, a jurisprudência tem considerado - e a nosso ver bem -, que a falta de prova testemunhal que normalmente caracteriza este tipo de ilícito deve ser suprida através de uma ponderada valorização das declarações das próprias vítimas, “uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal’ (Neste sentido, entre outros, Acórdão da Relação de Lisboa de 06.06.2001, processo 0034263, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, cumpre ainda salientar que as declarações da menor BB prestadas em julgamento, foram em tudo coerentes e consistentes com as suas declarações para memória futura, sendo que as ligeiras alterações de mero pormenor são decorrentes do próprio passar do tempo, e credibilizam ainda mais a espontaneamente do depoimento, denotando não se tratar de um depoimento ensaiado.
Efetivamente, e no caso concreto, foi fundamental para a formação da convicção do Tribunal o depoimento da vítima, prestado de forma notoriamente espontânea, natural e sincera.
É certo que a defesa impugnou as mensagens gravadas e juntas aos autos em suporte a fls. 8/9, referido inexistir prova de que tivessem sido proferidas pela arguida.
Ora, é manifesto que tal posição não colhe.
Tais mensagens foram reproduzidas no decurso do depoimento de CC (amiga da vítima para que esta enviou as mensagens), que as identificou como as tendo recebido da sua amiga BB, tendo igualmente corroborado o estado de nervosismo e receio em que encontrou a BB após ter recebido as mensagens. Mais salientou a testemunha que mostrou e reencaminhou estas mensagens de voz à sua mãe, a testemunha …, o que foi corroborado por esta testemunha em julgamento, tendo explicado ter sido esse o motivo que a fez denunciar o caso.
Igualmente BB confirmou o teor das mensagens, e bem assim que as reencaminhou para a sua amiga CC, sendo certo que basta confrontar a reprodução de tais mensagens de voz com a reprodução das declarações da arguida em sede de julgamento para se perceber que se trata do mesmo timbre e da mesma voz, já para não falar que do teor das mensagens, resulta um contexto familiar específico só conhecido pela arguida e pela sua filha BB.
Pelo exposto, nenhuma dúvida tem o Tribunal que foi a arguida a enviar tais mensagens de voz à filha menor, o que fez de forma serena, evidenciado frieza no tom de voz e pausas no discurso, sem ser aos gritos e sem evidenciar qualquer descontrolo emocional — vide facto provado em 31.
Por outro lado, e quanto à credibilidade da vítima, valorou ainda o Tribunal o depoimento de CC (sua amiga) a quem a vítima confidenciou grande parte dos factos ao longo de todo o ano lectivo 2021/2022 em que ambas frequentaram o 7.° ano da ....
Com efeito — num depoimento sereno, despojado, objetivo e credível — esta testemunha relatou os desabafos de BB que relatava à amiga que “a mãe lhe batia” “que a deixava na agua fria no banho” “que lhe bateu com cabides” (cit), que a chamava “vagabunda” (cit), e bem assim que uma vez que pelo menos numa ocasião a mãe a ameaçou “que a cortava aos pedaços e a mandava pela sanita” (cit). Salientou a testemunha que tais desabafos ocorreram ao longo de todo o ano lectivo, e não se traduziram num relato pontual, mais salientando que a BB a chamava para um canto e que lhe mostrava nódoas negras no corpo, dizendo que “as fez as casa, não explicando como” (cit) o que de per se já evidencia o clima de medo e angustia que a vitima — na sua tenra idade — experienciava ao longo de meses.
Por último relatou a testemunha que notava medo e tristeza na BB ao relatar-lhe tais factos.
No que respeita aos factos referentes ao elemento subjetivo (pontos 13. a 15.) - a afirmação do dolo e da consciência da ilicitude -, sendo impossível ao aplicador do direito adentrar-se no âmago do psiquismo humano, infere-se dos elementos objetivos do tipo de ilícito, em conjugação com as máximas da experiência comum e o normal decorrer da vida.
De facto, tendo em conta os factos provados, não temos dúvidas de que a arguida, com a sua conduta, sabia que provocava na sua filha menor, medo e inquietação, que perturbava a sua paz e o seu sossego, que a ofendia, humilhava, a subjugava, de uma forma incompatível com a dignidade humana, causando-lhe sofrimento, vergonha e humilhação.
Por outro lado, a arguida é uma pessoa de normal entendimento pelo que não podia deixar de entender os efeitos das suas condutas e de saber que elas eram e são proibidas e puníveis, mas mesmo assim decidiu atuar.
A inexistência de antecedentes criminais (ponto 23.), provou-se com base na apreciação crítica do CRC junto aos autos, e bem assim as suas condições pessoais e económicas da arguida (pontos 24. a 30.) com base nas declarações que a mesma entendeu prestar sobre esta matéria, conjugadas ainda com o teor do relatório social junto aos autos.
Por último e quanto aos factos não provados, o Tribunal baseou a sua convicção na ausência de qualquer prova, na ausência de prova suficiente e bastante, na prova dos factos contrários e nas regras da experiência comum, porquanto nenhuma prova suficiente cabal foi produzida quanto aos mesmos.
Consigna-se que não se fez referência na motivação da matéria de facto às testemunhas MM (Diretora de Turma da vítima no 7° ano), NN (professora), OO, FF, XX (patroas da arguida) PP (mãe de uma criança internada em simultâneo com a vitima em 2015); QQ (amiga da arguida); RR (amiga da arguida), SS (vizinho da arguida), TT (Diretor de Turma da vítima no 5° e 6° ano), UU (gestora do centro de explicações frequentado pela vítima) e VV (Diretora do Colégio frequentado pela vítima do 1° ao 4° ano), por os mesmos ter indicado que não tinham qualquer conhecimento dos factos em discussão, sendo certo que os depoimentos das testemunhas que invocaram ter tido contacto direto com arguida e vitima nos últimos 2 anos de convivência em comum — em nada contraditaram ou sequer levantaram qualquer dúvida sobre a total credibilidade do depoimento da vítima.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Antes de apreciar as questões do recurso, tal como as mesmas foram identificadas, no ponto 2. 2., importa esclarecer a recorrente e o Mº. Pº. de que, pese embora a recorrente também tenha invocado a nulidade da acusação e a preterição das garantias de defesa por não ter havido instrução, estas são questões que, ou não são passíveis de serem conhecidas em instância de recurso, ou pela própria natureza das coisas e em face do estádio actual do processo, não têm qualquer relevância para o desfecho do recurso.
Assim:
Quanto à nulidade da acusação, com o fundamento invocado de que a mesma não contém a indiciação dos meios de prova reportada a cada um dos concretos factos alegados, nem a narração das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos potencialmente integradores do crime imputado à arguida terão acontecido, o recurso é legalmente inadmissível.
O recurso penal segue um paradigma de remédio jurídico, destinado a assegurar o duplo grau de jurisdição e o direito ao recurso, como manifestação da tutela jurisdicional efectiva e das garantias de defesa previstos nos arts. 20º e 32 da CRP mas cujo objecto são exclusivamente as decisões proferidas por Juízes que, segundo o catálogo contido nos arts. 399ºe 400º do CPP forem recorríveis.
«O recurso apresenta-se como meio processual destinado a sujeitar a decisão a um novo juízo de apreciação, agora por parte de um tribunal hierarquicamente superior, imposto pela necessidade de garantir a principal via de reapreciação das decisões em processo penal, ante o auto-esgotamento do poder jurisdicional, em cada instância; é o principal caminho legal para corrigir os erros cometidos na decisão judicial» – WW, Revisão do processo penal: os recursos, p. 2, disponível em https://repositorio.ismai.pt/bitstream /10400.24/232/1/SS12.pdf),
«Por "direito ao recurso" entende-se – de um modo geral – a faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expetativas. Por seu lado, com a menção a "duplo grau de jurisdição" pretende-se significar a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este». É certo que a existência de uma hierarquia de tribunais judiciais, constituída pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelos tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, encontra também referência expressa no texto constitucional, designadamente anos artigos 209.º, n.º 1, alínea a), e 210.º. Não merece igualmente contestação que existe «uma forte ligação entre o direito ao recurso e a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição», desde logo porque «pelo menos ao nível das exigências de um processo justo – [...] o "duplo grau de jurisdição" é pressuposto do exercício do direito ao recurso» e porque a jurisprudência do Tribunal Constitucional «reconhece também a possibilidade de o direito ao recurso se consumar através da existência desse duplo grau de jurisdição» (cf. Acórdão do TC nº 429/2016, parágrafo 16. No mesmo sentido, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.º 595/2018 e nº 308/2023, in https://www.tribunalconstitucional.pt).
Os actos decisórios dos Mº. Pº. não são passíveis de recurso. Não há recurso de acusações.
Nos termos do disposto no art. 283º nº 3 als. a), b) e c) do CPP, a acusação deve conter a identificação do arguido, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» e a indicação das disposições legais aplicáveis.
Nos termos das als. e) a g) do mesmos nº 3, a acusação deve ainda indicar o rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco; a indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação e a indicação de outras provas a produzir ou a requerer.
A acusação pode ser nula, manifestamente infundada, ser rejeitada aquando da prolação do despacho previsto no art. 311º do CPP ou dar lugar a decisões instrutórias de não pronúncia ou a sentenças de absolvição.
Com efeito, se a nulidade da acusação prevista no art. 283º nº 3 do CPP, for arguida perante o titular do inquérito e por este declarada, ficará sujeita à disciplina do art. 122º (trata-se de uma nulidade relativa, dependente de arguição).
A falta de narração dos factos na acusação determinante da sua nulidade, pode também constituir causa de rejeição da acusação, por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311º nºs 2 a) e 3 b) do CPP.
Se for declarada no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo (art. 308º nº 3), determinará a não pronúncia.
Se for reconhecida, em sede de julgamento – posto que nem sequer postula uma alteração substancial de factos, ou não estaria prevista a nulidade da acusação por ausência de narração dos factos –, a consequência será a absolvição do acusado, porquanto o «regime que decorre das normas dos artigos 1º, alínea f), 358º e 359º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento» e, por isso mesmo, «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.» (Ac. do STJ de 20.11.2014, AUJ nº 1/2015, Diário da República n.º 18/2015, Série I de 27.01.2015. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Guimarães de 19.06.2017, processo 430/15.3GEGMR.G1, da Relação do Porto de 15.11.2017, processo 2070/16.0T9VFR.P1, da Relação de Coimbra de 02.03.2016, processo 2572/10.2TALRA.C2, da Relação de Lisboa de 01.10.2019, processo 1/16.7P3LSB-C.L2-5, da Relação de Coimbra de 15.05.2019, proc. 267/16.2T9PMS.C1, da Relação de Évora de 23.06.2020, proc. 4615/18.2T9STB.E1, da Relação de Lisboa de 10.03.2022, proc. 8467/19.7T9LSB, da Relação de Guimarães de 9.01.2023, proc. 1714/20.4T9VNF in http://www.dgsi.pt).
Mas o que não pode é ser agora, sindicada. O processo seguiu a sua tramitação normal, houve audiência de discussão e julgamento que deu lugar a uma sentença de condenação que está a ser impugnada, neste recurso.
A decisão que é objecto do presente é a sentença condenatória e não qualquer outra decisão.
E por essa precisa razão é que também não vale a pena a recorrente vir agora invocar uma suposta preterição de garantias de defesa por não ter requerido a abertura da instrução.
Nos termos do art. 286º do CPP, a instrução destina-se à comprovação judicial da decisão proferida pelo Mº.Pº., no final do inquérito, no sentido de submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução não visa a demonstração dos factos integradores do crime, mas apenas a comprovação judicial decisão proferida pelo Mº. Pº., no final do inquérito, de deduzir acusação ou de arquivar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º n° 1 do CPP) não se impondo «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final». (…). «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, vol. III , páginas 179 a 182).
A inexistência de instrução jamais poderá representar uma preterição das garantias de defesa porque além da sua natureza jurídica e razão de ser, é uma fase facultativa do processo, de cuja omissão não podem ser retiradas quaisquer consequências jurídicas e, ainda, porque a eventual incúria ou falta de zelo do advogado anterior da recorrente são aspectos completamente exteriores e colaterais que não são tema de recurso, sendo totalmente irrelevantes as conclusões 35 a 39 do recurso da arguida.
Feito este ponto de ordem, cumpre analisar as questões que realmente interessam para o desfecho do recurso.
Quanto à nulidade da sentença.
A fundamentação das decisões judiciais implica, em geral, um processo argumentativo de justificação da afirmação de que a determinados factos é aplicável uma determinada solução jurídica, através da enumeração e explicitação das razões de facto e de direito que conduziram a uma determinada subsunção jurídica dos factos e ao sentido da decisão.
Numa dimensão endoprocessual, a fundamentação serve propósitos de clareza e compreensão pelos seus destinatários, essenciais ao cumprimento da decisão e ainda de controlo da legalidade da actividade jurisdicional e do acerto e justiça da decisão, pelas autoridades judiciárias de recurso.
Numa vertente extraprocessual, as exigências de fundamentação assumem-se como um mecanismo de legitimação democrática dos próprios Tribunais e da administração da Justiça.
«A consagração constitucional do princípio da fundamentação das decisões judiciais é uma garantia do processo judicial, no sentido de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Mas é sobretudo o reconhecimento de que os tribunais, constitucionalmente investidos do poder de julgar, em nome do povo, têm que dar conta do modo como exercem esse poder através da fundamentação das suas decisões, assim se legitimando a sua própria função.» (Mouraz Lopes, “Gestão Processual: Tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial”, in Julgar, n.º 10, janeiro-abril 2010, p. 143. No mesmo sentido, Rogério Bellentani Zavarize, A Fundamentação das Decisões judiciais. 1 ed. – Campinas/SP: Millennium, 2004, p.123; Lenio Luiz Streck e Igor Raatz, O Dever de Fundamentação das Decisões Judiciais sob o Olhar da Crítica Hermenêutica do Direito, doi:10.12662/2447-6641oj.v15i20.p160-179.2017, Julho de 2017, https://www.researchgate.net/publication/...; Michele Taruffo, Il controllo di razionalità della decisione fra logica, retorica e dialettica https://iris.unipv.it/handle/11571/210955?mode=full.47#record, Francesco Conte, Il Significato constituzionale dell´obblligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.) págs. 30-31, https://books.google.pt).
A independência e a imparcialidade do Juiz devem, pois, transparecer do apuramento objectivo dos factos da causa e da interpretação válida das normas de direito, em obediência ao espírito e à letra da lei.
O dever de fundamentação das decisões judiciais, seja qual for a jurisdição em que sejam proferidas, é, pois, um dos alicerces do Estado de Direito Democrático, na medida em que assegura que o processo seja justo e equitativo, de harmonia com o disposto no art. 20º nºs 4 e 5 da Constituição, em face da aptidão do princípio da motivação para impedir a arbitrariedade e a descriminação, bem assim, para conferir imparcialidade às decisões, assegurando, por esta via, o respeito pelos direitos liberdades e garantias fundamentais dos seus destinatários, em sintonia com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proporcionalidade, nos termos dos arts. 2º; 13º e 18º da Constituição, respectivamente.
Em suma, o princípio da exigência de fundamentação assume-se como garantia da imparcialidade do juiz, do controle da legalidade da decisão, e da possibilidade de impugnação das decisões, a par da possibilidade de controle do exercício do poder judiciário fora do contexto processual, por parte do povo em nome de quem deve ser feita a administração da justiça, no contexto de uma concepção democrática do poder.
«(…) O dever de fundamentação transporta para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a salvaguarda da liberdade pessoal e com a função estadual punitiva.
«No fundo, o dever de fundamentação abraça múltiplos princípios de densidade constitucional como o da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da imediação e da contraditoriedade, da presunção de inocência, do direito à tutela efectiva e da livre apreciação da prova» (José Tomé de Carvalho, Breves Palavras Sobre a Fundamentação da Matéria de Facto no Âmbito da Decisão Final Penal no Ordenamento Jurídico Português, In Julgar, nº 21, Setembro-Dezembro de 2013, p. 78).
Assim é que o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma consequência da previsão contida no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
«Tratando-se de um princípio fundamental no ordenamento jurídico nacional, a sua concretização normativa, nos vários ordenamentos, não pode deixar de concretizar as várias dimensões onde se sustenta: generalidade, indisponibilidade, completude, publicidade e concretização do duplo grau de jurisdição.» (Mouraz Lopes, “Gestão processual: tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial”, in Julgar, n.º 10, janeiro-abril 2010, p. 143).
Assim é que o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma consequência da previsão contida no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
Na vertente processual penal, este imperativo constitucional densifica-se em várias disposições legais, desde logo, no princípio geral consagrado no art. 97º nº 5 do CPP, quanto à exigência da especificação dos motivos de facto e de direito de qualquer decisão
Mais especificamente, no que se refere à sentença, o artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal impõe, a propósito do requisito da fundamentação, que a mesma contenha a «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
E o nº 3 indica quais as menções que o dispositivo deverá conter, incluindo as disposições legais aplicáveis e a decisão de condenação ou de absolvição.
Por sua vez, o art. 379º do CPP enumera taxativamente, no seu nº 1, as causas de nulidade da sentença, entre as quais se contam, na al. a), a omissão das menções referidas no nº 2, e na alínea b) do nº 3, do art. 374º.
Aparte a mistura entre nulidade da acusação de que acusa, ora de falta de indicação do elemento subjectivo, ora de omissão da descrição das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o crime imputado terá sido cometido, a recorrente ainda confunde ausência de fundamentação da sentença com imputações vagas e genéricas que é aquilo de que verdadeiramente acusa a decisão recorrida.
A indispensabilidade de descrição concreta dos factos integradores de um determinado tipo de crime, quanto às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que foram praticados emerge, como condição de validade e eficácia da acusação e também da pronúncia, directamente da previsão contida no art. 283º nº 3 al. a) e da remissão que para ele é feita pelo art. 308º nº 2 do CPP, mas a sua razão de ser prende-se com imperativos constitucionais de tornar efectivos os direitos de defesa e de exercício do contraditório reconhecidos ao arguido e essenciais a um processo justo e equitativo, nos termos consagrados no art. 32º nºs 1 e 5 da Constituição, pelo que a indefinição do modo de actuação quanto ao lugar, tempo, motivação, grau de participação, ou outras circunstâncias relevantes, sendo insusceptíveis de fundamentar um juízo de censura jurídico-penal, importa a consideração como não escritos de factos imputados de forma genérica (Acs. do STJ de ac. 15.12.2011, proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 e de 11.07.2019, proc. 22/13.1PFVIS.C1.S1; Acs. da Relação de Évora de 17.09.2013, proc. 97/11.8PFSTB; de 07.04.2015, proc. 159/12.4IDSTB.E1 e de de 22.11.2018, proc. 526/16.4 GFSTB.E1; Ac. da Relação de Coimbra de 17.01.2018, proc. 204/10.8GASRE.C1; Ac. da Relação do Porto de 13.11.2019, proc. 109/19.7GAARC.P1 e Ac. da Relação de Lisboa de 26.11.2019, proc. 214/18.7PDAMD.L1-5, entre muitos outros, in http://www.dgsi.pt).
Assim sendo, a falta de concretização do lugar, do tempo, da motivação, do grau de participação ou das circunstâncias relevantes à tipificação da acção, não pode fundamentar um juízo de censura jurídico-penal, o mesmo acontecendo quando a acusação ou a pronúncia, ou a matéria de facto a exarar na sentença ou acórdão mais não seja do que um conjunto de factos não concretizados, vagos ou indeterminados, é questão de absolvição.
Mas, sempre que a descrição factual ainda contenha mínimos de concretização ou determinabilidade das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o crime foi cometido, do respectivo modo de execução e outras pertinentes à escolha e determinação da sanção, a ponto de ser possível ao arguido compreender o teor da acusação e alicerçar a sua defesa, apresentado as suas provas e argumentos de facto e de direito adequados ao exercício pleno do contraditório e das demais garantias de defesa e, se assim for, ainda haverá factos com a virtualidade para preencher a tipicidade do ilícito em causa.
Ora, o que acontece, no caso vertente não é uma coisa, nem outra.
Compulsadas as conclusões do recurso, não se vislumbra nelas a menor concretização sobre qual tenha sido o requisito de natureza formal ou de carácter substantivo determinantes para a validade e eficácia da sentença recorrida que se mostra inobservado, não sendo suficiente para o efeito a proclamação vaga e genérica (e confusa) de que a acusação dos presentes autos não se referiu quaisquer factos relativos: a) ao tempo e lugar onde foram praticados os alegados ilícitos; b) à intensidade do dolo ou da negligência.
Não é demais repetir que a acusação jamais poderia ser sindicada em sede de recurso que só tem por objecto decisões judiciais.
Por outro lado, o que pode constatar-se no texto da sentença recorrida é que a mesma contém a enumeração dos factos provados e não provados, a exposição dos motivos da convicção, o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, com enumeração dos elementos constitutivos do crime de violência doméstica que, segundo a acusação deduzida, se impunha analisar, à luz das respectivas normas legais incriminadoras, a subsunção dos factos provados ao direito aplicável, a escolha e determinação concreta da pena e a apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil emergente da prática do crime e consequente fixação do montante pecuniário da indemnização, finalizando com o dispositivo, contendo a condenação da arguida, nas sanções penais escolhidas e concretamente fixadas e na indemnização.
Não falta, por conseguinte, nenhum dos elementos de facto e de direito impostos pelo art. 374º do CPP como condição essencial da completude da sentença, pelo que, não existe a nulidade invocada.
Do mesmo modo, não é porque a sentença alude «datas não concretamente apuradas» que as imputações são vagas ou genéricas, especialmente quando, como sucede no caso vertente, se encontra perfeitamente delimitado o período temporal em que os factos aconteceram - entre Abril de 2020 e Abril de 2022 – bem como a natureza das agressões e diferentes formas de abuso que a arguida infligiu à sua filha e que estão perfeitamente descritas nos factos 2. a 9., os quais se traduziram em castigos físicos, pancadas em diferentes partes do corpo, nomeadamente com a mão aberta e com uma sandália/chinelo e, numa das vezes, com o auxilio de um cabide como forçar a menina a tomar banho de água fria, ameaçando-a com uma faca em riste de que a iria cortar aos pedaços e deitá-la pela sanita, enviando-lhe mensagens a chamar-lhe «vagabunda», «miserável», dizendo-lhe que a iria colocar numa instituição, de que iria obrigá-la a tomar banho de água fria, de que a irá cortar, de que tinha de ser morta.
Estão, pois, perfeitamente concretizadas as diferentes espécies de violência, abusos e maus-tratos físicos e psicológicos perpetrados pela arguida contra a sua filha, assim como as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que a sucessão de ofensas descritas nos pontos 2 a 9 da matéria de facto provada exarada na sentença.
O mesmo se diga do elemento subjectivo do tipo que está integralmente descrito nos pontos 13 a 15, acerca do qual nenhuma dúvida pode restar de que o nexo de imputação subjectiva dos factos a que aludem os factos 2 a 9 é o dolo e na modalidade de dolo directo.
Não falta, por conseguinte, nenhum dos elementos de facto e de direito impostos pelo art. 374º do CPP como condição essencial da completude da sentença, pelo que, não existe a nulidade invocada.
O recurso improcede, nesta parte.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado é o da impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, a qual envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque, além de não se traduzir num novo julgamento, está subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Por sua vez, a especificação das concretas provas, «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.
Essa modificação será, ainda, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art. 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série, nº 77 de 18 de abril de 2012).
Caso se limite a indicar a totalidade de um documento ou de uma perícia, ou de uma escuta telefónica, por reporte a um determinado período, ou as declarações prestadas por um certo número de testemunhas, na sua globalidade, não pode considerar-se cumprido o ónus, nem viabilizada a possibilidade de reapreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de recurso.
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório da audiência de discussão e julgamento, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
Trata-se de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da prova proibida, da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão integral e sem reservas, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (cfr. arts. 125º a 127º; 163º, 169º e 344º do CPP).
Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu, na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado.
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso.
Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, Ac. da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, proc. 729/17.4GBVVD.G1 in http://www.dgsi.pt).
A primeira constatação que há a fazer, é a de que o presente recurso não cumpre integralmente as exigências contidas no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, porque, pese embora a recorrente tenha indicado discriminadamente quais os concretos pontos de facto que pretende ver alterados e em que sentido e até tenha transcrito vários excertos da prova por declarações e por depoimentos testemunhais produzidos em audiência e gravados, essa apreciação está em total sintonia com a apreciação que o Tribunal também fez deles.
A primeira fragilidade do recurso centra-se, aliás, na própria matéria de facto cujo desacerto no julgamento é invocado pela recorrente que ilustra que o que pretende é substituir a sua convicção própria à do Tribunal, como se o recurso penal correspondesse a um segundo julgamento e, por isso mesmo, contrariando o modelo de simples remédio jurídico do recurso penal, vocacionado para despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Com efeito, o que a recorrente quer é que este Tribunal considere como não provados os factos identificados na sentença recorrida, sob os pontos 3 a 5, 7 a 9 e 12 a 15 como provados e como provados os factos a) e b) que, na mesma sentença recorrida foram considerados não provados.
Ora, os factos provados 3 a 5, 7 a 9 e 12 a 15, a par das mensagens de WhatsApp descritas no ponto 6 (acerca das quais a arguida não tem como negar tê-las escrito e enviado à própria filha, embora ainda assim, tenha tentado justificá-las com o seu «desespero») são todos os que se referem ao crime de violência doméstica pelo qual foi condenada.
Nos termos do art. 428º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do art. 412º, nº 3 do mesmo diploma, mas isto não equivale a um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da primeira instância não existisse, em que a Relação reaprecie a totalidade da prova, agora, com base na audição de gravações da prova já produzida na audiência de discussão e julgamento.
Aparte esta intenção de ver reapreciada, afinal, toda a matéria de facto, cumpre ainda dizer que, para que a recorrente conseguisse, válida e eficazmente, impugnar com sucesso a matéria de facto provada e não provada, respectivamente, nos factos 3 a 5, 7 a 9 e 12 a 15 e a) e b), impunha-se que, além das transcrições dos excertos das declarações da vítima e dos depoimentos testemunhais que efectuou nas motivações do recurso, concretamente, nos artigos 27, 47, 74, 80, 81 a 84, 87, 89, 94, 100, 276, 277, 340, 349, 356, 357, 358, 370 a 372, 398, 401 a 404, 406, 407, 416, 419, 420, 423 e 424, tivesse exposto as razões com base nas quais esses segmentos são determinantes de decisão oposta à que foi tomada, seja porque algum dos factos tenha sido dado como provada com base no depoimento de alguma das indicadas testemunhas e esta nada tenha dito sobre o mesmo, ou tenha até dito o contrário, ou que alguma dessas testemunhas tenha afirmado circunstâncias de facto que tenham sido consideradas provadas com fundamento nesses relatos, mas sem que as testemunhas em causa tivessem razão de ciência que consinta tal demonstração à luz das regras de experiência comum e dos critérios da livre apreciação da prova consagrados no art. 127º do CPP, ou que o Tribunal tivesse considerado não provados factos que foram expressamente afirmados e esclarecidos por testemunhos credíveis, dotados de conhecimento directo sobre eles e que, por isso mesmo deveriam ter alicerçado uma convicção positiva sobre a sua ocorrência.
Todavia, não foi nada disto o que aconteceu, no presente recurso.
Detalhando a argumentação expendida pela recorrente:
Na motivação 27 a recorrente reproduziu as declarações da vítima BB, na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:03:17 a 00:30:320, para demonstrar que entre a BB e a sua irmã com quem vive actualmente não era uma relação próxima;
Na motivação 47, a recorrente transcreveu a parte do depoimento da testemunha EE, amiga da recorrente e da BB que costumava levar esta menina à escola e a outras actividades, nos impedimentos da mãe, prestado na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:01:54 a 00:02:37, para provar que exerceu a maternidade de forma competente e zelosa do bem estar da sua filha, designadamente no que se refere a providenciar para que ela própria e quando ela não podia, os Srs. XX e QQ eram pagos por ela para assegurarem que a BB era conduzida à escola e da escola, a certas actividades e à natação em segurança (na motivação 48, a recorrente afirma que «a RECORRENTE, quando não tinha disponibilidade, tendo em conta as suas obrigações profissionais, organizava com o Senhor XX e com a Senhora QQ, a recolha minuciosa da OFENDIDA à instituição de ensino e outras atividades, como a natação»).
Na motivação 74, reproduziu o excerto do depoimento da testemunha MM, Directora de turma da BB, prestado na sessão do julgamento de 23.11.2023, do minuto 00:06:19 a 00:06:42 e, na motivação 80, o depoimento da testemunha CC, colega de escola e amiga da vítima, da sessão de 23.11.2023, do minuto 00:07:30 a 00:07:54 para ilustrar o que denominou de «influência negativa de CC sobre a ofendida».
Também para demonstrar que sob essa influência prejudicial da CC, a recorrente foi recebendo vários comunicados por parte da Escola Básica EB 2 3 ... informando que a ofendida: a) não apresentava os deveres de casa; b) parecia desinteressada nas aulas; c) estava várias vezes ensonada nas aulas; e d) inclusivamente, adormecia nas aulas, a recorrente veio transcrever as declarações da própria BB, na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:53:58 a 00:54:15 e do minuto 00:54:57 a 00:55:15, no art. 82º, dos depoimentos das testemunhas MM, Diretora de Turma e Professora da Marina, na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:02:40 a 00:02:45, do minuto 00:03:53 a 00:04:26 e do minuto 00:11:45 a 00:12:10, no artigo 83º, YY, também professora da BB, na sessão de 23.11.2023 (do minuto 00:02:44 a 00:03:24), no artigo 84º, CC colega e amiga da ofendida, na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:05:14 a 00:05:42), no artigo 87º e da própria vítima BB sessão de 23.11.2023, do minuto 00:34:13 a 00:34:39, no artigo 89º das motivações do recurso.
Para demonstrar a enorme dependência da BB de plataformas gerais na internet (como a plataforma Discord, disponível em https://discord.com/, o SnapChat, disponível em https://www.snapchat.com/ e o Instagram, disponível em https://www.instagram.com/) e jogos on-line, a recorrente veio transcrever os depoimentos de CC da sessão de 23.11.2023, do minuto 00:15:05 a 00:15:10, no artigo 94º, da testemunha EE, amiga que conhecia e acompanhava a BB desde os 6 anos de idade, na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:08:50 a 00:09:00, no artigo 100º.
Quanto às considerações da Mma. Juíza reproduzidas no artigo 122 apenas cumpre explicar à recorrente que as mesmas não são meio de prova que possa ser invocado para ilustrar o erro de julgamento na matéria de facto.
Para provar que «o enquadramento relacional da Recorrente e da Ofendida não era, como se tenta fazer passar na Acusação, pautado por agressões verbais e/ou físicas», bem como que seria totalmente inverosímil que a arguida enviasse mensagens à BB como as descritas no facto 6 quando é descrita por todos quantos a conhecem como uma mãe super cuidadosa, «uma mãe galinha», a recorrente veio transcrever os depoimentos das testemunhas HH, directora do ... no qual a BB foi aluna desde a pré-primária até ao 4º ano e por isso também conhece a arguida, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:02:16 a 00:02:21, no art. 276º, FF, que conhece a arguida por esta trabalhar para si desde há cerca de 8 anos sessão de 23.11.2023, do minuto 00:05:29 a 00:05:44, no art. 277º, do minuto 00:05:29 a 00:05:50, no artigo 359 e do minuto 00:04:01 a 00:04:03, no artigo 372º, da ofendida BB sessão de 23.11.2023 do minuto 00:45:39 a 00:46:29, no artigo 340º, ZZ, proprietária do centro de explicações que a BB frequenta, sessão de 23.11.2023 do minuto 00:02:35 a 00:02:47, no artigo 341º e da sessão do mesmo dia, do minuto 00:21:55 a 00:22:35, no art. 349º, de DD, vizinho da arguida no período dos factos descritos na acusação, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:00:38 a 00:00:39 e do minuto 00:02:11 a 00:02:57, no artigo 356º, de XX, ao serviço e em casa de quem a arguida trabalha há vários anos, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:00:31 a 00:00:37 e do minuto 00:03:34 a 00:41:06, no artigo 357 e do minuto 00:00:55 a 00:01:21, no artigo 370º, EE (do minuto 00:05:18 a 00:06:21): artigo 358º, da testemunha GG, ao serviço de quem a arguida também trabalha como empregada doméstica, na sessão de 23.11.2023, ao minuto 00:03:02, no artigo 371º.
Ainda para demonstrar que os vizinhos da arguida e da BB, ou o pai da menina ou os vários estabelecimentos de ensino que a BB frequentou alguma vez se aperceberam dos impropérios, gritos, ameaças e agressões descritos na matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nem nunca viram marcas de agressões no corpo da BB, a recorrente veio transcrever as declarações da BB sessão de 23.11.2023, do minuto 00:14:58 a 00:15:02, no artigo 398, do depoimento da testemunha FF na sessão de 23.11.2023, do minuto 00:04:53 a 00:05:05 no artigo 401º e do minuto 00:04:53 a 00:05:05, no artigo 402º, de DD, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:05:35 a 00:05:42, no artigo 403º, de XX, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:03:31 a 00:03:32, no artigo 404º.
Para ilustrar que os factos provados 13), 14) e 15) foram erradamente julgados «porque a sentença não discrimina minimamente o dolo, configurado pelos elementos volitivo e cognitivo do agente na prática da conduta típica», nem poderia a recorrente ter agido com dolo quando a sua relação com a ofendida era descrita pelo seu vizinho como «carinhosa»?, transcreveu o excerto do depoimento do vizinho visado, a testemunha DD, sessão de 21.11.2023, do minuto 00:05:09 a 00:05:34, no artigo 416.
Também dos seguintes excertos, a recorrente pretende extrair a conclusão de que a BB é e sempre foi uma criança normal, feliz e alegre:
O depoimento da testemunha HH, directora do colégio que a BB frequentou até ao 4º anos, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:03:15 a 00:03:42, no artigo 419º;
O depoimento da testemunha AAA que conhece a arguida pois foi director da turma da BB, nos 5º e 6º anos, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:01:51 a 00:02:35, no artigo 420º.
Quanto ao facto não provado a), a recorrente veio invocar o segmento do depoimento da testemunha PP, que é amiga da arguida, desde que a sua filha e a filha da arguida estiveram hospitalizadas em 2014 ou 2015, sessão de 23.11.2023, do minuto 00:05:09 a 00:06:10, no artigo 424.
A especificação das provas concretas, nos termos e para os efeitos previstos no art. 412º nº 3 al. b) do CPP, implicam necessariamente que o recorrente explicite os motivos que impõem uma outra decisão que não a que foi tomada, impondo-lhe uma exigência de fundamentação e de convencimento perante o Tribunal de recurso, semelhante à que se exige ao Juiz na fixação da matéria de facto provada e não provada, pois só assim o raciocínio do recorrente será perceptível (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal).
«A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
«Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» (Acórdão do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004. No mesmo sentido, Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37).
«O requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do C.P.P., só é observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal, de modo a fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente.
«Esta exigência corresponde, de algum modo, àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, porque do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, também o recorrente tem que fundamentar o recurso.
«Não cumpre tal requisito a mera negação dos factos, a discordância quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, considerações e afirmações genéricas, a invocação de dúvidas próprias, sem que se analise o teor dos depoimentos das testemunhas indicados nas respetivas passagens da gravação, com a indicação dos motivos por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados (Ac. da Relação de Coimbra de 12.07.2023, proc. 982/20.6PBFIG.C1, in http://www.dgsi.pt).
As circunstâncias de a relação da BB com a irmã ser distante ou de ter estado anos sem a ver, de a amiga da BB, a testemunha CC ser uma má influência ou da dependência da BB de redes sociais ou de jogos online e de ir ensonada para a escola, não fazer os trabalhos escolares domiciliários, ou ter diminuído o seu rendimento escolar são totalmente irrelevantes porque nem justificam, nem excluem, nem neutralizam os factos descritos de 2 a 15 da matéria de facto exarada na sentença.
Os depoimentos das testemunhas HH, FF, ZZ, de DD, XX, EE, GG, FF, DD, DD, HH, AAA realmente não permitem retirar que a arguida tenha cometido qualquer dos factos provados em 2 a 15, como resulta expresso de muitos dos excertos dos depoimentos transcritos naqueles artigos 27, 47, 74, 80, 81 a 84, 89, 94, 100, 276, 277, 340, 349, 356, 357, 358, 370 a 372, 398, 401 a 404, 406, 407, 416, 419, 420, 423 e 424.
Simplesmente, daí não se segue que deles se possa extrair a conclusão de que a arguida não cometeu os factos considerados provados na sentença recorrida, porque a ausência de prova de um facto, não significa o seu contrário.
Acresce que a irrelevância, ou inutilidade destes depoimentos e de todos os restantes para fundamentar qualquer juízo acerca da real ocorrência dos factos objecto do processo não só foi expressa e claramente assumida pelas próprias testemunhas pois todas declararam nunca ter visto a arguida agredir fisicamente a filha, nem ouviram alguma vez a arguida insultar ou ameaçar a BB por alguma das formas descritas em 2 a 9 e 13 a 15 da matéria de facto provada, nem viram marcas de agressões no corpo da BB, nem lhe notaram alterações de humor, ou tristeza ou qualquer outros sinal que indiciasse algum dos factos descritos na acusação, isso foi precisamente o que o Tribunal também percepcionou, com esse exacto conteúdo.
Foi o próprio Tribunal que também afirmou que nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou qualquer dos factos descritos na acusação.
Por isso mesmo é que explicou, no último parágrafo da exposição dos motivos da decisão de facto, as razões pelas quais nem sequer analisou os depoimentos das referidas testemunhas: precisamente porque todas elas disseram claramente que nada sabiam acerca dos factos descritos na acusação.
Efectivamente, o Tribunal alicerçou a sua convicção na consideração como provados dos factos descritos em 1. a 9., 12., 16. a 19. e 22., essencialmente, nas declarações para memória futura prestadas pela BB, no depoimento que a menina prestou em audiência de discussão e julgamento e no depoimento da testemunha CC, a quem a menina foi confidenciando os abusos que a sua mãe ia cometendo e para quem reencaminhou as mensagens de voz que a mãe lhe enviou e descritas em 6.
Explicou porque é que credibilizou os relatos da vítima e da mencionada testemunha e essa explicação feita por referência, à razão de ciência de ambas, a súmulas dos aspectos mais relevantes dos relatos, aos pontos coincidentes das duas versões à forma como ambas prestaram os seus esclarecimentos, longe de ser uma impossibilidade lógica, é lógica, assenta nos critérios do princípio da livre apreciação da prova e das regras de razoabilidade humana e de senso comum.
A arguida insurge-se contra o facto de o Tribunal ter conferido credibilidade à versão dos factos apresentada pela BB, no confronto com todas as restantes testemunhas com excepção de CC. Mas sem razão.
É que num sistema, como o processual penal português, de livre apreciação da prova, não tem qualquer eficácia jurídica o aforismo “testis unus testis nullus”, pelo que, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ilidir a presunção de inocência e fundamentar uma condenação, do mesmo modo que as declarações do arguido por si só, isoladamente consideradas, podem fundamentar a sua absolvição.
«É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187)» (Ac. da Relação de Guimarães de 07.12.2018, processo 40/17.0PBCHV.G1, in http://www.dgsi.pt).
E o que é, igualmente, certo é que um testemunho pode não ser necessariamente todo verdadeiro, nem necessariamente todo falso e ainda assim ser perfeitamente válido para fundamentar a convicção do Tribunal na consideração como provados de todos ou parte dos factos sobre que tenha incidido, desde que, à luz das regras de experiência comum, dos critérios de razoabilidade humana, das regras da ciência ou da técnica ou do valor probatório pleno de determinados meios de prova pré catalogados pela lei com essa especial eficácia, nas correlações que o Tribunal possa estabelecer com os demais meios de prova, tal depoimento se mostre credível e consistente.
Ora, foi o próprio tribunal do julgamento que começou por constatar a existência de apenas dois relatos acerca dos factos com aptidão suficiente para lhe permitir julgar provados os descritos de 1 a 15 – as versões da vítima BB e a da testemunha CC colega e amiga da ofendida e, com recurso a critérios de razoabilidade, de lógica das coisas e a regras de experiência e senso comum, que expôs com detalhe e de forma clara, indicou as razões pelas quais atribuiu credibilidade à versão apresentada pela ofendida.
Essa explicação é lógica, coerente, verosímil e está respaldada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP.
Em contrapartida, a recorrente centrou a sua insurgência contra a decisão de facto na análise de depoimentos que além de terem sido interpretados nos exactos termos que defluem quer das transcrições acima referidas, quer dos argumentos invocados no recurso, nem sequer foram levados em conta, precisamente, por essas razões, para a consideração como provados e como não provados dos factos impugnados pela arguida recorrente.
Daí que toda a argumentação expendida no recurso é inábil e jamais seria adequada a integrar o erro de julgamento e, por via dele, a alteração da matéria de facto, pois que se dirigiu a meios de prova que, pura e simplesmente, não foram considerados como fundamentos da convicção do julgador.
Ainda no que se refere ao facto não provado b) a recorrente alicerça o desacerto que imputa ao Tribunal numa espécie de confissão ficta do Mº. Pº., em virtude de, como alegou, nos artigos 427 e 428 e na conclusão 58 do recurso «tal facto decorre da matéria alegada na Contestação - que o Ministério Público, em sede de julgamento, nunca pôs em causa -, na qual se escreveu:
«86.° Por outro lado e relativamente à relação de domínio, apesar da oposição da Arguida e da advertência para deixar as plataformas digitais e os jogos on-line, a Ofendida continuava a desobedecer à mãe, audaciosamente e com total despudor das consequências de tal desobediência.
«428. Assim, ao contrário do estabelecido na sentença, o facto b. deu-se incorretamente como não provado».
Esta última alegação é totalmente descabida e sem fundamento legal: em processo penal não existem, nem ónus de impugnação especificada, nem efeitos cominatórios associados ao silêncio ou ausência de contraditório de uns sujeitos processuais em relação aos argumentos de facto e/ou de direito invocados por outros, como sucede no processo civil, logo, não é porque o Mº. Pº. ou, seja quem for, coloca ou deixa de colocar em causa as afirmações proferidas na contestação que os factos aí alegados passam a ter de se considerar como provados.
Por fim, no que se refere ao elemento subjectivo do tipo.
O art. 14º C. Penal densifica as três diferentes formas que pode assumir o dolo. Relativamente ao dolo directo, o nº 1 do artigo citado preceitua que «age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar».
O princípio da livre apreciação da prova genericamente consagrado no artigo 127º do CPP, assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no art. 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.
Este sistema de livre apreciação da prova tem várias implicações, desde logo, no que se refere ao processo de fixação da matéria de facto e da sua exposição, na decisão final, quanto à formação da convicção do Tribunal e às exigências de fundamentação da decisão de facto, nos termos previstos no art. 374º nº 2 do CPP.
A apreciação da prova é livre, mas não arbitrária. Tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objectivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.
Em contrapartida, a prova indirecta é aceitável e usada como alicerce da convicção em plano de igualdade com a prova directa, desde que verificados determinados pressupostos.
O juízo de inferência converter-se-á em verdade convincente se a base indiciária, plenamente reconhecida mediante prova directa, foi integrada por uma pluralidade de indícios (embora excepcionalmente possa admitir-se um só se o seu significado for determinante), que no confronto outros possíveis contraindícios, estes não neutralizem a eficácia probatória dos factos indiciantes e que a associação de uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum sustente uma conclusão inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano ( neste sentido, Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral, «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, out.-dez. 2011, pp. 185-222; Paulo de Sousa Mendes, A Prova Penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002).
Tal como o Tribunal Constitucional vem decidindo, o artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição ( Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
As presunções judiciais são meios de prova e um mecanismo de resolução de estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.
Entre os quais se incluí o dolo.
O dolo é um fenómeno psicológico que, situando na vida interior de cada um, só é observável diretamente por quem o experiencia. Da sua natureza subjetiva, nasce a sua insusceptibilidade de apreensão directa por terceiros.
Assim como acontece em geral com os actos interiores ou factos internos, respeitantes à vida psíquica, que raramente se provam directamente, porque não são externamente observáveis, também a demonstração da existência do dolo é frequentemente feita por inferência ou dedução lógica, partindo dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos e demais circunstâncias que contextualizam a prática do crime.
E, assim se prova o dolo, com base em prova indirecta, tão válida quanto seria, caso o arguido tivesse confessado integralmente e sem reservas os factos.
«A prova do dolo faz-se, normalmente, de forma indirecta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência, pelo que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente.» (Ac. da Relação de Lisboa de 15.12.2015, processo 200/15.9PBOER.L1-5. No mesmo sentido Ac. da Relação do Porto de 18.03.2015, processo 400/13.6PDPRT.P1, de 31.10.20218, proc. 423/16.3PBVLG.P1, da Relação de Lisboa de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação do Porto de 10.11.2021, proc. 229/19.8GCVFR.P1in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Gonzalez Lagier in La Prueba de la Intención y el Principio de la Racionalidad Mínima, http://dialnet.unirioja.es/servlet/dcfichero_articulo?codigo=964175).
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do silêncio do arguido e das presunções judiciais e tendo presente o artigo 6º da CEDH no seu acórdão de 20.03.2001 (Caso Telfner c. Áustria), também considerou que «as presunções legais (de culpa) e o juízo que se faça do silêncio do arguido não são, em regra e só por si, incompatíveis com a presunção de inocência».
Do mesmo modo, o Tribunal Constitucional vem decidindo, o artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição ( Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
O Tribunal fundamentou os motivos por que deu como provados os factos descritos em 13 a 15, seguindo as regras da prova indirecta, nos termos acima expostos:
«No que respeita aos factos referentes ao elemento subjetivo (pontos 13. a 15.) - a afirmação do dolo e da consciência da ilicitude -, sendo impossível ao aplicador do direito adentrar-se no âmago do psiquismo humano, infere-se dos elementos objetivos do tipo de ilícito, em conjugação com as máximas da experiência comum e o normal decorrer da vida.
«De facto, tendo em conta os factos provados, não temos dúvidas de que a arguida, com a sua conduta, sabia que provocava na sua filha menor, medo e inquietação, que perturbava a sua paz e o seu sossego, que a ofendia, humilhava, a subjugava, de uma forma incompatível com a dignidade humana, causando-lhe sofrimento, vergonha e humilhação.
«Por outro lado, a arguida é uma pessoa de normal entendimento pelo que não podia deixar de entender os efeitos das suas condutas e de saber que elas eram e são proibidas e puníveis, mas mesmo assim decidiu atuar».
Na medida em que a arguida optou por exercer o seu direito ao silêncio e face à expressiva natureza dos factos à sua gravidade e reiteração, o que seria atentatório das regras de senso comum e de razoabilidade humana, logo, ilegal e arbitrário, seria terem sido considerados não provados os factos descritos em 13 a 15.
Não houve, pois, qualquer violação do princípio «nulla poena sine culpa».
A impugnação ampla da matéria facto tem, pois, de ser julgada totalmente improcedente.
Resta a apreciação do princípio «in dúbio pro reo».
A violação do princípio in dubio pro reo pode ser tratada como erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410º nº 2 al. c) do CPP, na medida em que introduz um critério vinculativo de decisão perante factos incertos e uma limitação normativa ao princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 127º do CPP.
«A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de incerteza, de dúvida, quanto aos factos dados como provados e não provados, o que não sucede se não se detecta na leitura da decisão recorrida, nomeadamente, da fundamentação da matéria de facto, qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados» (Ac. do STJ de 27.04.2017, proc. 452/15.4JAPDL.L1.S1, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido e na mesma base de dados, v.g., Acs. da Relação de Coimbra de 25.02.2015, proc. 28/13.0GAAGD.C1 e de 18.03.2020, proc. 93/18.4T9CLB.C1 e Ac. da Relação de Lisboa de 04.02.2020, proc. 478/19.9PBPDL.L1).
Mas, porque, nos termos do art. 428º do CPP, os poderes de cognição do tribunal da Relação incluem os factos fixados na primeira instância e, na medida em que, além de limite ao princípio da livre apreciação da prova, o in dubio pro reo é uma vertente processual do princípio nulla poena sine culpa, a sua inobservância também pode e deve ser apreciada como um erro de julgamento, nos termos regulados pelo art. 412º do CPP, desde que o recorrente cumpra o ónus de impugnação especificada previsto nos seus nºs 3 e 4.
Nesta perspectiva, o enquadramento da violação do in dubio pro reo como erro de julgamento, postula uma concepção objectiva da dúvida (diversamente da concepção subjectiva, que releva na apreciação do in dubio pro reo como vício decisório), quanto aos factos desfavoráveis ao arguido, que é, de resto, a que melhor se coaduna com os princípios da culpa e da livre apreciação da prova, perante as dúvidas sobre os factos desfavoráveis ao arguido, no sentido em que, se o Tribunal tem a máxima liberdade, mas também a máxima responsabilidade na forma como deve, com objectividade, efectuar o exame crítico e global das provas, adquirir a sua convicção quanto aos factos provados e fundamentar a sua decisão, também a dúvida relevante para a aplicação do princípio «in dubio pro reo» terá de ser motivada, segundo critérios de razoabilidade e de lógica, igualmente sindicáveis e passíveis de impugnação em via de recurso.
Assim sendo, também haverá violação do princípio «in dubio pro reo», sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto, mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão (concepção subjectiva) (cfr. nesse sentido, Acs. da Relação de Évora de 19.08.2016, processo 36/14.4GBLLE.E1, da Relação de Lisboa de 29.11.2016, processo 18/14.6PFLRS.L1-5; de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2 e de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1 e da Relação do Porto de 12.01.2022, proc. 285/18.6GAARC.P1 de 21.06.2023, proc. 14110/18.4T9PRT.P1 e de 27.09.2023, proc. 480/18.8T9STS.P1, in http://www.dgsi.pt).
No entanto, para que o Tribunal da Relação possa detectar a violação do in dubio pro reo, como erro de julgamento e segundo a concepção objectiva da dúvida, nos termos acima expostos, é preciso que o recorrente cumpra cabalmente os ónus primário e secundário de impugnação especificada de que o art. 412º faz depender o êxito da pretensão de reavaliação da prova produzida e de subsequente sindicância da convicção do Tribunal do julgamento sobre essa prova produzida em primeira instância.
O que acontece é que, no que se refere à concepção subjectiva da dúvida, do texto da sentença recorrida nada permite afirmar o vício decisório do erro notório ou qualquer outro.
Pelo contrário, da simples leitura da sentença não resulta que se tenha retirado de qualquer dos factos uma conclusão manifestamente inaceitável, à luz da lógica ou de critérios de razoabilidade, nem que tenha sido considerado provado algum facto de verificação notoriamente impossível, ou sido dado como não provado algo que resulta evidente que aconteceu, nem qualquer ambiguidade, ou contradição entre os factos ou entre os factos e a motivação ou entre algum destes items e a fundamentação de direito e a decisão, do mesmo modo que não se detecta a falta de realização de alguma das diligências probatórias tidas por necessárias para o apuramento da verdade dos factos constantes da acusação, ainda possíveis, mas pura e simplesmente omitidas.
Já na dimensão objectiva, em face do que ficou dito sobre a inaptidão dos argumentos do recurso para integrarem de forma eficiente a impugnação ampla da matéria de facto e à forma como exame crítico da prova foi realizado e ao processo lógico dedutivo feito pelo Tribunal e transposto para o texto da motivação da decisão de facto, a dúvida razoável foi ultrapassada e os factos julgados provados têm respaldo total em critério de lógica e razoabilidade humana e bem assim, nas regras de experiência comum.
Nada há a alterar à matéria de facto tal como a mesma foi fixada na sentença recorrida que, pelo seu acerto, merece ser totalmente confirmada.
E do mesmo modo que nada haverá a alterar à qualificação jurídica dos factos que estão muito longe de configurarem um simples crime de ameaça.
A protecção do cônjuge e de menores de idade, contra os maus tratos surgiu, pela primeira vez, na versão originária do Código Penal de 1982, através do art. 153º nºs 1, 2 e 3, vindo a sofrer alterações com a revisão do Código Penal em 1995, passando a integrar o art. 152º, o qual foi alterado pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, e ainda pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio.
Posteriormente, com a evolução no tratamento destas matérias, o artigo 152º sofreu as alterações resultantes da 23ª alteração ao Código Penal, operada pela Lei nº 59/2007, de 4/09, que lhe conferiu nova redacção, tendo sido epigrafado por este diploma com a expressão “violência doméstica”.
O legislador de 2007 previu expressamente que o tipo não exige a reiteração (na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei n.° 59/2007, de 4/9, escreveu-se: «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa»), alargou a tutela penal da norma para incluir as relações familiares pretéritas e as relações parentais não familiares, exemplificou algumas das condutas integradoras do conceito de “maus tratos físicos ou psíquicos” - castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
Os maus-tratos de outra natureza e as regras de segurança passaram então a ser tipificados autonomamente nos artigos 152º-A e 152º-B.
No essencial, o ilícito em causa, alterado mais recentemente pela Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro, continua a punir, em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
O bem jurídico protegido com esta incriminação é, em geral, a dignidade humana, enquanto bem jurídico plural e complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, no âmbito de específicas relações pessoais, ou seja, a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação, ou de relação filial ou outra, de diferente natureza, mas que implique coabitação.
«A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana» (Américo Taipa de Carvalho, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, pág. 332), embora em contextos muito particulares de subordinação existencial, no âmbito duma relação de coabitação conjugal ou análoga, ou outra forma estreita de relação de vida, incluindo de namoro, protegendo «a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral» (Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305. No mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42; Augusto Silva Dias, Materiais Para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110).
Do ponto de vista objectivo, a consumação de violência doméstica pressupõe, por conseguinte, a existência de uma determinada relação existencial entre o agente e a vítima de natureza familiar, afectiva ou de coabitação, «uma proximidade existencial efectiva», que não incluí «meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade».
Assim, antes de mais, «ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a)» (André Lamas Leite in A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia, Revista Julgar, n.º 12 Especial, 2010, ASJP, pág. 52).
Por isso, a vítima, ou sujeito passivo de tal crime, tem de ter, numa relação com o autor do facto, a qualidade de cônjuge ou ex-cônjuge; de pessoa com quem o arguido mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges (ainda que sem coabitação), situação que se traduz:
a) na união de facto entendida como comunhão de mesa, cama e habitação, ou
b) numa situação idêntica à de união de facto com comunhão de mesa e cama, mas sem coabitação, no fundo fazendo vida em comum (mas não habitando juntos), ou formando um casal;
c) Ou nalguma das restantes relações parentais e/ou de coabitação enumeradas no art. 152º do CP.
Porque não prescinde desta específica qualidade relacional no autor do facto, o crime de violência doméstica é um tipo específico, do mesmo modo que, vítima, só poderá ser a pessoa que tenha com aquele tal tipo de relacionamento conjugal ou equiparado, de relação parental ou, a outro título, de dependência existencial (que esteja à sua guarda, sob os seus cuidados ou sob a responsabilidade da direcção ou educação do agente).
«Actualmente, a violência doméstica abrange todos aqueles que no mesmo seio familiar possam sofrer constrangimentos físicos, psíquicos, sexuais ou monetários, sejam homens, mulheres, cônjuges, filhos, maiores ou menores de 18 anos, pais ou mães. A pretensão do legislador passa por reunir num mesmo tipo de crime uma multiplicidade de comportamentos agressivos – punidos autonomamente em tipos legais de crime – e de sujeitos envolvidos, de forma a harmonizar procedimentos sempre que a prática do crime se baseie na quebra ou violação da relação de proximidade e confiança entre agressor(a) e vítima.
«A previsão manifesta um concreto conhecimento da realidade social, atribuindo a esta “relação de proximidade e confiança” vários sentidos e qualificações. Assim, estão abrangidos no âmbito passivo da incriminação, aqueles que mantêm ou mantiveram relações conjugais ou equiparadas, com pessoa do mesmo ou de outro sexo, os ascendentes ou descendentes, os parceiros de relações fugazes ou esporádicas quando daí resulte um descendente comum ou qualquer outra pessoa que se encontre dominada pela relação especial que detém com o agressor, como sucederá nas relações de namoro. Destaca-se, em especial, a preocupação do legislador em enquadrar aqui as relações de namoro e os actos violentos exercidos contra crianças e idosos que são grupos de vítimas particularmente indefesas.» (Sara Margarida Novo das Neves Simões, O crime de Violência Doméstica: Aspectos materiais e processuais, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito – Escola de Lisboa, Março de 2015, p. 31).
Porém, trata-se de um crime específico impróprio, na medida em a qualidade do autor do facto ou o dever que sobre ele impende, não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar (neste sentido, BBB, Dos Maus Tratos a Cônjuge à Violência Doméstica: Um Passo na Tutela da Vítima, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, nº 107, pág. 97 e Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª edição, AAFDL, 2007, pág. 111).
Isto, quando as condutas integradoras do crime de maus tratos, isolada e autonomamente consideradas, já constituam crime (v.g. os maus tratos físicos que traduzirão sempre ofensas à integridade física e certas modalidades de maus tratos psíquicos que se reconduzem a crimes de injúria, ameaça, difamação, sequestro, coacção).
Se as condutas não configurarem, em si mesmas consideradas, qualquer outro ilícito penal, como tal previsto na parte especial do CP, o crime de maus tratos será, então, um crime específico próprio (pois, nestes casos, como quando se submete a vítima a actividades perigosas ou a trabalhos excessivos, a certas formas de crueldade, é a qualidade do agente que constituí o motivo da incriminação).
O crime consuma-se com a conduta causalmente adequada a provocar maus-tratos físicos ou maus-tratos psíquicos que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Os maus-tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente e, por regra, em ofensas corporais, enquanto que os maus tratos psíquicos correspondem a condutas que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam a actos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., puníveis, em si mesmas, como crimes de injúria e difamação, ou ameaça, sequestro ou coacção quer não.
Com efeito, no tipo está incluída uma vasta gama de condutas, desde comportamentos que isolada e objectivamente analisados são apenas ética e socialmente censuráveis, mas acabam por assumir relevância jurídico-penal, como modos de execução do crime de violência doméstica, até comportamentos que, em si mesmo considerados, correspondem a outros tipos de ilícito penal, como sejam, os crimes de ofensa à integridade física, nas suas diferentes modalidades; de ameaça simples ou agravada, de coacção simples, de difamação e injúrias, simples ou qualificadas, mas que, por efeito da sua subsunção a uma única norma incriminadora, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma e ganham uma nova dimensão normativa, justamente, a do crime de violência doméstica (Teresa Féria, in Ousar Vencer a Violência sobre as Mulheres na Família - Guia de Boas Práticas Judiciais Capítulo I Sobre O Crime De Maus-Tratos Conjugal, editado em NOVOS, pela Associação Portuguesa de Mulher Juristas, e publicado in www.AMJP.pt.; Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, BMJ 335-5; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466; André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 45).
Para que tal suceda é imperativo que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da tal relação de proximidade e vinculação existencial entre o agente e a vítima, pela sua natureza e pelos efeitos que possam ter na possibilidade da vida em comum, ou de manutenção das relações de diferente natureza de entre as enumeradas no art. 152º do CP, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento lesivo da sua saúde física e mental, incompatível com a sua dignidade e liberdade, nesse contexto de intimidade.
Assim, se na ponderação da «imagem global do facto», a conduta ou as condutas revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, ou seja, gravidade ou intensidade suficientes para colocar em crise o bem jurídico protegido com a incriminação da violência doméstica, será aplicável o citado art. 152º do CP.
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os contornos acima referidos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, os quais reassumem a sua autonomia, à luz de cada um dos tipos legais que os preveem, se e quando praticados sem esta tónica de tratamento cruel, desumano e degradante, ofensivo da personalidade da vítima, considerada na sua globalidade e de afronta intensa ou reiterada à sua dignidade, ao seu bem estar físico, psíquico e emocional e à sua liberdade individual de decisão e acção, animadas do propósito de predomínio e de manutenção de uma relação de abuso de poder e de controlo sobre a mesma.
Com efeito, o traço distintivo que permite conferir esta forma específica e reforçada de tutela, mediante a incriminação do art. 152º do CP a condutas que sem essa especial incriminação só seriam social ou moralmente censuráveis ou só seriam enquadráveis como crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, de ameaças simples ou agravadas, de coacção simples, de sequestro simples, de coacção sexual, de violação, de injúria ou de difamação, etc., é a existência de um «estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.» (Plácido Conde Fernandes In “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal” – Revista do CEJ, n.º 8, 1,º semestre, página 307).
«Para este efeito (da incriminação pelo tipo legal de violência doméstica), deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto» (Nuno Brandão, in Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 9 a 24. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 10.09.2014 proc. 648/12.0PIVNG.P1; de 15.12.2016 proc. 192/15.4GBVFR.P1 e de 13.11.2019, proc. 109/19.7GAARC.P1; Ac. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 113/10.0TAVVC.E1; de 30.06.2015 proc. 1340/14.7TAPTM.E1, de 22.11.2018, proc. 526/16.4 GFSTB.E1 e de 11.07.2019, proc. 627/17.1GDSTB.E1, Acs. da Relação de Lisboa de 07.10.2015, proc. 735/14.0PLSNT-3; 4.10.2016, proc. 311/15.0JAPDL.L1-5; de 7.02.2017, proc. 1816/14.6PFLRS.L1-5; de 01.06.2017, proc. 3/16.0PAPST.L1, de 13.02.2019, proc. 428/17.7PCSNT.L1-3, de 18.09.2019, proc. 1745/17.1PBFUN.L1 e de 08.01.2020, proc. 56/17.7T9OER.L1-3; Acs. da Relação de Coimbra de 17.01.2018, proc. 204/10.8GASRE.C1 e de 07.02.2018, proc. 663/16.5PBCTB.C1, de 20.02.2019, proc. 335/17.3PBCTB.C1, de 18.12.2019, proc. 169/18.8PBCLD.C1 de 05.02.2020, proc. 71/16.8GGCBR.C1, in http://www.dgsi.pt).
No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no art. 14º do Código Penal.
O factor intelectual do dolo do crime de violência doméstica consiste no conhecimento dos seus elementos objectivos, ou seja, é sempre necessário que o agente saiba que está a infligir maus-tratos físicos ou psíquicos a terceiro com o qual mantém uma relação de proximidade e a componente volitiva do dolo traduz-se no acto de querer a conduta típica. (Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 334).
Os comportamentos da arguida dirigidos à própria filha atentam contra direitos fundamentais da BB do ponto de vista da sua integridade física e psíquica, da sua dignidade e bem-estar emocional, traduzindo múltiplos castigos físicos, privações da liberdade individual e tranquilidade da menina, violações dos deveres de respeito pela sua honra e bom nome, que ultrapassam largamente o simples anúncio de um mal futuro apto a diminuir ou retirar a liberdade de acção e decisão da pessoa a quem é feito esse anúncio em que se traduz a conduta objectiva típica do crime de ameaça tal como este se encontra previsto no art. 153º do CP.
Tal como resultou da prova produzida, no período compreendido entre Abril de 2020 e Abril de 2022, a arguida apelidava a filha, menor de idade, de vagabunda, miserável e filha da puta, pelo menos com carácter semanal, enviava-lhe mensagens à ameaçando-a que lhe batia quando esta chegasse a casa, com periodicidade pelo menos mensal; em três ocasiões diferentes e no decurso de discussões no domicílio comum, muniu-se com uma faca de cozinha e, dirigindo-se à BB, com a faca em riste, disse à mesma que a iria cortar aos pedaços e deitá-la pela sanita.
Também se provou que, com periodicidade quinzenal, a arguida desferia pancadas em diferentes partes do corpo da filha, nomeadamente, com a mão aberta e com uma sandália/chinelo e, numa das vezes, com o auxilio de um cabide e, ainda, que, numa ocasião, e como forma de a castigar, a arguida obrigou a menor BB a tomar banho, de água totalmente fria, apontando-lhe o chuveiro de água fria para a cara.
E no que concerne às mensagens cujos conteúdos vêm descritos no ponto 6 da matéria de facto é assinalável a violência, a maldade e a crueldade das afirmações que as integram.
Vem a despropósito, diga-se, a recorrente invocar uma espécie de dever de educação ou de correcção decorrente da dependência de redes sociais e jogos online que a BB denotava, depois de a arguida lhe ter comprado um telemóvel e do abaixamento no rendimento escolar, atribuído a esse facto e a uma influência negativa da testemunha CC.
Em determinados contextos, muito específicos e verificados determinados pressupostos, o poder de correcção dos pais sobre os filhos poderá constituir uma causa de exclusão da ilicitude do crime de violência doméstica (ou de ofensa à integridade física, ou coacção ou ameaça, ou qualquer outro tipo de crime que proteja bens jurídicos de que o filho seja titular), se exercido com finalidade exclusivamente educativa, na justa medida em que se mostre ter sido necessário, adequado e proporcional (cfr.Taipa de Carvalho, Comentário do artigo 152º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, dirigido por Figueiredo Dias, 2ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 520 e 521; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica editora, 2008, p.142; Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Revista do CEJ, n.º 8 (Especial – Jornadas sobre a revisão do Código Penal), Coimbra: Almedina, 2008), ou pode até ser penalmente atípico se exercido dentro dos limites da chamada teoria da adequação social (Paula Ribeiro de Faria, Acerca da fronteira entre o castigo legítimo de um menor e o crime de maus tratos do art. 152º do Código Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, nº 2, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p.336-341 e em A Adequação Social da Conduta no Direito Penal – Ou o Valor dos Sentidos Sociais na Interpretação da Lei Penal, Universidade Católica Editora, Porto, 2005, p.607 a 609).
Seja como for, o poder de correcção não pode ser desligado do dever de educação dos filhos, a que os pais estão vinculados, por efeito desse vínculo familiar e, por essa razão, inserido no conjunto de poderes-deveres que integram o exercício das responsabilidades parentais, logo, o seu exercício deve assumir carácter excepcional.
Sob a epígrafe “responsabilidades parentais” o art. 1878º do CC refere que as relações entre pais e filhos não deverão ser relações de autoridade e subordinação, mas de respeito mútuo.
Por seu turno, o artigo 36º nº 5 da Constituição da República Portuguesa estabelece que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e, no seu nº 6, reconhece à criança o direito de desenvolver a sua personalidade na companhia e com a assistência de seus pais, excepto nos casos em que, por decisão judicial, fique demonstrado que não têm aptidão ou possibilidade de assegurar o bem-estar físico, psíquico e material do filho.
Em concretização destes princípios constitucionais, os arts. 1874º nº 1 e 1878º nº 2 do CC do CC dizem que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens, sempre com respeito pela personalidade dos filhos.
A promoção do desenvolvimento físico, moral e intelectual da criança (art. 1885º do CC), a protecção da segurança, da saúde da formação moral e da educação da criança (art. 1918º do CC) e todas as normas que consideram a vontade da criança como um factor decisivo na resolução de questões que dizem respeito à sua vida (art. 1878º nº 2 e 1901º nº 2 ambos do CC) integram o conteúdo do poder paternal e do poder dever de educação.
Os pais são, por conseguinte, os primeiros responsáveis pela promoção e desenvolvimento físico, intelectual e moral dos seus filhos.
A lei atribui os mesmos direitos e deveres contidos nas responsabilidades parentais (1878º) aos pais (1878º e 1901º e ss) ou a terceiros que as exerçam (1907º) ou ainda a qualquer tutor (1935º).
O processo de educação de uma criança (na acepção de ser humano com idade inferior a 18 anos, usada na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de Novembro de 1989) envolve muitos constrangimentos: dizer não, quando é necessário para evitar que os filhos cometam erros que lhes trarão certamente prejuízos ou a terceiros, ensinar e impor regras, introduzir certas restrições e até aplicar castigos (v.g., a privação temporária de uma determinada actividade lúdica) que tenham a virtualidade de lhes fazer compreender certos princípios e valores de actuação e de lhes permitir, no futuro, adequarem o seu comportamento, com essas regras de conduta, quer em relação a si próprios, quer na sua interacção com os outros e com o ambiente exterior em que se inserem, é um processo longo, com diferentes níveis de aprendizagem, que envolve uma certa economia de esforço, com diferentes graus de assertividade ou obediência coerciva, ajustados à idade, ao grau de maturidade e às características de personalidade da criança.
O que, em qualquer que seja a hipótese, não está garantidamente incluído no poder de correcção dos pais sobre os filhos, são castigos corporais ou de qualquer outra natureza que não sejam absolutamente necessários, adequados, proporcionais e razoáveis à gravidade da conduta praticada pelo filho, sendo essa gravidade medida pela necessidade de o fazer entender o significado e repercussões negativas do seu modo de proceder ou de pensar e de lhe dar as necessárias competências pessoais para não repetir.
Acontece que para prossecução deste desígnio, não são aptos, muito menos admissíveis, pseudo direitos à agressão física, à ameaça, à intimidação ou a qualquer outro tipo de agressão psicológica, que são totalmente incompatíveis com os princípios da tutela da integridade pessoal e dignidade humana anunciados nos artigos 1º, 25º e 26º da CRP e, além disso, integram o conceito de maus tratos físicos e psicológicos típicos da incriminação da violência doméstica contida no art. 152º A nº 2 do Código Penal.
Em sintonia, com estes princípios, o art. 69º nº 2 da Constituição consagrou expressamente o direito das crianças a serem defendidas contra o exercício abusivo de autoridade na família, sem qualquer ressalva ao direito de correcção.
O poder de correcção não é, pois, uma espécie de cheque em branco que legitime os pais a punirem os filhos, praticando a pretexto do seu exercício, todas as espécies de ofensas corporais e outras violações da liberdade pessoal, da honra ou da reserva da vida privada dos filhos, sempre que estes não se comportem segundo as suas expectativas ou padrões de exigência ou, simplesmente, para neles descarregarem as suas frustrações. Está funcionalmente concebido para servir as finalidades de educação e preparação do filho para a vida adulta, de acordo com o seu superior interesse e assim deverá ser exercido, sem qualquer intuito punitivo ou de retaliação, com critério, com respeito pela dignidade do filho, com moderação, proporcionalidade e com finalidades estritamente pedagógicas.
«O poder de correcção dos pais mantém-se, embora não autonomizado do poder-dever de protecção e orientação, a encarar sem carácter punitivo, dentro dos limites da autoridade amiga e responsável que a lei atribui aos pais, que só pode ser exercida sem abusos, no interesse dos filhos e com respeito pela sua saúde, segurança, formação moral, grau de maturidade e autonomia (Armando Leandro, “Poder paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, in AAVV, Temas de Direito da Família, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1986, pp. 126 e 127).
«De acordo com o art. 1878º n.º 1, os pais têm o poder de guarda e educação, de velar pela segurança e saúde do filho, o dever de prover ao sustento, o poder de representação e o poder de administração dos bens do filho.
«O poder de correcção deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder-dever dos pais de educar e proteger a criança, de respeitar a sua autonomia e a sua diferença em relação aos pais. O dever de educação dos pais deve substituir a correcção com carácter punitivo. O que não nos parece que afaste a correcção com carácter educativo e é esta que deve admitir-se. O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua integridade física e psíquica. Nem o dever de obediência dos filhos, previsto no art. 1878.º, n.º 2, implica que o seu incumprimento acarrete violência por parte dos pais.
«Educação não significa punição mas implica ensinar e corrigir sem violência (física ou psíquica)» (Cristina Dias, A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção, Revista JULGAR - N.º 4 – 2008, p.15. No mesmo sentido, Maria de Fátima Abrantes Duarte, O Poder Paternal — Contributo para o Estudo do seu Actual Regime, Lisboa, AAFDL, 1994, pp.71-72; a Recomendação 1666 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa de 2004, sobre a proibição dos castigos corporais às crianças na Europa, as Recomendações do Comité de Ministros do Conselho da Europa 19 de 2006, relativa às políticas de apoio à parentalidade positiva e 1778 de 2007 sobre as crianças vítimas: erradicar todas as formas de violência, exploração e abuso; a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em especial o seu artigo 19º, que impõe aos Estados a obrigação clara de proteger as crianças contra todas as formas de violência, em qualquer circunstância e em qualquer lugar, o Comentário Geral nº 8 da CDC da ONU, de 2006, o Relatório do Conselho da Europa A abolição dos castigos corporais infligidos às crianças Perguntas e respostas de 2008, no âmbito do programa “Construir uma Europa para e com as crianças”, in www.coe.int/children e o Relatório do Conselho da Europa, «Uma Estratégia Nacional Integrada, Directrizes do Conselho da Europa sobre as estratégias nacionais integradas de protecção das crianças contra a violência», in https://rm.coe.int/168046eb83).
O conceito de castigo físico, como um recurso pedagógico ou prática frequente ou habitual de educar para obter a obediência ou a adesão das crianças aos comportamentos desejados pelos pais, não é lícito, nem está autorizado na ordem jurídica portuguesa, que tipifica e pune como crimes todas as agressões à integridade física (e também a diversas dimensões da liberdade individual).
Em contrapartida, um acto isolado, uma palmada poderá e muitas vezes não terá gravidade ou impacto suficientes para despertar dor, raiva, medo ou outras experiências e sentimentos traumáticos, mas se os pais e os adultos em geral se tornam complacentes com este tipo de práticas ou até mesmo se concordam com o acerto do recurso à agressão física, aos gritos, às ameaças, a tendência para manter esse tipo de práticas como um recurso a utilizar em caso de necessidade, tem ínsito o perigo de se converter num hábito porque o suposto «caso de necessidade» vai acabar por se tornar frequente.
É que, não raras vezes, os pais recorrem aos castigos corporais, ou porque perderam a paciência e a capacidade de diálogo construtivo com os filhos, ou para neles descarregarem as suas próprias frustrações, em qualquer hipótese, porque não sabem como controlar e fazer cessar certos comportamentos desobedientes ou inadequados dos seus filhos.
Há todavia, algumas situações excepcionalíssimas em que se pode mostrar contraproducente a intervenção estatal, seja através da promoção e protecção, seja do sistema de justiça penal, por introduzir disrupções na paz e na dinâmica familiar que podem trazer mais prejuízos do que benefícios.
Trata-se de situações em que não obstante a relação filial ser afectivamente gratificante e segura para todos os membros da família e, regra geral, tranquila e não disfuncional, numa situação isolada e extemporânea, ocorre uma ofensa simples.
Ou quando o uso da força física se dirige a outra das diversas dimensões das responsabilidades parentais que entroncam já não no dever de educação, mas noutros deveres como os de cuidado e vigilância, como acontece, por exemplo, quando o recurso à força física seja o único mecanismo apto a impedir uma criança de assumir um comportamento autolesivo ou perigoso para si mesmo.
Ou quando, no contexto de conflituosidade entre os pais, após a ruptura conjugal, na disputa pela guarda e fixação de residência do filho em sede de regulação das responsabilidades parentais, se exponencia a gravidade de uma ofensa simples, apenas para obtenção de certos efeitos ou percepções junto do Juiz do processo e/ou das equipas de mediação familiar ou de audição técnica especializada, como método de convencimento da bondade dos seus argumentos.
Haverá ou não que ponderar a existência de um conflito de direitos (causa de exclusão da punibilidade).
Fora deste tipo de situações, não existe argumento algum que justifique que uma ofensa à integridade física contra uma criança não seja protegida pelo direito e pelo direito penal em especial, nos mesmos termos que uma ofensa à integridade física contra um adulto é sancionada, porventura, que até lhe confira uma protecção acrescida, em atenção à sua vulnerabilidade resultante da sua idade, de ter a sua personalidade ainda em desenvolvimento e de, por efeito da sua menoridade, estar dependente dos pais e/ou de outros cuidadores a cuja guarda tenha sido confiado de facto ou de direito, o que a coloca numa situação eventualmente mais frágil por isso mais exigente quanto à tutela da sua dignidade humana e à protecção reforçada dos seus direitos que a ordem jurídica lhe deve reconhecer, em conformidade com as exigências do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da CRP.
Mas precisamente por isso é que a criança é sempre vítima especialmente vulnerável quando sujeita a qualquer forma de violência física, psíquica ou contra a sua autodeterminação sexual, estando «ope legis» associados a esse estatuto todo um conjunto de direitos processuais e extraprocessuais direcionados a uma tutela reforçada, em atenção à sua idade e às necessidades, entre outras, de obviar à sal revitimização (cfr., a propósito o art. 67º nº 3 do CPP e as Leis 112/2009 de 16.09 e 130/2015 de 04.09).
Por outro lado, o facto de não existir nenhum preceito na lei portuguesa que estabeleça o poder de correção não se deve a uma lacuna da lei, mas a uma intenção deliberada do legislador de banir dos castigos físicos do conteúdo do poder paternal, primeiro e de seguida, das responsabilidades parentais, como de resto se infere do texto da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer expressamente no art. 69º o direito das crianças « à protecção da sociedade e do Estado, [...] especialmente contra [...] o exercício abusivo da autoridade na família».
Logo não tem qualquer cabimento, face à extrema gravidade e violência dos factos descritos em 2 a 9, a invocação feita pela recorrente de «um poder disciplinador».
Quanto à alegada má influência da CC no comportamento da BB, nada nos factos provados consente tal afirmação.
Se, como a recorrente se refere à própria filha, a «ofendida» por diversas vezes, durante a madrugada, acedia a sites de jogos on-line e a redes sociais, como o Discord, «mantinha contacto (noturno) com várias pessoas em várias redes sociais que não conhecia e, por isso, sem conhecer a sua verdadeira identidade, nome, idade, etc.», «trocando, inclusivamente, contactos de telefone» (motivações 101 a 104), e, como a própria recorrente também afirma, este era um comportamento reiteradamente assumido, então o que a recorrente deve perguntar-se a si própria é que medidas educativas, preventivas e de imposição de regras e de limites é que adoptou junto da filha, para obviar a esse tipo de exposição e aos riscos que lhe estão inerentes, assim como ao cansaço e sonolência que até terão interferido com os seus resultados escolares, segundo as transcrições dos excertos dos depoimentos testemunhais prestados por professores e directores de turma da menina.
É que a BB é uma menina com apenas doze anos.
A recorrente, sendo a adulta nesta relação e, como mãe, a especialmente responsável pela protecção e bem-estar físico, psíquico, emocional da própria filha, é que tinha o dever de ter explicado à criança quais são os perigos da utilização indiscriminada da internet e de lhe ter, logo no primeiro momento, restringido o uso do telemóvel e o acesso à internet a períodos do dia específicos, limitados em duração, nunca durante a noite, mas, em qualquer caso, com a sua supervisão ou controle (designadamente, com recurso às múltiplas aplicações electrónicas de controlo parental sobre o uso da internet disponíveis), precisamente, para evitar esses riscos, então sim, cumprindo as suas responsabilidades parentais.
Estes, entre outros, é que eram os seus deveres como mãe e os que devia ter cumprido, de forma pedagógica, responsável e com respeito pela dignidade e integridade física e psíquica da filha e não, garantidamente, agredindo-a verbalmente, amedrontando-a com ameaças de morte, uso de facas, batendo-lhe, dando-lhe banhos de água fria e recorrendo a todos os restantes métodos violentos, de extrema agressividade e abuso, como aqueles que vêm descritos nos factos provados 2 a 9.
Vir agora invocar no recurso de que a filha utiliza contas como o Gacha Heat, cujos vídeos incluem temas totalmente inapropriados e passíveis de tutela criminal, como racismo, sexismo, homofobia, transfobia, abuso e exploração sexual infantil, para além de outras crueldades a que ninguém deveria ser exposto, muito menos, uma menina com apenas doze anos, se for verdade, diz muito mais acerca do desempenho da própria recorrente como mãe, do que da BB.
E o que revela, como se para tanto não bastassem já os factos descritos em 2 a 9 da matéria de facto provada, é que a recorrente exerceu a parentalidade em relação à BB de forma negativa e manifestamente contrária às Recomendações do Comité de Ministros para os Estados-Membros do Conselho da Europa N.º R(84)4 sobre as responsabilidades parentais e N.º R(85)4 sobre a violência na família, sem quaisquer regras ou limites e ainda atentando, sempre que lhe foi possível, contra a dignidade da menina, batendo-lhe severamente, insultando-a, ameaçando-a de morte, aterrorizando e desumanizando uma menina a quem tinha especiais deveres de dispensar cuidado, afecto e protecção, por ser a sua própria filha e que tinha apenas dez, onze e doze anos, quando os factos 2 a 9 foram praticados.
Resultou demonstrado nos pontos 13 a 15 que:
A arguida agiu sempre com o propósito de molestar física e psicologicamente a vítima subjugando-a e provocando-lhe dores, lesões e ferimentos físicos, a sua autodeterminação, provocando-lhe também medo, sofrimento, vergonha, humilhação, vexame, inquietação e indignação, bem sabendo que ao proferir as expressões que proferiu lhe faltava ao respeito devido e que, em virtude da relação estabelecida, recaía sobre si um especial dever de respeito, não se coibindo, contudo, de o fazer, sujeitando-a a um tratamento atentatório da sua dignidade pessoal, bem ainda frustrando o desenvolvimento psíquico e crescimento saudável da sua filha menor.
Ao actuar do modo descrito, por vezes no domicílio da vítima, outras vezes através mensagens de voz que lhe enviava para o telemóvel, a arguida sabia e quis exercer violência física e psicológica contra a sua filha, não se coibindo de molestar o seu corpo e a sua saúde mental, nem de dirigir-lhe expressões injuriosas e promessas de morte.
Em todo o descrito circunstancialismo, agiu de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubesse que o seu comportamento é censurado por lei como crime.
E, por conseguinte, estão verificados de pleno, todos os elementos constitutivos do crime de violência doméstica por que a arguida foi condenada, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Também nesta parte, o recurso improcede.
DECISÃO
Termos em que decidem:
Negar provimento ao recurso e em consequência, confirmar integralmente a sentença recorrida.
Custas pela arguida recorrente, fixando a Taxa de Justiça em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
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Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Juízas Adjuntas.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 22 de Maio de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Maria Margarida Almeida
Maria Elisa Marques